Trump

Thomas L. Friedman: Nunca se esqueçam dos republicanos que tentaram um golpe de Estado

Para que os Estados Unidos voltem a ser um país saudável, os republicanos decentes precisam romper com este Partido Republicano atrelado ao culto de Trump

O Novo Testamento nos pede no Evangelho de São Marcos 8:36: “Que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?”.

Os senadores Josh Hawley, Ted CruzRon Johnson e todos os seus colegas do Partido Republicano que tramaram o golpe claramente esqueceram deste versículo – se é que o conheciam – pois estão dispostos a sacrificar as próprias almas, a alma do seu partido e a alma dos Estados Unidos – nossa tradição de eleições livres e justas como o meio para a transferência do poder – a fim de que Donald Trump continue presidente e um destes sacanas possa eventualmente substituí-lo. 

A “filosofia” em que se baseiam estes republicanos sem princípios que cultuam Trump é incontestavelmente clara: “A democracia é boa para nós enquanto mecanismo que nos permita estar no controle. Se não detivermos no poder, para o inferno com as normas e para o inferno com o sistema. O poder não emana da vontade do povo – ele emana da nossa vontade e da vontade do nosso líder’.

Para que os Estados Unidos voltem a ser um país saudável, os republicanos decentes – no governo e nos negócios -  precisam romper com este Partido Republicano atrelado ao culto de Trump e fundar o seu próprio partido. É uma tarefa urgente.

Mesmo que apenas um pequeno grupo de legisladores de centro-direita que se pautam por princípios – e os grandes empresários que os financiam – rompessem e formassem sua própria coalizão conservadora, eles se tornariam tremendamente influentes no Senado, hoje tão dividido. Eles seriam uma facção crucial na mudança que ajudaria a decidir se uma legislação aprovada por Biden seria moderada ou fracassaria. 

Ao mesmo tempo, o Partido Republicano do culto a Trump se tornaria o que é imprescindível para o país voltar a crescer – uma minoria desacreditada de malucos sem nenhum poder, esperando o último tuíte de Trump para dizer-lhes o que fazer, dizer e em que acreditar.

Eu sei que desmantelar um partido estabelecido não é fácil (presumivelmente). Mas os republicanos dotados de princípios, os que defenderam corajosamente e honestamente a vitória eleitoral de Biden, precisam perguntar a si mesmos: “Dentro de alguns dias, quando tudo isto estiver acabado, voltaremos simplesmente para os nossos negócios usuais, com pessoas que, na realidade, estão tentando o primeiro golpe de Estado legislativo na história do país?

Porque quando este episódio estiver encerrado, Trump fará ou dirá alguma outra coisa ultrajante para prejudicar Biden e tornar a colaboração impossível, e os cachorrinhos de Trump, como Cruz, Hawley, e o líder da Minoria da Câmara Kevin McCarthy, exigirão que o partido continue servindo aos seus interesses políticos, colocando diariamente em dificuldade os republicanos dotados de princípios. Todas as semanas haverá um novo teste de lealdade. 

Simplesmente não há nenhuma equivalência agora entre os nossos dois principais partidos Nas primárias, uma maioria esmagadora de democratas, liderados por afro-americanos moderados, optou por seguir Biden, de centro-esquerda, e não a ala socialista-democrática de extrema esquerda que defende uma polícia sem recursos.

Do outro lado, o partido de Trump tornou-se um culto a ponto de decidir na sua convenção que não ofereceria uma plataforma de partido. Sua plataforma seria tudo o que o seu Amado Líder quisesse a qualquer momento. Quando um partido deixa de pensar – e de traçar uma linha vermelha ao redor de um líder antiético como Trump – ele continuará a arrastá-lo cada vez mais para o abismo, para as portas do Inferno. 

Onde acaba de chegar. 

Vimos neste fim de semana o esforço mafioso de Trump de obrigar o secretário de estado da Geórgia a “encontrar” somente 11.780 votos para ele e declará-lo o vencedor do estado por um voto a mais do que Biden.

E o veremos em uma versão ainda mais feia na sessão de quarta-feira no Congresso. Os que cultuam Trump tentarão transformar uma cerimônia destinada explicitamente a confirmar os votos do Colégio Eleitoral apresentados por cada estado – Biden 306 e Trump 232 - em uma tentativa de levar o Congresso a anular os votos do colégio eleitoral dos estados decisivos que Trump perdeu. 

Se eu fosse o diretor deste jornal, estamparia todas as suas fotos em página inteira sob a manchete “Nunca esqueçam destes rostos: Estes legisladores podiam escolher entre a lealdade à nossa Constituição e a Trump e eles escolheram Trump”. 

Se vocês tinham alguma dúvida de que estas pessoas estão envolvidas em um comportamento sedicioso, seus colegas republicanos mais baseados em princípios não estão. Falando do plano de Hawley de contestar a contagem dos votos, Lisa Murkowski, a senadora republicana do Alaska, declarou: “Eu vou sustentar o meu juramento à Constituição. Este é o teste de lealdade”. O senador Ben Sasse, de Nebraska, acrescentou: “Adultos não apontam uma arma carregada para o coração do auto-governo legítimo”. E o senador Rob Portman de Ohio: “Não posso concordar que se permita que o Congresso modifique a vontade dos eleitores”.

Então, o caucus dos que montaram o complô fracassará. Mas perguntem a vocês mesmos:  E se os aliados de Trump controlassem a Câmara, o Senado e a Suprema Corte e conseguissem o que pretendem – eles usariam algumas das manobras legislativas de última horas e anulariam a vitória de Biden?

Eu sei exatamente o que teria acontecido. Muitos dos 81.283.485 americanos que votaram em Biden teriam ido para as ruas – e eu seria um deles – e provavelmente invadido a Casa Branca, o Capitólio e a Suprema Corte. Trump teria chamado o Exército; a Guarda Nacional, chefiada pelos governadores, teria se dividido e nós mergulharíamos na guerra civil.

Este é o fogo com que estas pessoas estão brincando.

Evidentemente, elas sabem disto – o que torna os esforços de Hawley, Cruz, Johnson e os da mesma laia ainda mais desprezíveis. Eles têm tão pouco respeito próprio que estão dispostos a lamber as botas de Donald Trump até o seu último segundo no cargo, na esperança de herdar os seus seguidores – se ele não voltar a concorrer em 2024. E eles estão contando com uma maioria dos seus colegas mais dotados de princípios que votam para confirmar a eleição de Biden – a fim de garantir que os seus esforços fracassem.

Dessa maneira, eles terão o melhor de todos os mundos – crédito junto aos eleitores de Trump por perseguirem a sua Grande Mentira - a sua alegação fraudulenta de que as eleições foram fraudadas – sem nos mergulhar em uma guerra civil Mas o preço a longo prazo será ainda maior - a redução da confiança de muitos americanos na integridade das nossas eleições livres e honestas, a base de uma transferência pacífica do poder. 

Podem imaginar algo mais cínico?

Como os americanos decentes revidarão, além de pedir aos republicanos de princípios para formarem o seu próprio partido? Tenhamos a certeza de que cobraremos um preço tangível de cada legislador que vota com Trump e contra a Constituição. 

Os acionistas de todas as principais corporações americanas deveriam assegurar-se de que os comitês de ação política destas companhias fossem impedidos de fazer contribuições de campanha para quem quer que seja que participar da tentativa de golpe da quarta-feira. 

Ao mesmo tempo, “nós o povo” precisamos lutar contra a Grande Mentira do culto  de Trump com a Grande Verdade. Espero que cada grande emissora e jornal e todos os cidadãos se refiram a Hawley, Cruz, Johnson e seus amigos agora e cada vez mais como os “conspiradores do golpe”.

Façamos com que todos os que propagaram esta Grande Mentira a respeito das eleições fraudadas para justificar o seu voto em Trump e contra a nossa Constituição carregue o título – “conspirador” – para sempre. Se vocês os virem na rua, em um restaurante, no campus universitário, perguntem educadamente: “Você era um dos conspiradores do golpe, não? Vergonha”. 

Adotemos o método de Trump: Repitamos seguidamente a Grande Verdade até que estas pessoas nunca possam se livrar dela.

Não bastará para sanar tudo o que nos aflige – para isto ainda precisaremos de um novo partido conservador – mas seguramente é necessário dar aos outros uma pausa para tentar isto outra vez. / 

Tradução de Anna Capovilla  


Eliane Cantanhêde: O alvo foi o Capitólio, não as Torres Gêmeas, mas também foi terrorismo

Havia clara previsão de tumultos, depois da ordem de comando de Trump para seus seguidores entrarem em ação. E ele é o grande culpado

Não foi a Al Qaeda, não foram as Torres Gêmeas, não morreram quase três mil americanos, mas ainda assim o que ocorreu na (ainda) maior democracia do mundo não tem outro nome: foi terrorismo, um terrorismo doméstico, interno, contra o Capitólio (o Congresso dos Estados Unidos) e atiçado pelo próprio presidente da República, Donald Trump. E onde estava a Força Nacional?

É de uma gravidade imensa para os EUA e para o mundo, jogando luzes e temores também na democracia brasileira. Não é exagero. Afinal, o presidente Jair Bolsonaro segue todos os passos de Trump, contra o multilateralismo, o Acordo de Paris, a China e todas as orientações científicas no combate à pandemia – da “gripezinha” ao estímulo à cloroquina e ao pouco caso com as vacinas. E, como Trump, ataca o sistema eleitoral, joga denúncias irreais e irresponsáveis de fraudes no ar.

Mas não é só isso. Aqui no Brasil, como lá nos EUA, Bolsonaro e Trump jamais abrem a boca para condenar assassinatos cruéis cometidos por policiais contra negros e pobres, mas fazem todo um jogo de aproximação com as forças policiais e militares. Lá, as Forças Armadas, aparentemente, não caíram na esparrela. E aqui?

Chamam a atenção: 1) o quase embaixador em Washington Eduardo Bolsonaro estar nos EUA, confraternizando com os Trump justamente neste momento; 2) o tuíte misterioso do assessor internacional da Presidência, Filipe Martins, com uma mensagem que parecia ser “a cobra está fumando” e deixou a turba bolsonarista em êxtase, antes de ser apagada; 3) o silêncio do governo brasileiro.

Tudo é chocante: os trumpistas vandalizando o Capitólio, armados, quebrando janelas, ocupando o plenário, o assento e o gabinete da presidente da Câmara, Nancy Pelosi, diante de um punhado de policiais impotentes, assustados e em alguns momentos batendo em retirada.

E não foi por falta de aviso. Havia clara previsão de tumultos, depois da ordem de comando de Trump para seus seguidores entrarem em ação. Trump é o grande culpado. Negacionista, mentiroso, disseminador do ódio, incapaz de aceitar a derrota. Doente.

Ele, porém, não tem apoio apenas daqueles terroristas que invadiram o Capitólio. Tem apoio também de lunáticos de toda ordem que se amparam em ideologias nefastas para estimular armas, maus policiais, militares medrosos ou oportunistas e gerar... mortes.

Trump vai, mas o trumpismo fica e é exportado da maior potência para o mundo. O chanceler Ernesto Araújo dizia que só Deus salva o Ocidente da China e do comunismo. Na verdade, Deus precisa é salvar o mundo de Trump e seus seguidores.  


Merval Pereira: O Bolsonaro dos EUA

A gravidade dos acontecimentos em Washington, onde militantes a favor de Trump cercaram e invadiram o Capitólio, sede do Congresso dos Estados Unidos, impedindo a formalização da eleição de Joe Biden como novo presidente, tem repercussão no mundo ocidental como um todo, e entre nós, que temos um presidente da República que já se mostrou capaz de estimular a tentativa de desacreditar instituições democráticas como o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal.

Veio imediatamente à mente a possibilidade de os mesmos ataques acontecerem no Brasil caso Bolsonaro seja impedido de continuar suas loucuras antes do término do mandato, ou perca a eleição presidencial do ano que vem, como aconteceu com seu ídolo Donald Trump. Bolsonaro já denunciou fraude na eleição presidencial que ele mesmo venceu, e diz que a urna digital é sujeita a manipulações. Pois ele não gosta de ser chamado de “Trump dos Trópicos”?

Ao mesmo tempo em que, na capital, a democracia americana era desafiada por uma horda incentivada pelo próprio presidente da República, na Geórgia, um estado confederado, pela primeira vez na história um senador negro era eleito, o pastor Raphael Warnock, que atua na mesma igreja do Reverendo Martin Luther King. Essa vitória uniu-se a outra, de Jon Ossof, um jornalista e produtor de cinema.

A garantia da maioria no Senado para o partido de Biden foi uma resposta clara do eleitorado americano de apoio a uma mudança radical do novo governante, que terá nos primeiros dois anos as duas Casas do Congresso com maioria para aprovar as reformas que pretende.

As disputas na Geórgia eram fundamentais para ambos os partidos, e ficou claro que Trump não tinha mais forças para vencer no Estado em que ele garante ter vencido a eleição por uma margem grande, quando na verdade a derrota num reduto republicano refletiu a derrota nacional, mesmo que apertada.  

O ainda presidente Trump estimulou desde dias atrás a manifestação de ontem, e, mesmo diante da catástrofe que seus militantes promoveram no Capitólio, levou tempo para enviar mensagem para que voltassem para casa. Mesmo assim, reafirmou que a eleição foi roubada e se solidarizou com a dor de seus militantes. Uma maneira de insistir no erro.

Foi uma tentativa de golpe, que aproximou os Estados Unidos das “Repúblicas de Bananas” que explorou historicamente. Honduras é o país inspirador do termo, cunhado pelo escritor americano O. Henry, pseudônimo de William Sydney Porter, que passou a designar um país atrasado e dominado por governos corruptos e ditatoriais, geralmente na América Central. O principal produto desses países, a banana, era explorado pela famosa United Fruit Company, que teve um histórico de intromissões naquela região, especialmente em Honduras e Guatemala, para financiar governos que beneficiassem seus interesses econômicos, sempre apoiada pelo governo dos Estados Unidos.  

Desta vez, para espanto dos americanos que defendem a democracia, foi o próprio governante dos Estados Unidos quem batalhou durante meses para alterar o resultado eleitoral, apelando para todos os métodos, legais e ilegais, para não sair da Casa Branca. Faltam duas semanas para que o presidente eleito Joe Biden seja empossado, e Trump ainda tenta transformar a derrota em vitória.

Nesse período, Trump usou medidas dignas de uma “República das Bananas”: demitiu mais um secretário de Defesa, Mark Esper. Todos, de uma maneira ou de outra, recusaram-se a adotar planos políticos de Trump. Em uma reunião na Casa Branca, discutiu-se a possibilidade de colocar o país sob lei marcial, para refazer as eleições nos Estados em que Trump afirmava ter vencido.

O uso militar para fins políticos esteve nos cálculos de Trump, tanto assim que vários ex-secretários de Defesa assinaram um manifesto onde afirmam que a eleição acabou e que os militares deveriam ficar de fora do embate político. Muito parecido com o que acontece entre nós, onde um presidente oriundo das Forças Armadas, praticamente expulso por atos de indisciplina, manipula os diversos escalões militares sendo o que sempre foi, um deputado do baixo clero que vive de atender as demandas corporativas dos militares.


BBC Brasil: Autogolpe de Trump fracassou por não ter apoio militar, diz Steven Levitsky

Um acontecimento que não se via nos Estados Unidos desde o século 19

Patricia Sulbarán Lovera, BBC News Mundo

Um grupo de apoiadores do presidente americano, Donald Trump, invadiu e depredou a sede do Congresso dos EUA, em Washington, após ultrapassarem as barreiras montadas por agentes de segurança, em meio a confrontos isolados.

O ato violento no Capitólio na quarta-feira (6/1) ocorreu logo depois que Trump discursou para uma multidão em frente à Casa Branca, a quase 3 km dali, repetindo acusações sem prova e rejeitadas por diversos juízes do país de que houve fraude na eleição em que perdeu para Joe Biden.

O que se viu no Capitólio foram cenas de caos, com congressistas deitados no chão, sendo evacuados e colocando máscaras antigás.

Para o professor de governabilidade da Universidade Harvard, Steven Levitsky, a invasão do Congresso foi uma resposta a "quatro anos de descrédito e deslegitimação da democracia" por parte do Partido Republicano e de Trump.

Levitsky é coautor do livro Como as Democracias Morrem, de 2018, no qual expõe "os sinais alarmantes que põem em risco a democracia liberal dos EUA".

Estudioso também dos processos democráticos e presidenciais da América Latina, Levitsky descreveu a invasão do Capitólio por apoiadores de Trump como uma "tentativa de autogolpe", em entrevista à BBC News Mundo, serviço da BBC em espanhol.

Para ele, "a grande diferença entre esse autogolpe e os autogolpes na América Latina é que Trump foi completamente incapaz de obter o apoio dos militares" e "um presidente que tenta permanecer no poder ilegalmente sem o apoio dos militares tem poucas chances de sucesso".

Segundo sua análise, "a democracia sobreviverá a este dia", mas o que se coloca para o futuro do país é um período de crise bastante incerto.

BBC - Que interpretação o senhor dá para a insurgência de apoiadores de Trump no Capitólio dos Estados Unidos?

Steven Levistky - Pode-se presumir que isso iria acontecer. Donald Trump e muitos, muitos líderes republicanos têm incitado, têm mentido para sua base que os democratas estão arruinando o país e subvertendo a democracia. Eles vêm dizendo isso há cinco anos.

E então, depois de perder a eleição, não só Trump mas também líderes do Partido Republicano estavam lá no Congresso, repetindo a mentira e desacreditando a legitimidade da democracia e das instituições. Depois de anos mobilizando sua base com uma linguagem que incluía termos como socialismo ou traição, pode realmente surpreender que isso esteja acontecendo depois que você perdeu a eleição?

Na história da América Latina, quando os líderes incitam seus seguidores em um ambiente altamente polarizado, as pessoas agem. Palavras têm significado, elas têm poder.

O que me surpreende nisso é como a polícia estava mal preparada.

BBC - Como o senhor interpreta as reações de alguns membros do Partido Republicano e do próprio presidente Trump, que em um tuíte nesta quarta-feira (6/1) pediu a seus apoiadores que não fossem violentos?

Levistky - O presidente já foi radicalmente violento antes e, se não queria que isso acontecesse, precisava agir mais rápido e se mobilizar para evitar. Ele provavelmente não deveria ter sugerido que marchassem até o Congresso. Trump os enviou para lá, ele os incitou a se mobilizarem para o Congresso. O fato de que os líderes republicanos agora estão rompendo com Trump é hipócrita, depois de o apoiarem por anos, mas é importante e positivo. Parece-me positivo ter visto discursos como o de Mitch McConnell (líder da maioria do Partido Republicano no Senado).

BBC - Estamos diante de uma revolução, de um golpe de Estado, de uma insurreição?

Levitsky - É uma variante do que na América Latina chamaríamos de autogolpe. É um presidente mobilizando seus apoiadores para permanecer no poder ilegalmente. Será um autogolpe fracassado, mas é uma insurreição do poder para tentar subverter os resultados da eleição e permanecer no poder ilegalmente. Eu diria que foi uma tentativa de autogolpe.

BBC - Na América Latina, esse tipo de situações que o senhor descreve são prejudiciais à democracia. O senhor diria que este é um momento perigoso na história americana? Diria que a democracia permanecerá forte, e o presidente eleito Joe Biden será empossado em 20 de janeiro?

Levistky -Tenho esperado com terror por este dia na democracia americana nos últimos quatro anos. Todos os dias durante quatro anos. Nossa democracia está em grave crise e este é o ponto culminante dela. Mas não é que tenha saído do nada. Nossa democracia está em crise há vários anos e acho que vai continuar assim.

Este autogolpe vai fracassar. Aqueles que protestarem em algum momento serão retirados do Capitólio e em algum momento a eleição de Biden também será certificada, e Trump será removido da Presidência. Agora, não está claro como isso vai acontecer. Mas Trump vai fracassar, e a democracia americana sobreviverá aos eventos de hoje.

Mas isso não significa que está tudo bem. São acontecimentos aterrorizantes e prejudiciais como na América Latina. A grande diferença entre esse autogolpe e os autogolpes na América Latina é que Trump foi completamente incapaz de obter o apoio dos militares. Um presidente que tenta permanecer no poder ilegalmente sem o apoio dos militares tem muito poucas chances de sucesso.

BBC - O senhor fala com segurança que a democracia sobreviverá e que esta será uma tentativa fracassada.

Levistky - Hoje. Acredito que, no médio prazo, estamos nos aproximando de um período de crise. Eu digo que esta tentativa de hoje irá falhar, porque a correlação de forças não existe para apoiar Trump. Não tem apoio militar. A democracia sobreviverá quando acordarmos amanhã, mas não posso garantir o que acontecerá daqui a cinco anos. A democracia americana é um desastre.

BBC - O presidente eleito Joe Biden mencionou que a democracia estava "sob um ataque sem precedentes" com os acontecimentos desta quarta-feira. Esta situação é extraordinária no contexto da história americana moderna?

Levistky - É extraordinário e sem precedentes no contexto da história americana moderna. No século 19, o país passou por uma era de violência, especificamente nos anos anteriores à Guerra Civil, e também vivenciou violência, especificamente em nível estadual, durante anos após a Guerra Civil. Portanto, em meados do século 19, os EUA experimentaram crises ainda mais graves do que as que vemos hoje. Mas não sofremos algo assim no século 20.

Isso não tem precedentes na história democrática moderna.

BBC - E quais são os mecanismos dos poderes constituídos para lidar com essa crise? Na Constituição ou nas legislaturas?

Levistky - Formalmente, existem dois mecanismos, mas nenhum deles foi usado até agora. Um é o impeachment ou o impeachment que leva à remoção. Nos EUA, ocorreram julgamentos políticos de presidentes, mas não resultaram em sua destituição do poder. É um processo bastante longo, a menos que o façamos à maneira peruana, de retirar o presidente durante a noite. É improvável que isso aconteça.

E há outro mecanismo, a emenda nº 25 à Constituição, que é mais recente porque foi aprovada em meados do século 20, e também não foi usado até agora.

Nenhum desses mecanismos foi adotado.

A América Latina tem muito mais experiência em provocar a destituição de presidentes que abusam do poder do que os EUA. A grande maioria das democracias presidencialistas está na América, mas nunca usamos o mecanismo americano para remover um presidente nos termos constitucionais.

Acho que a melhor saída seria Trump renunciar, seria que aqueles de seu próprio partido pressionassem Trump a renunciar. Ele não vai, mas deveria.

BBC - Mas ele está dizendo que não vai. Então, se ele nunca o fizer, se ele nunca ceder, o que acontece?

Levitsky - Durante o mês de novembro, esperei que sua filha e seu genro o fizessem entender, e há reportagens que indicam que ele sabe que perdeu e que deve ir embora. Uma característica de Trump é que ele não antecipa as consequências do que diz e faz. Então, eu não acho que ele previu o que acabou acontecendo hoje no Capitólio, embora ele o tenha instigado.

Acho que Trump sabe que tem que sair e acho que o cenário mais provável, apesar deste terrível golpe fracassado, é que os americanos virem a página e deixem Trump passar suas últimas duas semanas no cargo. Tudo é possível neste momento, mas parece improvável que ele tente se recusar a sair em 20 de janeiro.

Não teremos mais uma transição pacífica de poder, mas será, mais ou menos, uma transferência de poder habitual.

BBC - O senhor disse que a invasão do Capitólio é o ponto culminante de cinco anos de um intenso jogo político entre o presidente Trump e o Partido Republicano. O que o senhor acha que acontecerá no contexto de uma nova Presidência democrata de Joe Biden?

Levitsky - Eu acho que é muito incerto. Decerto não há tantas pessoas nas ruas; obviamente estão fazendo muito barulho, mas em comparação com a marcha das mulheres depois que Trump foi eleito, esta é uma festa no jardim. Não é que as massas estejam tomando as ruas, isso não é uma revolução. Esta não é a Argentina em outubro de 1945.

Então, o que eu acho, dependendo do que Trump faz, é que em algum momento ele terá que desistir. E se ele desistir e voltar para a Flórida, acho que isso vai ficar mais fraco. Ainda haverá uma direita radicalizada e mobilizada, mas não acho que Biden esteja enfrentando uma crise de governança.

Na verdade, acho que talvez isso o fortaleça. Porque agora os republicanos estão à beira de uma divisão severa. Portanto, acho que há várias coisas que podem acontecer: Uma, que o Partido Republicano finalmente se reunirá e derrubará Trump, de modo que ele acabe isolado, junto com seus aliados como (Rudy) Giuliani e as pessoas a quem perdoou. E que Mitch McConnell, Marco Rubio e até Ted Cruz acabam abandonando Trump.

Ou a outra coisa que pode acontecer é que o Partido Republicano se divida, quebre, como parecia que ia acontecer nesta quarta-feira. Não estou falando de uma divisão formal, mas de uma composição na qual há uma ala do partido que ainda está fortemente alinhada com Trump e outra ala que está tentando ir além de Trump. E se os republicanos estão divididos, isso vai fortalecer Biden.


Igor Gielow: Trump promove sedição e fornece roteiro para Bolsonaro em 2022

Se brasileiro perder, narrativa do inconformismo está pronta; republicanos pagam preço na Geórgia

A derrota do Partido Republicano na Geórgia, tirando da sigla o controle do Senado e entregando um Congresso mais amistoso para o governo Joe Biden, é um conto cautelar acerca dos limites do populismo da cepa Trump.

Não só deles: antecipa, a insurreição estimulada pelo presidente na frente do Capitólio e nas ruas de Washington, a tática no forno de Jair Bolsonaro caso perca o pleito em 2022.

Particular, a variante trumpista do populismo agregou lições dos eurocéticos britânicos, da extrema direita anti-imigração europeia e de líderes autocráticos como o russo Vladimir Putin, mas trouxe consigo a estridência isolacionista das entranhas dos EUA.

Aproveitando o solo semeado pelo movimento Tea Party, de rejeição à globalização e com fortes cores conspiratórias, Donald Trump emergiu para sua surpreendente vitória em 2016 e inspirou seguidores no mundo todo. Hoje, o que ocupa o principal posto se chama Bolsonaro.

Assim, o fracasso republicano no Sul dos EUA, ainda que tenha de ser relativizado pelas margens estreitíssimas da vitória democrata, é o preço pago pelo partido por manter-se mais ou menos fiel a Trump até o fim.

Isso porque o fim, para o presidente americano, não tem nada menos do que o tom sombrio do "Götterdämmerung" (crepúsculo dos deuses) wagneriano levado por Hitler a seu bunker em 1945. A democracia americana viu cenas inacreditáveis em pleno 2021.

Só que o desespero aqui é acrescido do tom burlesco que marca Trump, diluindo o resultado num pastiche quando tudo acabar, ou assim se espera. O que não quer dizer que não haja perigos reais, a começar pelo confronto que pode degringolar nas ruas.

Se parece exagero ver riscos institucionais ou para a paz mundial, cabe atentar à carta assinada por dez ex-secretários de Defesa ainda vivos. Com poucas meias palavras, eles mandam Trump parar de alimentar o mito da eleição fraudada e de namorar ideias de ruptura.

Tudo ocorre à luz do dia, ou quase: Trump tenta manipular a recontagem de votos presidenciais na mesma Geórgia e vocifera, dia sim e outro também, que está sendo vítima de um roubo. Aliados próximos sugerem coisas como a decretação da lei marcial para manter o sujeito no cargo.

Ao dizer claramente que militares devem evitar se misturar a isso, o texto dos ex-secretários também remete à escalada militar no golfo Pérsico, percebida por um acuado Irã como o risco de um conflito para tentar bagunçar os dias finais do mandato de Trump.

Próceres do conservadorismo americano como Dick Cheney e Donald Rumsfeld, arquitetos das guerras do 11 de Setembro, estavam entre os signatários. Republicanos de quatro costados, simbolizam o afastamento do coração do partido de Trump.

O próprio vice-presidente Mike Pence, que constitucionalmente comanda a sessão do Congresso que contará simbolicamente os votos da eleição vencida por Biden, escreveu uma carta histórica, rejeitando a pressão feita pelo chefe para que desconsiderasse votos contestados na eleição.

Ele simplesmente não pode fazer isso, mesmo que quisesse. Ainda assim, Trump fez um discurso igualmente histórico, pela infâmia, implorando a Pence que descumprisse a Constituição.

Ciosos de que isso não daria certo, os republicanos ainda trumpistas impõem patranhas para tentar melar a sessão da confirmação de Biden. Foi quando a turba resolveu intervir e interromper o trabalho do Legislativo.

O dano aos republicanos na Geórgia sela ao menos um racha na sigla, com a repreensão às manobras contra os resultados no Arizona por figuras mais graduadas do partido.

Isso antevê a disputa que se dará para tentar juntar os cacos para os pleitos seguintes, se é que Trump não acabará saindo preso da Casa Branca —ele estimulou sedição contra o Congresso.

Na maior vitrine que sobrou do trumpismo, o governo Bolsonaro, esses movimentos deverão ser lidos com atenção pelos aliados do presidente nesses próximos dois anos.

Bolsonaro usa a carta da fraude eleitoral, focada em sua obsessão pelo voto impresso, desde antes de ser eleito. Já naquele tempo dizia que, se não ganhasse a eleição, teria ocorrido um roubo. Provas, como no caso de seu ídolo americano, nunca mostrou.

Basta acompanhar a "cobertura", aspas obrigatórias, do processo eleitoral americano nas redes sociais bolsonaristas para saber o discurso montado para 2022. Naquele mundo paralelo pontificado pelos filhos do presidente, a fraude brasileira já está no forno.

Assim, a confusão nas ruas de Washington remete às aglomerações estimuladas por bolsonaristas e aos protestos antidemocráticos do primeiro semestre no Brasil.

Aquelas que foram atendidas pelo próprio presidente. A ameaça será usada até o limite, na hipótese de Bolsonaro ser derrotado ano que vem. Até o discurso de culpar a mídia por tudo é idêntico​

O fato de que o presidente foi o último de algum país com algum peso relativo a dar parabéns a Biden em si foi inócuo, mas importante para entender o método. Ninguém pode se queixar de imprevisibilidade quando se trata de Bolsonaro.

Conhecido pelo faro de sangue na água, o grupo de partidos conhecido como centrão já apoiou todo mundo, do PT a Bolsonaro. Estava embarcado confortavelmente no governo Dilma Rousseff quando a vaga do impeachment a colheu. Segue no poder.

Mas, como ocorreu em 2016, não tem vocação para carregador de caixão político. O pleito municipal de 2020 no Brasil já sugeriu uma inflexão do eleitorado, de resto ainda bastante apoiador do presidente, em direção a nomes mais moderados.

Bolsonaro teme a debacle econômica que pode advir neste ano, além de todo o caos gerencial da pandemia —outro ponto em comum com seu guru americano.

Terá de se agarrar à sua base mais fiel e radical, enquanto cede mais espaço aos aliados antes demonizados, em caso de perda de popularidade mais ampla.

Se 2022 assistir a um embate polarizado e histriônico, como Bolsonaro sugere sempre que pode, talvez a lição americana seja lida com antecipação pelo pessoal do centrão.


El País: Congresso dos EUA confirma vitória de Biden após revolta instigada por Trump

Ao final de um dia caótico, que deixou quatro mortos, presidente republicano se compromete com uma transição “ordenada”

Amanda Mars, El País

As urnas e as instituições deram o tiro de misericórdia na era Trump, na madrugada desta quinta-feira, após uma jornada lamentável para a história dos Estados Unidos. O Congresso confirmou a vitória do democrata Joe Biden horas depois de ser invadido por uma turba de seguidores do presidente republicano, agitados por suas acusações infundadas de fraude eleitoral. Os graves distúrbios, que deixaram quatro mortos, obrigaram à suspensão da sessão e à mobilização da Guarda Nacional, mas os parlamentares voltaram a se reunir ainda na noite de quarta-feira, numa sólida exibição de firmeza, e cumpriram a Constituição. Às 3h40 horas (5h40 em Brasília), o vice-presidente Mike Pence ―que pela Constituição é também o presidente do Senado― declarou a vitória do candidato democrata, após dias de pressões do seu chefe, que lhe pedia para se rebelar. Imediatamente depois, Trump emitiu um comunicado em que continuava protestando pelo resultado mas, pela primeira vez, se comprometia a uma transição de poderes “ordenada” em 20 de janeiro.

Nesse dia Biden tomará posse e iniciará um mandato que terá ampla margem de manobra, pois os democratas controlarão a Casa Branca, a Câmara de Representantes (deputados) e também o Senado, após a eleição de dois democratas ―Raphael Warnock e Jon Ossoff― no Estado da Geórgia. Começará então o duro trabalho de curar feridas, estender pontes e reparar reputações. Líderes de todo o mundo condenaram o ocorrido nos EUA (uma das poucas exceções foi o brasileiro Jair Bolsonaro), país visto como referência de democracia e solidez institucional, e que há 200 anos não vivia algo assim.

“Vamos terminar exatamente o que começamos e certificaremos o vencedor das eleições presidenciais de 2020. O comportamento criminal nunca dominará ao Congresso dos Estados Unidos”, disse o líder dos republicanos no Senado, Mitch McConnell. Ele qualificou a revolta como “insurreição fracassada” e proclamou com orgulho: “Os Estados Unidos e este Congresso já confrontaram ameaças muito maiores que a turba perturbada de hoje. Não nos dissuadiram antes e não nos dissuadirão agora. Tentaram romper nossa democracia e fracassaram”. O vice-presidente Mike Pence havia reaberto a sessão, pouco antes, dizendo que “vocês não ganharam, a violência nunca ganha, a liberdade ganha.” Os discursos tinham algo de terapia de grupo.

Após quatro anos acolhendo a retórica incendiária de Donald Trump, os republicanos se depararam neste nublado dia de janeiro de 2021 com um monstro de aspecto muito feio, uma multidão que quebrava vidraças do seu grande templo democrático, escalava suas paredes, irrompia nos plenários e se sentava na poltrona da presidência do Senado. A democracia se impôs, mas o sistema ficou abalado.

O pavio havia sido aceso pela manhã por Trump num comício em frente à Casa Branca, justamente por ocasião da sessão parlamentar que certificaria a vitória democrata nas eleições presidenciais. “Depois disto, vamos caminhar até o Capitólio e vamos incentivar nossos valentes senadores e congressistas”, disse a uma multidão formada por milhares de pessoas vindas de todo os EUA. “A alguns não vamos incentivar muito, porque vocês nunca irão recuperar o país de vocês com fraqueza, têm que mostrar força”, acrescentou. Ao final, os trumpistas partiram para o Capitólio e, depois de romper o cordão policial, desencadeou-se a violência.

Os legisladores correram para se refugiar, e Mike Pence foi retirado, enquanto os manifestantes zanzavam pelo interior do edifício, alguns com bandeiras confederadas e outros fantasiados, deixando uma nota tragicômica na jornada. Um deles se sentou na poltrona do presidente do Senado; outro, no gabinete da presidenta da Câmara, Nancy Pelosi, a quem, segundo a Associated Press, deixou uma mensagem que dizia: “Não recuaremos”. Quatro pessoas morreram, segundo a polícia: uma mulher atingida por um tiro, e outras três por emergências médicas. A cifra de detidos chegava a 52, o que parecia muito pouco para o espetáculo vivido, e a polícia encontrou duas bombas caseiras e uma geladeira com coquetéis molotov nas imediações. O escasso preparativo do dispositivo de segurança diante de uma manifestação que já se previa monumental e a lentidão da resposta fizeram as perguntas se multiplicarem, sobretudo depois da ostensiva presença das forças da ordem durante os protestos contra o racismo em meados deste ano.

“O que aconteceu aqui é uma insurreição incitada pelo presidente dos Estados Unidos”, denunciou o senador republicano Mitt Romney, de Utah. “Assim é como se discutem as eleições em uma república bananeira, não em nossa república democrática”, afirmou em nota o ex-presidente republicano George W. Bush. Mas é nessa rica república onde esta tempestade foi se formando dia a dia desde a derrota eleitoral de Trump em 3 de novembro, com a conivência de uma parte dos políticos conservadores.

Imagens do momento em que o Capitólio nos EUA foi invadido.
Imagens do momento em que o Capitólio nos EUA foi invadido.

Um grupo de senadores e deputados republicanos planejava torpedear a sessão de confirmação de Joe Biden com o argumento das supostas irregularidades nas urnas, embora inúmeros tribunais tenham concluído que não havia base para essas suspeitas, e de exaustivas recontagens não terem levado a resultados diferentes. O Congresso deveria contar os votos certificados pelos Estados em dezembro passado, numa sessão conjunta da Câmara de Deputados e do Senado, um último trâmite exigido pela Constituição antes da posse do novo presidente, em duas semanas. Os legisladores insubmissos tinham preparado uma bateria de objeções aos escrutínios dos Estados que foram decisivos para a derrota de Trump, embora elas não tivessem perspectiva de prosperar, já que seria necessário o aval da Câmara de Representantes, de maioria democrata, e do Senado, onde apenas uma dúzia de republicanos apoiava a manobra. O objetivo, portanto, era fazer barulho, mas o estrondo afinal veio do lado de fora.

O cômputo das cédulas era feito em voz alta, território por território, por ordem alfabética, e o primeiro protesto chegou cedo, na vez do Arizona, um Estado que, ao se inclinar por Biden em 3 de novembro, escolheu um presidente democrata pela primeira vez desde 1996. Quando o debate sobre essa objeção começou, a confusão se instalou às portas do Capitólio e a sessão teve que ser suspensa. Mike Pence foi retirado, os legisladores se refugiaram sob suas mesas, e foram observadas cenas de grande violência no Capitólio. Depois do ocorrido, pelo menos quatro dos políticos que pretendiam lançar as objeções mudaram de opinião, como a senadora georgiana Kelly Loeffer – que acaba de perder a reeleição –, alegando problemas de “consciência”. A objeção foi derrubada e o cômputo em voz alta continuou, com outra longa interrupção ao chegar à Pensilvânia.

De Trump não se ouvia nada a essas horas. A rede social Twitter tinha decidido bloquear sua conta durante 12 horas, e o Facebook, durante 24, depois de apagar as mensagens em que desculpava a violência de seus seguidores e insistia nas teorias conspiratórias da fraude eleitoral. “Estas são as coisas e acontecimentos que ocorrem quando se tira uma vitória sagrada e esmagadora de grandes patriotas, que foram tratados de forma má e injusta durante muito tempo. Vão para casa em paz e amor. Recordem este dia para sempre”, tinha publicado em sua conta. Em uma declaração em vídeo, chegou a dizer aos participantes dos distúrbios: “Vão para casa, amamos vocês, vocês são muito especiais, mas precisam ir para casa”. Por causa dos incidentes, quatro funcionários graduados da Casa Branca se demitiram, segundo a Bloomberg, entre eles o subassessor de Segurança Nacional, Matt Pottinger, e Stephanie Grisham, chefa de gabinete da primeira-dama.

Ao todo, o drama se prolongou por quase 15 horas. O ataque da quarta-feira não foi o primeiro sofrido pelo Capitólio, pois em 1954 um grupo de nacionalistas porto-riquenhos disparou na Câmara de Representantes e feriu vários deputados, e em 1998 um homem matou dois policiais. Mas a última vez que o prédio havia sido sitiado por uma turba foi durante o ataque britânico liderado pelo general Robert Ross, em 1814, depois da batalha de Bladensburg.

Apesar do tumulto, intuía-se que a invasão não configurava um golpe de Estado, já que a Bolsa de Nova York subiu 1,4%, mais atenta aos estímulos econômicos prometidos pelo novo Senado do que aos tumultos que os investidores viam pela televisão. Mas morreu gente, passou-se medo, e Washington debruçou-se sobre o abismo. E agora, até 20 de janeiro, restam duas semanas com um Trump na Casa Branca que ninguém no seu círculo parece capaz de frear.


El País: Democratas conquistam primeira vaga na Geórgia e se aproximam de controlar o Senado dos EUA

Raphael Warnock se torna o primeiro senador negro eleito no Estado sulista, enquanto a disputa pelo segundo assento continua acirrada. Geórgia não escolhia um senador democrata desde 1994

Antonio Laborde, El País

A apuração da crucial eleição para o Senado na Geórgia, que decidirá a maioria na Câmara Alta dos Estados Unidos ―definindo, portanto, o escopo do futuro mandato do presidente eleito Joe Biden―, transcorre de forma apertada desde a madrugada desta quarta-feira. Logo depois das 2h (hora local, 4h em Brasília), com 97% dos votos apurados, os meios de comunicação projetaram a vitória do democrata Raphael Warnock em uma das vagas. O pastor evangélico fez história ao se tornar o primeiro senador negro a ser eleito neste Estado sulista, permitindo que seu partido fique um pouco mais próximo de controlar o Congresso. Se o outro candidato democrata vencer, o Senado ficará formado por 50 republicanos e 50 democratas (incluindo dois parlamentares formalmente independentes), e a vice-presidenta eleita, Kamala Harris, exercerá o voto decisivo nos casos de empate. Os republicanos precisam ganhar o assento que continua em jogo no Estado para prolongar os seus seis anos de domínio do Senado, o que obrigaria Biden a alcançar pactos com a oposição para impulsionar sua pauta política.

Raphael Warnock se impôs com 50,6% dos votos sobre a senadora republicana Kelly Loeffler (49,4%). O segundo assento em jogo é disputado pelo diretor de documentários Jon Ossoff, democrata, e o republicano David Perdue, que encerrou no domingo seu atual mandato de senador pela Geórgia. Com 98% dos votos apurados, Ossoff lidera por 0,3 ponto percentual (12.000 votos). Os quatro candidatos superam os dois milhões de votos. As apertadas disputas ―que leva a uma demora na apuração― ocorrem porque no primeiro turno, em 3 de novembro, nenhum deles conseguiu superar metade dos votos válidos, o que a lei local determina que seja resolvido em uma nova rodada de votação. As autoridades informaram que os resultados oficiais devem sair por volta de 12h (14h em Brasília) desta quarta-feira.

Durante a madrugada, Warnock sinalizou que se via como ganhador, embora não declarasse isso formalmente. “Vou ao Senado para trabalhar por toda a Geórgia, não importa em quem você votou nesta eleição”, disse em uma mensagem que compartilhou nas suas redes sociais. Por sua vez, o grande motor mobilizador dos democratas neste ano eleitoral, a ativista Stacey Abrams, felicitou seu “querido amigo” e “próximo senador”. A adversária republicana Kelly Loeffler discursou no final da noite em Atlanta para antecipar que não vai conceder a vitória ao democrata e que lutará para que “cada voto legal” seja contado.

“Parece que estão armando um grande sorvedouro de eleitores contra os candidatos republicanos. Estão esperando para ver quantos votos precisam?”, escreveu o ainda presidente Donald Trump no Twitter, insinuando, novamente sem provas, que os democratas querem manipular o pleito.

O republicano Brad Raffensperger, secretário de Estado da Geórgia, informou no final da noite de terça que faltavam ser apurados quase 200.000 votos, mas ainda há as cédulas enviadas por militares que servem no exterior, cujo prazo para serem recebidas vai até as 12h de sexta-feira.

A eleição transcorreu em um clima de alta tensão, depois de uma campanha marcada pela ofensiva de Trump para anular o resultado das eleições presidenciais, agitando acusações infundadas de fraude maciça que implicam questionar todo o sistema eleitoral. A Geórgia se encontrava no olho do furacão após ter dado seus votos a Biden, fazendo dela o único oásis azul no chamado “cinturão bíblico” do sul. A vitória do democrata foi selada após uma apuração dramática, que Trump tentou a todo custo desacreditar.

Antes de as seções eleitorais serem abertas, nesta terça-feira, mais de 3 milhões de pessoas (de 7,7 milhões de eleitores registrados no Estado) já tinham votado de maneira antecipada ou pelo correio, uma cifra sem precedentes em um segundo turno de eleições para o Senado. Os votos antecipados, que costumam favorecer os democratas, foram os primeiros a serem apurados. Por isso, à medida que foram sendo contadas as cédulas emitidas na terça-feira, sua vantagem foi diminuindo. Depois, com os resultados de alguns condados de maioria progressista, a foto voltou a mudar.

Nas eleições presidenciais de novembro, cinco milhões exerceram seu direito a voto na Geórgia, e a mobilização da comunidade afro-americana e dos jovens foi crucial para o apertado triunfo de Biden, que conseguiu derrotar Trump no feudo conservador por menos de 12.000 votos. A Geórgia não optava por um presidente democrata desde 1992, e não escolhia um senador desse partido desde 1994. Os apoios democratas se concentram em Atlanta e nos seus bairros periféricos, o núcleo progressista do Estado, que na última década se estendeu a grande velocidade, pondo em xeque a hegemonia republicana baseada nas zonas rurais.

Nesta quarta-feira está prevista a certificação da vitória de Biden em uma sessão bicameral do Congresso. Um grupo de senadores e deputados republicanos planeja reforçar o clima de tensão e tumulto apresentando objeções, embora careçam de votos para que o protesto se traduza em algum contratempo na confirmação do Biden, uma formalidade prévia à sua posse, em 20 de janeiro.

A figura de Trump pairou sobre esta eleição. Primeiro pela pressão que exerceu sobre os republicanos que não lhe seguiram em suas acusações de fraude eleitoral, apontando-os como desleais ao partido. E, segundo, porque esta eleição significa uma prova para os republicanos, um teste para sua capacidade de sedução sem a figura do presidente.

Uma das dúvidas a serem esclarecida com os resultados oficiais da Geórgia foi o peso ―para o bem ou para o mal― da retórica trumpista sobre a fiabilidade do sistema eleitoral. Trump vem há dois meses denunciando, sem provas, que houve fraude no pleito de 3 de novembro, ao mesmo tempo em que conclamava suas bases a saírem de casa para votar nos dois candidatos republicanos ao Senado. Conforme as pesquisas de boca de urna feitas pelo The Washington Post nesta terça, quase 9 em cada 10 democratas da Geórgia acreditam que a eleição de novembro foi justa, enquanto só 2 em cada 10 republicanos acham isso.

O último escândalo relacionado com a inédita cruzada de Trump foi a informação publicada no domingo passado sobre o telefonema em que o mandatário pressionou o secretário de Estado da Geórgia, o republicano Brad Raffensperger, para que “encontrasse” os votos suficientes para reverter a vitória de Biden. Os eleitores democratas fora das seções eleitorais se mostravam fartos das polêmicas do presidente e com as esperanças voltadas para o triunfo de seus candidatos a senadores para começar a escrever um novo capítulo na história política. Jerald Hogan, de 46 anos, estava confiante na guinada do Estado conservador: “Pela primeira vez em minha vida acredito que as coisas vão mudar.”


Paul Krugman: Como o Partido Republicano se tornou selvagem

Democracia dos EUA está sob ameaça de um tribalismo malévolo

Sempre houve pessoas como Donald Trump: egocêntricas, inclinadas à autopromoção, convictas de que as regras se aplicam apenas ao povinho, e de que aquilo que acontece ao povinho não importa.

Mas o moderno Partido Republicano não se parece com qualquer coisa que tenhamos visto no passado, pelo menos na história dos Estados Unidos. Se ainda existe alguém que não está totalmente convencido de que um dos nossos dois grandes partidos políticos se tornou inimigo não só da democracia, mas da verdade, os acontecimentos transcorridos depois da eleição deveriam bastar para eliminar quaisquer dúvidas.

Não é só porque a maioria dos republicanos da Câmara e muitos senadores republicanos estão apoiando os esforços de Trump para reverter sua derrota eleitoral, embora não existam provas de fraude ou de irregularidades generalizadas. Veja a maneira pela qual David Perdue e Kelly Loeffler estão conduzindo sua campanha no segundo turno das eleições para o Senado na Geórgia.

Eles não estão fazendo campanha em torno das questões políticas ou mesmo de aspectos reais do histórico pessoal de seus oponentes. Em lugar disso, afirmam, sem qualquer base nos fatos, que os oponentes são marxistas ou estão “envolvidos no abuso de crianças”. Ou seja, as campanhas para reter o controle republicano do Senado se baseiam em mentiras.

No domingo, Mitt Romney execrou as tentativas de Ted Cruz e de outros republicanos do Congresso de reverter o resultado da eleição presidencial, questionando: “Será que a ambição eclipsou os princípios”? Mas que princípios Romney acredita que o Partido Republicano defende, nos últimos anos? É difícil ver qualquer coisa que embase o comportamento recente dos republicanos a não ser a busca de poder de qualquer que seja a maneira.

Em 2003, escrevi que os republicanos haviam se tornado uma força radical, hostil aos Estados Unidos em sua forma atual, e que potencialmente ambicionavam criar um Estado de partido único no qual “as eleições sejam apenas uma formalidade”. Em 2012, Thomas Mann e Norman Ornstein alertaram que o Partido Republicano “não se deixa influenciar pelo entendimento convencional dos fatos” e “desconsidera a legitimidade da oposição política”.

Quem se surpreende diante da avidez de muitos integrantes do partido por reverter os resultados de uma eleição com base em acusações especiosas de fraude simplesmente não estava prestando atenção.
Mas o que propele a queda dos republicanos à escuridão?

Será uma reação populista à elite? É verdade que existe ressentimento com relação à mudança na economia, que privilegia as áreas metropolitanas com populações de nível de educação elevado, em detrimento das áreas rurais e das cidades pequenas; Trump recebeu 46% dos votos, mas venceu a eleição em condados que representam apenas 29% do PIB (Produto Interno Bruto) dos Estados Unidos. Existe uma forte reação adversa dos brancos à crescente diversidade racial do país.

Mas os últimos dois meses representam uma lição prática sobre até que ponto a ira das “bases” na verdade é orquestrada pelas lideranças. Se uma grande parte da base republicana acredita, sem qualquer fundamento, em que a eleição foi roubada, isso acontece porque os líderes do partido vêm repetindo essa acusação. Agora os políticos mencionam o ceticismo generalizado quanto aos resultados da eleição como motivo para rejeitar o resultado –mas foram eles mesmos que conjuraram esse ceticismo, do nada.

E o que é notável, se estudarmos os antecedentes dos políticos que fomentam o ressentimento contra as elites, é o quanto muitos deles são privilegiados. Josh Hawley, o primeiro senador a declarar que objetaria à certificação dos resultados da eleição, protesta contra a elite, mas se formou na Universidade Stanford e na Escola de Direito de Yale. Cruz, que hoje lidera os esforços para subverter a eleição, tem diplomas de Princeton e Harvard.

O ponto não é que eles sejam hipócritas, e sim que não se trata de pessoas que tenham sido maltratadas pelo sistema. Assim, por que parecem tão dispostos a derrubá-lo?

Não acredito que seja apenas por serem cinicamente calculistas, ou que estejam fingindo para satisfazer as bases. Como já afirmei, na verdade é a base que está seguindo orientações da elite do partido. E a loucura dessa elite não parece ser apenas fingimento.

Meu melhor palpite é de que estamos contemplando um partido que se tornou selvagem –que cortou o contato com o resto da sociedade.

As pessoas comparam o Partido Republicano ao crime organizado ou a um culto, mas para mim os republicanos se parecem mais com os meninos perdidos de “O Senhor das Moscas”. Eles não recebem notícias do mundo externo, porque suas informações vêm de fontes partidárias que simplesmente não reportam fatos inconvenientes. Não estão sujeitos a supervisão adulta, porque, em um ambiente polarizado, há poucas disputas competitivas.

Assim, eles cada vez mais olham apenas para si mesmos, e se engajam em esforços cada vez mais absurdos para demonstrar sua lealdade à tribo. O partidarismo deles não se relaciona a causas, ainda que o partido continue comprometido com o corte dos impostos dos ricos e com punir os pobres; o objetivo é afirmar o domínio daqueles que estão por dentro, e punir quem fica de fora.

A grande questão é por quanto tempo os Estados Unidos na forma que conhecemos serão capazes de sobreviver diante dessa tribalismo malévolo.

A atual tentativa de reverter o resultado da eleição presidencial não terá sucesso, mas já se estendeu por muito mais tempo e atraiu muito mais apoio do que qualquer qualquer pessoa previa. E a menos que alguma coisa aconteça para romper o domínio das forças inimigas da democracia e da verdade sobre o

Partido Republicano, um dia elas terão sucesso em matar o experimento americano.

* Paul Krugman é prêmio Nobel de Economia, colunista do jornal The New York Times.

Tradução de Paulo Migliacci


Eliane Cantanhêde: Vacina e democracia

É melhor Bolsonaro arranjar vacina do que depois tentar ‘arranjar’ voto, como Trump

O último ato (espera-se) de Donald Trump na presidência da maior potência do planeta mostra um homem desesperado, desarticulado e fora da realidade, falando frases desconexas e ameaçadoras que configuram um atentado criminoso e imoral às instituições. Trata-se, claro, da pressão de Trump para que o secretário de Estado da Geórgia “arranjasse” uns votos para reverter a derrota dele para Joe Biden.

É inacreditável, tão inacreditável quanto um tipo dessa natureza ter sido eleito nos Estados Unidos, ter presidido o país por quatro anos e conseguido 74 milhões de votos ao tentar a reeleição em 2020. Apesar da derrota e de Trump ter sido o primeiro presidente não reeleito desde 1992, é uma quantidade de votos incrível para um presidente tão absurdo. Ou melhor, uma pessoa tão absurda.

É um alívio o manifesto de dez ex-secretários de Defesa, em governos democratas e republicanos, defendendo o resultado eleitoral e desautorizando membros das Forças Armadas a reforçar a cruzada de Trump contra a vitória de Joe Biden: “Oficiais civis e militares que realizarem tais medidas (interferência eleitoral) podem ser punidos, incluindo de forma criminal, pelas graves consequências de suas ações em nossa república”, afirma o texto, após Trump encher o Pentágono de aliados no apagar das luzes.

A reação a esses atos de Trump, barulhenta, serve de alerta inclusive no Brasil, onde o presidente Jair Bolsonaro bombardeia as pesquisas que não sejam a seu favor, acusa as eleições (até a dele) de fraudulentas e faz campanha a favor da cédula de papel e contra a urna eletrônica, assim como faz a favor da cloroquina e contra as vacinas. Contra o futuro.

Bolsonaristas ameaçavam melar a eleição de 2018 se ele não vencesse, ele próprio, já vitorioso, falou em fraude e generais reforçaram a descrença em pesquisas, eleições, urnas eletrônicas, mas ex-ministros da Defesa do Brasil também já lançaram manifesto: “Qualquer apelo e estímulo às instituições armadas para a quebra da legalidade democrática – oriundos de grupos desorientados – (...) constituem afronta inaceitável ao papel constitucional de Marinha, Exército e Aeronáutica, sob a coordenação da Defesa.”

Também já se uniram ex-ministros de Relações Exteriores, Meio Ambiente, Educação e Cultura, rechaçando o desmanche de suas áreas. Falta a manifestação em massa de ex-ministros e autoridades da saúde por seriedade, planejamento e negociação de vacinas de diferentes procedências, seringas, agulhas e frascos. E pelo cuidado de testes jogados por aí.

Trump e Bolsonaro são negacionistas, desdenharam da “gripezinha”, combateram o isolamento social, fizeram propaganda da cloroquina e pegaram a covid-19. Analistas da cena americana atribuem a derrota de Trump muito aos erros na pandemia. Bolsonaro continua jogando, nadando, sorrindo, provocando, mas as vacinas, ou a falta delas, podem custar caro.

Até agora, há 10.800 milhões de doses da Coronavac, que nem sequer pediu registro na Anvisa. Há também acertos do Ministério da Saúde com a vacina Oxford/Astrazeneca, que está no mesmo pé. E, de repente, há uma corrida por míseros dois milhões de doses dessa vacina, mas produzidas na Índia. A impressão é que, para o Planalto, basta uma dose, uma só, para ser aplicada, fotografada e filmada antes da “vacina do Doria”.

No centro do furacão está um general da ativa, pronto para virar bode expiatório, mas a lambança na pandemia, particularmente na vacina, pode custar caro em 2022, como custou a Trump em 2020. E não adianta jogar a culpa em “fraude” e em urna eletrônica, nem tentar “arranjar” na marra uns votos a mais. Os militares podem até ser coniventes com Bolsonaro e Eduardo Pazuello, mas a democracia não funciona só nos EUA. Aqui também.


Míriam Leitão: Os oásis em um ano áspero

Pareceu, em certos dias, que o deserto não acabaria. Mas houve pontos de refresco na caminhada. Quero falar deles nos derradeiros instantes de 2020. Na crise, as empresas fizeram doações em volumes nunca vistos. Diante da escalada da ameaça ao meio ambiente, empresas e bancos formaram coalizões com organizações sociais e anunciaram compromissos em defesa dos biomas brasileiros. Fundos internacionais avisaram que ou o Brasil protege a floresta, ou ficará fora da rota do capital.

A sociedade fez movimentos na direção certa, num ano torto. Médicos e enfermeiros foram à exaustão, mas fizeram a diferença entre vida e morte. A ciência venceu a sua luta mais difícil, enfrentando o vírus e o negacionismo. Saiu vitoriosa. Nunca tantos cientistas nos ilustraram tanto. Em tempo recorde, a ciência está entregando ao mundo as vacinas que abrem a janela para a esperança.

Emicida é parte das boas notícias do ano. É o futuro. Ver tantos negros no Theatro Municipal de São Paulo deu uma sensação de alívio a quem não se conforma com a partição da sociedade brasileira. Ver o jovem Leandro, como a mãe ainda o chama, levar todos a um passeio pela História para constatar que os negros estiveram presentes — o tempo todo presentes — nas grandes conquistas do país foi muito bom. Esse “reescrever” da História para corrigi-la é um deslumbramento. “AmarElo” foi um ponto de virada. A ideia de que se pode matar o mal de ontem com a pedra lançada hoje é tranquilizadora. Então nós podemos ainda corrigir o mal feito antes? Sim. Podemos começar de novo.

As empresas iniciaram o combate à desigualdade racial em seus quadros de funcionários, que ainda mantêm os negros nas funções com menor remuneração e nenhum poder, e os brancos no comando. Essa paisagem corporativa começou a mudar. O recrutamento ativo passou a ser levado a sério. Não por benemerência, mas por necessidade algumas empresas corrigem sua forma de pensar e de recrutar pessoas. Foi um avanço num ano distópico. Eu sei que muitos podem pensar: foi um avanço mas pessoas morreram por isso. George Floyd e João Alberto Freitas. É verdade. Mas no passado houve mortes que foram esquecidas sem mover a roda emperrada da História.

Donald Trump perdeu a eleição e isso foi muito bom. Sua escalada de desmonte da democracia americana, sua negação da mudança climática, seu estímulo aos supremacistas e governantes autoritários estão acabando. Joe Biden está compondo um governo com diversidade. A vice Kamala Harris reforça essa esperança. Na área ambiental e climática, Biden fez uma equipe que convenceu, segundo editorial do New York Times. O veterano John Kerry vai organizar a volta ao Acordo de Paris. A primeira indígena no governo, Deb Haaland, será a secretária do Interior. Terá poder sobre parques e florestas nacionais que antes estavam entregues a um lobista do petróleo. O setor de energia ficará com Jennifer Granholm. Como governadora de Michigan ela liderou a implantação de energia renovável. A lista dos acertos é longa.

Foi o ano em que as famílias, as empresas, os eventos, o jornalismo testaram o fim da distância. Não era mais preciso estar presente, para estar presente. Houve um salto digital enorme. Era possível antes, mas não era tentado nessa escala. Seminários, encontros, reuniões, entrevistas, festivais tudo feito pelas plataformas que nos agregam em pontos diferentes do país, e do mundo. Esse salto tecnológico deixará um legado. O mundo ficou mais estreito, entre quatro paredes e, ao mesmo tempo, ampliou-se.

O ano foi farto de eventos ruins, mas quero falar dos bons e me lembro dos aniversariantes. Clarice Lispector e João Cabral de Melo Neto teriam feito 100 anos. O centenário do nascimento desses dois gênios nos ajudou em 2020. As leituras ou releituras apontaram caminhos. Clarice ensinou em “Paixão segundo G.H.” que “a atualidade não tem esperança, a atualidade não tem futuro”, e isso nos dá esperança de que essa atualidade não se perpetue. E escreveu, como se intuísse a grande aflição que vivemos este ano. “Se eu gritasse uma só vez que fosse, talvez nunca parasse de gritar. (…) nós que guardamos o grito em segredo inviolável”. João Cabral foi ofendido no ano de seu centenário, no Itamaraty, local de seu trabalho como diplomata. Quem o ofendeu não será lembrado na história, mas o poeta sim, esse ficará. Estará nos rios que ele seguiu, nas pedras que ele amou, nos brasileiros desvalidos que ele homenageou com seus versos. “E ainda se me permite mais uma vez indagar: é boa essa profissão na qual a comadre ora está?” Se a mim fosse dirigida a pergunta, e não à rezadeira, diria que sim, o jornalismo viveu um grande ano, dando boas informações, num tempo confuso.

Cada pessoa sabe o que viveu, e houve perdas irreparáveis. Foi difícil sim, mas os oásis nos ajudaram na travessia. O calendário marca o recomeço daqui a algumas horas. Feliz Ano Novo.


Elio Gaspari: O grande espetáculo de Trump

Ele passa o tempo trancado, jogando golfe, anistiando comparsas e delirando

Faltam três semanas para o dia em que Joe Biden assumirá a Presidência dos Estados Unidos. Com a pandemia e Donald Trump, não se sabe direito como as coisas funcionarão. Não se sabe sequer se ele irá à cerimônia.

Numa época tomada pela Covid-19, pelas vacinas e por Jair Bolsonaro, junta-se um espetáculo histórico: o comportamento de Trump nos últimos dias de seu governo.

Recusando-se a aceitar o resultado das urnas, o atual presidente entrou na moldura de desespero e desequilíbrio de Richard Nixon nos dias que antecederam sua renúncia, em agosto de 1974. Ele estava bebendo demais, brigava com a mulher e chamou o secretário de Estado para rezar. O chefe de seu gabinete temeu que ele se matasse. Estava entendido que Nixon destrambelhara. Temeu-se que, num surto, ele resolvesse usar armas nucleares contra algum inimigo. Por isso, se ele tentasse mexer nas bombas, a ordem precisaria ser confirmada pelo secretário da Defesa. Ela nunca foi dada. Esses fatos, contudo, começaram a sair dos bastidores aos poucos. Para consumo geral, ficou a imagem do presidente deixando a Casa Branca com um grande sorriso e os braços erguidos.

Trump está oferecendo um espetáculo público. Depois de contestar o resultado das urnas, passa o tempo trancado, jogando golfe, anistiando comparsas e delirando. Nesse ambiente, surgiu até a ideia de colocar a maior democracia do mundo sob lei marcial. Como não poderia deixar de ser, aporrinhou a mulher porque teria aparecido pouco nas revistas de moda. Desde novembro, estava claro que Trump destrambelhara num patamar inédito. Acompanhá-lo até o dia 20 de janeiro, seguindo cada detalhe de sua partida, será um grande espetáculo. Algo como um seriado de televisão.

Os Estados Unidos ralaram em duas décadas com dois dos três piores presidentes de sua história: Trump e George W. Bush. O terceiro foi James Buchanan (1857-1861), que deixou para Abraham Lincoln a encrenca que resultaria na Guerra Civil.

Dos três, o único que se conduziu como um desequilibrado foi Trump. E daí vem a boa notícia: as instituições americanas sobreviveram a um tatarana na Casa Branca. Prova disso está no fato de que, ao contrário do que supunham seus adoradores, a judicialização do resultado eleitoral jamais dependeu de uma decisão dos nove juízes da Corte Suprema. Seus pleitos atolaram antes.

Noves fora Buchanan, a competição pelo título de pior presidente fica entre Bush II e Trump. Essa é uma boa discussão. Como pessoa física, Trump ganha com larga vantagem. Como a blindagem das instituições impediu muitos de seus estragos, é possível que Bush II, com sua guerra no Iraque e a recessão do fim de mandato, tenha causado mais danos à nação. Registre-se que Bush, como seu pai, é um ex-presidente exemplar, coisa que não há a menor possibilidade de acontecer com Trump. (Está aí a procuradora-geral do Estado de Nova York, encarregada de olhar para as finanças do doutor.)

Como lembrou o ministro Gilmar Mendes, valendo-se de um provérbio português, “ninguém se livra de pedrada de doido nem de coice de burro”. Nem os Estados Unidos. Dificilmente o mundo terá oportunidade de acompanhar um espetáculo como o que vem por aí.


Demétrio Magnoli: Que vontade de nascer americano

Pela direita, mas também pela esquerda, a linguagem política brasileira mimetiza os temas, os argumentos e até os escândalos teatralizados da ‘guerra cultural’ que consome os EUA

 ‘Disseram que eu voltei americanizada, que não suporto mais o breque do pandeiro e fico arrepiada ouvindo uma cuíca’. A Carmen Miranda “americanizada” de 1940, baiana caricatural da Broadway, não é nada perto do Brasil de 2020. Pela direita, mas também pela esquerda, a linguagem política brasileira mimetiza os temas, os argumentos e até os escândalos teatralizados da “guerra cultural” que consome os EUA.

O culto bolsonarista é uma religião de contrabando. Nos EUA, a ala reacionária do Partido Republicano definiu-se pela tríade “God, guns, gays”. Por aqui, uma extrema-direita sem tradição macaqueia a missa americana, organizando-se ao redor de bispos de negócios, difundindo a homofobia e erguendo a bandeira do “armamento do povo”. No rastro do plágio, o Partido Militar — isto é, os generais do Planalto, rendidos a um capitão arruaceiro — rasga as cartilhas antigas que ensinavam as lições da ordem, do planejamento, da hierarquia e da autoridade.

A direita voltou americanizada: não suporta mais a geometria do progresso de Benjamin Constant ou o sonho integrador de Cândido Rondon. Seus arautos marcham à sombra das bandeiras entrelaçadas dos EUA e de Israel, recitam os versos do America First e, hipnotizados por um guru místico, anunciam a batalha final contra os demônios gêmeos do “globalismo” e do “comunismo”. Eles inscreveram na pedra o ideal de um Brasil isolado, o “pária orgulhoso” de Ernesto Araújo, um missionário da Internacional Cristã, essa relíquia achada entre os destroços da Santa Aliança.

“Drill, baby, drill!” Sob a égide do negacionismo climático, a direita brasileira traduz o lema dos fanáticos perfuradores de poços americanos tocando fogo nas florestas da Amazônia e no Pantanal. O bolsonarismo fala uma língua estranha que pensa ser inglês.

 “Nós dois lemos a Bíblia dia e noite, mas tu lês negro onde eu leio branco” (William Blake). A esquerda engajou-se no contrabando antes ainda da direita. Das universidades americanas, em contêineres lacrados, trouxe as políticas identitárias, a teoria racial crítica, a crença fundamental de que nosso gênero e a cor de nossa pele determinam implacavelmente nossas existências, ideias, conceitos e preconceitos.

Queima o que adoraste, adora o que queimaste. A esquerda reinventada, falsa baiana, renunciou às oposições tradicionais e instaurou novos contrapontos, que são essenciais e, portanto, imutáveis. No lugar de povo/elite ou proletariado/burguesia, entronizou as dicotomias mulher versus homem, homo versus hetero, preto versus branco. Daí, desistiu do horizonte da igualdade, substituindo-o pela reiteração perene da diferença. Escola pública de qualidade? Não: cotas raciais. Reforma das polícias? Não: reservas de gênero e raça no Congresso.

A esquerda brasileira já foi anarquista, modernista, cosmopolita, comunista, tropicalista e sindicalista — mas, em cada uma de suas encarnações, conservou-se fiel à convicção de que existe uma nação única, cozida no forno do passado. Não mais. #MeToo, #BlackLivesMatter: nossa esquerda vive a história dos outros e já nem sabe mais falar português.

É um duplo divórcio da realidade brasileira. A extrema-direita enxerga, em meio a brumas, uma nação sem leis ou instituições, habitada por colonos armados e pregadores puritanos agarrados a cruzes: os EUA imaginários do faroeste. A esquerda, por sua vez, confunde seu país com um outro: os EUA das Leis Jim Crow, da segregação legalizada, do censo que classifica as pessoas em categorias raciais estanques.

Nas franjas, a imitação rompe os últimos diques. Surge, pela primeira vez, um movimento antivacinal no Brasil. Mais realistas que o rei — e em contraste com o próprio Trump, herói maior —, seus militantes copiam o individualismo anárquico dos libertários da extrema-direita americana. Simetricamente, pela esquerda, o “colorismo” ultrarracialista exige a troca de “negros” por “pretos”, e os mensageiros radicais das políticas identitárias adicionam letrinhas misteriosas à sigla LGBT para instituir “lugares de fala” cada vez mais exclusivistas.

Viva Carmen Miranda. Feliz 2021.