Trump
Celso Lafer: Consequências do trumpismo
Dante inseriria Trump nos círculos do inferno em que penam os falsários e os traidores
A tomada da Bastilha prefigurou a Revolução Francesa; a invasão do Palácio de Inverno, a implantação do comunismo na Rússia; a marcha sobre Roma, a afirmação do fascismo na Itália; a Noite dos Cristais, na Alemanha, o Holocausto. O que configura a ocupação violenta do Congresso em Washington por uma horda de adeptos do trumpismo, inconformados com a vitória eleitoral de Joe Biden? Ela foi uma surpreendente e inédita ruptura dos tradicionais limites que sempre cercaram e protegeram a autoridade das instituições políticas dos Estados Unidos.
A República americana continuadamente teve como uma das características da sua identidade o respeito às instituições e a afirmação de um “governo das leis” sob a égide e a aura da Constituição. É o que foi configurando, no correr de uma longa experiência histórica, a autoridade da democracia ensejando um patamar de estabilidade aos seus processos de mudança política, com destaque para a dinâmica das sucessões presidenciais provenientes de eleições periódicas.
O que mina e corrói a autoridade é o desprezo pelos limites que ela naturalmente impõe. Daí, nos Estados Unidos, a figura jurídica do contempt of Court, que penaliza, num processo, quem deliberadamente cria obstáculos à administração da justiça, descartando a dignidade e a autoridade da Corte. Contempt of Congress aplica-se aos que obstam ou buscam impedir o due course dos seus procedimentos.
Desprezo pelos limites, foi isso que configurou o que se passou em Washington. O estrépito do “vale-tudo” da violência pôs em questão a autoridade das instituições. Buscou comprometer o alcance do abrangente poder conjunto da cidadania de lidar com os problemas e desafios do país pela via do processo eleitoral.
A ocupação violenta do Congresso teve como objetivo obstruir os procedimentos de formalização conclusiva da inequívoca vitória eleitoral de Biden, confirmada pela dinâmica das instituições e pelas diversas instâncias do Poder Judiciário, que rejeitou, por absoluta falta de provas, as incontáveis alegações de fraude com as quais Trump alimentou a sua própria inconformidade e a da horda de seus mais raivosos militantes com o desfecho do processo eleitoral.
O desprezo pelos limites do politicamente aceitável confirmou que a eleição foi uma luta pela “alma” do país e pelo espírito que historicamente a vivificou. Uma luta que Joe Biden travará na sua presidência.
Trump dedicou-se à corrupção da alma da República e da confiabilidade das suas instituições. Foi o que preparou a ruptura dos limites. São notas de sua atuação a mentira como princípio de governança voltada para manipular o Congresso e o Partido Republicano, com o personalismo do seu “bullying”, direcionado para um contínuo esforço de operar um regime ao arrepio da lógica do “governo das leis”. Por isso o empenho do trumpismo em pôr de lado as práticas e os preceitos constitucionais e jurídicos atravancadores do ímpeto da vontade presidencial num Estado de Direito. Daí o deslavado inserir do ilícito nos processos políticos do país, o uso abusivo do “privilégio do Executivo” e do perdão presidencial para proteger os colaboradores que mobilizou na sua sanha destrutiva.
Trump cobriu com um tecido de mentiras o espaço público dos Estados Unidos com a sua solerte operação das redes sociais. Criou “bolhas” intransitivas alimentadas por polarizações, cevadas pelo discurso de ódio, voltadas para desqualificar os que a ele se contrapunham. Aviltou o bem público da inclusividade, que é um dos valores da democracia. Confrontou com suas arengas despropositadas uma das máximas do mérito da democracia: é melhor contar cabeças do que cortar cabeças, nas palavras de Bobbio.
A virtude é um dos ingredientes de uma República que deve zelar pelo bem comum. Quando ela fraqueja, como na presidência Trump, abre-se o espaço para o domínio das baixas paixões, dos ressentimentos, das invejas e da vaidade. Trump traiu a alma das instituições republicanas dos EUA. Dante o inseriria nos círculos do inferno onde penam os falsários e os traidores.
A força das instituições americanas está contendo a sua fúria destrutiva. Mas ela é configuradora de consequências não só para os Estados Unidos, mas para o mundo, com destaque para a vigência do valor da democracia.
O trumpismo mina o softpower gravitacional da democracia americana no mundo. Justificá-lo é uma ameaça generalizada à democracia. Daí a inconformidade democrática, no Brasil, quanto às recentes manifestações do presidente e do seu chanceler. Elas são mais do que a expressão de afinidade com uma concepção da prática política. Revelam uma declarada simpatia pelas posições de Trump e dos seus mais raivosos adeptos. Foram uma oportunidade para nelas identificar uma antecipada prefiguração de uma despropositada fraude eleitoral nas eleições presidenciais de 2022. É um semear de ventos para tempestades políticas futuras.
*Professor emérito da Faculdade de Direito da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)
Luiz Sérgio Henriques: A corrupção da realidade
É o cenário ideal para projetos de poder que mal disfarçam um fundo niilista
Depois dos espantosos acontecimentos sucessivos à derrota eleitoral de Donald Trump, que culminaram no assalto ao Capitólio, acompanhado em tempo real por todo o mundo, pode-se afirmar que a esfinge do nacional-populismo contemporâneo não guarda nenhum segredo para ninguém.
Singularmente reativos à globalização e à construção de uma ordem internacional capaz de regular minimamente essa mesma globalização, que confundem de propósito com um fantasmagórico “governo mundial”, os diferentes nacionalismos mundializaram-se à sua maneira e renderam-se, ainda que de modo enviesado, às novas realidades. Não é de estranhar, por isso, que tenham até subtraído do movimento histórico dos trabalhadores a ideia de uma “internacional” que informalmente os congrega e entre eles difunde experiências “revolucionárias” ou que parodiam grotescamente as velhas revoluções.
Nada difícil, também, imaginar que serão bem parecidos os problemas que colocam, ou ainda vão colocar, para cada uma das democracias em cuja sala de comando já entraram ou ameaçam entrar. E cabe falar propriamente de ameaça, pois, como o caso norte-americano deixa evidente, trata-se de grupos com pretensões antissistêmicas, avessos à ideia simples, mas fundamental, de que eleições podem ser ganhas ou perdidas e que uma democracia de verdade repousa na recíproca legitimação dos contendores. Ninguém está fora do jogo, desde que recuse a violência e demonstre lealdade às instituições e suas normas, escritas ou não.
Chega a ser obsceno, depois da trágica experiência dos totalitarismos do século 20, transformar adversários em “inimigos internos” ou “traidores da pátria”, como se fazia, e se faz, nas ditaduras de qualquer tipo ou natureza – nas que se instauraram em nome da “segurança nacional” e nas que aviltaram a palavra “socialismo”. Por esse caminho se abdica da lógica política em favor da lógica da guerra e se entra num campo minado onde o combate salutar entre partidos, que sempre supõe acordos e compromissos, degenera no jogo feroz de facções inconciliáveis. Partidos e outros atores razoáveis são elementos de civilização, mesmo quando se defrontam duramente; facções são fatores de barbárie, ruína e perdição.
A experiência norte-americana dos nossos dias é ilustrativa, sob uma série de aspectos. O que impressiona, já à primeira vista, são os sintomas de loucura de massas advindos do que o angolano José Eduardo Agualusa, com mira certeira, chamou de corrupção da realidade. A fabricação consciente de “fatos alternativos”, ao que se diz, aproxima a Rússia putinista e a versão trumpista dos Estados Unidos, mas, evidentemente, há mais gente mundo afora envolvida nesse festim diabólico. Se, seguindo uma boa tradição de pensamento social, devemos considerar os fenômenos ideológicos uma realidade material como qualquer outra, e não mera aparência maldosamente arquitetada pelas “classes dominantes”, há na desfaçatez com que se mente, no volume e na velocidade com que se aciona o mecanismo propagador de absurdos, algo pérfido e doloso.
Mente-se, hoje, para pôr de pé estratégias manipulatórias como talvez nunca tenhamos visto antes, até porque estamos às voltas com a irrupção impetuosa da internet e das redes sociais. Não a mentira piedosa, como a da trama do conhecido Adeus, Lenin, filme em que o filho busca manter a mãe comunista, egressa de coma, na ilusão de que a Alemanha Oriental ainda resistia e gozava de boa saúde, quando o muro já tinha desabado havia meses e ela, a Alemanha Oriental, era mais um retrato na parede.
Mente-se, ao contrário, como estratégia determinada de grupos que aspiram à subversão da ordem democrática, como nos Estados Unidos, ou à manutenção da ordem autocrática, como na Rússia. Trata-se, quase se diria, de engano deliberadamente construído, que, no entanto, amplas parcelas da população, com menor ou nenhum grau de consciência, sofrem passivamente, entregando-se às mais extravagantes teorias da conspiração e superstições pré-científicas e anticientíficas.
Destroem-se assim alguns dos consensos mais básicos que estruturam a vida em sociedade. A deslegitimação das instituições – a começar do processo eleitoral, fundamento das democracias sistematicamente posto sob suspeição por todos os candidatos a autocrata – parece ser o resultado propositalmente buscado. E a realidade assim corrompida é o cenário ideal para projetos de poder que mal disfarçam um fundo niilista: o culto do homem providencial, a fixação no mando pelo mando, a dominação bruta, sem capacidade de direção e convencimento.
Não é a primeira vez que extremistas vestem fantasias “revolucionárias”, afirmando representar o homem da rua contra elites degeneradas. Há quase cem anos houve quem, na direita extrema, conjugasse demagogicamente “nacionalismo” e “socialismo”, com os resultados sabidos. Só que agora, até mais do que antes, podemos quase tocar com as mãos na dimensão universal da democracia e do conjunto de valores, particularmente liberais, que ela por sua própria natureza implica.
*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil
Luiz Werneck Vianna: Hic Rhodus hic salta
Nesse tempo de espantos algo já se pode dizer: perderam todos os que se empenharam em imprimir uma marcha à ré no movimento das coisas no mundo com a derrota no processo eleitoral de Donald Trump que os liderava a partir do poder e da influência que o governo dos EUA exerce na cena mundial. Em poucos dias, Joe Biden, cuja campanha se orientou por princípios opostos de política externa será ungido com a faixa presidencial, devolvendo o seu país ao seu leito natural historicamente constituído, exemplar no processo de criação da ONU. O eixo do mal, portador de versões degradadas do nacionalismo em moldes populistas, perde a sustentação do pino que garantia seu funcionamento, e as peças que ainda lhe restam não terão como operar sem o amparo do sistema de quem faziam parte.
Cerra-se um ciclo que se iniciou no governo Thatcher, aprofundou-se com Reagan e culminou com Donald Trump, em que se tentou com a fórmula neoliberal nos devolver ao capitalismo vitoriano. As promessas de um novo tempo, contudo, se encontram embaçadas pelo flagelo da pandemia que nos assola e tolhe a livre movimentação das forças sociais embora estimulem a procura por soluções cooperativas supranacionais. Nesse sentido, o esforço mobilizado para o combate contra ela ainda mais reforça o processo de transição em que estamos envolvidos para uma era de superação do modelo de estado-nação em favor de organizações multinacionais que se comprometam com os ideais da igual-liberdade.
Essa transição não será um processo fácil, à sua frente poderosos obstáculos, políticos, sociais e econômicos, como se constatou dramaticamente com a insurreição frustrada da invasão do Capitólio quando se intentou obstar a certificação das eleições por um golpe de mão. O cenário dantesco daquele episódio foi registrado ao vivo e a cores, e seu macabro inventário tem sido exposto pela imprensa americana com a identificação dos seus personagens, conformando um quadro assustador de supremacistas brancos, neonazistas, de milicianos, de uma gente sem eira e beira, inflada pela cólera do ressentimento social, escória cevada com as bênçãos do governante do país.
Conduzir essa transição demanda soluções enérgicas e criativas que destravem seu caminho, a primeira resposta contundente foi a do impeachment de Trump, que contou com a aprovação de 10 votos de representantes republicanos, e as que devem ser apresentadas por Biden em seu discurso de posse no próximo dia 20 em nome do que ele sustenta serem os remédios para a cura da alma americana da doença do trumpismo que teria posto em risco os valores fundacionais da sua sociedade.
Tal como testemunha o caso brasileiro, mais do que uma patologia própria aos EUA o trumpismo se constituiu em um sistema. Sua derrocada importará em efeitos de dominó nos países que integravam sua constelação, entre os quais o Brasil, contudo a necessária admissão dessa nova condicionante da política brasileira, bem longe de recomendar uma postura quietista, de cega confiança de que a mudança no estado de coisas da nossa realidade possa provir do mundo exterior, deve servir de estímulo aos esforços de erradicação do trumpismo tupiniquim.
O princípio da realidade nos aconselha a constatar as dificuldades políticas e sociais que se antepõem a esse necessário e inafastável empreendimento diante da gravidade das circunstâncias a que estamos expostos. Mas, em que pesem as restrições, inclusive as impostas pela pandemia que dificulta os encontros e as mobilizações no espaço público, são necessários os primeiros passos na longa marcha que se tem pela frente, pois não se podem dar as costas à fortuna que nos alicia para a ação. Caso contrariada por um ator surdo às suas mensagens, ela pode nos entregar à nossa própria má sorte com o resultado nefasto de prolongar o abjeto governo que aí está.
A tragédia amazônica, se permanecermos inertes, será o destino de todos se nos faltar o alento para a reconquista do que nos tem sido subtraído pelo governo Bolsonaro em suas práticas demofóbicas e antidemocráticas. A investida das forças democráticas, na hora atual, deve ter como objetivo principal a defesa da vida e de todas as instituições da área da saúde que se empenham contra a orientação genocida imposta pelas autoridades governamentais, ora representada pela bizarra inépcia do ministro Pazzuelo.
Nessa direção, o movimento ofensivo deve transcorrer nas esferas institucionais, incluído o poder judiciário, com ênfase especial no Congresso, a que não pode faltar o recurso ao impeachment de Bolsonaro, principal responsável pela catástrofe sanitária do país, movimento a ser respaldado pelas agências da sociedade civil por meio de manifestos, panelaços e do que mais estiver à mão.
Cassandras nos aconselham a não partir para o mar alto, e nos relembram dos políticos liliputianos com que contamos, mas não nos vem de João Doria, governador de São Paulo, de perfil e robusto histórico conservador, a qualificação de Bolsonaro como facínora? Não se faz política sem alma, remoendo cálculos intermináveis de avaliação de forças esperando dos céus uma chuva que não vem, pois sempre chega a hora do hic Rhodus hic salta. Pois ela chegou. Já contamos mais de 200 mil mortos, basta, fora.
*Luiz Werneck Vianna, sociólogo, PUC-Rio
Bob Woodward: 'A democracia resistiu, o fracasso foi Trump'
Legendário jornalista, duas vezes ganhador do Pulitzer, considera que o presidente falhou em proteger os norte-americanos
Amanda Mars, El País
Há cerca de seis meses, quando faltava meio ano para o primeiro mandato de Donald Trump terminar, o legendário repórter Bob Woodward (Geneva, Illinois, 77 anos) acreditava que “qualquer coisa”, ou pelo menos “quase qualquer coisa”, ainda poderia ocorrer no restante da presidência do republicano. Chegava a essa conclusão no seu último livro, Raiva (editora Todavia), segundo volume dele sobre a era Trump. Mas também fazia a seguinte avaliação:
“Trump fala com muita dureza, às vezes de um modo que incomoda os seus próprios seguidores. Mas não impôs a lei marcial nem suspendeu a Constituição, apesar das previsões de seus adversários. Ele e seu secretário de Justiça, William Barr, desafiaram várias vezes o tradicional Estado de direito. Desnecessariamente, na minha opinião. Usar o sistema judicial para favorecer a amigos e punir inimigos é ruim e nixoniano. O sistema constitucional pode ter parecido eventualmente cambaleante, que podia mudar da noite para o dia. Mesmo assim, a democracia resistiu. A liderança falhou.”
O que pensará agora o famoso farejador de notícias? Uma semana depois do violento ataque ao Congresso por uma turba trumpista, um dia depois de aprovação da abertura de um segundo processo de destituição (impeachment) contra o mandatário por “incitação à insurreição”, e quase três meses depois de uma dura campanha de boatos sobre uma suposta fraude eleitoral para tentar reverter a vitória do democrata Joe Biden... Woodward espera que o sistema resista? Na manhã desta quinta-feira, do outro lado do telefone, o veterano repórter, duas vezes ganhador do prêmio Pulitzer, reflete um pouco antes de responder. “É uma grande pergunta. Acho que reafirmo o que escrevi. A democracia nos Estados Unidos resistiu, embora tenha sofrido abalos. O fracasso foi Trump, fracassou em entender a responsabilidade de sua presidência, fracassou em liderar”, diz ao EL PAÍS.
Woodward, que saltou para a fama ainda muito jovem ao revelar junto com Carl Bernstein o caso Watergate, escândalo que levou o presidente Richard Nixon a renunciar em 1974, é um dos grandes cronistas das presidências norte-americanas do último meio século. No primeiro livro sobre o Trump (Medo), não conseguiu entrevistar o republicano. Para o segundo, manteve quase 20 conversas com Trump ―além de dezenas de colaboradores dele― ao longo de 2020, um total de nove horas. No livro, traça o retrato de um Governo febril e errático, semelhante à sua conta do Twitter, e após estes últimos meses não tira conclusões muito diferentes do ocorrido na semana passada em Washington.
“Trump age controlado por seus próprios impulsos, não planeja, não pensa as coisas, de um modo muito alarmante falhou na hora de proteger as pessoas deste país, tanto do vírus como da violência que ocorreu na semana passada quando o Capitólio foi atacado por seus seguidores”, opina. Embora a Justiça tenha arquivado todas as ações judiciais movidas pela campanha de Trump para tentar reverter o resultado do pleito presidencial e as autoridades eleitorais tenham confirmado a validade da votação, mais da metade dos eleitores republicanos continua achando que Biden ganhou de forma fraudulenta. A mídia também parece ter fracassado na hora de combater os boatos.
Para Woodward, a imprensa vive uma era em que “a impaciência, a velocidade e o resumo” dominam tudo, e Trump “é algo muito difícil de cobrir, porque os jornalistas precisam lutar com fatos”, enquanto o magnata é “um especialista em dizer coisas que não são verdade”. Ele discorda, no entanto, da decisão de vários canais de TV ―inclusive a conservadora Fox News― de suspender a exibição das coletivas do mandatário quando ele lançava sua ladainha de acusações infundadas de fraude.
Primeira Emenda
“Acho que deveríamos deixar que as pessoas digam o que quiserem dizer, incluindo os presidentes. O problema são a internet e as redes sociais, que se guiam pela impaciência e a velocidade, e acho que precisamos desacelerar isso, por isso dedico meu tempo a escrever livros”, afirma. Também é cético quanto às decisões tomadas nos últimos dias pelos poderosos executivos de grandes empresas tecnológicas que fecharam as contas de Trump no Facebook e Twitter, junto com as de milhares de trumpistas radicais. “Sou jornalista há 50 anos e acredito na Primeira Emenda, que permite a liberdade de expressão. Muita gente diz coisas falsas ou revoltantes, é muito difícil estabelecer uma norma. Acredito que o mercado de ideias e expressões deveria ser o mais livre possível”, afirma. Considera que o furor midiático em torno de Trump começará a diminuir depois de 20 de janeiro, quando Biden tomar posse. “Há indicações de que ele pode se candidatar em 2024, mas a ênfase então estará em Biden, porque será o presidente, assumirá um poder extraordinário e terá que lutar com problemas extraordinariamente difíceis. Trump sempre será pauta, mas espero que isto diminua e vire uma pauta secundária, não a principal pauta dos EUA”. E o assalto ao Capitólio pode acabar com essas aspirações do republicano? “Pode ser que sim, ou que simplesmente ele perceba que é uma montanha alta demais para escalar com as coisas que deixou para trás, um sistema sanitário saturado, com mais de 300.000 mortos.”
A pandemia
Woodward não se interessa pelos rankings de quem foi o pior presidente da história recente e, embora admita a gravidade da invasão do Capitólio, não deixa de pôr o foco na gestão da pandemia. “As coisas pelas quais Trump foi submetido ao impeachment ―incitar uma revolta no Capitólio― são horríveis, e algumas pessoas morreram ali. Mas o vírus matou mais de 300.000 pessoas. Não digo que ele poderia evitar todas elas, mas muitas sim, simplesmente pedindo às pessoas que usassem máscara, que mantivessem a distância de segurança, que lavassem as mãos. Se tivesse feito isso em fevereiro, talvez o vírus estivesse sob controle neste país”, salienta.
O assunto leva diretamente à própria polêmica gerada pelo novo livro do jornalista. Raiva revelava que Trump sabia que o coronavírus era mortal e, durante meses, confundiu deliberadamente a opinião pública sobre sua letalidade. Enquanto nas entrevistas coletivas ele dizia ao público que “praticamente o paramos” (em 2 de fevereiro) ou que “um dia desaparecerá, como por milagre” (27 de fevereiro), a Woodward, em 7 de fevereiro do ano passado, ele declarou: “Você simplesmente respira e se contagia”. “E isso é muito complicado. É muito delicado. É mais mortal inclusive que uma gripe intensa. É algo mortal”, admitiu. Em 19 de março, reconheceu em outra conversa com Woodward: “Eu sempre quis minimizar a importância [da pandemia]. Ainda gosto de minimizar sua importância, porque não quero criar pânico”.
Quando o livro saiu, em setembro, Woodward foi bastante criticado porque, enquanto pessoas morriam, se calou durante meses sobre essas discrepâncias, até que o livro saísse. O repórter protesta: “Qualquer um que tiver lido o livro percebe que isso não é verdade. Ele me disse em fevereiro que o vírus era transmitido pelo ar e que era pior que a gripe, e em fevereiro eu achava ―e o mundo achava― que o vírus estava na China. Não achei que estivesse falando dos Estados Unidos. Só em maio fiquei sabendo daquela reunião que ele manteve em janeiro e na qual recebeu um alerta detalhado, mas em maio todo mundo já sabia do vírus, e o vírus estava dizimando as pessoas, não ia dizer às pessoas coisas que não sabia. Pude fazer isso no livro, que saiu antes das eleições”.
Marcus Pestana: As repercussões globais dos acontecimentos nos EUA
A democracia americana é uma grande referência mundial. Daí a repercussão global dos acontecimentos do último 6 de janeiro. O que lá acontece, respinga para além de suas fronteiras.
Como citou, certa vez, o senador americano Daniel Patrick Moynihan, “Todo mundo tem direito às suas próprias opiniões, mas não a seus próprios fatos”. Donald Trump, seus “engenheiros do caos” e suas verdades alternativas creem que é possível impor uma narrativa descolada da realidade a partir da repetição exaustiva da mentira e da manipulação dos algoritmos nas redes sociais, e assim, mudar as regras do jogo político e a face da sociedade.
A insistência exaustiva sobre fraudes nas eleições foi disseminada bem antes. Diante dos resultados, sucessivos recursos judiciais alimentaram o clima golpista desejado. Paralelo a isso, se deu a pressão sobre as eleições dos delegados ao Colégio Eleitoral. Já na reta final, Donald Trump pressionou o secretário de estado da Geórgia, o republicano Brad Raffensperger, a “encontrar votos” que lhe dessem a vitória. Não satisfeito, Trump infernizou a vida de seu vice e presidente do Senado, o republicano Mike Pence, para que não sancionasse a vitória de Biden.
Todas as manobras visavam um acontecimento inédito na história da democracia americana: barrar a posse do presidente eleito e criar o ambiente social necessário para as ruidosas manifestações que sitiaram o símbolo da democracia americana, o Capitólio. A gota d’água para estimular a agressão ao Congresso foi o discurso de Trump, incentivando a marcha que resultou nos dramáticos acontecimentos ocorridos, inclusive cinco mortes. Ainda sobrevive no ar uma névoa de dúvidas sobre o que poderá acontecer até a posse de Joe Biden.
Imediatamente, houve ampla reação internacional com pronunciamentos contundentes de líderes como Macron e Merkel, entre outros, preocupados com o estímulo a reações semelhantes de agressão à democracia no restante do mundo.
O posicionamento da sociedade civil, da imprensa, de partidos, de setores empresariais, nos EUA e mundo afora, foi unânime em condenar o atentado e defender a democracia. As redes sociais bloquearam as contas de Trump.
Para o Brasil ficam lições importantes. É preciso, até 2022, fortalecer a cultura democrática. O nacional-populismo autoritário não é obra de lideranças, loucas e/ou fascistas, isoladamente. É um fenômeno social de massas a partir da insatisfação de diversos segmentos sociais e não só do núcleo ideológico radical. Precisamos defender com firmeza a integridade de nosso sistema eleitoral e da urna eletrônica, que desde 1996, produziram um dos mais modernos processos de votação e apuração do mundo. Defender as instituições, a Constituição e as regras do jogo. Estancar a tentativa de politização das Forças Armadas e das polícias estaduais e a liberalização excessiva da venda de armas e munições. As milícias ideológicas armadas existentes nos EUA ainda poderão produzir tristes fatos até a posse de Biden. Não é um bom exemplo a seguir.
Democracia é liberdade, debate aberto, contenção no uso do poder, respeito aos adversários, debate, diálogo, formação de consensos, eleição e subordinação às regras e à alternância no poder.
Os acontecimentos de 6 de janeiro fortalecem a convicção que quase nunca o que é bom para os EUA é bom para o Brasil.
*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)
Demétrio Magnoli: Progressistas que celebram cancelamento da conta de Trump buscam pacto com plutocratas da internet
É hora de derrubar a muralha do privilégio, submetendo as mídias sociais às mesmas regras de responsabilidade da imprensa
“Não me diga que ele foi banido por violar as regras do Twitter”, tuitou o opositor russo Alexey Navalny sobre Trump, “eu recebo aqui ameaças de morte todos os dias, há anos, e o Twitter não bane ninguém (não que eu peça isso)”. Twitter, Facebook e congêneres são veículos de crimes contra a humanidade. Em Mianmar, serviram à campanha de limpeza étnica dos militares contra a minoria rohingya e, na Índia, à operação oficial de anulação da cidadania dos muçulmanos de Assam. Os progressistas que celebram o cancelamento da conta de Trump buscam uma aliança faustiana com os plutocratas da internet.
Navalny erra apenas ao definir como censura o gesto do Twitter. Censura é, sempre, um ato estatal contra a liberdade de expressão. O princípio da liberdade de expressão abrange também o direito de empresas privadas de se dissociar de discursos que consideram intoleráveis. Mas que ninguém se engane: no caso das plataformas globais de mídias sociais, os banimentos seletivos não derivam de padrões éticos mas de cálculos de negócio.
O ato extremo do Twitter, bem como a suspensão temporária imposta a Trump pelo Facebook, inscrevem-se numa estratégia defensiva.
Nos EUA, por razões distintas, as gigantes das mídias sociais entraram na mira de democratas e republicanos. No horizonte, encontra-se a hipótese de fragmentação legal dos oligopólios da internet. O “cancelamento” do presidente que termina seu mandato à sombra da invasão do Capitólio destina-se a lustrar a imagem das big techs perante o novo governo democrata e sua maioria parlamentar.
Um jorro celebratório acompanhou o banimento de Trump —e não só nos EUA. Os progressistas brasileiros não ocultaram suas esperanças de que o cancelamento virtual siga seu curso até Bolsonaro. No fundo, acalenta-se a perspectiva de grande barganha: vocês excluem as vozes odientas da direita nacionalista; nós evitamos a derrubada da muralha que protege o vosso castelo.
O nome da muralha é impunidade, o privilégio que separa as big techs dos veículos tradicionais de imprensa. As empresas jornalísticas estão sujeitas à responsabilização judicial pelos discursos que publicam. Se, nesta coluna, calunio ou difamo alguém, a Folha compartilha a responsabilidade pelo discurso criminoso —e, por isso, um editor supervisiona meu texto. Twitter, Facebook et caterva, pelo contrário, não devem explicação alguma sobre as mensagens difundidas por seus usuários. São, portanto, livres para auferir lucros de campanhas de ódio movidas por governantes, partidos, igrejas ou organizações extremistas. Para eles, o crime compensa.
O privilégio da impunidade ancora-se na alegação de que as empresas de mídias sociais não exercem funções editoriais: suas páginas eletrônicas seriam folhas em branco preenchidas por usuários soberanos. Desde sempre, as regras de uso sinalizaram a falsidade. Há um “editor oculto”, um software, que demarca os limites da palavra permitida. Mas o banimento de Trump escancarou a paisagem. As big techs fazem curadoria de conteúdo, de acordo com critérios políticos de conveniência. No império de Putin, ninguém bloqueia as ameaças à vida de Navalny; nos EUA do triunfo democrata, cancela-se a conta do presidente em desgraça.
Jack Dorsey, do Twitter, e Mark Zuckerberg, do Facebook, os Editores Supremos, deixaram impressões digitais na escrivaninha, na tela, nas paredes e no teto.
É hora de derrubar a muralha do privilégio, submetendo-os ao mesmo universo de regras de responsabilidade que regula a imprensa. Ah, isso implodiria o modelo de negócio dos gigolôs da xenofobia e do extremismo? Que pena...
Desconfio, porém, que os progressistas preferem a aliança faustiana. Quem liga para Navalny, os rohingya ou os muçulmanos de Assam? Eles são, afinal, um preço baixo a pagar pela exclusão de Trump e Bolsonaro.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Sergio Fausto: Na defesa da democracia, quem cala consente
Bolsonaro bate na mesma tecla de Trump, a mais golpista e antidemocrática
Enquanto assistia, horrorizado, ao ataque das tropas de choque de Donald Trump ao Congresso americano, a expressão “this is a cautionary tale” me vinha e voltava à cabeça. Não encontrei forma sintética para traduzi-la, mas não é difícil explicar o seu significado. Simplificadamente, cautionary tale é uma história (no passado grafaríamos estória) que alerta o leitor ou ouvinte sobre o risco de incorrer em grave perigo se tomar ou mantiver irrefletidamente certas iniciativas.
As imagens das milícias da extrema direita americana assaltando o Capitólio valem mais do que mil palavras: as forças tradicionais de direita que se aventuram a pular na garupa de líderes populistas autoritários, imaginando que cedo ou tarde lhes arrebatarão as rédeas, terminam pisoteadas pelo fanatismo de seus seguidores. É o que experimentaram os sabujos de Trump, que à última hora constaram o que já era obvio há muito tempo: o presidente dos Estados Unidos não hesitaria em jogar o país no abismo da violência e da tirania para reter o poder e/ou salvar a própria pele.
Uma coisa é ler sobre como as forças tradicionais de direita na Itália e na Alemanha dos anos 20 e 30 do século passado se aliaram ao nazi-fascismo para depois se tornarem, também elas, vítimas dos horrores do totalitarismo. Outra bem diferente é ver a história sendo de algum modo reeditada – ela nunca se repete – em cores e ao vivo, numa profusão de imagens aterradoras. Os milicianos que vandalizaram o Congresso não queriam apenas a cabeça de Nancy Pelosi, a presidente democrata da Câmara, mas também a do vice-presidente Mike Pence, que alguns ameaçavam enforcar, como mostram vídeos e mensagens de Twitter.
Felizmente, as instituições americanas resistiram ao mais duro teste a que já foram submetidas, embora não se saiba ainda quais serão as consequências de longo prazo da trágica passagem de Trump pela Casa Branca.
Resistiram porque houve coragem cívica de muita gente, que não se dobrou aos desmandos trumpistas. As instituições das democracias liberais não param em pé por si mesmas. Precisam de atos cotidianos de resistência e reforço e, nas horas decisivas, de homens e mulheres dispostos a se arriscar para defendê-las, como o fizeram, entre outros, as autoridades eleitorais, republicanas e democratas, que impediram Trump de violar os resultados cristalinos do pleito presidencial.
E nós, aqui? O repúdio ao assalto ao Capitólio foi imediato e duro da parte dos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado e de juízes do Supremo Tribunal Federal, assim como da imprensa. Já o presidente da República aproveitou o episódio para fazer coro com as mentiras de Trump sobre as inexistentes fraudes na eleição americana e para lançar ameaça sobre as consequências de uma eventual derrota sua em 2022: “Aqui pode acontecer coisa pior”.
Jair Bolsonaro bate na mesma tecla de Trump, a mais flagrantemente golpista e antidemocrática de seu tosco repertório autoritário: só será legítima a eleição que ele vença. Não se trata de bravata, mas de uma peça retórica para mobilizar antecipadamente as suas bases, igualzinho ao que fez o derrotado presidente americano.
Tal barbaridade deveria merecer o rechaço público dos companheiros de viagem de Bolsonaro que ainda podem dissociar-se do risco que ele representa. Salvo exceções, porém, o que se ouviu foi o silêncio. Já não era tempo de as Forças Armadas terem feito o exame de consciência necessário para se darem conta do erro que cometeram ao se deixar enredar pelo capitão presidente? E os empresários, de reconhecerem o autoengano de havê-lo apoiado e continuarem a fazê-lo em nome de reformas que ele não está disposto a fazer? E os políticos profissionais da direita racional e democrática, de sobrepor a sua reputação a seus interesses de curto prazo?
Não sou alarmista e confio em que, ao fim e ao cabo, as instituições democráticas no Brasil vão prevalecer, mas, como bem disse o professor Hussein Kalout em entrevista recente ao Valor Econômico, “o roteiro para o Brasil repetir o cenário dos EUA está pronto”. Ao menos na cabeça do presidente, de seus acólitos e de suas milícias reais e virtuais.
Outro a alertar para o perigo foi o jurista Miguel Reale Júnior. Para quem sabe, como ele, juntar os pontos, não passa despercebido que o presidente tem três obsessões interligadas: apontar sem base alguma os riscos de fraude do sistema das urnas eletrônicas, facilitar o acesso às armas e enaltecê-las como instrumento de exercício da vontade popular e da liberdade individual e cultivar com especial cuidado suas bases de apoio entre policiais e militares de baixa patente.
Que o roteiro esteja preparado, e o elenco de personagens venha sendo sub-repticiamente arregimentado, não significa que estejamos condenados a viver o filme de horror que habita os sonhos do presidente. Mas é preciso dizer em alto e bom som que o risco existe e atuar em todas as frentes para reduzi-lo. Mais importante ainda é construir uma aliança de forças capaz de aplicar a Bolsonaro uma derrota eleitoral definitiva.
*Diretor-Geral da Fundação FHC, é membro do Gacint-USP
Cora Rónai: As redes sociais concentram poder demais
Sua ação trouxe à luz o debate que, há tempos, elas tentam evitar
O presidente dos Estados Unidos é, em tese, o homem mais poderoso do mundo. Entre outras coisas, ele tem acesso a um aparato de comunicação sem igual: jornalistas das principais organizações de mídia do planeta cobrem a Casa Branca 24 horas por dia, ávidos por ver o que faz e ouvir o que tem a dizer. Seu nome é pronunciado incontáveis vezes por dia em boa parte dos 7.117 idiomas falados por seres humanos. O que não lhe falta é palanque. Mas Donald J. Trump considera-se mudo sem as suas redes sociais — e, de certa forma, está mudo mesmo.
Ele foi expulso da ágora contemporânea, da praça onde se travam hoje as discussões, onde se marcam encontros informais e ataques terroristas, passeatas e golpes de Estado.
Não tem mais conta no Twitter, e suas contas no Facebook, no Instagram, no Snapchat e até no Shopify e Pinterest estão suspensas. O Parler ainda o tolera — mas a rede foi banida das lojas do Google e da Apple e, mais importante, dos servidores da Amazon, o que a tirou efetivamente do ar.
As redes sociais demoraram muito para tomar uma decisão em relação a Trump e, quando tomaram, erraram a mão. O que acabaram fazendo foi chamar a atenção para o poder descomunal que está concentrado em meia dúzia de empresas. Tinham outra saída? Objetivamente, não: a democracia dos Estados Unidos estava sob ameaça. Mas a sua ação trouxe à luz, de maneira espetacular, o debate que, há tempos, elas tentam evitar — afinal, qual é o grau de responsabilidade que têm em relação ao que é postado nas suas páginas?
Ninguém ainda descobriu a resposta exata para essa pergunta. As redes sociais são um fenômeno recente, e estão se desenvolvendo de forma complexa demais para caber em moldes conceituais e legais antigos. Elas não podem ser responsabilizadas por tudo o que publicam, mas também não podem ser irresponsáveis socialmente no grau em que tem sido.
Onde traçar a linha?
Antes de convocar seus apoiadores para “protestos selvagens”, Trump escreveu muita mentira no Twitter, atacou muita gente, gerou muito ódio; a invasão do Capitólio não foi consequência de apenas 240 caracteres. No dia 26 de maio do ano passado, o Twitter pela primeira vez marcou dois tuítes de Trump com advertências sobre a sua confiabilidade: ele estava pondo em questão os votos enviados pelos correios, e desmoralizando o processo eleitoral. Mas foi pouco, e foi tarde.
Como deveriam ter agido?
Ninguém sabe. Não há fórmula. Não há legislação. Onde fica a fronteira entre a liberdade de expressão e a ameaça pública? Até que ponto podemos ser tolerantes com a intolerância?
Uma boa providência para começar seria proibir chefes de Estado de ter contas individuais tout court. Quem assume um cargo desses representa um país, e um país não pode correr o risco, interno ou externo, de ficar submisso aos caprichos de um único tuiteiro maluco. Trump não é o Fulano Trump, é — até o próximo dia 20, ou até ser impichado, o que vier antes — o representante máximo dos Estados Unidos. Assim como Jair Bolsonaro não é (infelizmente) apenas um bolsonaro qualquer.
As redes sociais concentram poder demais; o que era óbvio agora está escancarado, e a discussão sobre a sua regulamentação está na ordem do dia.
Alon Feuerwerker: E o interesse nacional?
O debate público sofre quando é inteiramente capturado pela fratura política, e daí a independência do pensamento entra em bloqueio. Uma consequência é o efeito-manada, as pessoas são arrastadas pela turba e frequentemente acabam indo contra o próprio interesse.
Acontece agora, no episódio do cartão vermelho das big techs para Donald Trump.
Alguns até pararam para pensar “o que eu ganho se as big techs, sob a batuta - ou com medo - da Casa Branca e do Capitólio, tiverem o poder de eliminar qualquer um do espaço de formação da opinião pública?”. Entretanto são poucos os sinceramente preocupados. A esmagadora maioria do campo antitrumpista, lá e aqui, vibrou.
Mas e nós? Se o Brasil fosse um jogador potente na corrida global da alta tecnologia, ainda vá lá. Poderíamos ser sócios minoritários da inédita concentração de poder pelos monopólios tecnológicos sediados nos Estados Unidos.
Porém neste jogo nós temos força apenas relativa. Interessa ao Brasil que decisões de tamanha gravidade sejam tomadas sem que ninguém mais no mundo, além da Casa Branca e do Capitólio, possa influir?
Trump não foi apenas banido das redes. Sites e aplicativos ligados ao campo político que ele representa passaram a ser excluídos do acesso ao hardware indispensável às operações. E a gravidade da coisa foi tanta que levou líderes como Angela Merkel, insuspeita de simpatia ao trumpismo, a demonstrar insatisfação.
Um ponto de quem apoia o banimento é as redes sociais serem propriedade de empresas privadas, podendo portanto decidir o que vão, ou não, deixar postar. Mas se as empresas devem ter essa liberdade, junto deve vir a responsabilidade pelo conteúdo que elas permitem veicular em suas plataformas.
Além do mais, elas operam em regime de monopólio. Não cabe aqui o argumento do livre-mercado.
As big techs querem ser tratadas estritamente como empresas de telecomunicações e tecnologia? Então o jogo será outro. A companhia telefônica não pode ser responsabilizada pelos que dizemos ao telefone, ou escrevemos nas mensagens de texto. Em compensação, tampouco pode cortar a linha do assinante por discordar do que ele diz ou escreve.
Só o Estado, por meio da Justiça, deve ter tal poder. Exatamente pelo fato de Estado e a Justiça não serem propriedade privada. Pelo menos na teoria.
Talvez seja ilusão pedir que este debate aconteça aqui no Brasil em torno de princípios e convicções, num tempo em que eliminar o adversário é a única regra válida do jogo político, um jogo aliás no qual ambos os lados se pretendem gladiadores em defesa da liberdade. Seria cômico se não fosse trágico.
Então que pelo menos não sejamos inteiramente submissos como nação a um poder que nos escapa.
Somos um país grande, com território, população e recursos econômicos suficientes para pretender um bom grau de autonomia nacional e projeção global. Mas este episódio exibe qual é talvez nosso principal obstáculo: a absoluta incapacidade de enxergar por cima das momentâneas disputas políticas e entender onde está o interesse nacional.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
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Publicado originalmente na revista Veja 2.721, de 20/01/2021
El País: Segundo impeachment pode deixar Trump inelegível?
Senado estará dividido em 50 a 50 entre republicanos e democratas, mas o impedimento só é aprovado com dois terços dos votos
Donald Trump entrará na história como o único presidente submetido a dois julgamentos políticos, ou impeachments. Pode até se tornar o primeiro presidente dos Estados Unidos a sofrer esse impeachment já sendo ex-presidente. Porque ao contrário dos julgamentos anteriores no Senado contra Andrew Johnson, Bill Clinton e o próprio Trump, nesta ocasião o tempo é um fator determinante, uma vez que daqui a uma semana o presidente eleito, Joe Biden, prestará juramento nas escadarias do Congresso e Trump deixará o poder ao meio-dia do dia 20.
O ambiente político é muito diferente daquele do impeachment que Trump enfrentou em 2019. Na época os republicanos eram uma força monolítica e sem fissuras ―com a única exceção do senador Mitt Romney. Desta vez, o líder da maioria do Senado, Mitch McConnell, indicou que considera que a melhor maneira de tirar o trumpismo do Partido Republicano seria submeter o presidente a um impeachment. Trump seria julgado por “incitação à insurreição”.
A missão da Câmara dos Representantes nesta quarta-feira era aprovar a norma procedimental que definiria o impeachment, uma questão puramente mecânica, e votar a favor ou contra. A votação resultou na aprovação, porque só era necessária maioria simples e a Câmara está nas mãos dos democratas. A partir daí, tudo é novo em comparação com os julgamentos anteriores da época moderna, seja o de Clinton ou o do próprio Trump. Nancy Pelosi, a presidenta da Câmara dos Representantes, deve então decidir quando enviar a proposta de impeachment ao Senado, uma vez que, segundo o atual calendário, a Câmara Alta está em recesso até o próximo dia 19.
A única maneira de o Senado retomar suas sessões seria se os líderes de ambos os partidos, Mitch McConnell e Chuck Schumer, acordassem voltar mais cedo do que o calendário indica. Nesta questão, alguns democratas tinham pedido a Pelosi que adiasse o início do impeachment para permitir que Joe Biden começasse seu mandato sem que esse fardo pesasse sobre sua cabeça, o que, além disso, tornaria mais lenta a confirmação de seu Gabinete. Outros exigiram que começasse de imediato. Se forem confirmadas as palavras desta quarta-feira do líder da maioria da Câmara dos Representantes, Steny Hoyer, uma vez aprovados, os artigos do impeachment serão enviados imediatamente ao Senado, onde se realizará o segundo julgamento de Trump. Isto acabaria com as dúvidas sobre se os democratas esperariam os primeiros 100 dias de Biden na Casa Branca para realizar o julgamento e assim não interferir em sua agenda. No entanto, McConnell já avisou que não reunirá o Senado durante o recesso, razão pela qual o processo certamente terá lugar depois de Trump ter deixado a Casa Branca.
Numa atmosfera normal, não depois do ataque ao Congresso e com a Guarda Nacional mobilizada dentro do Capitólio, haveria uma investigação que seria enviada ao Comitê de Justiça da Câmara, que realizaria audiências intermináveis nas quais seriam redigidos centenas de artigos para que se aprovassem. Isto aconteceu em 2019, quando Trump foi processado por seu conluio com o presidente da Ucrânia. Esse inquérito demorou três meses. O julgamento de Clinton começou em 19 de dezembro de 1998 e terminou com sua absolvição em 12 de fevereiro do ano seguinte.
No entanto, existe o precedente de um impeachment expresso. Em 1868 a Câmara levou apenas três dias para julgar o presidente Andrew Johnson para evitar que violasse uma lei que o impedia de demitir o secretário de Guerra. A Câmara terminou então os artigos relativos ao impeachment depois que o presidente já tinha sido julgado, e absolvido. Em resumo: a Câmara pode avançar tão rápido quanto os líderes democratas desejarem.
Uma vez que a proposta de impeachment for enviada ao Senado, que é onde se julga o presidente, é de suma importância lembrar que o impeachment acontece num momento de transição tanto presidencial quanto de senadores. Os democratas Raphael Warnock e Jon Ossoff ganharam as eleições especiais da Geórgia no dia 5, mas como os resultados ainda não foram certificados eles não foram empossados, razão pela qual Mitch McConnell continua sendo o líder da maioria na Câmara Alta. O dia 22 é a data limite para a Geórgia legalizar os votos.
Se ambos os senadores tomarem posse enquanto Trump ainda for presidente, o Senado ficaria dividido em 50 a 50 e seria o vice-presidente, Mike Pence, quem romperia um empate em favor dos republicanos. Só depois que a vice-presidenta Kamala Harris e os senadores da Geórgia prestarem juramento é que os democratas assumirão o controle do Senado. De novo o tempo joga contra os democratas, e até ao dia 20, e mesmo alguns dias depois, McConnell e os republicanos é que decidirão o que será feito no Senado, o que significa que decidirão se começam o julgamento e como (por exemplo, quanto tempo será dedicado a ele, se testemunhas serão chamadas ou não).
Entre os obstáculos para que Trump seja condenado por insurreição ―e, a depender de uma segunda votação, incapacitado para voltar a ocupar um cargo público― está o fato de que deve ser aprovado por uma maioria de dois terços no Senado ―a incapacitação política dependeria de maioria simples, por outro lado. Embora várias vozes republicanas defendam a punição a Trump, seriam necessários 17 votos no Senado, o que torna uma condenação muito difícil. A isto se junta a pergunta de saber se o Senado pode proceder a um impeachment contra um presidente que já não está em exercício.
A pergunta que divide os especialistas citados pela imprensa norte-americana é: o Senado pode efetuar um impeachment contra um presidente que já não está em exercício? Há quem argumente que um ex-presidente já é um cidadão comum e que a figura do impeachment não foi redigida para tais casos. Outros dizem que o objetivo é conseguir que se proíba ao acusado poder concorrer à Casa Branca ―ou a outras instâncias do Governo― no futuro. A Constituição não dá respostas claras a esse respeito.
Enquanto isto acontece, Trump pode tentar alguma manobra, como declarar a lei marcial ou ordenar uma nova eleição, como sugeriu seu aliado Michael Flynn? Apesar de que, depois da insurreição, o presidente tenha se comprometido a respeitar a transição de poder, ninguém pode garantir que o fará. É por isso que uma grande maioria de legisladores democratas acredita que não se pode confiar que o presidente jogará limpo, e por isso pedem sua destituição imediata do cargo.
Bruno Boghossian: Medo da violência aumenta poder sedutor do debate sobre armas
É melhor remover um lunático da arena política ou derrotá-lo nas urnas?
Donald Trump fez tantos estragos na política americana que foi preciso aprovar dois pedidos de impeachment contra ele na Câmara. O primeiro foi barrado no Senado, em 2020, e o segundo não deve ser votado antes do fim de seu mandato, mas o processo em curso pode abrir caminho para que ele seja proibido de disputar eleições.
Alguns congressistas republicanos apoiam a condenação de Trump. Além de gravar essa decisão na história, eles dizem que é preciso despoluir o partido e impedir que o atual presidente cause mais danos ao país no futuro. Outros parlamentares, porém, argumentam que expulsá-lo da vida pública vai alimentar animosidades e fortalecer seus devotos mais radicais.
É melhor remover um lunático da arena política à força ou é melhor derrotá-lo nas urnas? A resposta depende do apego a princípios democráticos, da força das instituições, do grau de ameaça do sujeito e, principalmente, da chance de sucesso de cada uma das alternativas.
Quem defende o acionamento do segundo botão sustenta que o confronto dentro das regras eleitorais reveste esse movimento com o condão da vontade popular e ajuda a reduzir os traumas da transição, mesmo após campanhas duras.
O problema é que essa solução tende a ser pouco eficaz contra populistas autoritários, que exploram teorias extremistas, posam como líderes perseguidos pelo sistema e se beneficiam do ressentimento de seus admiradores. Se os americanos escolherem esperar até 2024 para dizer um novo “não” a Trump, ele pode voltar à Casa Branca.
A exclusão pelos canais institucionais é um tiro mais certeiro, ainda que os efeitos colaterais sejam consideráveis. A ação depende de políticos que tenham coragem de tomar essa decisão e que abandonem a ilusão de que poderiam controlar o líder desvairado caso ele continuasse no jogo. Depois disso, é preciso ter instituições potentes para debelar focos secundários de extremismo e barrar a ascensão de seus filhotes.
Fernando Schüler: As big techs assumiram a curadoria. Civilização ou distopia?
Ideia da liberdade de expressão nasceu do ceticismo moderno; quem detém a verdade e quem são seus juízes?
Por um bom tempo alimentamos a ideia de que a internet as redes sociais forjariam uma imensa ágora digital. Ainda do projeto Gwan, que conheci nos anos 1990, quando estudava em Barcelona. Tudo funcionava no sótão de um velho prédio no bairro Gótico. A ideia era forjar música misturando sons de todo o planeta para ser transmitida em todos os meios, nas primeiras horas do ano 2000.A ideia era ótima. Bach se fundiria com o nosso samba de roda e todos dançaríamos de mãos dadas, durante um minuto, no que seria o primeiro ato da "sociedade civil mundial". Era isso que embalava a turma nas madrugadas frias de Barcelona, naquele sótão empoeirado e forrado de computadores.Na largada do novo milênio nada aconteceu e nunca mais ouvi falar daquela música. Mas as redes sociais explodiram e de algum modo mantiveram viva a ideia da ágora universal.
As redes funcionariam com base na neutralidade, no mais amplo pluralismo, e as regras não envolveriam discriminação de conteúdos. Viria daí diálogo e aproximação dos divergentes.
O resultado, todos sabemos, foi o contrário. Ao invés da aproximação veio a guerra digital. Mesmo assim se preservou a ideia de que as redes manteriam sua neutralidade. E resistiriam aos grupos difusos e cada vez mais fortes na opinião pública e nas empresas.
Intuo que chegamos a um ponto de virada. As redes parecem ter jogado a toalha. É o que sinalizam os desligamentos recentes. Eles envolvem um claro juízo político e vão muito além da punição que precisa ser feita, dentro da lei, para quem promove violência, morte, suicídio, ódio racial ou religioso e afins, seja de que lado político for.
As redes agiram assim porque podem. São empresas privadas, suas regras, vagas e passíveis de ampla interpretação. Um amigo tentou me convencer que deveríamos confiar na sua curadoria e "bom senso" e que cortar estas e não aquelas contas seria sempre o melhor para a civilização e para democracia.
Não sei por que (talvez seja a idade), tornei-me cético demais para acreditar nessas coisas. Aliás, depois de anos lendo sobre as origens da liberdade de expressão, descobri que ela nasceu precisamente do ceticismo com a "verdade" e a infalibilidade de seus juízes.
É o sentido da frase desconfiada da chanceler Angela Merkel, dizendo "problemático" o banimento do presidente americano das redes e afirmando a liberdade de expressão como um "bem fundamental", a ser disciplinado pela esfera pública, não por um punhado de empresas.
É provável que o caminho à frente seja o da segmentação. Políticas de exclusão incentivam o surgimento de novas redes. As empresas, é previsível, agirão para preservar seu quase monopólio, e o estrangulamento do Parler é mostra disso. A longo prazo, não creio que seja possível. Difícil imaginar três ou quatro empresas funcionando eternamente como curadoria do mundo.
Há algo inútil nisso tudo. Este tema já era discutido por John Milton na sua crítica à censura de livros, na Inglaterra do século 17. A liberdade corre como água e vai buscando novos caminhos. A forte migração para novas plataformas, como o Signal e o Telegram, é um sinal. Como disse a jornalista Elizabeth Brown, "os problemas e as ideias que animam as pessoas não vão embora, apenas vão para o subsolo".
Doses crescentes de vigilância social para impor a verdade trazem o velho problema da ladeira escorregadia. É preciso continuamente fechar cada espaço que se abre. No fim você precisa de uma ilha cercada por tubarões para manter tudo sob controle. Não é assim que as coisas funcionam em nossas sociedades abertas.
A ideia das ágoras universais vai naufragando ao sabor da radicalização e intolerância de um mundo que elas ajudaram a criar. Talvez elas tenham sido, desde sempre, uma ideia fácil demais para um mundo complicado como o nosso.
A melhor aposta é a pluralidade de redes. A liberdade, no zigue-zague da história, vem sempre ganhando o jogo. Pode-se desligar uma conta, aqui e ali. Mas não pode desligar o cérebro das pessoas nem o seu direito de pensar com a própria cabeça.
*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.