Trump
A anti-globalização: do subcomandante Marcos a Trump
O protecionismo triunfa nos países mais desenvolvidos do mundo ocidental, nos quais nasceu a ideologia neoliberal
Em 01 de janeiro de 1994 se levantava no México o Exército Zapatista de Libertação Nacional, chefiado pelo subcomandante Marcos. Trata-se do dia em que entrou em vigor o Acordo Norte-Americano de Livre Comércio, o Nafta. Alguns consideram que este evento foi a primeira resposta à globalização, ou seja, o marco fundacional dos movimentos altermundialistas.
Em seguida, vieram mais protestos: entre o final dos anos 1990 e início dos 2000, cada cúpula dos organismos propulsores da globalização, bem como os seus signos de identidade, como o livre comércio, a desregulamentação e a liberalização e, em última análise, a eliminação das fronteiras para o capital (Organização Mundial do Comércio, o Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial), se tornariam palco de protestos dos altermundialistas, como se denominavam seus protagonistas, uma vez que não propunham acabar com a globalização, mas sim construir um outro modelo para ela ("outro mundo é possível" era seu lema). No inventário de eventos, encontramos em Madrid, onde se celebrou o cinquentenário do FMI, a importantíssima contra-cúpula de Seattle, contrária à OMC, Génova, Gotemburgo, Barcelona, Praga. Ao mesmo tempo, os fóruns sociais surgiram como caminhos, sendo o mais importante o de Porto Alegre (Brasil), onde diferentes movimentos de todo o mundo se reuniram para discutir os problemas globais e, sobretudo, para se sentirem em comunidade.
Nestes encontros contrários a globalização neoliberal, que também eram reuniões internacionais de contestação a um sistema que se expandiu e se radicalizou desde os anos oitenta com Thatcher e Reagan e, especialmente, depois da queda da União Soviética, seu único e grande rival histórico, surgiram pessoas de muito brilho, de grande personalidade, e até mesmo com aura. Talvez pudessem ser comparados aos filósofos e ativistas de maio de 68. Entre os protagonistas da anti-globalização havíamos mencionado Marcos. Outro nome que merece ser apontado é o de José Bové, sindicalista agrário, ativista anti-globalização, defensor da soberania alimentar, e co-fundador da ATTAC, em 1998. Bové também foi candidato à presidência da República Francesa, porém com péssimos resultados.
A ATTAC, grande instituição antiglobalização ainda atuante, nascia como um grupo de pressão, que defendia a introdução de um imposto sobre as transações financeiras internacionais, a chamada taxa Tobin, com o duplo objetivo de, por um lado, reduzir a especulação nos mercados e, por outro, ajudar a compensar, ainda que minimamente, algumas sociedades que estiveram à margem dos predicados reais da globalização. A globalização era acusada de desestruturar economias nacionais e desprezar os princípios democráticos, impondo pressões sobre os Estados para liberalização e desregulamentação econômica, aumentado as desigualdades sociais. Estas eram mais ou menos as ideias expressas por Ignacio Ramonet em um editorial publicado no “Le Monde Diplomatique” em 1997, no momento da crise asiática. Ramonet, também co-fundador da ATTAC, foi um dos principais disseminadores da anti-globalização.
No rastro da queda do Muro de Berlim e, posteriormente, da URSS, quando o capitalismo se apresentava sem um modelo rival, de modo que se criavam condições para que se expandisse em todo o mundo em sua forma mais pura, a União Europeia dava o maior impulso de sua história para a sua integração: em 1992, firmou-se o de Tratado Maastricht e, em 2002, o euro começou a circular nas ruas de doze países europeus. A mini-globalização europeia também sofreu contestações, ainda que minoritariamente. Na Espanha, a “Esquerda Unida” se colocou contra Maastricht. Na França, houve uma mobilização relativamente importante contra o projeto de constituição europeia. Além disso, houve dois casos altamente divulgados: os da Dinamarca e do Reino Unido, que não renunciaram à sua soberania monetária. Hoje, esses dois países ainda seguem fora do euro e um deles iniciou o processo de auto exclusão da União Europeia.
O grande paradoxo
Muitos anos após os primeiros protestos contra a globalização passamos a falar de “desglobalização”. Não se trata apenas de reclamações e protestos da sociedade civil. Agora se trata de vitórias que estão apontando forças do próprio sistema (o Partido Republicano americano, por exemplo) apoiadas em determinadas ocasiões por outsiders (Donald Trump, um homem de negócios que apresenta sua faceta mais heterodoxa se tornando um político anti-elites). Além disso, a ideia de desglobalização triunfa em países centrais, nos maiores do mundo ocidental, nos mesmos locais de nascimento da ideologia liberal.
O paradoxo é enorme: 23 anos após o levante zapatista, é o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que ameaça as empresas americanas com as tarifas para os produtos fabricados no México a serem vendidos nos EUA. Ademais, Trump alerta para uma futura renegociação do NAFTA e apela pela saída norte americana do Tratado Transpacífico (TPP). Somado a isso, em seu primeiro discurso como presidente, Trump fez um apelo para que as empresas dessem prioridade aos trabalhadores americanos. Prometeu recuperar os empregos perdidos e a riqueza para a classe média americana, perdidos, em sua análise, em consequência da globalização. No Reino Unido, os cidadãos decidem, em um referendo chamado pelo primeiro-ministro do Partido Conservador, se excluir da União Europeia. A Frente Nacional de Marine Le Pen aproveita as “vitórias” de Trump e do Reino Unido para declarar que a próxima ocorrerá na França, que também procura retrair-se para as limitadas fronteiras do Estado nacional. E talvez poderemos ver algo semelhante na Itália, onde a Liga do Norte, o Movimento Cinco Estrelas e Forza Italia planejam, mais ou menos abertamente, um referendo para deixar o clube europeu. Como dito no fim de semana passado, a extrema-direita europeia se reunia, encorajada pelos bons agouros que Trump lhes transmitiu dias antes: haverá mais rupturas na Europa similares ao “Brexit”.
O descontentamento gerado pela globalização está se manifestando nos países que eram considerados os grandes vencedores do livre mercado global. Explica-se, talvez, porque tenham negligenciado que mesmo dentro destes países beneficiados pelo desaparecimento das fronteiras do capital haveria grupos sociais excluídos, ou seja, às margens da globalização. Estes grupos não são apenas afetados na vida material (as deslocalizações os deixaram sem trabalho e as migrações fazem com que o valor de sua força de trabalho seja reduzido), mas também na vida "espiritual": as diluições das fronteiras parecem ameaçar a identidade dos grupos mais fracos. Daí a retração das identidades ante a novos fenômenos, como o afluxo de refugiados para países onde a imigração tem sido quase inexistente, como a Hungria e outros países da Europa Central e Oriental, outro foco geográfico principal da desglobalização.
A anti-globalização que venceu as eleições no Sul a que vence no Norte
A anti-globalização, por sua vez, teve sucessos institucionais nos países emergentes, particularmente na América Latina, como escreveu o vice-presidente boliviano Álvaro García Linera, no jornal argentino Página 12: "Os primeiros passos em falso da ideologia da globalização são sentidos no início do século XXI na América Latina, onde os trabalhadores, plebeus urbanos e rebeldes indígenas se aglutinam para tomar o poder do Estado. Combinando maiorias parlamentares com ação de massa, os governos progressistas e revolucionários implementaram uma variedade de opções pós-neoliberais mostrando que o livre mercado é uma perversão econômica passível de ser substituída por modelos de gestão econômica muito mais eficientes para reduzir a pobreza, criar igualdade e promover o crescimento econômico".
“Existe alguma relação entre o altermundialismo de vinte anos atrás com as estratégias nacionalistas de hoje?” Jaime Pastor, professor do Departamento de Ciência Política e Administração da Universidade Aberta, afirma que o movimento de duas décadas atrás foi uma resposta à globalização financeira e neoliberal, a concentração de poder nas mãos de grandes empresas multinacionais, ao ataque à propriedade comunal indígena; foi um movimento contra a "globalização feliz". Por outro lado, em sua opinião, Trump e Brexit representam uma reação à crise dessa "globalização feliz". Ambos, surgem, diz Jaime Pastor, para defender a prioridade nacional na sua qualidade de grandes potências. Há também neles, na opinião do professor, razões competitivas: querem sair com o mínimo de danos possíveis da desaceleração econômica. Os desglobalizadores atuais se apoiam, continua Pastor, no sentimento de piora nas condições de vida de uma parcela da população, a saber, as vítimas da desindustrialização do norte. Em suma, o que estamos testemunhando agora, como afirma Pastor, é uma combinação de egoísmo nacionalista de grande potência que se apoia no mal estar popular daqueles que perderam com as deslocalizações de empresas que percorriam o mundo em busca de redução de custos e maximização do lucro.
Na mesma linha, Jorge Fonseca, Professor de Economia Internacional da Universidade Complutense de Madrid e membro do Conselho Científico da ATTAC, afirma: "Por enquanto, o que existe é luta pela hegemonia na globalização em que os Estados Unidos perderam seu status de potência hegemônica absoluta e que agora buscam recuperá-la “renegociando a globalização”, que permanecerá neoliberal, a menos que uma crise profunda como a dos anos trinta tenha força para romper com este cenário”. Continua Fonseca: "Na verdade, os movimentos anti-sistêmicos são altermundialistas e a suposta atitude anti-globalização de Trump é, na verdade, uma chantagem para renegociar com mais vantagem os termos dos acordos de livre comércio num momento em que os Estados Unidos estão socialmente divididos. E não são comparáveis as políticas de soberanias "defensivas" dos países latino-americanos com as ofensivas nacionalistas de países como os EUA ou o Reino Unido. Enquanto uma procura limitar espoliação internacional, a outra procura irá aumentá-la".
O economista Ramón Casilda observa que, na verdade, Donald Trump não fez campanha contra a globalização, de modo que o presidente dos EUA está apenas lançando propostas para resolver os sintomas gerados por seus efeitos negativos sobre a economia dos EUA, recorrendo a um modelo antigo, o da industrialização por meio de substituição de importações.
Miguel Angel Diaz Mier, professor da Universidade de Alcalá, sintetiza uma possível resposta ao que está acontecendo: "Uma questão importante é definir o que se entende por globalização, cuja principal característica é se tratar de um processo dinâmico. Consequentemente, parece claro que a globalização do século XXI tem algumas das características em comum, ainda que não todas, com a globalização do século XX. Nesse sentido, é possível falar de desglobalização, embora pareça claro que a ideia de globalização será definida novamente". Assim, as características da nova globalização podem responder, de acordo com Diaz Mier, a novas situações como a luta contra as alterações climáticas, as respostas à migração, com o seu impacto sobre a divisão internacional do trabalho. O capitalismo entrou, portanto, em uma dinâmica que deve ser acompanhada de perto.
Porém, frente aos recentes acontecimentos, a questão é saber se houve mais vítimas no norte do que no sul, dado que no norte a antiglobalização agora triunfa, enquanto que no sul, gradualmente, governos que a ascenderam na América Latina agora se dissolvem.
"Vítimas existiram no norte e no sul", disse Pastor. Mas talvez se manifestaram em diferentes momentos históricos. No sul, a antiglobalização explodiu com a força institucional na década de noventa, após as imposições de políticas de ajuste e de super-exploração de recursos e trabalho praticadas ao longo dos anos oitenta. A queda de alguns líderes de esquerda nos últimos anos na América Latina se deve, de acordo com Gonzalo Berrón, pesquisador associado da TNI (Transnational Institute), falando do Brasil, ao fato de que a crise econômica impediu que se cumprissem as promessas de bem-estar. Tais promessas não foram cumpridas sobretudo para as classes médias. "Estamos em uma inversão de ciclo. A primeira onda anti-globalização levou ao poder governos progressistas, que não corresponderam às expectativas, de modo que agora estamos tornando a opções liberais", descreve Berrón.
Em comparação com o sul, continua Pastor, os trabalhadores do norte foram privilegiados, embora estes últimos parecem ter acabado por deflagrar um movimento que Pastor chama de “o chauvinismo do declínio do bem estar". Mas de qualquer modo, como afirmou Fonseca, "esta globalização, neoliberal e de predomínio das finanças e domínio monopolista das grandes multinacionais, é prejudicial para o desenvolvimento não só dos países do Sul, mas também para os desenvolvidos, onde crescem a desigualdade e a pobreza. A exceção é a China, que está passando por um processo de industrialização contínuo de mais de trinta anos e mais limitadamente seus países vizinhos, como Malásia e Vietnã, que melhoraram seu nível de desenvolvimento humano de acordo com as Nações Unidas, mas também encaram limites difíceis de se superar. "
Os últimos movimentos que surgiram nos países desenvolvidos são muito institucionalizados e procuram ganhar poder de forma convencional em parte porque seus protagonistas saem do próprio poder. Há vinte anos, a anti-globalização, como Pastor Jaime define, foi um movimento de nômades, com pouco alcance em território nacional. E sua força sempre limitada se esgotou rapidamente. Talvez, como Pastor observou, seu último episódio foi a mobilização contra a guerra no Iraque. Desse modo, terminou a onda de antiglobalização progressista no norte. "Não houve tempo para um alcance a nível de estado nacional no norte, ao contrário Sul", afirmou Pastor. Os movimentos antiglobalização não se concretizaram no norte e pareciam sempre minoritários. Isto, para além da suas idiossincrasias horizontais e quase espontâneas, também se deu por outras razões, como explica Gonzalo Berrón: "O primeiro lugar da antiglobalização foi o Sul, a América Latina, porque se opôs mais fortemente ao Consenso de Washington, que impunha desregulamentação e liberalização. No norte, é verdade que naqueles anos houve uma realocação significativa de empresas para outros países com custos trabalhistas mais baratos, mas isso pôde ser compensado pelo crescimento no setor de serviços e o forte crescimento do consumo. A reação à globalização entrou em vigor na América do Sul com governos progressistas que detiveram seu fluxo. O próprio Morales era parte do movimento anti-globalização, por exemplo. Acrescenta Berrón: "Agora parece que os efeitos nocivos da globalização chegaram ao norte e foram acentuados pela crise que eclodiu em 2008 e trouxe não só uma longa recessão, mas também cortes e ajustes". Os anos oitenta da América Latina correspondem à segunda década de 2000 na Europa?
Há vinte anos, os movimentos antiglobalização partiam de dentro da esquerda. Agora aqueles que triunfam são patrimônio da direita. Nos países desenvolvidos, em vez de se atacar o neoliberalismo ataca-se os imigrantes, vistos como os perdedores ocidentais da globalização, ou os chineses, que produzem mais barato, o que leva a uma guerra entre pobres e empobrecidos, como observa Pastor.
E, ainda de acordo com Pastor, a social-democracia tem sido um dos motores da globalização, enquanto que outros setores da esquerda se concentraram mais em outros movimentos. Por outro, lado, movimentos como o Podemos se encontra enraizado em movimentos antiglobalização. Na verdade, muitos de seus líderes participaram da sua mobilização e também de sua institucionalização na América Latina. Berrón aponta também o sucesso de líderes de esquerda, como Bernie Sanders nos EUA ou Jeremy Corbyn no Reino Unido. O primeiro quase venceu a batalha contra Hillary Clinton para a candidatura à Presidência pelo Partido Democrata. O segundo se consolidou como líder do Partido Trabalhista britânico, sendo seu representante mais à esquerda das últimas décadas, embora às vezes pareça dar credibilidade às inquietudes das posturas anti-imigração, atribuídas as bases tradicionais do trabalhismo.
De qualquer forma, Jaime Pastor acredita que o verdadeiro fracasso, a responsabilidade pela globalização que se arruína e que agora fará esses perdedores se sentirem um pouco órfãos da esquerda (ou mesmo capturados pela nova direita nacionalista?) está no movimento operário: "os sindicatos apontaram para o neocorporativismo competitivo nacional. Na melhor das hipóteses, eles deram um ‘sim crítico’ para eventos tais como o Tratado de Maastricht na Europa. Eles não responderam à desvalorização da força de trabalho, tanto dos salários diretos quanto indiretos".
Evidências da Desglobalização?
A anti-globalização tem se consolidado na cena política do norte, mas é possível visualizar evidências quantificáveis mundo afora de desglobalização? A verdade é que os bancos de investimento e o mundo financeiro como um todo estão preocupados com esta questão. Em relatório recente do Bank of America, Merrill Lynch diz: "A era do comércio livre e da mobilidade de capital e trabalho que se desenvolveu entre 1981 e 2015 parece estar chegando ao fim. Eleitorados estão virando para uma direção anti-imigração. O populismo contrário ao livre-comércio está crescendo (a pesquisa recente mostrou que 65% dos americanos dizem que as políticas comerciais têm levado a uma queda do emprego nos EUA, em comparação com 13% que acreditam que estas criaram trabalho). As eleições do Brexit e dos norte-americanos representam reações de repúdio populista do status quo global”. Martin Wolf, do Financial Times, também se mostra preocupado com este assunto: "Com a era da globalização chegando ao fim, o protecionismo e o conflito irão definir a nova fase?", pergunta em um artigo recente. E Nouriel Roubini encabeçando outro artigo diz: "América primeiro e, depois, conflito global ".
Para David Lubin, de Citi, a desglobalização é uma evidência. Desde 2012, ele observa um crescimento dos limites ao livre comércio, bem como uma nova reação dos países emergentes que realizam estratégias de redução da dependência econômica em relação ao estrangeiro, isto é: estratégias econômicas nacionalistas. Não só Polônia, Hungria e Rússia seguiram esse caminho. A China também está tentando depender menos das exportações para o exterior em troca de reforço do consumo interno. Por isso, para Lubin, a Argentina de Macri ou o Brasil de Michel Temer parecem um anacronismo por continuarem tentando adotar políticas para parecerem confiáveis aos olhos do capital estrangeiro. Embora o nacionalismo econômico traga taxas de crescimento modestas, ao que parece, aos olhos de Lubin, é o mais apropriado para o contexto atual.
O analista financeiro Juan Ignacio Crespo cita a Organização Mundial do Comércio demonstrando que, entre outubro de 2015 e maio 2016, o G-20 adotou 145 leis para levantar barreiras protecionistas. Desde 2008, 1.500 medidas deste tipo foram aprovadas. Crespo aponta também para as estimativas do economista britânico Simon Evenett, segundo as quais qual existem cerca de 4.000 leis e regras protecionistas registradas no mundo, 80% destas no G-20, que são responsáveis por 90% do comércio mundial. Ou seja, antes de Trump e Brexit, já existiam medidas para limitar o livre comércio, que agora podem ir mais longe.
É a crise ou a globalização?
Para Juan Ignacio Crespo, os resultados políticos que estamos vendo no Reino Unido, nos Estados Unidos e na Áustria, onde a extrema direita chegou às portas do governo, resultam da pequena desglobalização que havia começado por conta da crise. Crespo recorda que em 2008 o comércio mundial desabou completamente e agora está crescendo a taxas mais baixas do que o PIB, embora isso se explique também pelo arrefecimento da China e seu menor consumo de matérias-primas. O declínio no comércio mundial é uma das manifestações da crise econômica e piorou as condições de vida de certos grupos sociais, que votaram nestas novas forças políticas, mais por cansaço que por convencimento. Neste fato encontram-se as razões pelas quais houve uma rebelião contra as elites, mas que, ainda assim, de acordo Crespo, não é muito grande: o Brexit venceu por pouco e nos EUA em voto eleitoral, Hillary Clinton venceu.
Para Crespo, a precarização e a insegurança coletivas que estão por trás das novas vitórias eleitorais não se devem à globalização, mas a crise econômica e as novas tecnologias. O mal-estar é oriundo da crise econômica que levou a canalização de forças como o Podemos na Espanha e Donald Trump nos Estados Unidos. Talvez, poder-se-ia ter evitado todo esse processo que estamos vivendo nos últimos anos se não houvesse eclodido a crise financeira, o que poderia ter sido evitado caso o setor financeiro não houvesse sido desregulamentado, o que, como diz Crespo, teria sido muito difícil de alcançar em um contexto de prosperidade econômica.
O economista Ramón Casilda, que acaba de publicar Crise e reinvenção do capitalismo, nos dá uma outra visão. Na verdade, a globalização é uma consequência do capitalismo. E, talvez, se a globalização não passa por seu melhor momento é por conta da crise do capitalismo. Em sua opinião, o que precisa ser abordado é se esta crise é temporária, se é uma fase passageira para recuperar a forças ou se está anunciando o declínio do próprio sistema.
Uma desglobalização favorável para o desenvolvimento interno dos países?
Em qualquer caso, esta desglobalização, que já pode demonstrar alguma evidência, pode contribuir para o desenvolvimento interno dos países até agora excessivamente dependentes de outros? Pode-se fixar isso criticando a injusta divisão internacional do trabalho que emergiu da globalização ou esta tornou-se crônica por sua culpa? Para Crespo, o auto-desenvolvimento não é mais útil, porque a globalização faz com que todos no mundo se tornes dependentes. Se os países emergentes precisam de capital, os desenvolvidos possuem a necessidade de colocar seu excesso de liquidez. Foi construído um sistema, em sua opinião, em que todos tiram proveito de todos. A própria Espanha, diz ele, viveu este processo de desenvolvimento: a Espanha também era um país emergente que se abriu para o exterior, atraindo investimentos e, em seguida, sofreu deslocalizações para substituir aquelas indústrias por um setor de serviços altamente desenvolvido, ainda que, acrescentamos, nunca de maneira suficiente, de acordo com a elevada taxa de desemprego, que tem sofrido a economia doméstica.
Mas Berrón acredita que a globalização não resultou no desenvolvimento das economias latino-americanas. A indústria que chegou não foi capaz de gerar cadeias produtivas. O Cone Sul foi condenado a uma inclusão subordinada e dependente do norte. Sua inserção internacional era apenas como um fornecedor de matérias-primas ou bens de pouco valor agregado. Embora, em seguida, as estratégias de desenvolvimento interno que os governos progressistas colocaram em prática foram ineficazes na sua implementação, em seu desenho, ou porque o ambiente global impediu seu sucesso. Por isso Berron não confia no sucesso das estratégias de re-nacionalização. Especialmente porque é possível que a onda desglobalizadora não dure o suficiente para países da periferia global desenvolverem suas próprias estratégias. E se acaso prolongar-se no tempo, antecipará grandes movimentos nas placas tectônicas dos processos do sistema e de transformação que não vão ser nada suaves. No final, todos eles se rearmariam para uma nova realidade, embora possa levar anos, já que a globalização tem desmantelado modelos de auto-desenvolvimento e de desenvolvimento regional. "Se Donald Trump se consolidar enquanto um líder nacionalista e fizer o que diz, o mundo pode ser outro", resume Berron.
Uma nova onda anti-globalização progressista?
No norte, ou talvez globalmente, tem havido uma retomada da anti-globalização progressista, apesar de seu pequeno reavivamento contra TTIP e CETA, mas Gonzalo Berrón antecipa uma nova onda, que deve ser contrária a Trump e contra a globalização neoliberal enquanto sistema, e não em relação suas manifestações concretas sob a forma de acordos de livre comércio. Esta última, diz, é insuficiente. Assim, começa-se a apostar em medidas para desprivatizar a democracia tornando-a pública, de modo que o Estado passe a financiar as eleições e campanhas eleitorais em vez de o mercado, com vistas a impedir que magnatas como Trump não iniciem a disputa em vantagem. Ademais, também têm-se empreendido uma luta na ONU para que se imponham obrigações às empresas multinacionais no intuito de reequilibrar as desigualdades geradas pela globalização; também há comprometimento em relação a um severo questionamento da propriedade intelectual e das patentes sob as quais se construíram grandes impérios que mercantilizam a vida; além disso, também se aposta na recuperação do acesso a natureza como um bem comum que agora se encontra nas mãos de companhias ligadas à indústria alimentícia e a exploração de recursos minerais. Com estas reinvindicações o movimento anti-globalização das esquerdas pretende capitalizar a revolta global. Chega tarde? Não sabemos, mas como disse Jorge Fonseca, o que agora está em causa no mundo é se se aposta na humanidade ou na depredação selvagem: “uma globalização humanizada deve ter o objetivo de favorecer as pessoas com um modelo econômico socialmente justo e ambientalmente sustentável. Na verdade, nem sequer devemos falar sobre "globalização", que é uma categoria desprestigiada. Caminhemos rumo a uma sociedade mundialmente humanizada.”
Cristina Vallejo é jornalista especializada em finanças e socióloga.
Fonte: http://ctxt.es/es/20170118/Politica/10625/globalizaci%C3%B3n-Seattle-Zapata-Trump-portoalegre-nafta.htm#.WIivOQkMya0.facebook
Tradução e revisão de texto: Germano Martiniano, Marcus Oliveira e Victor Missiato
Luiz Carlos Azedo: Pare o mundo, Trump quer descer!
O presidente dos EUA não esconde a simpatia pelos líderes nacionalistas europeus. Mas será mesmo que pode barrar a globalização?
Trump assumiu o poder com o pé no acelerador. Começa a pôr em prática as promessas de campanha, inclusive aquelas que eram consideradas absurdas e demagógicas, como a construção do muro na fronteira dos Estados Unidos com o México, depois de detonar o acordo de livre comércio com o vizinho hispânico e o Canadá. É uma grande ironia, uma vez que os Estados Unidos sempre se opuseram à existência do Muro de Berlim, construído pela União Soviética, para separar as duas Alemanhas durante a Guerra Fria.
Também implodiu a Aliança do Pacífico, um pacto comercial com países asiáticos cujo objetivo era contrabalançar a crescente hegemonia chinesa na região, e detonou as relações com os países europeus. O novo presidente dos Estados Unidos, o homem mais poderoso do mundo, nacionalista e xenófobo, quer deter a globalização. Por muito pouco, não nos lembra Charlie Chaplin na cena antológica de O grande ditador.
O discurso de Trump se aproxima ao dos críticos tradicionais da globalização, os nacional-desenvolvimentistas. Por outra ironia do destino, a postura de Trump na política mundial foi questionada pelo presidente da China, Xi Jinping. O líder comunista lançou farpas em direção ao novo presidente dos Estados Unidos. Defendeu uma política comercial de portas abertas, o acordo de Paris e disse que o comércio mundial é como “um oceano do qual ninguém pode sair”. Talvez esteja aí o grande busílis na nova situação internacional.
No século passado, duas guerras mundiais ocorreram em razão da disputa estabelecida entre a Inglaterra e a Alemanha pelo controle do comércio mundial, cujo eixo era o Oceano Atlântico. Neste século, o fluxo comercial se deslocou para o Pacífico. A disputa é entre a China, uma potência continental como a Alemanha, e os Estados Unidos, potência marítima que substituiu a Inglaterra. Como será o desfecho dessa disputa, que protagoniza o redesenho da divisão internacional do trabalho? Os Estados Unidos lideram a produção de conhecimento e de tecnologia; a China, a produção de bens de consumo não duráveis, enquanto corre atrás do desenvolvimento científico e tecnológico.
Trump também meteu a colher na Europa, cujas potências tentam preservar seu lugar no mundo sob fortes pressões nacionalistas e xenófobas. Depois de bater boca com a primeira-ministra alemã Ângela Merkel, estreitou relações com a nova primeira-ministra britânica, Theresa May, que sexta-feira foi recebida na Casa Branca. Os dois concordaram em aumentar a cooperação militar e econômica entre os dois países e discutiram os passos que podem tomar para facilitar acordos entre empresas dos dois países. Não estão afinados quanto a Rússia, com quem Trump espera ter uma “fantástica” e “positiva” relação, apesar do conflito na Ucrânia.
“Americanismo”
Salvar a velha indústria e restabelecer os empregos tradicionais nos Estados Unidos, eis o desejo de Trump. Fechar as fronteiras para os imigrantes, como anunciou na sexta-feira em relação aos refugiados de sete países — Irã, Iraque, Líbia, Somália, Sudão, Síria e Iêmen — é a antítese do chamado sonho americano.
América primeiro: “Todas as decisões sobre o comércio, a tributação, a imigração, assuntos externos serão tomadas para beneficiar os trabalhadores americanos e as famílias americanas. Temos de proteger nossas fronteiras da devastação que outros países causaram ao produzir nossos produtos, roubar nossas empresas, destruir nossos empregos. Proteção trará maior prosperidade e força (…). A América começará a vencer novamente, a vencer como nunca antes.”
O presidente dos EUA não esconde a simpatia pelos líderes nacionalistas europeus. Mas será mesmo que pode barrar a globalização? Para alguns, ela seria fruto de uma política das “potências imperialistas”, mas a maioria acredita que é fenômeno objetivo, uma característica do capitalismo. Seu desenvolvimento, com a robotização e a inteligência artificial, coloca em xeque o emprego e o trabalho. Como reverter esse processo sem andar de marcha à ré? O colapso do chamado “socialismo real” teve como uma de suas principais causas a superação do taylor-fordismo pelos sistemas flexíveis e pelo toyotismo. Vai ser difícil um cavalo de pau na economia americana, principalmente na indústria, sem correr os mesmos riscos de ficar para trás.
É possível o fim do “americanismo”? Do ponto de vista do consumo, a mudança de estilo de vida dos americanos é uma premissa para a construção de um mundo mais sustentável; mas, do ponto de vista dos costumes, já não dá para acreditar, pois isso significaria abrir mão da liberdade. Na verdade, Trump representa o que há de mais obsoleto e predatório nos Estados Unidos.
Fernando Gabeira: Trump e seus limites
Com a posse de Trump, começa uma nova fase no mundo, na medida em que ele é influenciado pela mudança de presidentes nos EUA. Até aqui a maioria dos analistas manteve uma postura de estudo e atenção. Os governos estão de orelha em pé. Até que ponto Trump presidente e Trump candidato são a mesma pessoa? Independentemente dos impulsos pessoais, as salvaguardas da democracia americana limitam seu poder.
No final de seu mandato, Obama conta com um aprendizado: ter conhecido os limites do possível, mesmo quando se ocupa um cargo dessa dimensão. São duas pessoas diferentes. Obama é um intelectual, com formação literária. Usava parte de suas noites para ler, era a forma de se distanciar do turbilhão das notícias, ganhar perspectiva. E, como ele próprio confessou, entrar no chinelo dos outros, viver outras vidas. Obama aprendeu sobre o ser humano com Shakespeare, que descreveu na cultura ocidental a integralidade do ser humano, com suas baixezas e loucuras, ridículos e algumas qualidades.
Trump é um empresário, e talvez seu arquétipo seja George Babbitt, o rechonchudo e próspero empresário, também um símbolo da cultura americana. Babbitt é um personagem de Sinclair Lewis, primeiro escritor americano a ganhar o Prêmio Nobel. Na casa de Babbitt, os filhos não iam estudar Belas Artes ou Literatura, mas se preparar para o mundo dos negócios. Trump tem experiência de televisão, maneja o Twitter, é um empresário de outra época. Apesar disso, tem oposição na indústria cultural.
Desde já, com boicotes à posse e críticas em Hollywood, o que posso deduzir é que a própria influência americana no mundo se fará com salvaguardas. De um lado, o desdobramento da política de Trump; de outro a crítica do universo cultural. As primeiras intervenções dos responsáveis pelo Pentágono e pela CIA já mostraram que eles divergem de Trump em dois temas essenciais da campanha: a relação com Putin e o muro na fronteira com o México. Para um deles, o status da Rússia permanece o mesmo no universo da vigilância americana. Para outro, o muro não é melhor saída para o problema dos clandestinos.
Apesar de todos os enigmas, Trump deve tentar satisfazer aos eleitores, abrindo empregos e buscando ressuscitar algumas industrias em declínio. O caminho deverá ser o protecionismo. E o impacto regressivo na estrutura do comércio mundial pode ser ruim. E além disso, os resultados internos também são duvidosos. Finalmente, Trump candidato nega o aquecimento global e o atribui à invenção dos chineses. Imaginem, os chineses custaram a aderir aos primeiros acordos internacionais. Só uma mente simples pode atribuir uma influência dos chineses em milhares de cientistas do mundo que trabalham com o tema e apontaram sua gravidade antes da própria burocracia comunista.
No Twitter fala-se de tudo, em 140 caracteres. Num mundo de notícias falsas, da pós-verdade, versões suplantam as evidências. Isso não significa que a realidade não venha cobrar sua conta. Não importa tanto descrever Trump. É sua atuação como presidente que vai influenciar temas sensíveis para a Humanidade: a imigração, o comércio internacional, o aquecimento do planeta.
Aqui no Brasil será preciso muita cautela, uma vez que Trump tem se fixado mais no México. Na América do Sul, apenas Nicolás Maduro o saudou com entusiasmo. Temos, em menor escala, o problema dos imigrantes, vivemos um momento de desemprego e, desde a queda de Dilma, o país se direcionava para intensificar as relações com os Estados Unidos. A crise econômica, a corrupção, cabeças cortadas, a violência urbana, tudo isso serve para projetar uma imagem negativa. Será preciso concentrar-se nesses problemas, e ter cabeça fria na relação com Trump. No momento em que o mundo dá essa reviravolta, creio que vai se entender uma fase de economia de opiniões brasileiras sobre o seu destino. Todos sabem que estamos ocupados demais em sair da maré negativa de quase uma década, agora acrescida dos horrores nos presídios. A expectativa sobre o que Trump fará como presidente é enorme. Grandes emoções podem vir, mas o foco é aqui dentro. Não se pode dançar com leveza com tantos espinhos nos pés.
Não estou propondo um desligamento do mundo. Apenas lembrando que neste momento o exame do que se passa não foge de um tema inescapável: isso nos ajuda ou não a sair da crise? O comércio com os Estados Unidos pode ser um elemento dinâmico. O Brasil já faz esforços nesse sentido, desde as eleições. Mas com as constantes referências de Trump à taxação de produtos estrangeiros, até isso para mim é um enigma. Num mundo de enigmas, só tenho certeza de que aqui estamos num buraco, sonhando em escapar dele.
* Fernando Gabeira é jornalista
Fonte: http://gilvanmelo.blogspot.com.br/2017/01/trump-e-seus-limites-fernando-gabeira.html
Luiz Werneck Vianna: Em meio à tempestade
Inútil ficar com o olhar perdido em 2018. A hora da grande política é agora.
Deu a louca no mundo e a roda do destino parece estar girando para trás. De um horizonte cosmopolita, que ainda ontem se podia divisar, estamos sendo devolvidos, por poderosos golpes inesperados, como o do Brexit dos ingleses e desse que nos atinge o queixo em cheio com a eleição de Donald Trump, ao espaço anacrônico do Estado-nação hobbesiano. A política ameaça regredir às trevas dos anos 1930, tendendo a convertê-la, como naquela década sombria, a instrumento exasperador da competição econômica por mercados que nos levou à hecatombe da 2.ª Guerra Mundial. Entre tantos sinais nefastos que se prenunciam – plausível uma vitória eleitoral da extrema direita na França –, estão aí as investidas contra a União Europeia e a ONU, visando a rebaixar seu papel civilizatório e recusar suas promessas em favor da concórdia e de paz entre os povos.
Os riscos a que estamos expostos não resultam, obviamente, de causas naturais, mas da imprevidência humana, que, mesmo advertida pelo lento derruimento de nossas instituições da democracia política a que inermes temos assistido, principalmente pelo esvaziamento dos partidos e da vida associativa, não foi capaz de reagir ao que havia de legítimo nas queixas e no sentimento de descrença do homem comum quanto a elas.
Não deixa de ser irônico que, diante de um diagnóstico quase consensual sobre a perda de centralidade do mundo do trabalho na cena contemporânea, tenha vindo de redutos tradicionais da vida operária, na Inglaterra do Brexit e dos EUA de Trump, um bom contingente de votos a favorecer a vitória desses dois movimentos recessivos. Não lhes faltaram motivos, pois ficaram excluídos do rol dos ganhadores com o processo da globalização, quer pelas transformações introduzidas nos processos produtivos que suprimiram postos de trabalho, quer pela transferência de fábricas dos antigos centros industriais para a periferia do nosso sistema-mundo.
Mais que minguar demograficamente, essas classes foram, em boa parte, esvaziadas do seu poder social e influência política, e, pior, suas gerações mais velhas, sem condições de adaptação a essas mudanças, foram relegadas ao limbo com o resultado de diluir sua outrora orgulhosa identidade, deixando-as vulneráveis à síndrome do ressentimento, cujos efeitos negativos ora testemunhamos em tristes episódios. A globalização, mais que um processo – que, aliás, vinha de muito longe –, foi também uma estratégia orientada para fins econômicos, diplomáticos e políticos na boa intenção de incentivar a cooperação internacional e criar as bases para uma sociedade cosmopolita.
Contudo seu sistema de orientação, tal como se evidencia na história da criação da União Europeia, confiou mais na capacidade da economia de produzir os resultados desejados do que nas dimensões integrativas da política e do social, que não avançaram na mesma medida. Por ironia, o script do século 19, em sua crença nos mecanismos benfazejos de uma economia que se autorregula, como nos textos do filósofo vitoriano Herbert Spencer, como que ressurgiu de modo encapuzado e contraditório em meados do século seguinte, momento em que o welfare State parecia experimentar seu auge. Passou-se ao largo da dura crítica em que Émile Durkheim, ainda em 1893, no clássico Da Divisão do Trabalho Social, sustentou com boas razões que, ao invés de nos trazer a solidariedade social que ela prometia, ainda mais fragmentaria o corpo social.
Não têm sido poucos os que denunciam, J. Habermas à frente – que não ignorou Durkheim em sua obra maior –, o déficit democrático que persiste como marca de origem da União Europeia, arquitetura que lhe veio da obra de elites ilustradas por cima da soberania popular, como um dos responsáveis pela ressurgência de temas e comportamentos que pareciam condenados à obsolescência, como a xenofobia e o nacionalismo, entre outras pragas que agora nos assolam.
Os alertas soam de todos os lados sobre os perigos de um cenário em que a economia se torne meio de projeção de poder dos Estados-nação, sob o registro do protecionismo e da autarquização dos mercados nacionais numa versão desastrada do populismo latino-americano. Contra isso já se contam instituições como a ONU e a própria União Europeia, que se espera atualize seu repertório às novas circunstâncias reinantes, além da consciência de que se torna cada vez mais necessário estimular a emergência de uma sociedade civil internacional. Utopias realistas nesse novo e ameaçador cenário se fazem cada vez mais ao alcance das mãos, a partir de processos já em curso, como os da legislação ambiental e os da mundialização do Direito, que abrem portas para uma sociedade cosmopolita, tão bem estudados pela pesquisadora francesa Meireille Delmas-Marty.
Ações políticas guarnecidas por governos de Estados poderosos podem refrear esse movimento, mas não têm o condão de fazê-los regredir porque há algo de irresistível neles. Aqui, no nosso canto latino-americano, não devemos apequenar-nos em meros espectadores do que se passa no mundo. Participar ativamente importa para nós consolidar e aprofundar as instituições da nossa democracia política, procurar as brechas no novo cenário internacional que se avizinha, tal como procedemos nos anos críticos de 1930, a fim de encontrarmos oportunidades para alavancar a economia e nos movermos no sentido de pacificar politicamente o País.
Se esses objetivos, antes da recente sucessão presidencial nos EUA, não contavam com soluções fáceis, eles parecem tornar-se ainda mais espinhosos depois dela. Com tirocínio político, que não nos faltou em outros momentos agudos da nossa História, podemos chegar a um bom porto. Em meio aos muitos perigos que nos rondam, inútil ficar com o olhar perdido em 2018. A hora da grande política é agora.
* Luiz Werneck Vianna é cientista político, sociólogo e Presidente de Honra da Fundação Astrojildo Pereira
Fonte: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,em-meio-a-tempestade,10000092390
Ferreira Gullar: Trump - après moi, le déluge
O capitalismo trumpariano se aproxima do nacionalismo nazista
Se a vitória de Donald Trump para a Presidência dos Estados Unidos, sob certos aspectos, foi uma surpresa, sob outros resulta coerente com determinadas mudanças verificadas nas últimas décadas na realidade contemporânea a partir do fim do sistema soviético
O término da Guerra Fria, que dividia o mundo em duas facções hostis, provocou uma série de mudanças políticas, econômicas e ideológicas.
Elas geraram desde o radicalismo islâmico no Oriente Médio até o populismo latino-americano, que vive seus últimos momentos. Mas não só: provocou também reações diversas tanto no capitalismo europeu quanto no capitalismo norte-americano, de que a eleição de Trump é, sem dúvida, uma das consequências mais graves.
É claro que o fim do sistema soviético fortaleceu o capitalismo tanto econômica como ideologicamente, mas também provocou divisões no próprio capitalismo, de um lado favorecendo a tendência mais moderna –que aprendera com o socialismo a lição da igualdade social– mas, de outro, estimulando ideologicamente o capitalismo atrasado, que se valeu do sectarismo comunista para justificar a exploração sem limites e o lucro máximo.
Não é novidade dizer que o sonho da sociedade justa que o comunismo inspirava estimulou o surgimento de partidos e movimentos políticos que, durante quase um século, puseram em questão o regime capitalista, cujo caráter explorador do trabalho humano é indiscutível.
Esses movimentos e partidos, por sua vez, provocaram da parte dos setores mais conservadores reações –nazismo e fascismo foram exemplos extremos, mas não os únicos. Em muitos momentos e países, estabeleceu-se uma divisão insuperável, que se define até hoje como esquerda e direita.
Se é verdade que os erros do regime comunista –mesmo antes de sua derrocada final– impediram uma pretendida hegemonia mundial, o fim dele como realidade política e econômica teria consequências diferentes nos diferentes países capitalistas, indo desde certa socialização do capitalismo em alguns países até, contraditoriamente, a exacerbação da exploração capitalista, já que –segundo estes– ficara demonstrado pela história como a tese de que o capitalismo seria um mal a ser extirpado era resultado de um preconceito e de um erro da esquerda.
E essa tese não foi aceita apenas pelos militantes anticomunistas, mas também pelos setores mais diversos de alguns países europeus que optaram recentemente por governos de direita, não radicais como o de Donald Trump, mas igualmente dispostos a apagar, de uma vez por todas, o pesadelo do anticapitalismo que os assustou por décadas e décadas.
Esse anticomunismo é, portanto, bem mais radical que o europeu, porque a ele se soma a necessidade de erradicar do capitalismo todo e qualquer preconceito socializante, o que o opõe não apenas ao falecido comunismo como também ao chamado capitalismo moderno, minado de intenções progressistas.
Esse caráter do capitalismo trumpariano caracteriza-o como uma opção abertamente reacionária que, não por acaso, o aproxima do nacionalismo nazista, do qual estão excluídos quaisquer sentimentos de solidariedade com o sofrimento humano. Tudo isso é encarado como hipocrisia.
O capitalismo, assim entendido, é o regime dos mais capazes e dos vitoriosos, como Donald Trump.
O que importa é o lucro, ou seja, o aumento do capital e da riqueza, não importando que consequências tenham. Azar daqueles que a natureza criou incapazes.
Por isso mesmo, Trump nega que o desenvolvimento industrial gere o aquecimento do planeta e ameace a sobrevivência da humanidade. Ou seja, "après moi, le déluge" (depois de mim, o dilúvio).
Gostaria de concluir esta crônica tranquilizando o leitor com a seguinte lembrança: todas as tentativas semelhantes a essas, que ignoraram a realidade do processo econômico, político e científico, fracassaram.
Puderam até por algum tempo ganhar o apoio dos menos lúcidos e ressentidos, mas não sobrevivem porque são fruto do sectarismo, de ilusões e de ressentimentos, sem base na realidade.
Fonte: http://gilvanmelo.blogspot.com.br/2016/11/o-capitalismo-trumpariano-se-aproxima.html
Luiz Carlos Mendonça de Barros: A globalização sob ataque
A eleição inesperada de Donald Trump reforçou a percepção de que vivemos um forte sentimento de questionamento das condições econômicas e sociais criadas pelo fenômeno da globalização. Uma das causas mais importantes do inesperado sucesso de Trump foi o apoio que sua mensagem de volta a um passado glorioso para a América obteve na sociedade. Ora, volta ao passado glorioso implica naturalmente reconhecer que por trás do voto de protesto exercitado por 40% dos americanos está o repúdio ao fenômeno da globalização econômica e tudo que ela representa para uma parcela importante da classe trabalhadora, que vem se marginalizando, na última década principalmente.
Esta conclusão sobre o sucesso de Trump na última eleição ainda representa uma posição minoritária entre os analistas, mas faz todo o sentido para mim. Por isto é preciso aprofundar a reflexão sobre este fenômeno pois, se ele de fato ocorreu, estamos diante de um evento da maior importância para o futuro da economia mundial. Afinal, todo o arranjo institucional nas relações comerciais, entre países e blocos de países, tem como objetivo fortalecer e intensificar sua integração econômica. Ora, se uma parcela importante da população – com força suficiente para eleger um presidente da República – se posiciona contra este movimento então temos um grande problema pela frente.
Se a vitória de Trump foi uma grande surpresa para os mercados financeiros e analistas políticos, podemos dizer que já havia evidências de que este movimento antiglobalização vinha ganhando força na população das economias mais avançadas. O fortalecimento do populismo de direita dos últimos anos na Europa já apresentava traços concretos da revolta de uma classe operária que se marginalizava na proporção que parcela importante da produção industrial se movia, depois da queda do Muro de Berlim, para os países comunistas do Leste.
O único país a enfrentar esta questão com sucesso foi Alemanha, com a combinação de uma reforma trabalhista corajosa e a concentração de sua atividade industrial no segmento de maior valor agregado de produção. Os demais países, principalmente França, Reino Unido e Itália, ficaram imobilizados e passaram a sofrer de forma intensa a desindustrialização por perda de competitividade.
Mais recentemente, com a vitória do Brexit no plebiscito no Reino Unido, o vigor dos movimentos nacionalistas contra a globalização ficou evidente para todos. O “Divided” entre as regiões que mais sofrem com a desindustrialização e as que vivem o lado positivo da globalização deixou marcas claras nas estatísticas eleitorais. Londres de um lado, com mais de 70% de repúdio ao Brexit, em choque com a população das antigas regiões industriais clamando pela volta da antiga Inglaterra industrial do passado. Mesmo o sentimento anti-imigração nestas regiões tem uma motivação econômica, pois as massas de pessoas que sofrem com a fragilidade do emprego e da renda pessoal associam – de forma equivocada – aos trabalhadores de fora do país parcela importante de seu sofrimento.
As primeiras reações dos analistas sobre qual será o desenho operacional do governo Trump têm seguido o mesmo padrão de situações históricas semelhantes a esta, ou seja, racionalizar o comportamento do novo presidente no exercício de seu mandato. Segundo estes, as forças representativas do Partido Republicano, inclusive a parcela formada pelas grandes empresas multinacionais americanas, funcionarão como um poder moderador suficientemente forte para transformar o leão vigoroso que foi eleito em um presidente razoável e tradicional.
Com isto a parte de sua agenda mais revolucionária, inclusive em relação à globalização, seria domada e transformada em medidas mais conservadoras em relação ao status quo. O Nafta seria submetido a uma operação plástica de fachada, mas as regras da busca racional de custos de produção mais reduzidos, em países emergentes como o México e Europa do Leste, serão mantidas.
Particularmente não penso que o governo Trump se desenvolverá desta forma. Nós, brasileiros, conhecemos bem o caso de Lula, que se enquadra com perfeição no perfil de um líder populista e que pode ser usado como uma referência interessante para olharmos para Trump. Lula nos ensinou que os líderes populistas são sempre superficiais em suas análises, pois precisam de conceitos simples para ganhar apoio de seus seguidores. Como contrapartida, a maioria de suas ações não passa pelo crivo de uma análise profunda de consistência no tempo para avaliar os efeitos de longo prazo de suas decisões, sobre a economia principalmente.
Outra característica comum é que, ao longo do tempo, os líderes populistas sempre acabam por agir de acordo com suas ideias básicas de campanha. Pode acontecer que, nos momentos iniciais de seu governo, ocorra um período de acomodação em função da reação dos mercados e das lideranças políticas tradicionais. Este papel coube ao ministro Palocci nos primeiros anos de Lula e algo semelhante deve ocorrer agora com o governo Trump.
Mas ao longo de seu mandato, principalmente quando o apoio popular inicial se esgotar, o líder populista volta sempre à sua agenda até o amargo fim. Não me parece que com Trump vá ser diferente, o que me faz muito pessimista com seu governo. (Valor Econômico – 21/11/2016)
Luiz Carlos Mendonça de Barros, engenheiro e economista, é presidente do Conselho da Foton Brasil. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações. Escreve mensalmente às segundas.
Fonte: pps.org.br