Trump
Míriam Leitão: Por conta própria
Um em cada quatro brasileiros que está trabalhando inventou seu próprio emprego e está na categoria “trabalhador por conta própria”. É a principal causa da leve queda da taxa de desemprego divulgada ontem. Há uma melhora da economia que se vê em vários indicadores, mas o número de desempregados é absurdo. Nos EUA, Trump tem comemorado a queda do desemprego, um feito do governo Obama.
O presidente Donald Trump, no discurso que faz anualmente no Congresso, o Estado da União, prometeu, na noite de terça-feira, mais crescimento e disse que será decorrência do corte de impostos sobre empresas. Quando Obama assumiu, o desemprego estava em disparada e se aproximava de 11%. Ele recuperou a economia do caos financeiro da crise de 2008 e entregou o país crescendo, com desemprego em queda. Mesmo assim, seu partido perdeu a eleição. Hoje, o desemprego americano está abaixo de 5%. Trump tem surfado nessa onda e a apresenta como sua. O corte de impostos ainda nem teve tempo de produzir efeitos.
No Brasil, tudo tem outra escala. O desemprego caiu pela primeira vez, desde 2014, na comparação com o mesmo período do ano anterior, mas ligeiramente: de 12% para 11,8%. Na média de um ano contra outro, a taxa ficou maior. E olhando-se os números, o que tem puxado a melhora é o trabalhador por conta própria. Um milhão e cem mil brasileiros entraram nesse grupo quando se compara o último trimestre de 2017 contra o mesmo trimestre de 2016. Nessa categoria está desde a pessoa que realiza o sonho do empreendedorismo até aquela que “se virou” diante do ambiente inóspito da destruição de postos de trabalho.
Após a devastação da crise econômica, que se prolonga por três anos, quem poderá crescer na intenção de votos com o alívio modesto que aconteceu ou com a promessa de prosperidade? Que o ambiente melhorou não há dúvida para quem olha os números, mas percepção é diferente de estatística. Na Nota de Crédito do Banco Central veio a informação de que aumentou a oferta de empréstimo para as famílias. Os resultados fiscais mostraram subida da arrecadação. Mas quem pode comemorar isso, ou mesmo sentir, diante de tantas dificuldades diárias da prolongada crise, do bombardeio das más notícias sobre as negociatas em que os políticos se envolveram? Ontem, a 7ª Vara Federal aceitou mais uma denúncia contra o ex-governador Sérgio Cabral. Já são tantas que o país perdeu a conta.
A demanda dos eleitores está ainda difusa, mas certamente os brasileiros vão querer mais segurança, mais emprego, melhores serviços públicos. A pesquisa do Datafolha mostrou que o ex-presidente Lula permanece na frente nos cenários em que aparece, com perto de um terço das intenções, e que o segundo é o deputado Jair Bolsonaro. O primeiro está longe da urna, depois da condenação. O segundo não melhora além da margem de erro no cenário sem Lula. O que cresce é o grupo dos nulos, em branco ou não sabe, que chega a um terço das intenções. A campanha não começou e tudo o que os dados mostram é a confusão. Para fazer a pesquisa, foi preciso ter nove cenários para apresentar aos entrevistados. Fica também claro que há uma avenida para ser ocupada por pessoa que traga esperança para além da polarização raivosa.
Há economistas prevendo que o país pode ter um ciclo longo de crescimento se resolver o nó fiscal que tem pela frente, e que o horizonte da solução começará a aparecer se a reforma da Previdência for aprovada. O debate “E agora, Brasil?”, publicado hoje no jornal, mostra esse pensamento. E os números indicam a importância do tema para a definição do futuro. Um dos vários dados impressionantes exibidos pelo economista José Márcio Camargo é o de que Brasil gastou em 15 anos, com o pagamento das aposentadorias do servidores públicos federais, R$ 1,2 trilhão. Isso é 50% mais do que gastou com educação no período. É dramático, mas a maioria dos candidatos vai tentar fugir de assuntos áridos como a Previdência.
A tantos meses das eleições, qualquer previsão é porosa. Esta é a eleição mais incerta da história recente. No Brasil real, as pessoas inventam seu próprio emprego e buscam soluções diárias para os problemas que o governo — ou a falta de — cria para o país. O brasileiro continua vivendo por conta própria.
Everardo Maciel: Realismo e prudência
Os efeitos da reforma tributária de Trump, recém-aprovada pelo Congresso americano, ainda não estão claros, inclusive sobre a saúde fiscal dos EUA. Sua concepção contrariou a bem urdida proposta do seu próprio partido, o Republicano, e constitui uma complexa redução na tributação das pessoas jurídicas e físicas, com efeitos diferenciados por tipo de negócio.
O aspecto mais visível da reforma foi a redução, na alíquota do IRPJ, de 35% para 21%. Esse fato estimulou, imediatamente, especulações no Brasil quanto à necessidade de acompanhar a iniciativa americana, sob pena de perdermos competitividade fiscal, malgrado se saiba que estamos enfrentando um colossal déficit fiscal, que, se não mitigado, afugentará investimentos. A competição fiscal é tão antiga quanto a história dos impostos e somente se torna predatória quando afronta leis internas ou convenções internacionais.
No âmbito internacional, é difícil prevenir a competição nociva, porque inexiste uma convenção multilateral para fixar os limites da competição e um organismo capaz de impor sanções aos países infratores. É longeva a predação perpetrada pelos paraísos fiscais, que abrigam múltiplas espécies de crime, como sonegação, corrupção, atividades financeiras associadas ao terrorismo e ao tráfico de armas e drogas, etc.
Mas reduções nas alíquotas do IRPJ devem ser vistas com cautela. Uma alíquota nominal, ainda que óbvio, não determina o imposto devido, o que conta é a efetiva, que inclui a base de cálculo.
Em 1995, as alíquotas do IRPJ, no Brasil, foram reduzidas: a máxima, de 42% para 25%; a mínima, de 25% para 15%. A arrecadação, contudo, cresceu consistentemente, conforme atestam os dados da Receita. Foram muitas as razões. A mais destacada delas foi a eliminação da dedutibilidade da correção monetária do patrimônio líquido, mais perverso instrumento de concentração de renda, pela via tributária, já concebido no País. Em 1992, por exemplo, com inflação muito alta, o recolhimento do IRPJ das grandes empresas foi pífio.
A arrecadação cresceu porque a redução da alíquota nominal foi compensada por um grande aumento na base de cálculo, ainda que mitigado pela introdução dos juros remuneratórios do capital próprio, isenção na distribuição dos resultados, aumento dos limites de opção pelo lucro presumido, etc.
De qualquer forma, é certo que a reforma de Trump vai produzir mudanças na competição fiscal internacional. Mas é preciso tempo para avaliar as repercussões, inclusive em virtude das contramedidas que serão adotadas por outros países. Alguns exemplos: Portugal e Itália já adotaram incentivos para a transferência de domicílio fiscal de não residentes; o Reino Unido e a Argentina fixaram uma trajetória decrescente de alíquotas do IRPJ; ainda que de eficácia incerta, os países da União Europeia deflagraram retaliações aos paraísos fiscais.
O presidente francês, Emmanuel Macron (Valor, 25/1/2018), conquanto tenha extinto o esdrúxulo imposto de solidariedade sobre a fortuna, ponderou que a propensão generalizada à redução de impostos pode ser uma corrida para o fundo do poço. Os investidores estrangeiros buscam, com legitimidade, aplicar seus recursos em países que ofereçam maior segurança, rentabilidade e liquidez, para o que concorre, com relevância, a tributação.
O Brasil dispõe de institutos, como juros remuneratórios do capital próprio e isenção na distribuição de resultados, que podem ser diferenciais na atração de investimentos. Lamentavelmente, temos, em contraste, um iníquo processo tributário e uma parafernália burocrática, que inferniza a vida do contribuinte e estimula a corrupção. Essa é a reforma da vez. No campo tributário, nada mais repele o investidor estrangeiro que a insegurança jurídica, a lerdeza processual e as saúvas burocráticas.
De resto, é acompanhar, com realismo e prudência, a evolução dos fatores que interferem na competição fiscal internacional, não só a alíquota nominal, para agir no momento certo.
* Everardo Maciel é consultor tributário, foi secretário da Receita Federal (1995-2002)
Fernando Gabeira: Os loucos e o poder
Temo que seja cada vez mais difícil enquadrar lideres mundiais nos parâmetros da sanidade mental
- O Globo
A discussão sobre a saúde mental do homem mais poderoso do mundo é algo novo para mim. Mas o tema associando loucura e política certamente apareceu em muitos momentos da História. Nos tempos mais recentes, sempre foi mais comum uma discussão sobre a saúde física. No caso de Franklin Rooosevelt, o que estava em jogo era sua mobilidade, algo aparentemente superado nos dias de hoje: a cadeira de rodas não é um obstáculo intransponível.
A questão da loucura apresenta dificuldades: como definir que uma outra pessoa é louca contra a vontade dela, sobretudo quando ocupa o cargo político mais importante do planeta?
O debate sobre a saúde mental de Trump se acentuou com o lançamento do livro “Fogo e fúria”, de Michael Wolff. Os argumentos que tenho lido não me convencem de que Trump é louco. Às vezes detêm-se em análises de gestos simples como levantar um copo de água, sem considerar que certas hesitações se devem mais à velhice do que à loucura.
A disputa com Kim Jong-un sobre quem tem o botão maior, embora infantil na boca de um presidente, expressa uma tendência à competição onipresente em inúmeras atividades humanas.
No tempo em que Stalin dominava a União Soviética, muitos opositores foram mandados para o hospício. Era algo bastante temido, sobretudo entre intelectuais. O regime comunista não só monopolizava o poder como também se sentia em condições de monopolizar a razão. Ser de oposição era sintoma de uma doença mental. Numa sociedade democrática deve haver alguns protocolos, inclusive para uso da Justiça, determinando se a pessoa cruzou ou não a fronteira da sanidade. Quando se trata de algo tão político, é evidente que se formem duas grandes correntes, cada uma desconfiando abertamente da imparcialidade científica da outra.
Não tenho condições de afirmar se Trump é louco ou não. Outro dia, em Porto Alegre, um jovem me fez uma longa e complexa pergunta, concluindo: acha que estou louco? Quem sou eu para dizer que uma pessoa está louca, respondi. Tenho dúvidas a respeito de mim mesmo. No passado, Francisco Nelson, um grande amigo do exílio, sempre me confortava: tudo bem, você está lúcido.
Chico Nelson morreu de enfarte. Desde então, dedico-me a responder sozinho e falta energia para julgar os outros.
Mesmo para quem vive num país surreal como o Brasil, é estranho ver dois líderes mundiais trocando insultos, e Trump dizendo que tem um botão maior que o do outro.
Às vezes acho que discussão sobre a saúde mental de Trump mascara outra mais delicada: até que ponto ele representa a normalidade estatística, até que ponto o que está em jogo não é a sanidade da própria sociedade americana?
Ainda assim, restaria a dúvida sobre o é que normalidade nos dias de hoje. Antigamente, em Minas, um ditado popular tentava fixar a fronteira entre loucura e lucidez: é louco mas não rasga dinheiro. Que sentido tem essa fronteira numa sociedade consumista? Até que ponto a ostentação dos bilionários não é um rasgar dinheiro com base na realidade? Muitos de nós se lembram que loucura e poder estão associados de tal forma que, num dos clichês das comédias do passado, o louco aparecia sempre dizendo que era Napoleão Bonaparte.
Melhor, no exame dos atos de Trump, é analisar um a um, não sob a ótica da saúde mental, mas de sua eficácia política.
Trump retirou os EUA do Acordo de Paris. É um cético quanto ao aquecimento global. A dúvida dele a respeito de evidências que nos parecem esmagadoras tem consequências políticas. Uma delas é abrir espaço para que China tente ocupar o vácuo deixado pelos Estados Unidos, e a França recupere um pouco de sua grandeza perdida.
Temo que seja cada vez mais difícil enquadrar lideres mundiais nos parâmetros da sanidade mental.
Na atual fase do capitalismo, o entretenimento de milhões de pessoas tornou a indústria da diversão tão importante que tendem a surgir dela os nomes mais viáveis para liderá-la.
O próprio Trump usou a indústria da diversão para ampliar sua popularidade e, agora, utiliza o Twitter como seu programa particular.
Não nego que os critérios de sanidade e loucura ainda são importantes e mobilizam milhões de profissionais dedicados a, pelo menos, atenuar o sofrimento humano.
Transplantados para a política, esses critérios talvez não tenham a mesma validade. Minha suspeita é de que na luta cotidiana para espantar o tédio, a excentricidade torne-se uma espécie de capital para os candidatos ao poder.
Trump é um sintoma de algo bem mais sério e bem mais louco do que podemos imaginar. Aceitar essa premissa é incômodo mas nos aproxima da realidade. Não foi por acaso que, depois da Segunda Guerra Mundial, os intelectuais se voltaram não para dissecar a psicologia de Hitler, mas para se investigar o que havia na sociedade alemã para tornar possível sua liderança.
São outros tempos, mas, creio, a tarefa ainda é a mesma.
Luiz Carlos Azedo: O mal-estar eleitoral
O ambiente “líquido” da disputa eleitoral fragmenta ainda mais os interesses da maioria e nenhum nome se apresenta como alternativa à radicalização
Um dos grandes fatores de incerteza na conjuntura política é a ausência de um projeto de país no debate eleitoral que se inicia. Outro, o fato de que o Estado brasileiro está em crise, com o fracasso das políticas públicas e uma crise de financiamento cuja conta está sendo toda pendurada no sistema de Previdência.
Ao mesmo tempo em que os políticos e seus partidos não oferecem uma alternativa convincente e motivadora para a situação, a Operação Lava-Jato revelou para a sociedade que o financiamento da política — e o enriquecimento pessoal de seus principais operadores — era feito por meio do desvio ilegal de recursos, que deveriam ter ido para escolas, hospitais, estradas, metrôs, etc.
É impossível evitar o enorme mal-estar instalado na sociedade, com o agravante de que isso está sendo potencializado por outros fenômenos que não são uma exclusividade brasileira. No mundo inteiro, o Estado perdeu sua referência. O que era moderno e sólido, organizado, produtor de justiça e provedor da qualidade de vida das pessoas está se desmanchando no ar. Como assinalou o sociólogo polonês Zygmunt Bauman (O mal-estar da pós-modernidade, Zahar), o Estado na pós-modernidade perdeu o poder para o mercado livre, perdeu o propósito de sua existência. Quanto maior, mais atrapalha. O Estado tornou-se uma empresa ineficiente.
Bauman utiliza a metáfora da liquidez para caracterizar a sociedade contemporânea. A crise das ideologias da modernidade — que tinham começo, meio e fim e uma base social estruturada na sociedade industrial — resultou numa cultura fluida, líquida, gasosa, pautada pelas incertezas e pela volatilidade. Tudo parece errado e em movimento. O que seria mais civilizado se revelou uma sociedade mais cruel e embrutecida, mais desigual e injusta. No Brasil, essa sensação de fracasso da sociedade contemporânea por não alcançar a felicidade, fruto da pós-modernidade, é ainda maior por causa da exclusão e da violência, sem falar na corrupção dos políticos. Sem as velhas utopias que fracassaram e com a fragmentação das ideologias, a política se tornou um objetivo em si mesma e um balcão de negócios, perdeu o projeto de Nação.
Cenários
É nesse ambiente que entramos no ano eleitoral. Os discursos são, no mínimo, regressivos. Uma espécie de pare o mundo, vamos dar marcha à-ré. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, por exemplo, se apresenta como vítima de uma grande injustiça, como se nada tivesse a ver com toda a roubalheira que houve durante seus dois mandatos e o colapso econômico do país no governo Dilma Rousseff, cuja eleição foi sua maior proeza. Quer passar uma borracha no que aconteceu entre 2011 e 2016 e retomar o fio da história lá atrás. Vamos supor que isso fosse possível. Se Lula voltar ao poder para fazer o que vem dizendo, o desastre será ainda maior. Basta olhar para a Venezuela e outros países da América Latina.
Outro player do debate eleitoral é o deputado Jair Bolsonaro (PSL). Depois da eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, acredita que pode falar qualquer bobagem e nada abalará o seu prestígio. As bandeiras conservadoras e retrógradas são agarradas com as duas mãos pelo parlamentar, que faz uma defesa incondicional do golpe militar de 1964 e dos 20 anos de regime autoritário que o país atravessou. Agora flerta com ideias liberais na economia por mera conveniência; sua cabeça é nacionalista e estatizante, como a do ex-presidente Ernesto Geisel, com a diferença que não tem a mesma cultura e experiência administrativa do general que restabeleceu a hierarquia nas Forças Armadas e promoveu a abertura política. Com Bolsonaro no poder e um Congresso que lhe seja hostil, o risco de golpe militar entra em qualquer cenário pós-eleitoral.
Pode-se dizer que o país que queremos comporta essas duas alternativas? As pesquisas mostram que não. A maioria da sociedade ainda defende valores essenciais para a democracia, entre os quais a busca de consensos e a construção de soluções positivas, o respeito à diversidade, à igualdade de oportunidades e à inclusão. Entretanto, o ambiente “líquido” da disputa eleitoral fragmenta ainda mais os interesses da maioria e nenhum nome se apresenta como alternativa ao centro, nem mesmo aqueles que deveriam polarizar o debate eleitoral, como Marina Silva (Rede) e o governador paulista Geraldo Alckmin (PSDB).
Que país queremos? Quem responder a esse questionamento certamente terá possibilidade de disputar pra valer a Presidência. Sabemos, porém, que as referências dos brasileiros não são os países da América Latina, África ou Ásia; são a Europa e os Estados Unidos. Sabemos também que é preciso fazer um novo pacto entre o Estado e a sociedade e pensar um modelo de desenvolvimento mais sustentável, que aproveite nossos recursos naturais de forma não-predatória e aposte fortemente no conhecimento para que nos tornemos um país melhor para dentro e para fora dos locais de trabalho e de moradia.
Monica De Bolle: Fogo e Fúria
As labaredas do nacionalismo econômico cativam as massas como, entre outros, no fascismo europeu dos anos 30
De pronto, devo confessar: passei o fim de semana lendo o explosivo livro de Michael Wolff, provavelmente o melhor livro de fofoca política que será publicado este ano sobre o governo Trump. Este artigo, entretanto, não é – exatamente – sobre o livro de Wolff, tampouco sobre o que revela ou deixa de revelar acerca da acuidade mental e do temperamento do ocupante da Casa Branca. O livro é, antes de tudo, o retrato do nacionalismo econômico defendido com fogo e fúria pelo defenestrado Steve Bannon, ex-estrategista de Trump, ex-conselheiro sênior da Casa Branca, ideólogo e articulador do Trumpismo que nem Trump sabe o que é.
A última semana foi marcada por dois eventos que, em tese, nada têm em comum: a publicação da obra de Wolff e as reuniões anuais da American Economic Association (ASSA 2018) – evento acadêmico que reúne desde aspirantes em busca de seu primeiro emprego universitário pós-PhD a vencedores do Nobel e outros renomados economistas.
Como não poderia deixar de ser, houve sessão dedicada aos movimentos “populistas” que pipocam mundo afora, tema que já abordei neste espaço. Economistas, cientistas políticos, sociólogos, e outros cientistas sociais não têm definição consensual sobre o populismo. De modo geral – e como visto na ASSA 2018 –, o mínimo denominador comum do populismo é que se trata de visão que contrapõe as massas à elite corrupta, cuja ideologia é desidratada, podendo, portanto, ser cooptada pela direita ou pela esquerda, e que funciona tanto em democracias quanto em regimes autoritários. Embora esses aspectos sejam aceitáveis como esboço para caracterizar o populismo, falta nessa delineação traço fundamental de qualquer movimento que se pretenda populista: o nacionalismo econômico.
Mas o que é nacionalismo econômico? Pesquisa minha em colaboração com um colega do Peterson Institute for International Economics ainda em estágio muito inicial define o nacionalismo econômico moderno sobre cinco pilares: 1. A política industrial como instrumento de promoção de setores econômicos específicos, vistos como estratégicos seja por questões de segurança nacional, seja porque acredita-se possuam maior peso na criação de empregos, sobretudo na indústria tradicional; 2. A subordinação de políticas de concorrência que preservam o livre funcionamento do mercado com regulação aos objetivos da política industrial; 3. Uma visão mercantilista acerca do comércio mundial, exaltando as exportações de produtos nacionais e vilificando as importações; 4. A submissão da estabilidade macroeconômica a outros objetivos como a criação de empregos e/ou o impulso ao crescimento de curto prazo; 5. O repúdio a tratados e acordos internacionais que restrinjam a capacidade de implantar os quatro pilares do nacionalismo econômico citados.
Volto ao livro de Wolff. As partes mais interessantes de Fogo e Fúria não são as fofocas e intrigas, embora tenham o grande mérito de divertir imensamente o leitor. As partes mais interessantes são as que retratam a incansável batalha de Bannon para imprimir às políticas defendidas pela Casa Branca conteúdo nacionalista baseado nos cinco pilares mencionados acima. O livro, portanto, pode ser lido como coletânea de mexericos, ou como a melhor exposição do Trumpismo idealizado por Steve Bannon – que, afinal, é o real protagonista da obra de Wolff, citado que é página sim, outra também.
O ex-todo-poderoso do Trumpismo parece – por ora – ter caído em desgraça. Contudo, para qualquer um que acompanhe o debate político e econômico nos EUA, na Europa, no México, e, pasmem, no Brasil, a verdade é que fogo e fúria têm consumido mentes e corações, debates e bate-bites, como bem disse Nelson Motta em contexto distinto. As labaredas do nacionalismo econômico cativam as massas como no fascismo europeu dos anos 30, na ascensão do Japão nos anos 50, no milagre econômico da Coreia e de Taiwan em 1960 e 1970, no Varguismo e no Peronismo do pós-guerra, na transformação da China em potência mundial. Em todos esses episódios, ao menos três dos cinco pilares sobre os quais definimos o nacionalismo econômico estiveram presentes. Difícil é, portanto, imaginar que fogo e fúria tenham destino certo, ou hora para acabar.
* Monica de Bolle é economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Dorrit Harazim: A união instável de Harry, Trump e Obama
O ex e o atual ocupante da Casa Branca não cabem num mesmo evento, sobretudo se transmitido ao vivo para todo o planeta
Anotem na agenda de 2018: o sábado 19 de maio tem tudo para nos transformar em aldeia global. Súditos da rainha, viciados em celebridades, saudosistas do Império Britânico, fashionistas, consumidores de contos de fadas, analistas diplomáticos, seguidores de “The Crown” e público em geral tem encontro marcado na cerimônia de casamento do príncipe Harry, da Casa de Windsor, com a atriz americana multirracial Meghan Markle.
Para 99,99% dos bípedes, esse encontro será virtual — via TV ou internet —, com interpretações simultâneas jorrando nas redes sociais. Para o seleto grupo de candidatos a um convite presencial, a agonia da incerteza está apenas começando.
No caso do triângulo Barack Obama/noivo/Donald Trump, essa questão não é trivial, pois envolve questões de Estado e a histórica relação entre Inglaterra e Estados Unidos. Também contém riscos políticos e gera alertas diplomáticos, sem falar da ameaça de protestos nas ruas londrinas em plena festança.
O motivo é um só: o ex e o atual ocupante da Casa Branca simplesmente não cabem num mesmo evento, sobretudo quando ele é transmitido ao vivo para o planeta todo. No atual clima de polarização e toxicidade social alimentado por Donald Trump, Harry terá de fazer uma escolha difícil.
Com Barack Obama o neto caçula de Elizabeth II parece ter uma química natural, espontânea, de admiração mútua. Foi para Harry que o ex-presidente americano deu, dias atrás, a primeira entrevista desde sua aposentadoria da Casa Branca em janeiro último. O príncipe havia sido convidado pela rádio BB4 para atuar como entrevistador do programa natalino da emissora. Saiu-se surpreendentemente bem, por sinal, melhor do que muitos jornalistas profissionais.
Obama, por sua vez, estava ciente de que cada palavra sua seria dissecada na Casa Branca. Não achou necessário citar nominalmente Trump, o sujeito oculto de algumas de suas respostas:
“Um dos perigos da internet é permitir que pessoas tenham percepções inteiramente diferentes da realidade... O risco de permanecer em bolhas de informação que apenas reforçam nossos preconceitos... A questão é saber como tirar proveito da tecnologia sem que a multiplicidade de vozes e pontos de vista leve à balcanização da sociedade”.
O ex-presidente definiu seu lugar na história como “o piscar de um só olho” e mostrou-se afiado fora do poder. Segundo qualquer critério afetivo, ele e Michelle, que já haviam conquistado as graças da rainha na visita de Estado a Londres em 2011, compõem o seleto grupo de convidados dos noivos.
Já com o sucessor de Obama o príncipe Harry não tem relação alguma. Contudo, segundo os mandamentos básicos da diplomacia, do protocolo da Casa de Windsor e por razões de Estado, o casal Donald e Melania deveriam encabeçar a lista de convidados oficiais.
Contudo, a presença de Donald Trump em solo britânico, com ou sem Obama na área, é bastante espinhosa. Em julho último, quando participou pela primeira vez de uma reunião do G-20 na cidade alemã de Hamburgo, o presidente americano cogitou passar alguns dias no seu resort de golfe em Turnberry, Escócia. Aproveitaria para fazer uma visita à primeira-ministra Teresa May em Londres, com menos de 24 horas de divulgação prévia por questões de segurança.
Não conseguiu. Ou melhor, desistiu a tempo. May fora a primeira líder de país aliado a visitar Trump poucos dias após sua instalação na Casa Branca. Estendera-lhe o tapete vermelho de um convite de visita de Estado, com direito a recepção real no Buckingham Palace.
Este tipo de visita tem pedigree muito maior do que uma mera visita política entre líderes. Trump estava no comando do país há menos de um mês, e suas credenciais para tal regalia eram ralas. Pior, o que ele já demonstrara soava inquietante do outro lado do Atlântico: protecionismo radical, fazer da mídia independente um inimigo público, tentar banir a imigração de alguns países de maioria muçulmana.
Para contextualizar a enormidade do convite o “The Guardian” lembra que John J. Kennedy, Richard Nixon e George Bush pai jamais foram recebidos em visita de Estado pela rainha, Obama teve de esperar dois anos e meio, e George W. Bush, três.
De lá para cá as coisas só pioraram. Uma petição assinada por mais de dois milhões de britânicos exige a retirada do convite a um presidente que já ofendeu gratuitamente o prefeito de Londres, Sadiq Khan, no dia seguinte ao atentado terrorista na London Bridge. Os ingleses também não perdoam Trump por ele ter implodido o Acordo Climático de Paris, de grande aceitação no país, e detestam seu estilo grosseiro de escavadeira. Até mesmo o chanceler Boris Johnson, pouco afeito a protocolos, manifesta desprezo pela “assombrosa ignorância” do personagem. “Mentiroso”, “covarde”, “cascudo” são alguns dos adjetivos usados em editorial pelo “Observer” para definir Trump.
Por enquanto a visita não tem data marcada. Com esse pano de fundo não foi de todo inesperada a mobilização popular à tentativa presidencial de visitar seu campo de golfe e dar uma esticada até 10 Downing Street. Caso ele pisasse em solo britânico, as redes sociais seriam acionadas e protestos de rua brotariam em cascata.
Por mais que um casamento real seja uma festa nacional e os convidados à cerimônia não estão em visita oficial ao país, é difícil prever como Trump será recepcionado caso compareça.
Não comparecer, se convidado, significará admitir a rejeição. Não convidá-lo equivalerá a uma afronta explícita por parte de Harry, cuja noiva, vale frisar, é americana.
Por outro lado, não convidar Barack Obama seria uma decepção para os admiradores do ex-presidentes e para a geração com a agenda social de Harry.
Nesse imbróglio todo quem tem a carta maior em mãos é Obama, se for convidado. Ele pode declinar , o que poderá ser interpretado como elegante gesto para não ofuscar Trump — ou para deixar que o sucessor se enforque sozinho em Londres.
Mas, se comparecer, a audiência global no dia 19 de maio de 2018 tem tudo para ser histórica. Oba.
Demétrio Magnoli: Sob Trump, potência dominante vandaliza sistema que ela esculpiu
A "armadilha de Tucídides" ressurgiu num editorial da revista "The Economist" que alerta para as agressivas táticas usadas pela China para estender sua influência externa. Trata-se de conceito oriundo da Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.): a ascensão de uma nova potência curva a geometria do sistema internacional até que a tensão explode na forma de guerra com a potência tradicional. O voto da Assembleia Geral da ONU, na quinta (21), indica que, sob Trump, a potência dominante vandaliza o sistema que ela mesma esculpiu, acelerando a tendência de colapso.
"Anotaremos os nomes dos países que votarem contra nós", ameaçou Nikki Haley, a embaixadora americana na ONU, referindo-se à resolução de condenação ao reconhecimento de Jerusalém como capital de Israel por Washington. "Economizaremos bastante", completou Trump, sugerindo que os EUA retaliarão por meio de cortes generalizados de ajuda financeira e militar. A resolução aprovada por aplastante maioria na Assembleia Geral inspirou-se em texto vetado pelos EUA no Conselho de Segurança que recebeu o apoio dos outros 14 membros, inclusive Reino Unido e França, aliados na Otan.
Foi patrocinada pelo Egito, aliado crucial no mundo árabe e recipiente de ajuda militar anual de US$ 1,3 bilhão, e pela Turquia, peça-chave da Otan no Mediterrâneo Oriental. Ao "anotar nomes", os EUA cartografam seu próprio isolamento.
O corte da ajuda ao Egito, que depende de aprovação do Congresso americano, reduziria drasticamente a já declinante influência dos EUA no Oriente Médio. Submetida a eventuais retaliações, a Turquia se moveria mais um passo na direção da Rússia. Já o Paquistão, outro recipiente de vultosa ajuda militar que pronunciou-se a favor da resolução, estreitaria sua antiga cooperação com a China. Nos três casos, Washington perderia parcerias vitais no combate ao jihadismo. Derek Chollet, que integrou o Conselho de Segurança Nacional no governo Obama, classificou as declarações de Trump como indisfarçável "ameaça vazia". De fato, os EUA obrigaram seus aliados a chamarem o blefe, precipitando uma dispensável humilhação.
"Nossos cidadãos não mais toleram que continuem a tirar vantagem de nós". A sentença ritual de Trump, repetida uma vez mais, esclarece o ponto de vista do nacionalismo isolacionista.
O personagem que ocupa a Casa Branca enxerga o sistema internacional como um negócio fraudulento pelo qual os aliados exploram os EUA, obtendo proteção militar e mercados para seus produtos em troca de quase nada.
A implicação lógica do argumento é que os EUA precisam derrubar os pilares do sistema injusto, investindo contra a ordem geopolítica global (ONU) e a ordem econômica aberta (comércio), sem se preocupar com a estabilidade das alianças militares (Otan). O caso de Jerusalém inscreve-se na sequência lógica da retirada do Tratado de Paris, de renúncia à Parceria Transpacífica e de contestação das regras do Nafta.
A Liga do Peloponeso nasceu no século 6 a.C., pela imposição da hegemonia de Esparta sobre Corinto, Elis e outras cidades soberanas da península grega. Funcionava como uma aliança militar, oferecendo proteção a seus integrantes. A Pax Americana inclui um elemento similar ao da Liga do Peloponeso, que é a Otan, mas espraia-se sobre um vasto horizonte de instituições multilaterais econômicas e de segurança, algumas das quais servem também aos interesses chineses. Trump sabota deliberadamente essa ordem mundial erguida pelos EUA desde o pós-guerra.
No sistema da Grécia Antiga, Atenas e sua Liga de Delos tinham apenas que confrontar a Liga do Peloponeso. A China, potência emergente, enfrenta uma tarefa mais complexa, de destruição (da hegemonia americana) e preservação (da ordem econômica aberta). Trump facilita-lhe a missão, debilitando os EUA e expondo o mundo à "armadilha de Tucídides".
Eliane Cantanhêde: Sinal amarelo para Doria
Prefeito de São Paulo sofre de excesso de exposição, Bolsonaro corre por fora dos holofotes
- O Estado de S.Paulo
O ácido bate-boca entre o novato João Doria e o veterano Alberto Goldman não é nada engrandecedor, nem para eles, nem para o PSDB, nem para a política e deixa claro, claríssimo, a que nível chegamos, além de ilustrar como o ambiente de 2018 é nebuloso. Tudo que sobe cai. Todo candidato que sobe cedo demais tende a cair com igual rapidez.
Eleito espetacularmente em primeiro turno para a principal, mais rica e mais complexa prefeitura do País, João Doria atribuiu-se um personagem e saiu em desabalada carreira para pular vários obstáculos de uma só vez e chegar direto à raia presidencial. Dez meses depois da posse, ele já começa a sentir os efeitos do excesso de exposição.
A bem do prefeito, diga-se que ele é um bom produto eleitoral: razoavelmente jovem, criou um estilo, oscila entre o político e o não político, é de um partido que, mal ou bem, está entre os primeiros do País e é craque em marketing. Mas, de outro lado, ele não sabe dosar o ritmo de sua gestão e o da sua corrida presidencial.
Como já alertara Rodrigo Maia, presidente da Câmara, “o Doria está correndo uma maratona como se fosse uma corrida de cem metros. Pode não ter fôlego para chegar ao final”. Aliás, para alegria do governador Geraldo Alckmin, mais frio, menos afoito. Esse, sim, se preparou para uma maratona.
A nova frase que tende a ser carimbada na testa de Doria parte de um outro autoproclamado candidato tucano à Presidência, o prefeito de Manaus, Arthur Virgílio: ao partir para cima de Goldman, Doria revelou um temperamento que mistura Donald Trump e Ciro Gomes, dois políticos do confronto, de veia belicosa. Para quem já foi comparado a Fernando Collor, as novas comparações não melhoram muito as coisas.
Enquanto centrava seus ataques no petista Lula, Doria não incomodava tanto o PSDB. O problema é que ele ampliou os alvos para incluir Goldman, ex-deputado, ex-governador e integrante da cúpula tucana paulista que não engole Doria, aí incluídos Aloysio Nunes Ferreira, José Serra e Fernando Henrique, este mais diplomaticamente.
Quem começou a briga foi Goldman, ao dizer que Doria “é político, sim, e um dos piores que nós já tivemos em São Paulo”. Talvez já cansado das estocadas de tucanos paulistas, o prefeito reagiu espumando e acusou o correligionário de “improdutivo, fracassado e medíocre”. A tréplica veio com novos adjetivos nada edificantes, com Goldman acusando o prefeito de “raivoso, prepotente, arrogante e preconceituoso”.
À parte os adjetivos, há a questão objetiva de que está se espalhando a percepção de que Doria cuida mais da sua campanha presidencial do que da gestão de São Paulo. Se pôde xingar Goldman, não convém a Doria xingar as pesquisas – nem brigar com a realidade.
Pelo Datafolha, o prefeito caiu nove pontos entre os paulistanos e tem o pior índice desde a posse. E, se perdeu apoios em São Paulo, nem por isso cresceu na disputa presidencial. Perdeu daqui, não ganhou de lá e 55% dos entrevistados não votariam nele para presidente. Sinal amarelo!
Se Doria apostou no excesso de exposição na mídia e nas viagens – até oito Estados por mês –, o deputado Jair Bolsonaro fez o contrário. Ignorado pela mídia, tanto quanto Trump foi nos EUA, e ignorando as elites intelectuais e políticas, como Ciro Gomes já fez em campanhas passadas, Bolsonaro é o campeão nas redes sociais, vive de selfies e improvisa comícios onde põe os pés.
Enquanto Doria corre o risco de perder precocemente o fôlego, Bolsonaro está se consolidando no segundo lugar das pesquisas. A eleição está no estágio de monólogos paralelos, com todos imaginando que Bolsonaro vá se desmilinguir no primeiro embate. Já imaginaram um debate ao vivo entre ele e Ciro Gomes? Mas... e se não?
Luiz Sérgio Henriques: A reconstrução da casa comum
É preciso sair do círculo vicioso da hostilidade entre essa esquerda e essa direita virulentas
Não faz sentido subestimar a controvérsia sobre a reforma política, até porque, todos sabem, o País dela precisa, e muito. São bem-vindas as ideias sobre a racionalização do sistema partidário, o financiamento da democracia, as mudanças na forma de captar o voto e transformá-lo em cadeiras parlamentares, ainda que a divergência sobre cada um desses tópicos não seja pequena e pareça ilusória a aposta numa grande reforma, advinda de uma Constituinte exclusiva, em desfavor de mudanças mais precisas e controláveis, mas capazes de encurtar o presente abismo entre governantes e governados, dirigentes e dirigidos, ruas e instituições.
Não custa lembrar que a crise das democracias está longe de ser exclusividade nossa, ignora limites geográficos e mecanismos eleitorais. O voto distrital americano ou inglês, o distrital misto alemão ou o proporcional em outros países não têm imunizado as respectivas democracias contra surtos perturbadores de populismo – com sua guerra fingida contra as “elites” – e tentativas de dilapidação das instituições. E há mesmo razão para desconfiar de patologias mais graves. Afinal, depois de Trump ou Putin, não se sabe o que será da verdade ou, para ser menos enfático, o que acontecerá às “narrativas” bem argumentadas que pressupõem um universo comunicativo compartilhado por pessoas diferentes entre si, mas sensatas e razoáveis.
Há, pois, um vasto problema de cultura política sob a superfície imediata de nossos problemas. Decerto, eleições proporcionais com lista aberta, sem nenhum tipo de barreira, incentivam a fragmentação partidária e tornam opacas as relações entre quem vota e quem deveria representá-lo. Decerto, ainda, a desastrada emenda da reeleição, aprovada sem a cláusula que limita sua possibilidade a dois mandatos, segundo o modelo norte-americano pós-Roosevelt, submete-nos à tutela de líderes carismáticos que, sejam quais forem e seja lá o que representem, terão o condão de nos assombrar por um tempo superior ao de uma geração histórica, freando a renovação e infantilizando a cidadania.
Tomando o pulso das modernas democracias, o que se encontra é um terreno minado por polarizações radicais. As sociedades estão divididas de forma talvez inédita, uma vez que se associam, em caráter explosivo, novas e crescentes desigualdades e “guerras de valores” aparentemente inconciliáveis. Parece impossível reconstituir algum tipo de unidade moral, ainda que em termos minimalistas. O lema de nossos dias, America first, com seu poder de contaminação, prenuncia um recuo de poderosas elites nativas para o campo puramente econômico-corporativo. Pode-se supor que o interesse material bruto pretenda tomar a frente e relegar a (grande) política a papel secundário.
Na polarização irracional, um papel destacado tem cabido às redes sociais. Evidentemente, elas alteraram nossa percepção do mundo e vieram para ficar. Abriram imensas possibilidades para a vida democrática ao pôr quase tudo ao alcance de quase todos. Alimentam o ativismo digital, suscitam a participação, fazem circular a informação em fração de segundos. Mas, como tem sido a experiência global e, obviamente, também a brasileira, carregam consigo riscos evidentes de uniformização e sectarização de grupos sociais inteiros.
As seitas descobriram a internet e suas redes – esse o perigo que tocamos com as mãos e contribui para a criação de mundos comunicativos separados uns dos outros por barreiras invisíveis, mas nem por isso pouco eficazes. Um professor de Harvard, Cass R. Sunstein, adverte-nos em livro recente (#Republic: Divided Democracy in the Age of Social Media, editora da Universidade de Princeton) sobre a realidade monocórdica dos “casulos de informação” e das “câmaras de eco”, ambientes artificiais em que se exaspera a tendência humana à “homofilia”, o amor ao que é igual a si mesmo e a aversão ao que é diferente.
Narciso sempre acha feio o que não é espelho e certamente não entende outra voz além da sua. Nas “câmaras de eco”, o que cada indivíduo ouve é sua própria opinião amplificada exponencialmente pelos demais. O vozerio ensurdecedor não esconde que se está no reino do pensamento único – seja “progressista”, seja “reacionário”. E assim é porque se vive em guetos de comunicação, não em cidades virtuais em que haja esquinas livres, encontros inesperados e convivência de opostos. Experiências e valores compartilhados estão como que proibidos a priori, eles que dão substância à ideia democrática por excelência de recíproco reconhecimento da legitimidade entre adversários, mesmo afastados uns dos outros.
Tais preocupações não são abstratas, pois, de fato, permeiam a crise brasileira. Em princípio, seria papel da esquerda, que jamais encabeçou os recorrentes regimes autoritários entre nós, portar a boa-nova democrática, rejeitando a contraposição binária, a lógica infernal de amigos e inimigos irredutíveis. Não foi assim. Ao contrário, empregaram-se categorias anacrônicas, imaginou-se fabulosamente “tomar o Estado”, em vez de bem governar e promover mudanças reais – e hoje se chega a lamentar, em autocrítica capenga, o “erro” de não ter substituído partidariamente estruturas públicas do sistema de controle. E de tanto gritar “direita” diante de qualquer crítica, acabou-se por criar uma virulenta direita real – e virtual –, tão doutrinária e hostil à ideia de uma “casa comum” quanto a esquerda que esteve no poder.
No fundo, temos em ambos os casos o enclausuramento nas próprias “verdades”, o vezo de liquidar o inimigo – menos mal que, por ora, só retoricamente –, a incapacidade de produzir grupos com função dirigente “intelectual e moral”, para usar expressão antiga. Sair do círculo vicioso desta esquerda e desta direita, relegando-as às margens, será a missão dos democratas, sem exceção. Estamos proibidos de falhar.
LUIZ SÉRGIO HENRIQUES É TRADUTOR E ENSAÍSTA, É UM DOS ORGANIZADORES DAS ‘OBRAS’ DE GRAMSCI NO BRASIL SITE: WWW.GRAMSCI.ORG
Fonte: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,a-reconstrucao-da-casa-comum,70001739756
Luiz Werneck Vianna: A retomada das atividades reflexivas
Publicado no O Estado de S. Paulo em 05/03/2017
Nessa loucura que nos assola deve haver um método. Mas qual?
Se observadas as coisas pela sua superfície, há quem procure remédio para nossos males atuais na remoção imediata do governo Temer, que estaria identificado com ações que visariam a criar obstáculos ao andamento da chamada Operação Lava Jato, em sua intervenção saneadora sobre nosso sistema político. Removê-lo dependeria de uma decisão congressual ou de um ato de força, mas como essas alternativas estão bloqueadas tanto pela larga coalizão parlamentar que o sustenta como pela recusa das Forças Armadas a admitir caminhos de aventura, parece aos interessados na empreitada que não lhes resta outra via que não a de um levante das ruas.
De modo explícito ou em surdina, o argumento ecoa nos meios de comunicação, e não só nas redes sociais, em artigos que não hesitam em cogitar de um colapso iminente de nossas instituições. Importa pouco se em meio a essas fabulações os blocos carnavalescos, até na outrora mais recolhida São Paulo, tenham comemorado as festas de Momo como se não houvesse amanhã. Se a saída não se encontra na política nem nas armas, é deixar o carnaval passar que ela viria pela convulsão social, em embrião nas revoltas do sistema penitenciário e nos motins da Polícia Militar do Espírito Santo.
A convulsão social teria o condão de fazer o que seria inacessível à Lava Jato: zerar a vida institucional – a Carta de 88 incluída – e, bem mais que isso, zerar nossa História e dar a ela um novo começo, com qual programa se veria mais à frente. Para alguns, nestes tempos de Trump, bem poderia ser o da direita, que está aí à espreita e criando musculatura.
O inconformismo com o impeachment era esperado, afinal a presidente Dilma Rousseff fora eleita pelo PT, partido com fortes vínculos com o sindicalismo e movimentos sociais, além de encontrar apoio em círculos significativos da vida cultural. Mas como ele se tem alimentado apenas do espírito de vendeta e do ressentimento, sua marca tem sido a da esterilidade política.
A lenda urbana do golpe, em que pese o processo do impeachment ter transitado sob jurisdição do Supremo Tribunal Federal, mais do que enervar a vida política e social do País, vem servindo como um álibi perfeito para que não se reflita sobre as circunstâncias que levaram ao amargo desenlace do governo Dilma e se mantenha a política na expectativa de soluções salvacionistas, mesmo as que ameacem abrir as portas do inferno.
Os idos do regime militar têm lições que merecem ser lembradas, talvez principalmente pela militância petista e seu amplo círculo de simpatizantes entre os intelectuais. Nos primeiros tempos daquele regime, esquerda e setores democráticos se fixaram no diagnóstico equívoco de que sua derrota se explicaria por uma conspiração do imperialismo em conluio com setores internos a fim de barrar o processo de desenvolvimento do País. Na compreensão da época, o desenvolvimento estaria animado por uma lógica interna tendente a nos levar a um governo nacional-popular sob hegemonia da esquerda.
O trancamento desse processo pela via da violência política foi então interpretado por uma parcela da esquerda como se não lhe restasse outra solução senão a da luta armada, desertando do campo da política. Esse caminho se sustentou numa narrativa escorada numa teoria, a do foco, inspirada no modelo cubano e nos escritos de Régis Debray. A recusa a esse caminho exigia a desconstrução do que suportava essa alternativa, que, longe de abalar o regime ditatorial, o reforçava.
Em 1971 dois economistas brasileiros, Maria da Conceição Tavares e José Serra, produzem no Chile, onde viviam – ela como pesquisadora de um instituto internacional, ele como exilado político –, um pequeno texto seminal, Além da estagnação – uma discussão sobre o desenvolvimento recente do Brasil, de intensa repercussão na época. Nesse texto, seus autores argumentavam que a economia brasileira sob o regime militar, ao contrário de estagnar, crescia a olhos vistos, ampliando a sua sustentação social. O ensaio de Conceição e Serra, recusando o determinismo esquerdista, sinalizava para uma direção oposta da que ele preconizava – a resistência ao regime militar encontraria seu melhor terreno no campo da política. Como se sabe, essa inflexão está na raiz das lutas que nos devolveram à democracia.
Hoje, o imobilismo imperante na reflexão sobre a política entre os quadros dirigentes do PT, boa parte deles prisioneiros do slogan vazio do “fora Temer”, começa a ser contestado, tal como na importante entrevista do senador petista Humberto Costa publicada nas páginas amarelas da revista Veja (edição de 22/2). Diz ele: “O PT foi fragorosamente derrotado. O resultado das eleições obriga a gente a virar essa página. A população não quer isso que está aí, mas também não queria o que estava lá com a Dilma”. E vai fundo ao negar que estaríamos sob a vigência de um estado de exceção, visando, ao que parece, a devolver a seu partido liberdade de movimentos na arena política a fim de tentar recuperar a influência perdida.
A reanimação do campo reflexivo entre os intelectuais e políticos é também animadora na comunidade dos economistas, envolvida na controvérsia suscitada por um dos seus notáveis, André Lara Resende, sobre as complexas relações entre políticas fiscais e inflação, em que um dos temas de fundo versa sobre o papel maior ou menor do Estado na economia, uma questão ainda em aberto não apenas entre os especialistas. Mas, tudo contado, ainda é lento o movimento reflexivo, tal como na economia a retomada de um ciclo expansivo. Enquanto esses movimentos não ganham maior vigor, o que importa é manter os antagonismos em equilíbrio, tema maior de Ricardo Benzaquen de Araújo, notável intérprete da obra de Gilberto Freire, que há pouco, infelizmente, nos deixou.
Sociólogo, PUC-Rio
Monica de Bolle : Muito circo, pouco pão
Publicado no: O Estado de S. Paulo em 01 Março 2017
Orçamento do governo de Donald Trump nada tem de pão para os mais pobres
“Soltei os panos sobre os mastros no ar
Soltei os tigres e os leões nos quintais.”
Panis et Circenses, Os Mutantes
Quando este artigo for publicado na quarta-feira de cinzas, Donald Trump terá proferido seu primeiro discurso no Congresso americano. Trata-se não do tradicional “State of the Union Address” – este só ocorre depois de o presidente completar um ano na Casa Branca –, mas isso não o torna menos importante. Pela primeira vez, Trump delineará para republicanos e democratas sua agenda de governo nas áreas mais importantes, como os planos para a economia e para a política externa. Na semana passada, no evento Conferência para a Ação Política Conservadora (Conservative Political Action Conference), Trump e seu estrategista ideólogo Steve Bannon discorreram sobre as linhas gerais de seu movimento nacionalista-populista – definição deles, não minha. Curioso é que, até agora, a versão do populismo norte-americano exala tropicalismo peculiar.
O manual dos líderes populistas, bem elucidado pelo economista Sebastian Edwards em podcast imperdível para o Financial Times (ver https://ftalphaville.ft.com/2017/02/24/2184982/podcast-sebastian-edwards-on-why-economic-populism-always-disappoints/), determina que doses elevadas de pão e circo façam parte da estratégia tanto de comunicação, quanto de articulação da política econômica. Motes como “Make America Great Again”, a divisão da população entre “nós” e “eles”, os ataques à mídia independente, a identificação de inimigos (na América Latina, FMI, EUA, as elites; nos EUA, os imigrantes, os chineses, as elites) faz parte do circo. Fazem parte do circo também os tropeços de Trump – a tentativa atabalhoada de restringir a entrada nos EUA de cidadãos de alguns países muçulmanos, o escândalo que derrubou um de seus assessores diretos da área de segurança, as suspeitas de que membros de sua campanha tenham participado de conversas esquisitas com os russos, os tweets infindáveis na madrugada, os estremecimentos diplomáticos com México, China, Austrália, Suécia. Do circo também faz parte o cerco aos imigrantes que cá estão sem os documentos adequados nas operações de busca e apreensão em todo país ao alvorecer. Mas e o pão? Onde está o pão?
Escrevo antes de saber os detalhes do orçamento que Trump proporá ao Congresso. No entanto, suas linhas gerais já foram adiantadas: um aumento de 10% nos gastos com Defesa, com alguma contrapartida nos gastos discricionários e na redução do orçamento do Departamento de Estado e da Agência de Proteção Ambiental. Ou seja, a militarização estonteante – “de puro aço luminoso um punhal” – será em parte financiada por redução dos recursos para a diplomacia e para a proteção do meio ambiente. O corte de gastos discricionários inevitavelmente afetará programas sociais fora das áreas de saúde e seguridade social, por ora preservadas. Em tempo: reduzir drasticamente os programas de saúde e seguridade social existentes é plano antigo dos republicanos, o que significa que Trump terá de travar batalha dentro do Congresso com o próprio partido. As diretrizes do orçamento também preveem corte significativo de impostos para o setor corporativo, porquanto não se tenha clareza sobre o controvertido “Border Tax Adjustment”, o imposto trans-fronteiras que elevaria o custo das importações, e que possivelmente infringiria as regras da Organização Mundial do Comércio.
O orçamento de Trump, portanto, nada tem de pão para os mais pobres, de ajuda direta aos trabalhadores que ele e sua equipe prometeram defender das garras do comércio internacional. Tampouco há nele qualquer indício de que serão direcionados aos Estados que mais perderam empregos industriais recursos para reerguer a grandeza de outrora. É fato que governos populistas dão o pão, apenas para retirá-lo depois daqueles que prometeram proteger. Isso é o que permite que países com governos populistas cresçam por um tempo, antes de cair em desgraça. Nem sequer oferecer o pão, eis inovação que pode impedir a sustentação mais óbvia do populismo.
“Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer.”
“O que é ser de esquerda hoje” abre o primeiro dia de palestras no I Encontro de Jovens Lideranças
Com a presença do deputado Davi Zaia, deputado e presidente interino do PPS, e do diretor geral da FAP e jornalista Luiz Carlos Azedo se iniciaram hoje, domingo, as palestras do I Encontro de Jovens Lideranças do PPS/FAP, evento que reúne em média 50 estudantes oriundos de todo o Brasil e que consiste em um treinamento em formação de equipes e exercício de lideranças. Na abertura Davi Zaia disse da importância do jovem na política brasileira e da necessidade de novas lideranças. Logo após o jornalista Azedo palestrou sobre o tema: O que é ser de esquerda hoje?
Na palestra Azedo apontou que parte da esquerda precisa se atualizar deixando os dogmas no passado, afinal o mundo mudou, fronteiras foram vencidas, a informação se globalizou e a tecnologia tem modificado as formas de trabalho. A palestra foi finalizada com o jornalista dizendo que não há uma resposta concreta sobre o que é ser de esquerda atualmente, porém ela deve dar conta de abarcar temas principais que acometem a sociedade nos dias de hoje, como: meio-ambiente, igualdade de gênero e racial, sustentabilidade e democracia!
Após a palestra os jovens tiveram a oportunidade de fazer perguntas a mesa, dentre as principais, a preocupação com o governo Trump e como ele tem incentivado ondas nacionalistas na Europa. Também indagaram se hoje, de fato, há a necessidade de se declarar como sendo de direita ou de esquerda.
No decorrer do dia foi feita uma um dinâmica em duplas, na qual cada integrante da dupla após conversa para conhecer seu companheiro o apresentava para todo o grupo. A dinâmica foi bem animada e parte dela foi transmitida ao vivo pela Fanpage da FAP (na qual se pode acompanhar várias postagens diárias sobre o evento). Por fim, após o jantar foi realizado debate sobre o filme visto na noite anterior – Sentidos do Amor.
O evento sediado na colônia Kinderland, próxima a cidade do Rio de Janeiro, vai até a próxima sexta-feira, 24/02, e contará ainda com a presença de diversos intelectuais, atores e artistas que poderão contribuir na formação destes jovens.
Por Germano Martiniano - Formado em Relações Internacionais pela UNESP/Franca e assessor de comunicação da FAP