Trump

Ascânio Seleme: O exemplo de Trump

O caminho que ele percorreu até a derrota para Biden é o mesmo que Bolsonaro trafega

Trump seria muito provavelmente reeleito se não houvesse o coronavírus, que o desmascarou. Suas mentiras, apesar de contadas aos milhares, eram absorvidas como mais do mesmo. Pareciam uma bobagem. Não eram, como se veria mais tarde. Seu estado de confrontação permanente também não assustava no princípio. Seus adversários do Partido Democrata tampouco se entusiasmaram com a campanha que viam se encaminhar para uma derrota inevitável. Por isso, talvez, Biden tenha sido o candidato escolhido para a disputa, por ser o mais talhado para o sacrifício.

Embora seja um político valoroso, de trajetória impecável, Biden era visto como um homem velho, de outra época. Eleito, seria o mais velho presidente a tomar posse nos Estados Unidos. Além disso, ou talvez por isso mesmo, seus lapsos de memória eram considerados até por seus mais fiéis aliados como um problema político sério. Biden foi gago na juventude. Corrigiu o problema com tempo e terapia, mas eventualmente tropeça numa palavra ou engasga no meio de uma frase. Um problemão num debate eleitoral.

E foi assim, atropelando aqui e ali uma palavra que não conseguia pronunciar, esbarrando num detalhe, numa cifra, numa referência de que não podia se lembrar, que Biden foi tocando a campanha até ganhar a eleição com margem folgada. Surpresa? Vista desde janeiro de 2020, imensa surpresa. Mas, como a campanha refletiu a negligência de Trump com a pandemia e o transformou num símbolo do negacionismo, a vantagem substancial do republicano foi aos poucos evaporando.

Não foi a economia. Em janeiro do ano passado, a economia americana bombava, e o emprego era pleno. O presidente Donald Trump tinha autoridade, embora sua arrogância tenha sido seguidamente confundida com liderança. Claro que foi enorme o impacto do vírus sobre a vida econômica americana, como de resto em todo o mundo. Milhões de pessoas perderam o emprego, milhares de empresas fecharam suas portas definitivamente. Um número sem tamanho de esperanças e sonhos foi sepultado com os 400 mil americanos que perderam a vida para a Covid-19.

Mas o eleitor saberia interpretar o problema como uma tragédia global e não o atribuiria ao candidato Donald Trump, não fosse ele o mais antidemocrático, mentiroso, arrogante, beligerante e perverso presidente da história americana. Seu descaso negacionista com o vírus contribuiu para a exorbitância das mortes. Trump rejeitou sistematicamente o uso de máscaras, repetiu que o vírus era perigoso apenas para cardíacos e idosos e, já em outubro do ano passado, disse aos americanos: “Não deixem que o vírus domine suas vidas, não tenham medo, saiam às ruas”.

O caminho que Trump percorreu desde sua posse até a derrota para Biden é o mesmo que Jair Bolsonaro trafega no Brasil. E seu desfecho tem tudo para ser o mesmo. Se Bolsonaro não for cassado antes, muito provavelmente vai perder a eleição de 2022. Como ocorreu com Trump, a confiança popular, que era seu maior patrimônio quando tomou posse, foi se deteriorando pelos mesmos motivos que destruíram o ídolo norte-americano: a mentira, o ódio, o desprezo à vida e o desrespeito à democracia.

No Brasil, a pandemia contaminou o governo Bolsonaro da mesma forma que destruiu o de Trump. Uma boa parte das mais de 210 mil vítimas brasileiras deve ser atribuída à negligência e ineficiência do governo federal. A ilusão do tratamento precoce e o descaso com cuidados básicos, além dos maus exemplos, da politização do vírus e do atraso deliberado na compra de vacinas, aumentaram a conta de brasileiros mortos. Bolsonaro, seus pazuellos e ernestos um dia pagarão pelos crimes agora cometidos.

E agora, quando percebeu estar encurralado, tornou a ameaçar a democracia. Uma de suas velhas retóricas, a mais infame delas, voltou a brotar na boca do presidente. Os brasileiros devem dar ao golpismo de Bolsonaro o mesmo destino que os americanos deram ao de Trump: o lixo. Se não for já, que seja logo mais, em outubro do ano que vem.


Míriam Leitão: A democracia prevaleceu

O governo Joe Biden começou ontem, através do ritual da posse e do tom do discurso, a restauração dos fundamentos da democracia americana. A fala dele pedindo união poderia ser apenas protocolar, não fosse o fato de que a divisão foi levada ao absurdo pelo seu antecessor, que governou aprofundando o fosso social e político. Por isso, os ritos em Washington foram mais valiosos.

“Aprendemos de novo que a democracia é preciosa, que a democracia é frágil e, nesta hora, a democracia prevaleceu”. Poderia ser apenas uma frase bonita de um discurso de posse, exceto pela realidade de que ali mesmo onde Biden falava, duas semanas antes, uma horda de radicais insuflados pelo então chefe do governo havia tentado simplesmente impedir o ato do Congresso de reconhecer a eleição.

Biden começou ontem mesmo a desfazer a herança recebida. Todos rigorosamente de máscara durante todo o evento era um recado. Mas eles foram muitos em cada momento. Os gestos recíprocos entre o governo democrata que começa e republicanos como o ex-vice-presidente Mike Pence e o senador Mitch McConnell e, principalmente, o ex-presidente George Bush, deram sentido à frase: “a política não precisa ser um jogo violento destruindo tudo em seu caminho.”

Um presidente na sua posse defender a “verdade” seria visto como algo completamente banal, não fosse o fato de que a mentira é hoje um problema real da política. Um mentiroso compulsivo ocupou a presidência por quatro anos e falou mais de 30 mil mentiras, contabilizou o “Washington Post”. Na pior delas, feriu a base da democracia. O ataque ao Capitólio, disse o senador republicano Mitch McConnell, foi “alimentado por mentiras” e provocado por Trump.

Exaltar a diversidade da América também é previsível. Mas ganhou um sentido concreto, num governo que quebra um enorme precedente. A primeira mulher vice-presidente da história do país. Kamala Harris chega carregada de simbolismo pela sua origem. A mãe dela veio jovem da Índia para estudar e fazer carreira nos Estados Unidos. Sempre foi subestimada por seu sotaque forte. Casou-se com um jamaicano negro e teve duas filhas. Uma delas hoje está sentada na segunda cadeira mais poderosa do país e ontem à tarde deu posse aos novos senadores.

O discurso, portanto, era sincero. A posse de ontem refletia essas escolhas e valores. As primeiras ordens executivas confirmavam o que Biden havia dito. A volta ao acordo de Paris também não é um mero gesto. Significa o fim do isolacionismo que vigorou nos últimos anos, mas, além disso, é um compromisso que pode ter um impacto concreto. Os Estados Unidos são o segundo maior emissor de gases de efeito estufa.

Na sua sabatina no Senado na terça-feira, a nova secretária do Tesouro, Janet Yellen, falou que a retomada da economia terá que privilegiar projetos de infraestrutura, e fontes de energia que emitam menos. E que todo o sistema de subsídios terá que ter em mente a preocupação ambiental. Chegou a especificamente defender estímulo ao carro elétrico. A retomada da economia terá esse eixo, reduzir os riscos climáticos e por isso a terceira ordem executiva que Biden assinou foi a volta ao acordo global do clima. A primeira foi o uso de máscaras nos locais onde ele pode legislar. Lá como aqui, governadores e prefeitos podem decidir, mas isso não significa, como Bolsonaro sempre repete, que o governo federal nada possa fazer. Biden está determinado a fazer, e muito, pelo combate à pandemia, que ele definiu como inimiga do país. E outra decisão foi a volta à Organização Mundial de Saúde.

Os Estados Unidos estão de volta. De volta aos seus sonhos de um país de democracia forte, de rituais centenários de transição de poder, de busca de inclusão, e de relação com o mundo. O multilateralismo sentiu muita falta dos Estados Unidos. A Europa é que o diga.

Biden falou que a democracia foi testada e mostrou resiliência. É inevitável pensar no Brasil. Em dias em que, de novo, o presidente brasileiro rosna ameaças, como a de que as Forças Armadas é que decidem se há ou não democracia, e em que o seu procurador-geral insinua “estado de defesa”, é bom lembrar a razão da fragilidade da democracia. Por ser um sistema aberto, ela abriga seu próprio inimigo. E ele pode chegar à Presidência. Nos Estados Unidos, no fim, a democracia prevaleceu.


Merval Pereira: Isolados no mundo

Já tivemos um governo cujo embaixador em Washington, Juracy Magalhães, dizia que “o que é bom para os Estados Unidos, é bom para o Brasil”. Embora a esquerda latino-americana sempre tenha tido uma relação mais próxima do Partido Democrata, o governo Lula em 2008 preferia um presidente republicano, porque seria "menos protecionista" e menos "próximo dos tucanos".

A relação dos tucanos com o Partido Democrata foi fortalecida pela amizade entre os ex-presidentes Fernando Henrique e Bill Clinton, uma relação também especial nasceu entre Lula e Bush, que teve uma convivência mais amistosa com ele do que com Fernando Henrique Cardoso, que já declarou que sentiu "asco físico" por Bush.

Provavelmente Bush sentia em Fernando Henrique uma rejeição intelectual que não acontecia com Lula, cujo temperamento  é mais parecido com o dele.  Embora tenha sido Obama que o chamou de “o cara”, fazendo com que sua imagem internacional se fortalecesse, nunca foram próximos e,  em sua autobiografia “Uma terra prometida”, Obama comentou que soube do envolvimento do ex-presidente brasileiro em falcatruas, o que irritou Lula.

O fato é que até mesmo governos militares como o do General Geisel souberam lidar com a política externa de maneira pragmática, reatando relações diplomáticas com a China e reconhecendo a libertação das colônias portuguesas na África, mesmo com comunistas liderando as guerras de libertação.

Com Bolsonaro, voltamos ao tempo em que tudo vindo dos Estados Unidos conservador e retrógrado de Donald Trump estava bom, embora não tenhamos tido nenhuma vantagem por esse relação de subserviência ideológica. A vitória de Biden foi rejeitada pelo governo Bolsonaro até que Trump desistisse de tentar anular o pleito, e nenhum governo brasileiro torceu tanto por um candidato quanto o de Bolsonaro por Trump.

A consequência é que vamos ficar, como se previa, isolados, párias na comunidade internacional, porque estamos na contra mão do mundo ocidental, onde nos inserimos geopoliticamente. Joe Biden assumiu a presidência dos Estados Unidos, vai retomar as políticas que fizeram dos EUA uma liderança mundial:  o acordo do clima de Paris, o nuclear com o Irã, e vai voltar à Organização Mundial do Comércio (OMC).

O Brasil está agora sobrando. Não consegue ficar bem nem com os governantes com a mesma tendência. Narendra Modi, o Primeiro-Ministro da Índia, é um politico de direita que poderia ser uma ligação com Bolsonaro, mas entramos em conflito com a Índia por causa de interesses americanos ao não apoiar a reivindicação de quebra de patentes na pandemia que favoreceria as empresas indianas, maiores fabricantes de insumos farmacêuticos.

A resposta veio com o retardamento das doses de vacina contra a COVID-19 para o Brasil. É inacreditável que o país não tenha percebido que o BRICS era um organismo importante geopoliticamente. Desprezou-o até o ponto em que o Secretário de Estado de Trump, Mike Pompeo elogiou o Brasil por ter deixado de lado os BRICS. Nunca houve tanta clareza de que nem sempre os interesses do Brasil são os dos Estados Unidos.

O Brasil nesses dois anos de bolsonarismo sempre cedeu aos EUA, e entrou em conflitos desnecessários, com a China, com a Índia, com a Argentina. Uma política externa tosca, que acha que pode ter uma relação normal com o novo governo democrata, e pode culpar o embaixador chinês pelos desentendimentos, depois de praticamente vetar a tecnologia 5G chinesa.  

Com Biden vai piorar, porque ele é um outro tipo de político, liberal, e a nossa relação com os EUA vai ficar muito difícil se não houver uma mudança, primeiro do chanceler, que está nos envergonhando no mundo. Estamos com uma perspectiva muito ruim no exterior e o caso das vacinas é uma prova inconteste. Bolsonaro é pragmático, mudou na política do Congresso da água pro vinho, se adaptou ao Centrão. Só que para mudar a política externa, teria que evoluir, mas é quase impossível que venha a ter uma visão ampla da política externa, neutra em relação a interesses ideológicos específicos.

Faz uma política externa mais ideológica do que a do PT. Bolsonaro não entende política externa como de Estado.


O Globo: Bolsonaro envia carta a Biden e fala em 'excelente futuro' para parceria Brasil-EUA

Aliado do agora ex-presidente Donald Trump, o presidente brasileiro demorou mais de um mês para reconhecer a vitória do democrata nas eleições de novembro passado

Gustavo Maia, O Globo

BRASÍLIA — O presidente Jair Bolsonaro cumprimentou Joe Biden por sua posse como novo presidente dos Estados Unidos em mensagem publicada nas redes sociais no fim da tarde desta quarta-feira. O brasileiro informou que enviou uma carta ao líder americano na qual expôs sua "visão de um excelente futuro para a parceria Brasil-EUA".

O discurso:' Nunca vão tirar nossa democracia', promete Biden na posse; saiba em detalhes o que o novo presidente afirmou

"Cumprimento Joe Biden como 46º presidente dos EUA. A relação Brasil e Estados Unidos é longa, sólida e baseada em valores elevados, como a defesa da democracia e das liberdades individuais. Sigo empenhado e pronto para trabalhar pela prosperidade de nossas nações e o bem-estar de nossos cidadãos. Para marcar essa data, enderecei carta ao Presidente dos EUA, Joe Biden, cumprimentando-o por sua posse e expondo minha visão de um excelente futuro para a parceria Brasil-EUA", escreveu Bolsonaro.

Aliado do agora ex-presidente Donald Trump, o presidente brasileiro demorou mais de um mês para reconhecer a vitória do democrata nas eleições de novembro passado. No início deste mês, horas após o Congresso dos Estados Unidos oficializar a vitória de Biden nas eleições presidenciais, Bolsonaro insistiu em dizer que houve fraude na disputa, alegação falsa que vinha sendo feita por Trump desde sua derrota.

Bolsonaro publicou a íntegra da carta endereçada a Biden nas suas redes sociais. "Senhor Presidente, tenho a honra de cumprimentar Vossa Excelência neste dia de sua posse como 46º Presidente dos Estados Unidos da América", começa o texto, que aponta o Brasil e os EUA como as duas maiores democracias do mundo ocidental.

Não há nenhuma menção à pandemia na carta, embora Estados Unidos e Brasil liderem o número de mortes absolutas por Covid-19 no mundo.  Bolsonaro cita a economia, ciência e tecnologia, organizações econômicas internacionais, "desenvolvimento sustentável e proteção do meio ambiente, em especial, da Amazõnia", como áreas de interesse comum.

O presidente afirma que o "Brasil demonstrou seu compromisso com o Acordo de Paris com a apresentação de suas novas metas nacionais". Sob Ricardo Salles, o Brasil reduziu a ambição das metas firmadas no acordo, e Bolsonaro reiteradamente se omitiu diante do desmatametno da Amazônia. O país não pôde discursar em uma cúpula histórica da ONU em dezembro, por não ser considerado um ator relevante na agenda do clima, prioritária para o novo governo americano.

Contexto: Joe Biden pode incluir Brasil na lista de párias climáticos?

Bolsonaro expressou esperança de que os Estados Unidos apoiem a entrada do Brasil na Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), antiga promessa de Trump.

O presidente afirmou ainda: "Nossos povos estão unidos por estreitos laços de fraternidade e pelo firme apreço às liberdades fundamentais, ao estado de direito e à busca de prosperidade através da liberdade". Ele também cita o combate a redes criminosas e ao terrorismo como um ponto de convergência entre os países.

O presidente disse que, "pessoalmente", é "grande admirador" de longa data dos Estados Unidos. E que desde que assumiu a Presidência passou a corrigir o que chamou de "equívocos" de governos brasileiros anteriores, que segundo ele "afastaram o Brasil dos EUA, contrariando o sentimento de nossa população e os nossos interesses comuns".

Citando a "ampla e profunda parceria" construída pelos dois países "sob o signo da confiança", ele apontou que empresários brasileiros e americanos tem interesse em um "abrangente" acordo de livre comércio para gerar mais empregos e investimentos, além de aumentar a competitividade global das respectivas empresas. O trato era negociado pelo governo Bolsonaro com o governo Trump, mas não foi concretizado.

Contexto: Sob alta expectativa, Biden prepara pacotes para pandemia, economia, polícia e imigração nos primeiros 100 dias

A carta é concluída com o desejo do brasileiro de "pleno êxito" no exercício do mandato e um pedido para que Biden aceite os votos de sua "mais alta estima e consideração".

O governo Biden inclui vários críticos de Bolsonaro, como o responsável pela área de América Latina do Conselho de Segurança Nacional e a secretária do Interior.


Elio Gaspari: 2021 começou bem

Há luz no fim do túnel: quando serei vacinado, onde?

Ao meio-dia de hoje, Joe Biden deverá assumir a Presidência dos Estados Unidos, e Donald Trump foi-se embora. No Brasil, começou a ser aplicada a vacina contra a Covid-19. Mudou o jogo. Dois centros irradiadores de ansiedade e morte perderam a iniciativa. O capitão Bolsonaro e o general Pazuello podem dizer o que bem entenderem, mas há luz no fim do túnel: quando serei vacinado, onde? Trump continuará dizendo que ganhou a eleição, mas Biden estará no Salão Oval.

Bolsonaro e Pazuello continuarão em guerra contra João Doria, mas foi ele quem acelerou a chegada da vacina. No caso do relacionamento com o governo de Joe Biden, o problema será outro. Noves fora todas as pirraças de uma diplomacia que se sente bem colocando o país na condição de pária, haverá uma nova realidade na Casa Branca. (Na Índia, a vacinação maciça imunizará seus párias, antes que as vacinas do general Pazuello cheguem aos marajás de Pindorama.)

No lugar de um delirante vulgar, estará na Casa Branca um mandarim que passou oito anos na vice-presidência e 36 no Senado. Para o atual governo brasileiro, a chegada de Biden irá além das diferenças entre republicanos e democratas, ambientalistas e agrotrogloditas. Trump levou consigo a capacidade de operar numa realidade paralela, dimensão frequentada por Bolsonaro, pelo venezuelano Nicolás Maduro e pelo filipino Rodrigo Duterte.

O veterano diplomata americano Thomas Shannon, ex-embaixador no Brasil e ex-subsecretário de Estado no início da administração de Trump, já disse que as relações entre os dois países estavam fora do eixo. Numa linguagem que não faz seu estilo, Shannon comentou o negacionismo eleitoral endossado por Bolsonaro: “É algo que não será facilmente perdoado e não será esquecido”.

Tendo perdido o farol trumpista, se o governo brasileiro continuar na sua órbita de realidade paralela, ficará falando sozinho, prisioneiro de suas fantasias. Os americanos poderão controlar a agenda com um parceiro malcriado.

Lidando com a pandemia, Bolsonaro investiu-se de poderes que não tem. Como o mercado brasileiro é grande, ele supôs que os vendedores de vacinas e de seringas fariam fila à sua porta. Acabou pendurado no imunizante “do João Doria” que demonizou, garantindo que “NÃO SERÁ COMPRADA” (maiúsculas dele).

A ideia de que o Brasil está no centro do mundo é pobre. O pelotão palaciano poderia ir à página 113 do livro “Kissinger e o Brasil”, do professor Matias Spektor. Ele conta um encontro do secretário de Estado Henry Kissinger com o chanceler soviético Andrei Gromyko, ocorrido na manhã de 11 de julho de 1975. O Brasil acabara de assinar um Acordo Nuclear com a Alemanha, e Gromyko estava preocupado com a possibilidade de o Brasil vir a fabricar uma bomba atômica.(O embaixador americano em Brasília também desconfiava disso.) O chanceler soviético queria a ajuda americana para bloquear o projeto: “Vocês estão mais perto do Brasil geográfica e politicamente”.

Poderia ter começado uma discussão sobre as características do acordo, mas Kissinger deu uma resposta curta, de três frases, combinou manter Gromyko informado e arrematou:

—Tudo bem. Vamos almoçar?

O Acordo Nuclear foi sumindo, sumindo, e sumiu.


Afonso Benites: Com posse de Biden, Brasil sofrerá pressão conjunta de EUA e Europa por Amazônia

Diplomatas avaliam que nova Casa Branca se dedicará a vincular política ambiental à comercial. Embaixadores em Brasília dizem que, para não perder dinheiro, Planalto terá que ajustar discurso

Pelos próximos dois anos, a boa relação do Brasil com os Estados Unidos dependerá muito mais do Governo Jair Bolsonaro do que o de Joe Biden, que será empossado na presidência americana nesta quarta-feira. Se o presidente brasileiro insistir na sua política ambiental que pouco protege o meio ambiente e na condução ideológica de seu ministério das Relações Exteriores, corre o risco de fazer o país perder dinheiro e ser cada vez mais um pária na arena internacional. A avaliação foi feita por quatro embaixadores europeus e asiáticos que trabalham em Brasília e foram ouvidos para esta reportagem. Todos falaram sob a condição de não terem seus nomes publicados. E todos entendem que uma sinalização de que a política brasileira estaria além da relação Donald Trump-Bolsonaro seria demitindo os ministros Ricardo Salles (Meio Ambiente) e Ernesto Araújo (Itamaraty).

Conforme esses diplomatas, os chanceleres de países europeus, principalmente, darão suporte a qualquer veto ou restrição que Biden fizer ao Brasil por conta política ambiental. E mais. Já pediram que o presidente americano o faça. “A França já sinalizou que quer deixar de ser dependente da soja brasileira. A tendência é que, sem a proteção ambiental, os países encontrem mais argumentos para impor barreiras ao Brasil e, consecutivamente, protegerem os seus próprios produtores”, disse um diplomata europeu. “Quem não cuidar do que resta das florestas no mundo, acabará duramente punido onde mais dói, no bolso”, afirma outro representante de embaixada estrangeira.

A chegada de Biden encontra o Brasil em uma situação já frágil em termos internacionais. Se, sob sombra de Trump, Bolsonaro tinha uma caixa de ressonância poderosa e relativo pouco custo para a estratégia de isolamento internacional, agora o jogo começa a mudar. As últimas semanas foram de reveses para o Planalto na chamada “diplomacia da vacina”. O país, tenta, sem sucesso, acelerar a chegada de compras de doses prontas da vacina Oxford/AstraZeneca da Índia assim como de insumos para a fabricação de imunizantes vindos da China.

Uma das possibilidades que tem sido aventada no âmbito internacional seria a de Biden apoiar que a Organização Mundial do Comércio (OMC) estabeleça uma política de restrição a quem infringir determinadas normas ambientais. É algo parecido com o que ocorreu na década de 1990, quando havia severos vetos aos negócios com países em que eram registrados trabalho infantil ou escravo. É um debate que ocorrerá ainda ao longo de 2021.

“Os EUA querem criar uma nova doutrina mundial que prima pelos predicados da economia verde, da proteção da biodiversidade, mas também como componente vital na regulação das relações comerciais”, ressalta o cientista político e pesquisador de Harvard, Hussein Kalout, que foi secretário especial de Assuntos Estratégicos da Presidência sob o Governo Michel Temer. A escolha de John Kerry, ex-secretário de Estado de Barack Obama, para ocupar o cargo de “czar ambiental” de Biden é uma dessas sinalizações de endurecimento da política verde do novo presidente.

Outra indicação de que a política de Biden também enfraquecerá Bolsonaro foi a opção dele por Anthony Blinken para o cargo de secretário de Estado. Ele é um defensor do multilateralismo, ao passo que o presidente brasileiro, assim como Trump era, é um crítico das organizações internacionais e defensor de acordos bilaterais.

De início, contudo, Biden terá preocupações urgentes antes de tratar da política externa com o Brasil. Entre elas, estariam o combate à pandemia de coronavírus, estratégias para recuperar a economia americana e como recompor a política interna que ficou extremamente polarizada principalmente no fim do mandato de Trump. Na visão de Kalout, a gestão do democrata será pragmática na seara internacional, e com o Brasil não será diferente. Pontes não seriam queimadas, mas o Brasil seria colocado em espera, por um tempo.

“O alinhamento entre os Governos brasileiro e americano foi para além do que é um alinhamento automático. Tivemos uma subordinação de interesses. Perdemos a autonomia decisória em matéria de política internacional. O Brasil tornou-se incapaz de tomar decisões desprendidas daquilo que o Trump entendia o que era necessário para o Brasil”, ponderou o ex-secretário de Temer.

Desde que assumiu a presidência, Bolsonaro fez questão de se aproximar de Trump. Mesmo após a confirmação da eleição de Biden, ele insistiu na infundada tese de que as eleições americanas foram fraudadas. E foi um dos últimos a parabenizar o vencedor do pleito.

Sobre a possibilidade de se demitir Salles e/ou Araújo, Kalout diz que essa medida não surtiria efeito de imediato, a menos que a condução da política dessas pastas mudasse. “Não adianta só trocar nomes. Tem de trocar o direcionamento, tem de trocar a maneira de se conduzir. E isso não depende, exclusivamente, do ministro que ocupar o cargo, mas do presidente”, diz o cientista político.

Um tema que deverá sofrer poucas mudanças é o da tecnologia da internet 5G. Trump vetou a presença da empresa chinesa Huawei dos Estados Unidos e tem pressionado para que países aliados o façam. O presidente Bolsonaro vinha sinalizando que seguiria o caminho traçado pelo republicano, mas ainda não havia uma definição final. O leilão da frequência deve ocorrer até meados deste ano. Agora, mesmo com a assunção de Biden a tendência é que alguma limitação à empresa chinesa persista, ainda que de maneira mais moderada.

“Essa guerra é suprapartidária. Se fosse o Trump ou o Biden seria a mesma coisa. Se não vierem vetos, virão barreiras que vão dificultar uma vitória da Huawei”, disse um dos diplomatas. O que está em jogo, não é apenas a questão financeira, mas a guerra geopolítica que EUA e China travam por essa tecnologia. Avaliação parecida é feita pelo cientista político Kalout. “Não tem como o Brasil banir, ele ainda depende da Huawei. Mas os EUA vão exercer pressão para delimitar essa entrada da Huawei no 5G do Brasil, mas também em toda a Europa”, afirmou.


EL País: Joe Biden abre nova era nos EUA

Democrata chega à presidência mais poderosa do mundo em circunstâncias adversas, destinado a ser um líder decisivo

Amanda Mars, El País

Um colega do Senado, Daniel Patrick Moynihan, disse certa vez a Joe Biden: “Não entender que a vida vai te bater e te derrubar é não entender o que há de irlandês na vida”. Àquela altura, o democrata já sabia disso, e não só pelo que tinha lhe contado seu avô Finnegan. Havia passado a infância esquivando os valentões que zombavam da sua gagueira. Perdera a esposa e a filha de um ano em um acidente de carro aos 29 anos. Veria morrer, décadas depois, outro de seus filhos, vitimado por um câncer atroz. “Mas para mim essa não é a história completa sobre o que é ser irlandês”, diz Biden em Promise Me, Dad, o livro que escreveu após do falecimento de Beau, que estava destinado a seguir sua saga política. “Nós, os irlandeses, somos as únicas pessoas no mundo nostálgicas do futuro. Nunca deixei de ser um sonhador. Nunca deixei de acreditar nas possibilidades.”

Quando era pouco mais que adolescente, a mãe de sua então namorada (Neilia, sua primeira esposa) lhe perguntou sobre sua vocação profissional, e o rapaz lhe respondeu que queria ser presidente dos Estados Unidos. Nesta quarta-feira, Joseph Robinette Biden Jr. (Scranton, Pensilvânia, 1942), nostálgico do futuro, crente nas possibilidades, tomará posse nesse cargo rodeado de cercas e soldados, perante um Capitólio invadido dias atrás por uma turba que queria evitar o seu Governo.

Biden assume a presidência que cobiçou durante toda a sua vida nas circunstâncias mais adversas que jamais projetou, e num momento de sua vida em que imaginava já estar de saída. Após duas pré-candidaturas presidenciais fracassadas e uma terceira, a de 2020, em que chegou a ser dado como morto nas primárias, o destino lhe pôs à frente de um país atravessado por três graves crises: a pior pandemia em um século, a recessão mais aguda desde a Grande Depressão, e uma espécie de ruptura de convivência social.

O desafio é maiúsculo, de calibre rooseveltiano, mas a oportunidade política é também colossal, rooseveltiana, para citar Franklin Delano Roosevelt, que tirou os EUA da crise 1929. Biden será o presidente que proclamará o fim da pandemia, que completará o programa de vacinação e o que poderá celebrar a superação da derrota econômica. O destino escreveu que este político de 78 anos e sem excessivo carisma, moderado em um tempo efervescente, ocupe o que no mundo da fotografia se chama de instante decisivo. Fala-se muito que será presidente de um só mandato. Pouco importa. Escreverá igualmente um episódio capital dos Estados Unidos e, com este, de meio mundo.

O choque sobrevindo há menos de um ano atrapalhará ou dará asas às reformas? A derrota de Donald Trump e a recuperação da Casa Branca para os democratas geraram grandes expectativas, e nos últimos dias se espalham as comparações com a chegada de Franklin Delano Roosevelt ao poder em 1933. Este, logo depois de estrear no Governo, recebeu um visitante ―a imprensa da época não o identificou― que lhe disse em relação ao New Deal: “Senhor presidente, se seu programa der certo, o senhor será o melhor presidente da história dos Estados Unidos. Se fracassar, será o pior”. E Roosevelt replicou: “Se fracassar, serei o último [presidente]”.

A história é citada em The Defining Moment, um livro de Jonathan Alter sobre aqueles primeiros 100 dias no poder, um relato, nas palavras do seu autor, sobre como um homem de gênio especial para a política e a comunicação reviveu o espírito de uma nação golpeada.

Num momento em que o país atravessa momentos sombrios, Biden assume com uma capacidade muito especial de adaptação ao meio (foi conservador quando o mundo o exigia e, por exemplo, mais rápido que Barack Obama em abraçar o casamento gay quando a sociedade girou) e o olfato suficiente para saber que essas suas qualidades distintivas ―a empatia, a moderação, a doce normalidade― se tornariam o bálsamo necessário para este vibrante país.

“Tem semelhanças com Lyndon B. Johnson [vice e sucessor de Kennedy], porque ele também é um legislador experiente que serviu a um presidente mais jovem e agora está sendo chamado a realizar reformas progressistas, mais progressistas do que se espera dele”, comenta por email o escritor e jornalista Evan Osnos, ganhador do Pulitzer e autor de Joe Biden. American Dreamer, nova biografia do próximo presidente. Osnos, que acompanha e cobriu Biden durante anos, aborda a ambição do veterano democrata, uma condição que costuma passar despercebida no vice-presidente da era Obama, eclipsada por esse aspecto de homem cordato.

Será o primeiro presidente desde Ronald Reagan a não ter passado por nenhuma das oito universidades da Ivy League ―esse olimpo educativo formado por Harvard, Columbia e Princeton, entre outras―, uma circunstância que hoje, dado o clima de desconfiança contra as elites, representa algo de virtude política. Em uma reportagem recente do The New York Times sobre a preparação de sua primeira onda de decretos, assessores que trabalham com ele contavam que detesta a linguagem excessivamente técnica ou acadêmica, e que com frequência interrompe a conversa dizendo: “Pegue o telefone, ligue para a sua mãe e diga a ela o que você acaba de me dizer. Se ela entender, podemos continuar conversando”.

Sim, se a mãe entender, não o pai ou o irmão. Biden é uma criatura da Geração Silenciosa, esse grupo de norte-americanos que nasceu depois da Grande Geração, que combateu pela democracia na Segunda Guerra Mundial, mas antes dos boomers e sua revolução cultural. Nascido no seio de uma família de classe trabalhadora, filho de um vendedor de carros Chevrolet, será o primeiro presidente católico desde John Fitzgerald Kennedy. Também, o que chega ao número 1.600 da avenida Pensilvânia com maior bagagem política. Tomou posse no seu primeiro cargo em Washington, de senador por Delaware, em janeiro de 1973, aos 30 anos, tornando-se assim um dos mais jovens integrantes da Câmara Alta na história. Agora, assumirá o cargo de presidente como o mais idoso.

Entre um marco e outro, viu a sociedade mudar e contribuiu para isso no Congresso. Negociou com os políticos segregacionistas, votou a guerra do Iraque, dirigiu ―de um modo que hoje envelheceu mal― a primeira grande audiência por uma acusação de assédio sexual (Anita Hill contra Clarence Thomas, que seria confirmado como juiz da Suprema Corte, em 1991). Agora, promete impulsionar a mais ambiciosa reforma ambiental, social e trabalhista da história.

“Nas decisões importantes que precisam ser tomadas rapidamente, aprendi com os anos que um presidente nunca terá mais de 70% da informação de que necessita. Assim, uma vez que você consultou os especialistas, os dados e as estatísticas, tem que estar disposto a confiar na sua intuição”, disse o novo presidente no passado.

Biden prometeu ao mundo que os Estados Unidos “estão de volta” ao tabuleiro global após quatro anos de guinada isolacionista. Ao seu país prometeu curar as feridas. Chega com muitos planos e um objetivo de fundo, recuperar a unidade norte-americana, ou algo próximo a isso. Pretende buscar acordos com os republicanos no Congresso, tirar partido da sua experiência como legislador, e tratar de evitar que o novo impeachment de Trump, ainda a ser julgado no Senado, condicione sua caminhada.

Sofrerá dificuldades, esse lado irlandês da vida. Mais da metade dos eleitores de Trump ―e foram 74 milhões em 2020― acha que o democrata será um presidente ilegítimo, que venceu as eleições de forma fraudulenta, apesar de nem a Justiça nem as autoridades eleitorais terem encontrado qualquer sinal de tais irregularidades. Passado esses primeiros 100 dias de graça, também receberá fogo amigo, pressões dos flancos mais esquerdistas do Partido Democrata, que receberam com certa desilusão um gabinete formado por veteranos da velha-guarda obamista. Mas também governará uma sociedade que passou quatro anos crispada e quer uma mudança.

Nesta terça-feira, quando deixava sua cidade, Wilmington (Delaware), e seguia rumo a Washington para a posse, lembrou-se de seu filho morto em 2015. “Só lamento uma coisa, que Beau não esteja aqui, porque deveria ser ele a tomar posse como presidente.” A nostalgia do futuro não é incompatível com a do passado.


DW Brasil: Qual será o legado da presidência de Trump?

Os quatro anos de mandato do republicano deixarão marcas que devem ser sentidas por décadas, da economia e do Judiciário americanos à relação dos EUA com o mundo

Gerações futuras terão que se confrontar com o legado de Trump.

Após quatro tumultuosos anos, a presidência de Donald Trump chega ao fim nesta quarta-feira (20/01), deixando um legado misto, a ser estudado por décadas.

Desde que o magnata imobiliário e astro de reality TV adentrou a Casa Branca, seu governo esteve infestado por controvérsias e escândalos. A reação atrasada à pandemia de covid-19, seu papel no violento ataque ao Capitólio , em Washington, em 6 de janeiro, assim como o segundo impeachment, vão se sobrepor a qualquer coisa que ele haja implementado em seu mandato.

Talvez mais do que o de qualquer outro presidente dos Estados Unidos, o legado trumpista será visto por duas lentes fortemente contrastantes. Conservadores, a abastada classe empresarial e a direita religiosa o reverenciarão como um dos grandes presidentes de todos os tempos.

A maioria dos americanos, entretanto, o condenará com desprezo, como evidencia uma consulta popular do Pew Research Center, segundo a qual Trump deixa o cargo com apenas 29% de aprovação, a pior de toda a sua presidência.

Isso, porém, não impede adeptos e aliados de o louvarem por ter abalado as bases do establishment e implementado rapidamente parte das promessas de sua campanha eleitoral de 2016.

Onda conservadora no Judiciário

O impacto de Trump sobre o sistema judiciário federal certamente será seu legado mais duradouro, a ser sentido por gerações futuras. Ele nomeou três juízes para cargos vitalícios na Suprema Corte, cimentando o maior viés conservador do órgão, com repercussões que vão desde os direitos LGBTQ+ e de reprodução, até a assistência de saúde, imigração e políticas trabalhistas.

Além disso, Trump indicou mais de 200 juízes para os tribunais federais, os quais decidirão em favor dos republicanos e conservadores em suas magistraturas vitalícias.

"Esse foi o acerto que ele fez com a direita evangélica e com as elites do Partido Republicano, e colocou esses juízes", afirma Michael Cornfield, professor associado e diretor de pesquisa do Centro Global de Gestão Política da Universidade George Washington.

De acordo com um relatório de 2019, um de cada quatro dos atuais juízes das circuit courts americanas foi nomeado por Trump, todos ferrenhos conservadores ideológicos, cumprindo uma promessa de campanha feita a seu eleitorado.

Gordos cortes tributários para os ricos

Trump terminou seu primeiro ano no cargo assinando uma lei que trouxe enormes e permanentes cortes dos tributos corporativos, de 35% para 21%. Também houve redução dos impostos das pessoas físicas, embora essas mudanças tenham sido temporárias e menos significativas.

Os cortes representaram uma bonança para os mais ricos dos EUA e os grandes conglomerados, muitos dos quais aplicaram o dinheiro extra na recompra de ações e em bônus para os executivos, em vez de aumentar os salários de seus empregados.

Tais medidas também poderão deixar em apuros os contribuintes: o apartidário Departamento Orçamentário Congressional estimou que eles acrescerão em US$ 1,9 trilhão o déficit americano nos próximos dez anos.

Além disso, os críticos do ainda presidente temem que os baixos assalariados e os mais vulneráveis é que vão pagar o pato, já que os conservadores consideram equilibrar o orçamento cortando programas de seguridade social.

Derrubar e renegociar acordos

Trump ascendeu ao poder, em parte, graças à promessa de derrubar e renegociar antigos acordos comerciais entre e os EUA e outros países. E cumpriu, embora muitas vezes de modo caótico, desencadeando guerras comerciais com a China e trazendo insegurança às empresas nacionais.

Por outro lado, Trump conseguiu anular um pacto comercial crucial, o Tratado Norte-Americano de Livre-Comércio (Nafta, na sigla em inglês), que ele tachara de "pior acordo comercial do nosso país" e datava do governo Bill Clinton, substituindo-o por um acordo renegociado, que até mesmo seus críticos reconheceram ser melhor.

O substituto, denominado Acordo Estados Unidos-México-Canadá, inclui proteções trabalhistas mais modernas, assim como cláusulas ambientais e trabalhistas reivindicadas por muitos críticos de Trump no Congresso. Até mesmo alguns dos críticos mais severos do magnata – como a presidente da Câmara dos Representantes, democrata Nancy Pelosi – admitiram que o pacto renegociado é melhor que o Nafta.

"America first", o circo

As conquistas da administração Trump não são sempre aferidas por suas medidas políticas, mas por terem alterado o modo como os americanos e o mundo veem Washington. A agenda "America first" era muitas vezes vaga, mas fez o resto do mundo prestar atenção.

Nos estágios iniciais da campanha eleitoral de 2016, Trump zombou das políticas exteriores e comerciais do governo Barack Obama. Num artigo de opinião em 2015, ele as condenou como "desorientadas e incompetentes", assegurando que uma "administração Trump vai nos transformar novamente em vencedores".

A partir daí, ele governaria de maneira anticonvencional e imprevisível. Na avaliação de Jason Grumet, presidente do Bipartisan Policy Center de Washington, o "presidente Trump antagonizou numerosas instituições" e "rompeu as normas de governos  anteriores".

E ele levou esses métodos anticonvencionais até o palco internacional, abalando normas diplomáticas de longa data. Em 2017, retirou seu país do Acordo do Clima de Paris, acusando-o de ser "injusto no maior grau com os Estados Unidos".

Além disso, detonou o Acordo Nuclear do Irã, transferiu arbitrariamente a embaixada americana em Israel de Tel Aviv para Jerusalém, e tentou estabelecer laços diplomáticos com o ditador da Coreia do Norte, Kim Jong-un.

"Tuiteiro-Chefe" e seu eleitorado dos despossuídos

Muito disso tudo Trump realizou através de sua conta do Twitter. Apesar de ela agora estar suspensa, ele teve impacto inegável sobre a forma como as redes sociais podem usadas para fazer campanha política e governar.

Ele usou as postagens para estabelecer sua marca política e, durante toda sua legislatura, atacar adversários políticos, demitir altos funcionários do governo e interagir diretamente com seus leais seguidores. Isso lhe valeu o apelido de "Tweeter-in-Chief" ("Tuiteiro-Chefe").

"O presidente Obama utilizava as redes sociais de um jeito que era mais tradicional", comenta Jason Mollica, diretor de currículo da escola de comunicação da American University: Trump "rompeu a forma como vemos a mídia social".

Graças a sua abordagem bombástica e tiradas frequentes, passou a ser venerado por um bloco eleitoral composto por indivíduos majoritariamente brancos e evangélicos, que alegam ter sido despossuídos pelas assim chamadas "elites de Washington". Isso trouxe novo reforço ao Partido Republicano.

"Politicamente, ele conseguiu reunir uma coalizão que eles [os republicanos] nunca haviam visto antes", comentou à DW Laura Merrifield Wilson, professora assistente de ciência política da Universidade de Indianápolis. "Ele trouxe o seu próprio nicho de apoio."


Ruy Castro: Trump sai, Bolsonaro continua

Nos EUA, um país a reconstruir; no Brasil, a possibilidade de não haver mais país

Em “De Volta para o Futuro” (1985), Michael J. Fox, vindo daquele ano, vai ao passado pela primeira vez e se refere a Ronald Reagan como o presidente dos EUA. Christopher Lloyd, o cientista, não acredita: “Reagan, o ator? Presidente dos EUA??? E quem é o vice? Jerry Lewis???”. Em 1955, ano em que se passa a história, Reagan, já relegado a filmes B, não poderia ser o presidente nem na tela —papel reservado a atores sóbrios e amados, como Henry Fonda, Ralph Bellamy, Fredric March—, quanto mais na vida real. Pois, em 1980, a vida real elegeu Reagan. Pena que sem Jerry Lewis.

Claro que, diante de Donald Trump, Reagan ganhou estatura de estadista, digno sucessor de Washington, Lincoln e Franklin Roosevelt. Trump rebaixou o cargo a níveis que nem o genocida James Buchanan (1857-61), o imoral Richard Nixon (1969-74) e o mentiroso George W. Bush (2001-09) se atreveram. Fez isto somando e absorvendo as piores ignomínias desses três e acrescentando a última audácia que os EUA esperariam de seu presidente —um projeto de golpe e ditadura.

Trump sairá pelos fundos da Casa Branca em 48 horas, mas o mundo ainda não está a salvo. Até o último minuto ele continuará a fazer o mal —insuflando seu gado ao ódio, sonegando dados sobre a pandemia para seu sucessor e cogitando anistiar a si mesmo e à sua família pelos crimes que cometeram. Muitos americanos que o apoiaram descobrem agora que sua ideia de poder não visava a um fim, qualquer que fosse. Ele era o meio e o fim. A psiquiatria deve ter um nome para isso.

Com o fim de Trump, os americanos têm um país a reconstruir. Aqui chegamos à metade do mandato do subclone Jair Bolsonaro e o pior ainda está por vir.

Pendurado na brocha sem a escada de seu líder, só cabe a Bolsonaro recrudescer. Ele também se vê como um meio e um fim. Resta ver quem chegará primeiro a este fim —ele ou o Brasil.


Míriam Leitão: Conspiração Bolsonaro

A oposição ao governo Bolsonaro só não pode dizer que não entendeu aonde ele quer chegar. Conspiradores como Donald Trump e Jair Bolsonaro fazem tudo às claras, e o daqui repete o roteiro com alguma defasagem. A distância que existe é entre original e cópia. Quando parlamentares do PT, PDT, PSDB se alinham ao candidato que Bolsonaro defende para presidir o Senado sabem o que estão fazendo. Compactuam. Os votos serão no escurinho, onde Tancredo ensinou que é o lugar das traições, mas os oposicionistas fazem às claras achando que todos entenderão o pragmatismo.

A História olhará esse distópico tempo nosso de forma implacável. Não adiantará explicar que foram oferecidos bons lugares na mesa diretora, distribuídas presidências de comissões. Não há nada contra o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG), em si. Não é pessoal. É porque na situação em que ele se encontrará terá que pagar o apoio. O presidente se mobilizou, seu padrinho Davi Alcolumbre (DEM-AP) negocia lugar no Ministério. Pacheco se abrigou sob esse teto. Isso terá de ser pago. E o preço é o apoio à pauta que o presidente acha relevante para o seu projeto.

Bolsonaro quer tumultuar a próxima eleição, reduzir o poder dos estados sobre as polícias para aumentar sua força sobre os efetivos armados, quer armar seus seguidores, quer bloquear recursos para a ciência, quer estimular o desmatamento da Amazônia, quer incentivar garimpeiros e invasores em terras indígenas, quer enfraquecer instituições de controle do combate à corrupção. Bolsonaro sonha, como diziam as faixas dos atos que estimulou e dos quais participou, com o fechamento do Congresso e do STF. Esse é o plano, essa é a pauta.

Nenhuma candidatura, seja de Baleia Rossi (MDB-SP) na Câmara, seja de Simone Tebet (MDB-MS) no Senado, se propôs a fazer oposição. A promessa é mais simples. É de autonomia. O poder legislativo precisa ser autônomo para garantir a governabilidade. Há quem defenda candidatos governistas com o argumento da governabilidade, mas é o exato oposto. O equilíbrio dos freios e contrapesos nos ajudará a atravessar este momento tão pantanoso.

O poente presidente Donald Trump está diante da acusação de incitação à insurreição contra a democracia. Ele construiu o plano lentamente. Começou dizendo em 2016 que a eleição que ele ganhou era fraudada. Muita gente achou que era apenas uma esquisitice. Era movimento feito de caso pensado. Se soa familiar, é porque é o mesmo que se passou aqui em 2018. A lista das similitudes é imensa. Chega a ser monótono.

Os americanos têm a tradição de pessoas armadas. Aqui, Bolsonaro ordenou numa reunião ministerial a liberação do acesso às armas. Até quando o país vai acreditar que são “colecionadores e caçadores”? A caça é proibida no Brasil. Bolsonaro quer uma milícia. Por que tirar poderes dos governadores sobre as polícias e criar o generalato nas PMs? Por que distribuir tantos mimos às Forças Armadas, da ativa ou da reserva? Ora, direis, por ideologia, para seguir a ala ideológica. Não. Não há uma ideologia, há um projeto autoritário em curso. O presidente quer se cercar de vários efetivos armados, legal ou ilegalmente, para intimidar adversários. No dia D e na hora H. Como fez Trump, quando mandou seus mal-intencionados seguidores marcharem sobre o Capitólio. Na celebrada democracia americana foram vistas cenas de enorme selvageria. Os gritos de “enforquem Pence” e “onde está Nancy Pelosi” foram descritos na imprensa americana e entendidos pelo seu valor de face.

Na casa dos conchavos, tudo se passa como se não vissem o que há pelo Brasil. O presidente conduz de forma criminosa a gestão da pior pandemia que já se abateu sobre o país, mas o PT acha que pode se alinhar ao candidato que Bolsonaro defende, e o PDT, também. O PSDB acha que pode continuar em cima desse muro e permanecer nunca decidindo em tempos de decisão. O senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) falou em trincar os dentes. Quando trincarão os dentes? Quando for tarde demais.

Trump conspirou durante quatro anos, e o resultado foi visto por todos. Bolsonaro conspira, e temos visto o resultado. É da natureza de governantes autocratas que chegam ao poder pelo voto na democracia enfraquecer por dentro as instituições que os hospedam. Querem se espalhar pelo organismo, enfraquecê-lo e destruí-lo. Como um vírus oportunista e mortal.


Hélio Schwartsman: O que fazer com as sandices que líderes populistas publicam nas redes sociais?

Mesmo longe de uma boa solução, banimento é preferível à censura estatal pura e simples

Uma das características da onda de extrema direita que varre o mundo é a instrumentalização da liberdade de expressão para propagar notícias falsas e discursos virulentos. A reação de muitos dos democratas tem sido a de defender uma relativização das proteções à liberdade de expressão. Será que é esse mesmo o caminho?

Vale lembrar que, durante ao menos dois séculos, versões razoavelmente fortes da liberdade de expressão desempenharam papel central na consolidação de algumas de nossas melhores instituições, como a democracia e a ciência. Não penso que devamos correr o risco de retrocesso nessas áreas só porque experimentamos um quinquênio de dissabores.

O que fazer, então, com as sandices que líderes populistas como Donald Trump e Jair Bolsonaro publicam em suas redes sociais? A pior solução seria atribuir a algum órgão de governo o poder de decidir o que vai ou não ser publicado. Felizmente, não há muitos defendendo esse caminho.

Uma saída mais popular tem sido pressionar as big techs para que exerçam seu poder de edição e banam ou ao menos reduzam a visibilidade dos discursos mais radicais/violentos. Isso é decerto preferível à censura estatal pura e simples, mas fica ainda longe de uma boa solução.

A reclamação de trumpistas e bolsonaristas de que a exclusão das redes também configura censura procede só em parte. Se o cidadão deve ter a liberdade de dizer o que quer, empresas devem ter a de escolher o que vão ou não publicar. Melhor ainda se elas forem muitas, ideologicamente diversas e se pautarem por regras racionais, claras e previamente anunciadas.

A principal dificuldade desse arranjo é que ele concentra poder demais nas mãos dos hoje poucos atores empresariais. Mas não deixa de ser um avanço trocar o quase impossível paradoxo da tolerância (precisamos tolerar os intolerantes?) pelo problema mais tratável de como lidar com monopólios.