Trump

Demétrio Magnoli: Kim no paraíso

O termo histórico aplica-se efetivamente ao encontro entre Trump e Kim, mas por razões inesperadas

Tudo indica que a Coreia do Norte já tem um novo ministro da Propaganda. É um astro de reality show, só fala inglês e tem cabelo laranja. Donald Trump elevou Kim Jong-un à condição de estadista e parceiro dos EUA, cumulou-o de elogios, firmou um documento de princípios que reproduz a fórmula cunhada pela Coreia do Norte e, finalmente, fez uma inaudita concessão unilateral voluntária.

O termo “histórico”, banalizado pelos veículos de imprensa, aplica-se efetivamente ao encontro entre Trump e Kim –mas por razões inesperadas.

Do texto do comunicado conjunto salta o compromisso com a “desnuclearização da península Coreana”. Utilizada por Kim no seu encontro com o presidente sul-coreano Moon Jae-in, no final de abril, a expressão é uma senha norte-coreana para exigir a remoção do chamado “guarda-chuva nuclear” americano, que protege a Coreia do Sul e a retirada das tropas dos EUA estacionadas no país aliado desde a Guerra da Coreia (1950-53).

A exigência ritual americana de “desmantelamento completo, verificável e irreversível do arsenal nuclear da Coreia do Norte” não aparece no comunicado. Kim não cedeu um só milímetro; Trump recuou quilômetros.

Mais de quatro décadas atrás, na valsa da reaproximação dos EUA da China, Nixon não transformou os direitos humanos numa muralha contra a diplomacia –mas não renunciou ao dever de mencioná-los.

No Comunicado de Xangai, a declaração conjunta sino-americana de 1972, os pontos de acordo estavam precedidos por um elenco de divergências –entre elas, as referências americanas à “aspiração pela liberdade” e uma defesa das “liberdades individuais”.

Trump, em contraste, assinou um documento que silencia sobre os direitos humanos, e qualificou o ditador norte-coreano como “um homem muito talentoso” que “ama profundamente seu país”. O país amado por Kim é uma tirania feroz que encarcera mais de 80 mil dissidentes em campos de trabalho forçado. No Brasil, coerentemente, os adeptos incondicionais de Bolsonaro são, também, ardorosos admiradores de Trump.

Numa insólita entrevista concedida após o encontro, o presidente americano escolheu os adjetivos “provocativos” e “inapropriados” para se referir aos exercícios militares conjuntos conduzidos anualmente pelos EUA e a Coreia do Sul, ecoando termos usados rotineiramente pela própria Coreia do Norte. Das palavras, passou aos atos, prometendo suspendê-los de imediato.

A ruptura da aliança militar entre os EUA e a Coreia do Sul é uma meta estratégica da Coreia do Norte –e da China. Quando, em troca de nada, Trump anuncia a suspensão dos exercícios conjuntos, está dizendo que os EUA desprezam os compromissos geopolíticos assumidos com seus aliados. Os sul-coreanos e os japoneses interpretarão a mensagem como um alerta de que a segurança oferecida pela “Pax Americana” tem seus dias contados.

O espetáculo midiático protagonizado por Trump em Singapura é o maior golpe jamais desferido contra o regime de não proliferação nuclear. “A posse de um arsenal nuclear compensa –persiga-o até o fim, custe o que custar”– eis a lição dele emanada.

Iraque e Líbia: os regimes que abdicaram da busca de armas nucleares foram derrubados. Irã: o regime que congelou seu programa nuclear, submetendo-se a inspeções intrusivas, sofre a reimposição de sanções americanas. Já a Coreia do Norte, que testou mísseis intercontinentais e uma bomba de hidrogênio, ganhou o estatuto de interlocutor privilegiado da maior potência mundial.

A caminho de Singapura, Trump converteu a reunião de cúpula do G7 em palco de guerra verbal, anunciou a cobrança de tarifas protecionistas contra os aliados prioritários dos EUA e cobriu de insultos o chefe de governo do Canadá. O francês Macron ensaiou até a proposta de redução do G7 a G6. O paraíso de Kim corresponde ao inferno da ordem ocidental do pós-guerra.

* Demétrio Magnoli é doutor em geografia humana e especialista em política internacional.


Marcos Troyjo: Trump desmonta mundo projetado por Churchill

Sob comando do presidente, EUA descortinam era de particularismo e relativismo moral

Já é extensa a coleção de mudanças que Donald Trump impôs ao papel dos EUA no cenário global. Dado o imenso peso relativo norte-americano, altera-se, por conseguinte, a própria ordem internacional.

Consciente ou não, com menor ou maior grau de intencionalidade, Trump vai aos poucos desmontando uma configuração mundial estruturada ao longo dos últimos setenta anos. E um dos principais projetistas do mundo que se está desmanchando foi Winston Churchill.

Por mais de sete décadas, os EUA capitanearam um mundo em grande medida delineado por Churchill em seu discurso “Tendões da Paz” (“Sinews of Peace”), mais conhecido como “Discurso da Cortina de Ferro”, proferido no Westminster College, no estado norte-americano do Missouri, em março de 1946.

Tal pronunciamento ofereceu aos EUA uma “moldura política” (“policy framework”, em inglês). E, em seu interior, é claro que a trajetória de política externa e visão de mundo dos EUA de Harry Truman a Barack Obama apresentou oscilações de estilo e foco.

Truman e Eisenhower foram engenheiros dos movimentos inaugurais da Guerra Fria. Kennedy e Johnson buscaram liderança americana num mundo que àquela altura parecia fadado ao conflito Leste-Oeste por muito tempo.

Nixon, Reagan e Bush sênior tentaram —e conseguiram— quebrar a espinha dorsal da União Soviética e assim “vencer” a Guerra Fria. Bush júnior inventou a Guerra ao Terror e aplicou a doutrina dos ataques preventivos (“preemptive”).

Carter, Clinton e Obama puseram ênfase nos EUA como “superpotência benigna” —protagonistas, sim, mas de um sistema multilateral baseado em regras.

Muitas dessas alternâncias respondem a conjunturas específicas. Em seu todo, no entanto, há uma viga mestra, um “conceito estratégico abrangente”, como descreveu Churchill em seu discurso do Missouri, na certeza de que a expressão agradaria os formadores de política externa e de defesa dos EUA.

Tal conceito teve menos que ver com a Cortina de Ferro ou a ameaça expansionista do comunismo soviético. Tampouco foi algo direcionado apenas a aplicações militares. O objetivo abrangente era “nada menos que a segurança e bem-estar, a liberdade e o progresso de todos os lares e famílias de todos homens e mulheres de todas as terras”.

Homem experimentado e do mundo, Churchill era cheio de imperfeições —e nada sacrossanto. Na condução quotidiana dos assuntos de estado, fez barbeiragens como ministro da Fazenda (“Chancellor of the Exchequer) ou primeiro lorde do Almirantado. Suas posições relativas ao colonialismo britânico ou ao voto feminino são para lá de questionáveis. Em nome de objetivos maiores, como derrotar o Terceiro Reich, não hesitou em costurar alianças com a União Soviética, regime que abominava.

Encontro do G7 no Canadá 

Assim, Churchill estava longe de ser um idealista, em seu discurso do Missouri, no entanto, parece ter encontrado fórmula em que, defendidos os cânones ocidentais (bandeira cuja liderança deveria caber aos EUA), todos poderiam ganhar.

Nessa linha, Churchill sugeria ao menos duas diretivas. A primeira: há uma família de nações pautadas por valores fundamentais do Ocidente: a democracia representativa, o estado de direito, a livre iniciativa; alguma noção, enfim, de civilização próspera e livre. A segunda, tais valores devem permanecer válidos não importa o antagonista ou a conjuntura. Não devem portanto esmorecer se o adversário for o fascismo, o comunismo ou o terrorismo.

Fica natural assim entender muito da pregação de Churchill que emerge de tais vetores. A formação de uma aliança ocidental, o valor de uma Europa Unida, o fortalecimento de um sistema multilateral a partir de uma efetiva Organização das Nações Unidas.

Essa visão de Churchill —concebida por indivíduo com amplo treinamento no que ele próprio denominava “a guerra como escola de aperfeiçoamento”— é menos “realista” e mais “moral”.

No campo semântico das relações internacionais, “realismo” é ortodoxamente compreendido como o poder “nu e cru”. O mundo é um tabuleiro em que, quando uns ganham, outros perdem —um “jogo de soma zero”. Aqui, a única régua ética é perseguir seus próprios interesses, mensurados em termos de obtenção de mais poder ou riqueza.

O Ocidente como moral —o projeto de Churchill— estima não apenas a superioridade de valores como democracia representativa, estado de direito e livre iniciativa, mas também sua ambicionada “universalidade”.

Na segunda metade dos anos 1940, Churchill enxergava os EUA no “pináculo do poder mundial”. Os EUA deveriam portanto liderar a construção de um mundo sustentado sobre os pilares ocidentais.

Na atual fase dos EUA presididos por Trump, abre-se mão de tal ambição de universalidade. Descortina-se uma era de particularismo e relativismo moral. Nela, talvez o próprio conceito de Ocidente tenha perdido a validade.

Vivemos uma trama em que o primeiro-ministro do Canadá é “ofensivo”. O ditador da Coreia do Norte, “talentoso”. Um mundo em que as instituições multilaterais são inclinadas a sempre constranger os EUA, fazendo com que Washington sempre saia perdedor de contenciosos arbitrados multilateralmente.

Encontro entre Donald Trump e Kim Jong-un 

Trata-se de cenário em que alianças estratégicas —como a Otan— têm de ser revistas. E onde Duterte, Erdogan, Putin ou Kim podem ser considerados “grandes líderes para seus povos”.

O estranhamento dos EUA no G7, a fadiga do sistema multilateral, a equivalência moral de democracia e autocracia, o renovado mercantilismo comercial e o redesenho do mapa geopolítico a partir de noções como balança de poder ou esferas de influência —são todos traços da presente conjuntura global.

Talvez tais marcas não prevaleçam ao longo do tempo, evitando assim que se lancem bases firmes para uma nova ordem internacional em que a ideia de Ocidente não seja relevante. Ainda assim, é inegável que, por ora, o mundo projetado por Churchill está se despedaçando.

* Marcos Troyjo é diplomata, economista e cientista social, é diretor do BRICLab da Universidade Columbia


O Estado de S. Paulo: Após cúpula histórica, Trump diz que interromperá ‘jogos de guerra’ na Península Coreana

Em entrevista coletiva, o presidente americano afirmou que Kim iniciou um processo de destruição de uma grande instalação de testes de mísseis, mas não especificou sua localização

WASHINGTON - Em entrevista coletiva realizada em Cingapura nesta terça-feira, 12, após a histórica cúpula com o líder da Coreia do Norte, Kim Jong-un, o presidente dos EUA, Donald Trump, anunciou que seu país irá interromper "seus jogos de guerra" na Península Coreana. Os dois se reuniram para discutir a desnuclearização da região, no primeiro encontro já realizado entre líderes dos dois países. Ao final da reunião, eles se sentaram em frente a jornalistas e assinaram um documento de cooperação.

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Trump destacou que encerrará as manobras militares conjuntas com a Coreia do Sul, mas que ainda não tem previsão para reduzir sua ampla presença militar no país. A suspensão dessas atividades culminará em uma "grande economia" para os EUA, de acordo com o líder americano, que qualificou esses exercícios como "provocativos". "Enquanto negociamos um acordo global, muito completo, acredito que não é apropriado realizar manobras militares."

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O líder americano ressaltou que convidará Kim a visitar a Casa Branca "no momento apropriado" e que o norte-coreano já aceitou o convite. Além disso, afirmou que está aberto a visitar Kim um dia em Pyongyang.

O encontro de Donald Trump e Kim Jong-un em Cingapura

O americano também disse que Kim iniciou um processo de destruição de uma grande instalação de testes de mísseis, mas não especificou sua localização. Ele afirmou que os detalhes sobre este local não estão na declaração conjunta que os líderes assinaram após quase cinco horas de conversas. Para Trump, a destruição desta instalação é uma "grande coisa".

O republicano destacou que Pyongyang tem um "arsenal significativo" de armas nucleares, e que o encontro com Kim deveria ter sido realizado há cinco anos. O presidente americano ressaltou ainda os esforços feitos para pressionar Kim a se livrar desses armamentos.

As negociações com o líder norte-coreano foram "francas, diretas e produtivas", segundo o americano, que acrescentou que abordou a questão dos direitos humanos durante o encontro histórico. Além disso, ele garantiu que as sanções contra Pyongyang prosseguem neste momento. "As sanções serão suspensas quando tivermos certeza de que as armas nucleares não serão mais eficazes", disse.

Trump afirmou ainda que espera que a Guerra da Coreia termine em breve. "Agora podemos ter a esperança de que termine em breve", disse ele, ao recordar que as hostilidades do conflito (1950-1953) terminaram com a assinatura de um armistício e não um tratado de paz.

O republicano afirmou que os EUA não têm muitas informações obtidas por órgãos de inteligência na Coreia do Norte, mas "temos o suficiente para saber que o que eles têm é muito significativo". Trump disse que Kim entende o que Washington tem pressionado durante as conversas e acredita que ele "fará essas coisas".

Ao fim da entrevista coletiva, Trump destacou que "provavelmente precisaremos de outro encontro", ou ao menos uma segunda reunião, com a Coreia do Norte enquanto discutem o compromisso de Kim com a desnuclearização de seu país.

Ainda assim, o líder americano disse que ele e Kim conseguiram abordar mais assuntos do que o esperado durante a cúpula. "Fomos muito mais longe do que eu poderia imaginar."

G-7

Trump afirmou que a reunião do G-7 realizada em Quebec foi boa, apesar das disputas, mas advertiu que as declarações do primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, custarão caro ao seu país. "Tive uma boa reunião com o G-7", disse o americano, ao rebater os comentários de que o encontro foi um fracasso. As declarações do premiê custarão "muito dinheiro" ao Canadá, completou.

Reações

O presidente sul-coreano, Moon Jae-in, qualificou o acordo assinado em Cingapura como um "acontecimento histórico que acaba com a Guerra Fria". "O acordo de Sentosa de 12 de junho ficará registrado como um evento histórico que ajudou a derrubar o último legado que restava da Guerra Fria na Terra", declarou ele após a reunião entre Trump e Kim.

O governo da China, maior aliado de Pyongyang, celebrou a cúpula e fez um novo apelo à "desnuclearização total" de seu vizinho. "Hoje, o fato de que os principais dirigentes dos dois países se sentam juntos para negociações de igual para igual tem um significado importante e constitui o começo de uma nova história", afirmou o ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi.

"A China celebra e dá seu apoio", declarou o ministro ao ser questionado se o país sentia estar marginalizado pela aproximação entre Washington e Pyongyang. "É um objetivo que esperávamos e pelo qual trabalhamos."

Wang defendeu uma "desnuclearização total", tal como exige o governo americano. "Ao mesmo tempo é necessário um processo de paz para a península, para resolver as preocupações razoáveis da Coreia do Norte em termos de segurança", afirmou o ministro chinês. "Ninguém pode duvidar do papel importante e único desempenhado pela China. E este papel continuará", prometeu.

A União Europeia (UE) qualificou a cúpula como "passo crucial", que envia um "claro sinal" em direção à desnuclearização. "Esta reunião foi um passo crucial e necessário para aproveitar os avanços positivos obtidos com as relações intercoreanas" até esta data, indicou a chefe da diplomacia europeia, Federica Mogherini. / EFE, AP e AFP


Míriam Leitão: Protecionismo primitivo

O livre comércio é uma utopia, mas existem formas mais sofisticadas de criar barreiras do que as escolhidas pelo governo Donald Trump. Ele é primitivo também nisso. Ao criar cotas para a exportação brasileira de semi-acabados, está tirando matéria-prima da sua própria indústria, ao barrar o produto brasileiro pode diminuir a exportação do carvão americano. Trump não entendeu o básico.

Amaneira como se encerrou a negociação da indústria brasileira de aço e alumínio exibe a truculência do governo americano. O Brasil estava negociando com argumentos e dados. A tese era a de que nós não ameaçamos a segurança nacional americana com nossas exportações. Até que na quinta-feira à noite, o Brasil foi comunicado de que as condições seriam impostas.

Para o aço, o volume máximo permitido será a média dos últimos três anos. E com um redutor de 30% quando for produto acabado, ou seja, com maior valor agregado. É aceitar ou pagar 25% de sobretaxa. A indústria considerou que esse valor faria o país perder o mercado americano e aceitou as cotas. A exigência de cotas é uma ilegalidade do ponto de vista da Organização Mundial do Comércio, mas tudo o que acontecerá se o governo brasileiro se queixar à OMC é um longo painel, ouvindo as partes, e por fim, o direito de retaliar. No caso do alumínio, o setor aceitou a sobretaxa de 10%.

Há uma integração entre Brasil e Estados Unidos em carvão e aço. O Brasil importa US$ 1 bilhão por ano de carvão dos Estados Unidos. E, do que exporta, 80% são produtos semi-acabados, ou seja, matéria-prima para a siderurgia americana. Se o governo Trump quer que a siderurgia dos Estados Unidos cresça mais, terá que importar o aço não comprado no Brasil, de outro país. Do contrário, a sua indústria ficará com limitação de produção.

O protecionismo, ao barrar as correntes de comércio, reduz a atividade econômica nos países. A ideia de que “importação é prejuízo” e que “exportação é lucro” é uma visão antiga. O Brasil poderia considerar que está tendo um enorme prejuízo com o comércio com os Estados Unidos. O governo calcula que, nos bens e serviços, o país acumulou em 10 anos déficit de US$ 250 bilhões com os americanos. Na balança comercial, o Brasil tinha grandes saldos positivos no início da década passada, mas o desempenho foi minguando no governo Lula até inverter, em 2009. De lá para cá, a balança acumula déficit de US$ 46,3 bi com os EUA, mesmo após o superávit de US$ 2 bi em 2017.

O protecionismo no comércio de aço sempre existiu, e o arsenal tem tarifas, cotas, sobretaxas, salvaguardas. Mas desta vez o governo americano nem fez esforço para dar ares de legalidade ao processo. Em agosto do ano passado, os EUA comunicaram que estavam iniciando uma investigação com base na seção 232 do acordo internacional de comércio, para verificar a existência de dano à indústria local. Daí partiu para dizer que, excluindo-se o Canadá e o México, todos os países teriam barreiras ao comércio. Incluiu o Brasil numa lista de 11 países que estariam fazendo triangulação de produtos da China. O Brasil provou que não está fazendo esse repasse do aço chinês. Foi então colocado na lista dos países como Argentina, Austrália, Coreia do Sul e União Europeia, com os quais eles negociariam. E mostrou que deveria ter um tratamento diferenciado por todos aqueles argumentos, mas na quintafeira os EUA avisaram que estavam encerrando unilateralmente a negociação.

O mundo está com um grande excedente de capacidade de produção, de mais de 600 milhões de toneladas, e para o Brasil manter o nível de ocupação, que está em 68% da capacidade, tem que aceitar a limitação. Até porque os Estados Unidos recebem um terço de tudo o que o Brasil exporta.

Diante da dificuldade, a indústria começou a pedir o que sempre quis, algum subsídio através do programa chamado Reintegra. Essa não é a solução, principalmente num momento de penúria nos cofres públicos e depois da grande alta das transferências de recursos fiscais para empresas. Os exportadores alegam que o Reintegra não é subsídio e sim a devolução de impostos remanescentes na cadeia produtiva. É um grande e ocioso debate. No ano passado, antes de tudo isso acontecer, o setor já pedia um aumento do Reintegra.

Não se combate um mal com outro mal. Um ato explícito de protecionismo não pode ser compensado com uma decisão velha de subsidiar a produção. Ao governo brasileiro resta protestar na OMC. E torcer para que os importadores de produtos brasileiros nos EUA mostrem o quanto estão perdendo.


Míriam Leitão: Inimigo meu

Sempre haverá tensão entre Estados Unidos e China, mas o que está acontecendo é conjuntural e determinado pelo pensamento limitado do presidente Trump. Não é a reedição da Guerra Fria, porque, ao contrário da relação EUA-URSS, as duas potências agora são interdependentes. Ontem a China avisou que não aceitará duas exigências do governo Trump e isso elevou o temor de uma guerra comercial.

Mesmo sendo temporário e conjuntural, preocupa, porque um conflito comercial entre as duas maiores potências reduz o crescimento mundial e não favorece ninguém. Pode ajudar pontualmente o Brasil pela elevação dos preços de algumas commodities ou da demanda por algum produto, mas a tensão entre China e Estados Unidos não estimula a economia global.

O jornal “The New York Times” trouxe ontem a informação de que os chineses pretendem endurecer em dois pontos impostos pelo presidente Donald Trump: a obrigatoriedade de cortar US$ 100 bilhões no déficit comercial entre os dois países, e a redução dos estímulos da política industrial chinesa em favor de novas tecnologias como inteligência artificial, semi-condutores, carros elétricos e aviões. Depois de um seminário de três dias entre autoridades chinesas e consultores, a decisão foi de não aceitar as duas imposições.

Dizer “não” antes de começar uma negociação — a reunião bilateral será esta semana — é um ato de esperteza. Mas de qualquer maneira reduzir o comércio nessa proporção e ainda interromper um projeto local é mesmo difícil.

De acordo com dados do governo americano, nos dois primeiros meses de 2018, o déficit comercial com a China chegou a US$ 65,2 bi, ou 14,5% a mais que no mesmo período de 2017. O ano passado havia fechado com um rombo de US$ 375,2 bi. O que Trump propõe é uma redução mandatória por parte da China desse déficit em US$ 100 bi. Isso o levaria de volta aos níveis de 2010, quando os americanos venderam US$ 91,9 bi e compraram US$ 364,9 bi da China. Em 2017, a corrente de comércio estava em outro patamar. Mais integrados ao parceiro asiático, os EUA exportaram US$ 130,3 bi e importaram US$ 505,5 bi da China.

A visão de Trump é de déficit como prejuízo do país, como se fosse uma empresa. Na verdade o comércio tem inúmeros lados, e a importação de produtos chineses tem toda uma rede de interesses dentro da economia americana. A mais óbvia delas é a inflação baixa mesmo em período de retomada do crescimento.

Os maiores volumes das exportações americanas vêm exatamente de produtos de maior valor agregado e alta tecnologia. OS EUA embarcaram US$ 16,2 bi em aviões e equipamentos aéreos para o parceiro asiático em 2017. A exportação de veículos de passageiros somou US$ 10,5 bi. Fabricantes americanos venderam US$ 6 bi em semicondutores para a China, mais US$ 5,4 bi em máquinas industriais. Entre as commodities, os destaques foram os US$ 12,3 bi em soja e os US$ 4,4 bi em petróleo.

Da China, os EUA compraram US$ 70,3 bi em celulares e outros bens residenciais em 2017. No topo da lista das importações também aparecem os US$ 45,5 bi em computadores e os US$ 31,6 bi em acessórios para computadores. Outros US$ 33,4 bi foram gastos em equipamentos de tecnologia, mais US$ 26,7 bi em brinquedos e produtos esportivos e US$ 24,1 bi em vestuário. Os produtos de aço e ferro são pouco relevantes na lista, somaram US$ 4,9 bi.

O governo chinês argumenta que o desequilíbrio nas contas entre os dois países é provocado pela diferença da taxa de poupança. Os chineses poupam dois quintos da sua renda e os Estados Unidos são uma sociedade consumista. O governo americano diz que o déficit é provocado por práticas desleais de comércio. Provavelmente, os dois têm razão. Os americanos não poupam, e a China subsidia suas exportações, os bancos estatais fornecem empréstimos baratos para as empresas, o custo de mão de obra é baixo. Mas Trump está estimulando ainda mais o consumo, e o consumidor americano se aproveita dos subsídios chineses quando compra produtos com preço baixo. É difícil separar as duas economias porque elas já se misturaram demais ao longo dos anos de intenso comércio bilateral e investimentos chineses nos Estados Unidos.


Arnaldo Jardim: Jogo bruto no comércio internacional

O Brasil tem uma pequena participação no comércio internacional, bem abaixo de sua dimensão como país em desenvolvimento.

Padecemos pela falta de agressividade da diplomacia brasileira nas organizações internacionais (OMC e outras), de sequelas da visão “nacionalista” que nos levou ao isolamento, e de ação empresarial mais articulada que busque estabelecer relações de médio e longo prazo.

Alias, mais do que isto, carecemos de um Projeto Nacional que contemple uma visão de como deve ser nossa inserção internacional, que defina por exemplo quais serão os setores em que, tendo vantagens competitivas e comparativas, possamos ter um protagonismo mundial e daí definirmos uma inserção no comércio mundial.

De qualquer forma, a exportação brasileira ganhou uma janela de grande oportunidade quando China e Estados Unidos travam uma acirrada guerra comercial, que inclui listas de produtos que serão tarifados, declarações acaloradas e desvalorização cambial chinesa como arma.

Trump anunciou em 22 de março que seu governo iria impor tarifas, que somariam US$ 50 bilhões, sobre produtos chineses. A intenção é punir a China que “se apropriou incorretamente de propriedade intelectual norte-americana” – o que o governo chinês nega.

Trump na realidade busca reverter o colossal déficit comercial dos Estados Unidos com a China, de US$ 375,2 bilhões em 2017, e assim aciona suas medidas protecionistas. Em resposta, o país asiático elevou, em até 25%, as tarifas sobre 128 produtos norte-americanos, que vão desde a carne suína congelada e vinho a certas frutas e nozes.

Tomara que as duas maiores potências mundiais se entendam e garantam o equilíbrio econômico mundial. Mas enquanto este entendimento não chega, é hora de mostrarmos nossa capacidade competitiva e ampliar nossas exportações, nossa participação no comércio internacional.

O Brasil pode ampliar a exportação de comodities, de produtos como algodão, milho e soja. No caso da soja vendida para a China, a demanda deve ser ainda maior com a quebra de safra de outro importante fornecedor do grão, a Argentina, os preços assim estão mais compensadores.

A soja é o principal produto da nossa pauta de exportação, este ano devemos exportar US$ 28,8 bilhões de dólares, ante US$ 25,7 bilhões no ano passado. Os chineses compraram cerca de 54 milhões de toneladas de soja brasileira de um total de 68 milhões que o Brasil exportou em 2017. A China é o principal destino das exportações de soja do Brasil, quase 80%.

Ao todo, os chineses compraram mais de 95,5 milhões de toneladas de todas as origens em 2017. É um número que o Brasil não tem como suprir por completo, mas poderá ter uma participação ainda maior.

A produção de soja do Brasil em 2018 deve atingir um recorde de 117,4 milhões de toneladas, permitindo ao País embarcar neste ano o maior volume da commodity em toda a história. A nova previsão supera tanto as 114,7 milhões consideradas em março quanto as quase 114 milhões do ano passado, como mostram dados da Associação Brasileira da Indústria de Óleos Vegetais (Abiove).

Com o aumento da safra, os embarques foram estimados em 70,4 milhões de toneladas, superando a previsão anterior (68 milhões) e o recorde do ano passado, de 68,15 milhões. É o reflexo da janela que se abriu com a Argentina sendo menos agressiva, e os preços melhores, com o fortalecimento do mercado de prêmio da soja brasileira sobre a cotação de Chicago.

No caso do milho, também houve reajustes positivos tanto para a primeira safra, já em colheita e que também tem apresentado rendimentos satisfatórios, quanto para a segunda safra, cujo plantio foi concluído recentemente e deve alcançar 11,54 milhões de hectares, acima dos 11,39 milhões de março e perto dos 12,1 milhões de 2016/17.

Em um momento comercialmente tão oportuno, é preciso que o Brasil se fortaleça como o grande fornecedor de alimentos, fibras e energia que é.

* Arnaldo Jardim é deputado federal pelo PPS-SP


Monica De Bolle: A arte da guerra

É hora de o Brasil explorar setor a setor quais podem vir a perder ou a ganhar com o "guerra" entre China e EUA
“Pareça fraco quando está forte, e forte quando está fraco”, recomenda Sun Tzu. Trump esbraveja e tuíta, seu exército de Brancaleone comandado por Peter Navarro, o assessor da presidência para assuntos comerciais, ameaça e esperneia. Enquanto isso, a China, com alguma discrição, anuncia singela retaliação às sobretaxas para o aço e para o alumínio. Os 128 produtos da lista divulgada nesta semana pelo governo chinês equivalem a modestos US$ 3 bilhões em valor exportado da China para os EUA, a maior parte corresponde à venda de produtos agrícolas. Carne suína, macadâmias, gengibre, amêndoas, frutas secas, por aí vai. Cada um desses produtos, a carne suína inclusive, terá aumento das alíquotas tarifárias com impacto relativamente mensurado sobre a inflação na China. Contudo, foram escolhidos a dedo pelos chineses pois podem provocar estragos nada desprezíveis em regiões que votaram maciçamente em Trump.
Sobretaxas na carne suína afetam produtores de Iowa; no gengibre, produtores em distritos específicos de Wisconsin; nas amêndoas e nas frutas secas, produtores de regiões da Califórnia onde Trump ganhou de Hillary em 2016. Por enquanto, a China decidiu não tocar na soja, ou nos aviões da Boeing, dois dos principais produtos que compra dos Estados Unidos. Em 2017, a China comprou mais soja do Brasil do que dos EUA – cerca de 51 milhões de toneladas de produtores brasileiros contra 33 milhões de toneladas de produtores norte-americanos. Brasil e Estados Unidos são os maiores produtores mundiais de soja, a China o principal país consumidor do produto, que lá é usado para preparar óleo de cozinha e ração para animais. A soja brasileira vem ganhando espaço no mercado chinês desde 2012 devido ao maior conteúdo de proteína do que a soja americana. A soja brasileira salvou o PIB em 2017.
Nos EUA, a soja é produzida em Iowa, Nebraska, Indiana, Ohio, Estados onde Trump bateu a candidata democrata com facilidade. Partes e componentes das aeronaves da Boeing são produzidos praticamente em todos os Estados americanos. Em janeiro desse ano, quando Trump anunciou tarifas salgadas sobre painéis solares – a China é o país que mais vende painéis para os EUA – o governo chinês ameaçou sobretaxar a soja e os aviões da Boeing. Por enquanto, ficou só na ameaça. Contudo, logo após o anúncio das sobretaxas no aço e no alumínio, a cruzada trumpista contra a China não parou. O Departamento de Comércio anunciou que irá propor sobretaxas para diversos produtos chineses no valor de US$ 60 bilhões como resultado das investigações recém-concluídas a respeito de práticas comerciais desfavoráveis promovidas pela China. Tais investigações estão previstas da seção 301 do Trade Act de 1974. A lista de produtos, recém-divulgada, inclui armas de fogo, carrinhos de golfe, e aço.
Evidentemente, a China não deve resistir à tentação de lançar a munição mais pesada – a soja e os aviões da Boeing – nessa próxima batalha. “Se conhece o inimigo e a si mesmo, não é necessário temer o resultado de cem batalhas.” Claramente, a China conhece bem tanto a si mesma, quanto os instintos e pontos fracos de trumpland em ano de eleições legislativas para lá de complicadas.
Como poderia o Brasil ser afetado pela estratégia olho por olho que ora parece se delinear entre as duas principais economias do mundo, e os dois principais parceiros comerciais do País? De um lado, a incerteza associada ao aumento das tensões entre a China e os EUA começa a estremecer mercados e a tensionar os cenários mais otimistas que caracterizavam as perspectivas para a economia mundial até recentemente. Qualquer descarrilamento da economia mundial repercutiria negativamente sobre a insípida recuperação brasileira. Por outro lado, há produtos como a soja que poderiam se beneficiar enormemente caso a guerra comercial se intensifique nas próximas semanas. Embora o Brasil tenha de manter certa neutralidade suíça em relação à China e aos EUA para o seu próprio bem, sobretudo enquanto negocia isenções permanentes para as sobretaxas de aço, é hora de seguir as recomendações de Sun Tzu: “Aquele que é prudente e espreita um inimigo que não o é será vitorioso”.
Ou seja, é hora de o Brasil explorar setor a setor quais podem vir a perder ou a ganhar com o fogo cruzado, além de traçar a estratégia para o maior engajamento global com outros possíveis parceiros comerciais. O momento é oportuno para abrir a economia. Não vamos desperdiçá-lo.
*Monica de Bolle é economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University

Luiz Carlos Azedo: O regresso

O ministro Dias Toffoli liberou para julgamento a ação que discute restrição ao foro privilegiado no STF, o que pode jogar para a primeira instância os políticos envolvidos na Lava-jato

Uma das características negativas do processo eleitoral em curso — sim, porque as pré-campanhas já começaram — é o caráter regressivo da polarização entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o deputado federal Jair Bolsonaro (PSL-RJ), cujos discursos parecem sair das páginas dos jornais dos anos 1960. Se fosse apenas nostalgia, como alguns imaginam, não haveria nenhum risco para a sociedade. Mas acontece que são projetos de poder que se contrapõem radicalmente, ambos de vieses nacionalista e populista, um à direita e outro à esquerda. Ambos anacrônicos em relação às necessidades de integração do Brasil ao mundo globalizado, cosmopolita e democrático, principalmente à revolução digital em curso, mas perfeitamente factíveis se olharmos para o que está acontecendo na política mundial.

Numa cena típica dos anos de Guerra Fria, um ex-espião da antiga KGB (que pode ter sido agente duplo do MI6, o serviço secreto britânico) e sua filha sofreram um atentado com o gás nervoso novichok na cidade de Salisbury, na Inglaterra, o que provocou a mais séria crise diplomática entre Rússia e Ocidente desde a anexação da Crimeia, em 2014. Em solidariedade ao governo britânico, que expulsou 22 diplomatas russos, EUA, Canadá, Austrália, 23 países europeus e a Otan (aliança militar ocidental) também determinaram a saída de diplomatas russos de suas dependências.

A reação do governo britânico levou a que esses países expulsassem mais de 140 diplomatas russos em 48 horas. Às vésperas da Copa do Mundo, a Rússia corre o risco de reviver a crise das Olimpíadas de Moscou, que foram boicotadas pelos Estados Unidos e mais 59 países aliados, por causa da invasão do Afeganistão pela antiga União Soviética (hoje, são os americanos e seus aliados que andam por lá). Ainda bem que o histriônico presidente norte-americano Donald Trump e o ditador da Coreia do Norte, Kim Jong-Un resolveram conversar. E o recém-eleito Vladimir Putin, o novo czar russo, resolveu tirar por menos a crise diplomática. Recentemente, arreganhou os dentes ao anunciar novos misseis balísticos intercontinentais inteligentes, capazes de despistar as defesas da Otan. É o preço a pagar.

O cenário reflete uma disputa pelo controle do comércio mundial, cujo eixo deslocou-se do Atlântico para o Pacífico. No esforço de reformas que possibilitem a modernização da economia, os regimes autoritários da Ásia, liderados pela China e Cingapura, levam enorme vantagem em relação às potências tradicionais do Ocidente, onde a democracia representativa está em crise. A Rússia segue a mesma receita, enquanto França, Itália, Espanha, Inglaterra e Alemanha sofrem as consequências políticas do agravamento das desigualdades pela globalização. Em todos esse países, uma reação xenófoba alimenta a reação conservadora ao desemprego estrutural e à chegada de imigrantes do Norte da África e do Oriente Médio. O regresso não é um fenômeno isolado. Sua maior conquista foi a eleição de Trump. No Brasil, as eleições parecem não estar nem aí para esses problemas, como se nada tivessem a ver com o nosso futuro. Mas têm.

Judicialização

A judicialização da política também impressiona. Vejam as notícias de ontem: a família do relator da Operação Lava-Jato no Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Edson Fachin, está ameaçada; a Segunda Turma do STF autorizou a prisão domiciliar do ex-presidente da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro Jorge Picciani; o ministro Dias Toffoli autorizou o ex-senador Demóstenes Torres a disputar as eleições para o Senado, suspendendo sua inelegibilidade; e. também liberou para julgamento a ação que discute restrição ao foro privilegiado na Corte, o que pode jogar para a primeira instância os políticos envolvidos na Lava-jato. O foro por prerrogativa de função garante presidente, ministros, senadores e deputados federais serem julgados somente pelo Supremo. O julgamento depende de a presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, pôr a ação na pauta da plenária. Essas decisões são música aos ouvidos dos políticos enrolados na Operação Lava-Jato.

Esse fenômeno da judicialização da política não é uma jabuticaba. Existe em razão da construção do Estado de bem-estar social após a II Guerra Mundial, que consagrou os direitos sociais com uma centralidade que rivaliza com os chamados direitos civis e a democracia representativa. As soluções políticas, no âmbito do Executivo ou do Legislativo, por essa razão, acabam gerando demandas na Justiça. No Brasil, os partidos de oposição são contumazes nesse tipo de recurso, dando ainda mais protagonismo ao Ministério Público e ao Judiciário. Agora, porém, a agenda é a crise ética, por causa da corrupção na política. Mudou-se a natureza da judicialização, que passou a ser um vetor decisivo nas eleições deste ano.

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-o-regresso/


Dorrit Harazim: Com bússola própria

Trump parece assumir estar cansado de ouvir pareceres de conselheiros, entediado com assessores econômicos, jurídicos

Enfileirados no Salão Oval da Casa Branca sob o monumental retrato de George Washington, ali pendurado desde 1800, eram quase 20 os selecionados por Donald Trump para compor sua tropa de choque. Naquele 22 de janeiro de 2017, a cerimônia de juramento coletivo rendeu fotos e fatos.

“Eles formam um time de primeira, vão desempenhar suas funções de forma fantástica. Tenho grande orgulho deles”, anunciara o também calouro 45º presidente. Trump acrescentou um gracejo para consumo dos jornalistas e, portanto, para divulgação nacional: “Vocês ficarão sabendo por mim mesmo se a equipe não trabalhar direito, OK? Vou elogiar se forem bons; e se não forem, eu mesmo vou informar vocês”. Bons tempos aqueles, para os retratados.

Há poucos sobreviventes. Depois de 13 meses de mandato e um estilo gerencial sem cerimônias, de descarte humano, Donald Trump chegou aonde nenhum de seus antecessores ousara chegar: fez praticamente tábula rasa. Está, enfim, mais à vontade para consertar o mundo. “Eu, sozinho, e só eu, consigo resolver”, garantira a seu eleitorado.

Parece assumir estar cansado de ouvir pareceres de conselheiros, entediado com assessores econômicos, jurídicos, diplomáticos ou de comunicação que tenham ideias próprias. Prefere ser seu próprio secretário de Estado, mesmo tendo nomeado um novo semanas atrás. Ao mesmo tempo em que se decepciona com quem está no seu entorno, procura com voracidade por caras novas. O que é comumente descrito como “caos na Casa Branca”, é definido por ele como “uma grande energia renovadora”, um saudável estado de conflito que lhe permite tomar decisões acertadas.

Entre demissionários exaustos, demitidos por tuíte, exonerados com escolta, ou recauchutados para outra função, já passaram pela porta giratória da Casa Branca 49% do time de excelência do juramento coletivo de 2017. Enquanto a maioria de seus antecessores precisou de dois mandatos para promover rotatividade tão alta, a Casa Branca de Trump está em faxina geral desde a inauguração. O atual ocupante não quer ver diluída por Washington a plataforma com que foi catapultado do 26º andar de seu QG na Quinta Avenida para a capital da maior potência mundial.

Esta semana, Trump empossou seu terceiro assessor de Segurança Nacional — o cargo de gabinete mais estratégico para questões de guerra e paz. H.R. McMaster, o general três estrelas defenestrado, havia substituído outro três estrelas, da reserva, pouco mais de um ano atrás — Michael Flynn ficara apenas 24 dias no cargo e hoje responde a processo por perjúrio ao FBI. O novo ocupante do posto é rombudo, para dizer o mínimo. Chama-se John Bolton, foi embaixador de George W. Bush na ONU, onde não deixou saudades, e, mais recentemente, atuava como comentarista da Fox News.

Em questões cruciais como a invasão do Iraque e o que fazer com a Coreia do Norte, Bolton e Trump não parecem feitos um para o outro. Não importa, o comandante-em-chefe gosta do estilo do seu escolhido do momento. Elogiou-o como sendo “um durão que sabe do que fala”. A partir da posse do recém-chegado, no próximo dia 9, o mundo vai acompanhar com interesse o quanto Trump se servirá ou não da retórica de Bolton.

Enquanto o presidente sempre qualificou a guerra iniciada em 2003 como catastrófica e falida, Bolton até hoje defende com ardor incomum a invasão, e considera uma calamidade a decisão americana de retirar as tropas terrestres a partir de 2011.

A posição de Bolton quanto à Coreia do Norte também está muitos decibéis acima do tom recentemente adotado pela Casa Branca. Poucas semanas antes de ser anunciado no novo cargo, Bolton publicou no “Wall Street Journal” um artigo cujo título já dizia tudo: “A legalidade de um ataque prévio contra a Coreia do Norte”. Em palestra recente na Daniel Morgan Graduate School of National Security, de Washington, ele já detalhara a necessidade de um ataque maciço preventivo caso falhem as sanções econômicas atualmente em vigor. Neste caso, será preciso “preciso destruir simultaneamente os sítios de misseis balísticos e nucleares, as bases submarinas, além das instalações de artilharia, morteiros e mísseis instaladas ao longo da fronteira entre as Coreias”. Papo reto, como gosta Trump.

Pelo que se sabe, o presidente só não aprova o bigodão extremo de Bolton. Durante o período de transição, quando currículos e entrevistas para a formação passavam pelo crivo de Steve Bannon, o guru trumpiano da época, Bolton havia sido considerado pela primeira vez para o mesmo posto. Mas Trump achara que ele não tinha o physique du rôle, o bigode destoava do figurino clean apreciado pelo presidente.

A ver, agora, quem vai durar mais: o bigode ou o dono.

Já Rex Tillerson , demitido na semana anterior através de um post no Twitter, tinha a estampa certa para secretário de Estado, além de uma oportuna conexão com Vladimir Putin e status de bilionário. Não bastou. Era posudo e independente demais para o gosto do presidente, jamais houve química pessoal entre os dois homens.

“Rex, coma a salada”, ordenara Trump a seu secretário de Estado durante a visita oficial à China de novembro ultimo. O anfitrião Xi Jinping oferecia uma recepção à comitiva americana e do menu constava uma salada Caesar, em deferência ao visitante. Temeroso de que Tillerson fizesse forfait, deu a ordem que fez a alegria das redes sociais. Trump nunca perdoara o secretário de Estado por tê-lo chamado de “bestalhão” em reunião fechada.

Cada vez mais confiante em seus instintos e avaliações, o Donald Trump de 2018 ruma em direção a seu destino com bússola própria, que só ele sabe decifrar.

* Dorrit Harazim é jornalista

 


Demétrio Magnoli: A OMC na Rodada Trump

Trump utiliza os instrumentos do protecionismo para avançar a estratégia nacionalista de 'America First'
Temer explicou a reação brasileira às tarifas impostas pelos EUA sobre as importações de aço. O plano A é negociar isenções com Washington. Na hipótese de fracasso, o plano B é recorrer ao tribunal da Organização Mundial de Comércio (OMC). A armadilha montada por Trump funciona: cada um desses passos, que serão adotados por diversos outros países, contribui involuntariamente para demolir o sistema multilateral de comércio.
As tarifas não são, em si mesmas, um fator relevante para a economia global. George W. Bush já havia ensaiado proteger a siderurgia americana, mas sob justificativas diferentes, subordinadas às regras normais de arbitragem da OMC. A novidade é que Trump utiliza os instrumentos do protecionismo para avançar a estratégia nacionalista de “America First”: resgatar empregos nos EUA é apenas o pretexto para uma operação de sabotagem das regras do jogo.
O primeiro elemento da armadilha encontra-se na justificativa legal das tarifas. Cinicamente, Washington invoca razões supremas de segurança nacional. A falsidade pode ser demonstrada tanto pela incongruência entre taxas alfandegárias lineares e o consumo efetivo de aços especiais em demandas do Pentágono quanto pelo fato de que os maiores exportadores de aço para os EUA são, precisamente, aliados americanos (Canadá, União Europeia, Coreia do Sul, México, Brasil, Japão e Taiwan). Mas a invocação praticamente anula a possibilidade de arbitragem na OMC, pois transfere o tema para o campo geopolítico da soberania nacional.
A corrente nacionalista que forma o núcleo do governo Trump exploraperversamente os limites do sistema com a finalidade de implodi-lo. Se, diante de reclamações dos exportadores (como o Brasil), o tribunal da OMC conclui que a segurança nacional extrapola sua jurisdição, Washington “legaliza” suas tarifas, desmoralizando o livro de regras do comércio global. Por outro lado, se o tribunal impugna a alegação americana, Trump ganha o pretexto ideal para retirar os EUA da OMC. De um jeito ou do outro, cria-se o precedente histórico para a violação generalizada de acordos multilaterais fundados no interesse comum e na crença na boa-fé de todas as partes.
O segundo elemento da armadilha é a provisão americana de isenções seletivas, baseadas em negociações bilaterais. Analistas econômicos de visão curta saudaram as isenções concedidas ao Canadá e ao México, sublimando a circunstância de que são provisórias, dependentes da evolução das negociações sobre a reforma do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta) pretendida por Trump. Em tese, o princípio bilateral aplicado no caso dos parceiros do Nafta estende-se potencialmente aos demais países (como o Brasil). O presidente americano esclareceu que está aberto a barganhas –e que as permutas viáveis não se circunscrevem ao terreno comercial.
No mercado de escambo trumpiano, as tarifas sobre o aço podem ser trocadas pela eliminação de taxas do parceiro sobre outros produtos, por iniciativas protecionistas do parceiro contra terceiros países (como a China) ou mesmo pela submissão a prioridades políticas americanas. No caso dos aliados europeus, o presidente americano chegou a sugerir que isenções poderiam derivar da ampliação dos gastos com a defesa. Tudo isso, que se deve batizar como uma “Rodada Trump” de negociações comerciais, contraria os acordos fundantes da OMC, dissolvendo o jogo das regras no ácido do poderio geopolítico e militar.
A OMC foi criada sob uma algazarra de protestos da “nova esquerda”. As reuniões ministeriais da fracassada Rodada Doha foram palcos de violentas manifestações patrocinadas por sindicatos e organizações de esquerda. Na sua ofensiva contra o sistema multilateral de comércio, Trump cumpre um programa compartilhado pela direita nacionalista e pela esquerda antiglobalização.
* Demétrio Magnoli é doutor em geografia humana e especialista em política internacional.

Monica de Bolle: Alta rotatividade

 

Que o Brasil trate de se cuidar, pois o País é a vítima mais vulnerável às vicissitudes de Trump

Não dá nem para chamar de dança das cadeiras. Não há música, nem brincadeiras. A rotatividade dos mais altos escalões do governo Trump em meio às complicadas negociações do Nafta, à imposição de tarifas sobre o aço e o alumínio e ao repúdio global que as medidas geraram, ao possível encontro entre Trump e Kim Jong-un – o volátil líder norte-coreano –, é de arrepiar os cabelos. Depois da saída ruidosa de Gary Cohn, o principal assessor econômico de Trump e única pessoa do círculo íntimo capaz de frear os piores instintos protecionistas do ocupante da Casa Branca – agora irrefreáveis – foi a vez do secretário de Estado, Rex Tillerson, ir para o olho da rua. Não era surpresa que Trump e seu escolhido para o posto mais alto da diplomacia norte-americana já não se entendiam havia tempo. Contudo, a demissão de supetão conseguiu arregalar os olhos de todos os insiders aqui de Washington. Como outros antes dele, Rex Tillerson foi demitido por um tuíte.

Disse Trump sobre a demissão de Tillerson e sobre sua substituição por Mike Pompeo – ex-dirigente da CIA – que Pompeo e ele estão sempre “na mesma página”, isto é, não têm desentendimentos, sublinhando tacitamente as desavenças com Tillerson. “O Acordo do Irã foi terrível”, mas Tillerson não concordava com essa posição de Trump. Assim como dissera recentemente que o envenenamento do ex-espião na Inglaterra ocorrido na semana passada fora culpa da Rússia, tema que o governo Trump não quis discutir. O anúncio de que Trump deverá se encontrar com o líder da Coreia do Norte tampouco passou pelo crivo de Tillerson – o presidente norte-americano fez questão de dizer à imprensa que tomou essa decisão sozinho. Fossem os EUA qualquer outro país bananeiro, os estrondos ininterruptos da Casa Branca seriam o suficiente para jogar a economia no buraco.

Mas os EUA ainda são país onde a economia é pouco afetada pela turbulência constante do ocupante da Casa Branca. E, é quase unanimidade que Tillerson concorre ao posto de pior secretário de Estado nos últimos anos. Ainda assim, o rompante, a ruptura, e a indicação de Pompeo terão consequências. O novo secretário de Estado é tiete de Trump, além de ser a favor do cancelamento do acordo nuclear com o Irã apoiado pelos principais aliados dos EUA. Depois de irritar aliados com a imposição de tarifas sobre o aço e ao alumínio que afetam principalmente esses mesmos aliados, Trump agora torna o parco esforço diplomático de seu governo ainda mais tóxico. Geopolítica e comércio internacional, afinal, são dois lados de uma mesma moeda – aquela que é desbastada impiedosamente pelos caprichos de Trump.

Por quanto tempo aguentará a economia americana, sujeita a tantos sacolejos? Há pouco tempo comemorava-se a redução dos impostos e os bons ventos para a continuidade da expansão da atividade, com excelentes repercussões para o crescimento global. Ainda que alguns chamassem a atenção para os déficits crescentes e a dívida galopante dos EUA, tais alertas não foram suficientes para atenuar a euforia. O estímulo fiscal trumpista é choque de demanda positivo, impulsionando o crescimento e ateando fogo à inflação, ainda que ela tenha se mantido bem-comportada até o momento. Nas últimas semanas, entretanto, elementos adicionais foram somados a esse quadro: o protecionismo desenfreado de Trump e suas tarifas sobre matérias-primas representam choque de oferta negativo, o tipo de choque que reduz o ímpeto da atividade e atiça os preços simultaneamente.

Ora, se há estímulos de demanda e choques negativos de oferta ocorrendo ao mesmo tempo, só os muito ingênuos ou ignorantes a respeito da política econômica para acreditar que os preços permanecerão estáveis aqui nos EUA. É cada vez mais provável que a inflação ganhe fôlego em algum momento, forçando o Fed, o banco central americano, a intensificar o ritmo das altas de juros. Mercados estão atentos aos riscos associados ao estímulo fiscal, porém pouco preocupados com os riscos relativos ao protecionismo exacerbado.

A alta rotatividade do governo americano, e a ainda mais alta voltagem da retórica e da prática protecionista prometem, em algum momento, desarticular a expansão econômica. Que o Brasil trate de se cuidar, pois o País é a vítima mais vulnerável às vicissitudes de Trump.

* Monica de Bolle é economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University

 


El País: “Trump quer dominar as mulheres a cada passo, quer sexo a cada minuto”, diz Michael Wolff

O autor de Fogo e Fúria, o livro que o presidente dos EUA quis proibir, explica em uma entrevista ao EL PAÍS as tensões vividas na Casa Branca

Por Jan Martínez Ahrens, do El País
Se Donald Trump é polêmico, Fogo e Fúria não é menos. Vilipendiado pelo presidente, que inclusive tentou proibi-lo, o livro de Michael Wolff  oferece uma descrição impiedosa do governante e seu entorno. Um mosaico de versões, obtidas depois de 200 dias instalado na Casa Branca, que deram à luz um fenômeno de massas. Mais de dois milhões de exemplares vendidos e uma interminável polêmica sobre Trump, o livro e o próprio autor. Mordaz e cético, Wolff, de 64 anos, recebe o EL PAÍS em seu apartamento em Manhattan. Sentado em uma pequena poltrona creme, desentranha com língua bífida o universo Trump.

Pergunta (P). O sr. esperava este sucesso?

Resposta (R). De modo algum. Pensei que geraria alguma controvérsia, mas não nessa escala. Foi muito mais longe do que jamais pude imaginar.

P. A tentativa da Casa Branca de proibir seu livro ajudou?

R. Isso é óbvio. Mas tem algo mais. Em quatro semanas foram vendidos dois milhões de exemplares. Isso é único. Dá para sentir no ar a necessidade de encontrar sentido no que está ocorrendo com Trump e suas explosões diárias. O livro permite às pessoas concentrar tudo que está acontecendo em uma história, e também lhes reafirma que eles não estão loucos, o louco é ele.

P. O que aconteceu com o processo da Casa Branca e a acusação de calúnia?

R. Foram uma demonstração de que Trump não tem ideia do que faz. Nele tudo se reduz a eu-quero-eu-posso. Bem, pois não pode impedir a publicação de um livro. Longe de ter evitado que as pessoas lessem, o efeito foi impulsionar de forma astronômica sua venda.

P. Trump foi muito duro com seu livro. Disse que é falso, tedioso e nega ter conversado com você.

R. Eu teria me conformado de receber um tuíte cheio de raiva, mas que o presidente dos Estados Unidos tentasse barrar a publicação e entrasse com um processo foi além das minhas fantasias mais selvagens. Se é que é mesmo um idiota completo...

P. Vocês se conheciam, não?

R. Conheço-o desde que eu escrevia na The New York Magazine há 20 anos. Costumava me ligar para reclamar da revista, do que se dizia sobre ele, e com mais frequência do que não se dizia. Nós nos encontrávamos de vez em quando. Não diria que éramos amigos, mas mantínhamos relações amistosas. Mais tarde, em plena campanha, entrevistei-o para a Hollywood Reporter. Gostou do que fiz, me disse que eu era o melhor, o maior, o grande Wolff... sabe como é o Trump. Então quando ganhou, na transição, visitei-o na Trump Tower e pedi permissão para entrar na Casa Branca como observador. No início, acreditou que eu estivesse pedindo trabalho, mas disse a ele que não, que queria escrever um livro. E me respondeu que sim, claro, que tudo bem. E esse foi o passaporte. Obtive a autorização do presidente. As portas se abriram para mim e comecei a fazer parte da mobília.

P. E como é o ambiente na Casa Branca?

R. Caótico, intenso e hostil. Em muito pouco tempo a unidade se quebrou, estouraram as facções e deixaram de se falar uns com os outros. E isso me ajudou, porque recorriam a mim para saber o que pensavam os outros. Jared Kushner e Ivanka Trump para descobrir o que tinha me dito o estrategista-chefe, Steve Bannon; o chefe de gabinete, Reince Priebus, para saber o que todos eles diziam...

P. No livro, há personagens, como o falecido ex-presidente da rede Fox, Roger Ailes, que consideram que Trump não tem crenças.

R. É isso mesmo. Não tem crenças nem escrúpulos. Sua ideologia se limita ao faça-me feliz agora. Trump vive o momento, e no momento seguinte tudo pode mudar. Literalmente, ele vive em uma bolha de instantaneidade. Na Casa Branca todos se referiam a ele como uma criança. Às vezes de 16 anos, outras de nove, outras de dois. Mas sempre uma criança que precisa de gratificação imediata.

P. Mas é o presidente dos Estados, venceu as eleições, deve ter alguma virtude.

R. Sua virtude é que é espontâneo. Não dissimula. Inclusive quando mente, não o faz calculadamente. Não é falso. É o que se vê. É Donald Trump. E isso agrada muita gente.

P. Chegam a defini-lo como o Deus Sol. Não é exagero?

R. Ele mesmo se vê como o centro do mundo. É alguém que não tem capacidade para contextualizar e entender as coisas como os demais, com certa relatividade.

P. E não acha que com os anos possa se tornar um presidente convencional?

R. Impossível. Todos à sua volta chegam à mesma conclusão: não tem a capacidade analítica nem as habilidades para o posto. Vive o momento.

P. Qual a relação dele com as mulheres?

R. É um mulherengo, a vida toda passou correndo atrás das mulheres. Quer sexo a cada minuto do dia. Quer dominá-las a cada passo do caminho. As mulheres são o principal interesse de sua vida. Por isso criou seu próprio concurso de beleza.

P. E com sua esposa Melania?

R. Ele a mantém como um troféu. Todos os casamentos são de alguma forma um acordo, e neste caso há um pacto de formalidade e distância. Mal se veem.

“BANNON ACHAVA QUE TRUMP ERA UM PALHAÇO”

A relação entre Donald Trump e seu ex-estrategista-chefe, o radical Steve Bannon, se rompeu depois da publicação de Fogo e Fúria. O presidente considerou que Bannon estava por trás do ataque e empreendeu uma ofensiva que resultou em sua demissão do Breitbart News, o site em que se refugiou depois de sua saída da Casa Branca em agosto. Desde então, são inimigos.

Pergunta (P). Quem era seu guardião na Casa Branca?

Resposta (R). Provavelmente Bannon.

P. Há quem diga que ele influenciou o livro.

R. E é verdade, porque fala melhor que os outros e se deixa gravar.

P. Como é Bannon?

R. Inteligente, divertido, perspicaz...

P. Perigoso?

R. Perigoso?

P. Era o mais extremista do gabinete. E é considerado o representante da ultradireita.

R. É verdade que é visto assim, mas tenho uma opinião diferente. Não o considero um extremista, mas alguém comprometido com suas ideias, que não busca o poder pelo poder. Muito intelectualizado e movido pelos meios de comunicação...

P. Mas o site que dirigia, Breitbart News, não é um exemplo de moderação nem de intelectualidade, e sim um panfleto radical de direita e racista.

R. Não é um moderado, sem dúvida certo. Mas gosta é de criar meios de comunicação e conectar-se com a audiência. Um dia me disse que queria fazer um Breitbart de esquerda...

P. Desculpe, como o sr. se define politicamente?

R. Não tenho afiliação política... Bem, moro em Nova York, talvez seja de centro.

P. O vínculo de Trump com sua filha mais velha e assessora, Ivanka, é diferente?

R. Ela é a mais parecida com ele: 100% transacional. As pessoas da Casa Branca a descrevem como uma mini Donald Trump que organizou até sua vida matrimonial.

P. Muitos a consideram sua herdeira política.

R. Trump não pensa nisso. Não pensa no que virá depois.

P. Como Ivanka se dá com Melania?

R. Muito mal. Ivanka sempre falava mal dela e zombava de que acreditasse que Trump conseguiria chegar a presidente se candidatasse.

P. Bannon, em seu livro, afirma que o presidente tem 33% de probabilidade de impeachment, 33% de se demitir e outro tanto de finalizar o mandato, mas não será reeleito. Acredita nisso?

R. Não sei se com essas porcentagens. Mas concordo totalmente com Bannon que Trump não será reeleito nem que concorrerá novamente ao cargo.

P. Por quê? Ele ainda mantém ativa sua base.

R. Sua porcentagem de aceitação é muito baixa, em torno de 35%, mas além disso ele não tem nada mais a ganhar. Já é o presidente. Em seu mundo, ele já conseguiu o que tinha de conseguir. Então prefere sair a se arriscar a perder. E é preguiçoso demais para concorrer outras vez.

P. Mas Trump pode tentar a reeleição. Presidente, milionário, showman de sucesso. Também não se pode negar que conseguiu o que se propôs.

R. Ele é um vencedor porque se declara um vencedor. Mas é o presidente mais desprezado da história moderna. E diz que é multimilionário, mas não apresentou suas contas. Seu maior medo, na verdade, é que o procurador especial investigue seu histórico financeiro. Isso o aterroriza e por isso a qualquer momento pode ser destituído.

P. Visto dessa forma, Trump seria um acidente na história dos EUA.

R. Há duas linhas que se cruzam. De um lado, a corrente populista e nacionalista, um fenômeno mundial representado aqui por Bannon. E depois vem Trump. Ambos emergem em um mesmo ponto, mas não têm de ir necessariamente de mãos dadas. Mais do que isso, penso que Trump desaparecerá e que a outra linha, não sabemos de que forma, prosseguirá.

P. Bannon manipulou Trump por interesse próprio? Lendo o livro, é o que parece.

R. No fundo acho que Bannon viu o atrativo eleitoral de Trump. Pensava que era um palhaço, mas que tinha a virtude de se conectar com o público. Foi uma relação simbiótica. Depois, Bannon ficou tão decepcionado com Trump e suas inconsistências que seus sonhos se esvaíram.

P. E agora a ligação entre os dois se rompeu.

R. Mas não foi destruída. Veja, com Trump não se estabelecem vínculos normais, tudo é puramente transacional. Bannon pode voltar? Sim. Trump pode me ligar? Não tenho dúvidas.

“EU NÃO OFEREÇO A VERDADE ABSOLUTA: ESCREVO O QUE VI E OUVI”

Pergunta (P). O sr. foi criticado por não comprovar os dados.

Resposta (R). Há apenas alguns erros.

P. Foram corrigidos?

R. Foram corrigidos e eram menores. Mas não há mais erros do que em qualquer livro dessas características e de 325 páginas. É uma obra que se tornou um fenômeno e que todos querem destruir. Mesmo que não seja possível.

P. O livro está repleto de citações suculentas, cuja procedência se desconhece. Aí há um problema de fontes.

R. Não, nada disso. Uma obra desse tipo, em que se oferece uma visão interna da Casa Branca, tem esse custo. Você fecha acordos com muitos que te dirão coisas só se forem protegidos. É o estilo Woodward. O sucesso do livro fez pensar que eu tenho que estar de posse da verdade. Da verdade absoluta. Mas não posso oferecer a verdade absoluta: o que faço é escrever o que vi e ouvi. Meu trabalho é diferente do repórter policial. Sou um escritor. Meu talento vem de pegar personagens, experiências e cenas e colocá-las na página de forma que o leitor possa lê-las e dizer: “Sinto que estou aí e que posso entender”. É isso que faço.

P. Então há um certo nível de ficção...

R. Não acho.

P. Mas o sr. diz que é escritor, que usa a recriação para explicar o que ocorreu.

R. Ninguém tem a chave da verdade. Escrevo sobre o que presenciei ou o que me foi descrito. E faço com a precisão que consigo e da forma mais real e vibrante de que sou capaz. E isso é tudo que posso fazer. Ao ler, tem-se a sensação de uma certa onisciência, mas eu não sou onisciente. É uma técnica. Muita gente me perguntou como sabia isso ou aquilo, ou como reproduzia essa conversa. Aconteceu sobretudo com uma reunião entre Bannon e Roger Ailes. A polêmica acabou quando alguém que também tinha estado presente tornou público que essa reunião aconteceu na minha casa. Isso acontece ao longo de todo o livro.

P. Mudaria alguma coisa?

R. Não sei, tudo pode mudar, inclusive Trump pode se tornar Roosevelt. Mas a essas alturas, deixo como está.