Trump
Ricardo Noblat: Trump deve perder, mas o trumpismo continuará vivo
Eleição histórica, mas não decisiva
Na noite de 4 de novembro de 2008, minutos depois de Barack Obama ter feito o discurso da vitória, começou nas redes sociais a articulação para eleger um presidente de direita. Para a eleição seguinte não deu – Obama foi reeleito com folga.
Mas deu para a próxima quando o empresário do ramo imobiliário e astro de televisão de nome Donald Trump derrotou a candidata democrata Hillary Clinton, duas vezes primeira-dama dos Estados Unidos e senadora pelo Estado de Nova Iorque.
A primeira eleição de Obama pode ser considerada histórica. Foi o primeiro presidente negro. A de Trump pode ser tachada de eleição improvável, surpreendente. Nem ele acreditava que fosse possível. Entrou na Casa Branca sem saber o que fazer.
Deverá sair por sua culpa. Subestimou a pandemia do coronavírus que já matou mais de 235 mil americanos, e que somente ontem registrou 100 mil novos casos, o que levou as pessoas a anteciparam seus votos e a votarem pelo Correio.
A eleição de Joe Biden não surpreenderá. Foi prevista pelos institutos de pesquisa. O desempenho de Trump foi que surpreendeu, mais vigoroso do que se imaginava. Histórica, esta eleição é pelo número gigante de americanos que votaram.
Discute-se se será uma eleição decisiva para definir novos rumos a serem trilhados pelo país com Biden à frente. Tudo indica que não. Os Estados Unidos continuarão rachados quase ao meio. E seus dois principais partidos sem condições de governar direito.
Biden apresentou-se como o presidente de todos os americanos. É isso o que ele gostaria de ser. Trump, como presidente da parcela dos americanos que se alinha às suas ideias. Trump perdia até esta madrugada. O trumpismo continuará vivo.
Os Estados Unidos ainda são a maior potência econômica e militar do mundo, mas tal condição está com seus dias contados. A economia chinesa superará a americana até o final deste ano. A China já é a maior potência tecnológica do planeta.
Não importa quantos mísseis os Estados Unidos tenham a mais – os da China seriam suficientes para provocar grandes estragos. O que inviabiliza a guerra atômica é a capacidade de destruição mútua. A paz armada mantém o mundo relativamente em paz.
Não haverá paz interna nos Estados Unidos porque a radicalização ideológica, não só ali, veio para ficar ou para durar muito tempo. A divisão está na essência do sistema bipartidário. Os brancos de raiz não se conformam com a perda de sua supremacia.
A herança de Trump será pesada. Nunca antes na história dos Estados Unidos a democracia foi tão solapada. Trump contribuiu para corroer seus dois principais pilares: a confiança e a verdade. Sabotou um dos valores fundadores do país.
Democratas e republicanos não conseguem se mover para além de suas caixas. Por mais experiente, afável, experiente e habilidoso que possa ser, Biden terá dificuldades para governar com um Senado e uma Suprema Corte sob controle dos adversários.
Obama foi melhor presidente fora do que dentro. Seu primeiro mandato foi melhor do que o segundo porque os republicanos barraram todas as suas iniciativas. Clinton, que o antecedeu, emporcalhou o vestido da estagiária Monica Lewinsky.
Biden será o presidente americano mais velho a assumir o cargo. Pela idade, natural que tenha uma saúde frágil. Seu substituto é uma mulher, negra, senadora brilhante. Chegou a Washington há apenas 3 anos. É uma estreante nas altas rodas do poder.
Deus salve a América!
Queiroz assumirá a culpa pela rachadinha para salvar Flávio
Ele não tem muito o que perder
É, vai sobrar para Fabrício Queiroz. E, por tudo que vaza do terceiro andar do Palácio do Planalto, onde funciona o gabinete do presidente Jair Bolsonaro, Queiroz está disposto a assumir sozinho a responsabilidade pelo que aconteceu, livrando o senador Flávio Bolsonaro, o Zero Um, de qualquer culpa.
Flávio foi denunciado por peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa no caso do esquema da rachadinha à época em que foi deputado estadual no Rio. Sua situação agravou-se com o depoimento prestado ao Ministério Público pela ex-funcionária Luiza Souza Paes. Ela confessou tudo.
Contou que durante seis anos devolveu quase todo o salário a Queiroz, pelo menos 90% da remuneração, benefícios do cargo e até a restituição do imposto de renda. Como ela, dezenas de outros servidores do gabinete de Flávio na Assembleia Legislativa. Luiza apresentou comprovantes dos depósitos para Queiroz.
O Ministério Público tem provas de contas pessoais de Flávio e da sua mulher Fernanda pagas regularmente por Queiroz. E de transferência de dinheiro feitas por Queiroz para Flávio. No mínimo 89 mil reais foram depositados por Queiroz e sua mulher Márcia na conta de Michelle Bolsonaro, a primeira-dama.
Se a denúncia do Ministério Público for aceita pela justiça, Flávio virará réu. E para salvá-lo de uma condenação, Queiroz dirá que a culpa foi unicamente sua. Por que fará isso? Porque é amigo de Bolsonaro, o pai, desde os tempos de quartel. A ele e aos filhos deve muitos favores. De resto, quer proteger sua própria família.
Assim como o abrigaram em um sítio de Atibaia do advogado Frederick Asseff, e deram um jeito para que fossem pagas todas as suas contas quando foi obrigado a desaparecer, os Bolsonaros se comprometem em seguir amparando Queiroz até o fim de sua vida. Queiroz está doente. Se condenado, pegará uma pena leve.
Merval Pereira: Paradoxos da democracia
Esta eleição presidencial dos Estados Unidos está sendo paradoxal, com cerca de 157 milhões de americanos comparecendo às urnas sem serem obrigados a isso, a maior participação popular nos últimos cem anos, ao mesmo tempo que o presidente Trump, que tenta a reeleição, coloca em dúvida a lisura da apuração em estados como Wisconsin e Michigan, mas joga suas fichas numa vitória em alguns outros estados que ainda apuram para impedir que Biden seja declarado presidente.
Ou seja, Trump quer parar a apuração em estados em que está perdendo, e acelerar a apuração nos que acredita poder vencer. Mas ele tenta parar também a apuração em estados em que vence, como a Pensilvânia, mas teme perder ao final, pois considera suspeita a recuperação de Biden com os votos vindos pelo correio.
A diferença entre Biden e Trump em vários estados é muito pequena, e o presidente Trump já começa a pedir recontagem. Mas ele venceu Hilary em 2016 por uma margem muito apertada também em vários estados, e não houve apelação dos democratas. Os republicanos na era Trump passaram a fazer jogadas políticas muito mais desleais do que historicamente acontecia. Trump dominou o partido republicano e suas práticas. Como nomear uma ministra da Suprema Corte em processo rapidíssimo, poucos meses antes da eleição, quando impediram que o então presidente Obama nomeasse o substituto de Antonin Scalia quase um ano antes da eleição.
Não creio que tenham resultado positivo esses recursos, porque é tão obvia a falta de razão, tão claro que está com medo dos votos pelo correio, que qualquer ação sem provas cabais não será aceita. Depois do caso de 2000, em que Bush acabou vencendo Al Gore por excesso de recursos, que esgotaram o prazo legal para a recontagem, há mais cautela na Justiça americana.
Tudo demonstra que Trump está preparado para fazer o que puder para não perder a Casa Branca. Há possibilidade, cada vez menor, de que ganhe, mas se perder, vai tentar barrar a vitória de Biden na Justiça, o que só prejudica a democracia americana. O fato é que Trump mostrou enorme capacidade de convencer as pessoas, de ganhar votos, e a maneira de ele ver o mundo predomina em praticamente metade do eleitorado americano. O recurso da campanha de Trump à Suprema Corte para que seja derrubada uma decisão que permitiu à Pensilvânia receber até sexta-feira cédulas de votação enviadas pelo correio é sua terceira tentativa.
Os juízes já rejeitaram dois recursos semelhantes, mas haveria uma possibilidade de anular esses votos caso fossem decisivos para a definição da eleição. O problema para Trump é que tendo Biden vencido em Michigan, Wisconsin e Arizona, os democratas não precisam dos votos da Pensilvânia para vencer. Faltariam apenas seis delegados para alcançar os 270 votos necessários no Colégio Eleitoral, o que pode acontecer com a retomada da apuração em Nevada, onde Biden vence por uma estreita margem.
Os 157 milhões de eleitores que votaram para eleger o novo presidente representam 65,7% dos cidadãos com direito a voto, acima dos 60,1% registados nas eleições presidenciais de 2016, vencidas por Trump. O candidato democrata Joe Biden recebeu mais de 70 milhões de votos pessoais, a maior votação individual de um candidato na história dos Estados Unidos. Todos esses recordes demonstram que a democracia americana está em plena potência, apesar da polarização política que foi reafirmada nessa eleição.
A atuação de Trump, lançando acusações sem provas contra a apuração dos votos vindos pelo correio, e judicializando a eleição como estratégia política, mina a democracia, e coloca um país dividido diante de uma possibilidade de confrontações de grupos políticos. O candidato Joe Biden teve uma atuação de estadista quando foi a público fazer uma exigência mínima: vamos contar os votos até o final. Cada voto vale, e o que a apuração mostrar será a verdade das urnas, a verdade do eleitor americano. Não cantou vitória antes do tempo.
William Waack: Trump não perdeu
A política americana, tal como personificada por Trump, continua intacta
Donald Trump não foi repudiado nestas eleições. Não se trata da pessoa Donald Trump, mas do que ele expressa em suas ações políticas, nesse intrincado jogo no qual o indivíduo é ao mesmo tempo sujeito (em pequena medida, dirão os historiadores clássicos) da História e apenas seu mero resultado.
E o que Trump expressa? O fato de que foram destruídos em larga medida os hábitos de moderação – debate aberto e tolerante, a oposição leal – em cima dos quais prosperou o liberalismo americano e seu espírito de comunidade e Nação. Essa destruição ocorreu vigorosamente nos dois “grandes lados” do espectro político.
As elites de negócios conseguiram transformar o governo e suas agências de regulação em instrumentos que favorecem interesses paroquiais ou setoriais, em detrimento de outros. Em parte como resposta a crises financeiras, aprofundaram desigualdades e desequilíbrios que tem se perpetuado em função de movimentos demográficos e, principalmente, pelo “big divide” que é o acesso à educação (um dos grandes definidores de “elite”).
De outro, cresce a força de um tipo de idealismo utópico (que tem expressão mais recente no “woke”) que substituiu direitos individuais por “direitos de grupos”, e pretende substituir igualdade de oportunidades por igualdade de resultados. O termo nasceu como jargão de rua em comunidades negras significando “fique alerto, se liga” frente à brutalidade policial e racismo, mas ampliou-se e atualmente é empregado para designar uma enorme abrangência de ideologias e políticas com foco em justiça social.
Essa breve descrição de polos antagônicos na “guerra cultural” é necessariamente crua e simplificada, mas ajuda a entender essa percebida “irracionalidade” no debate político americano (mas não só). É o fato de que o oponente é visto como inimigo a ser destruído, como adversário irreconciliável, e isto num ambiente no qual grande afluência e consumo ligados à enorme progresso tecnológico causam paradoxalmente insegurança e desconfiança nas instituições (como acreditar em princípios e valores comuns, por exemplo) que deveriam servir de freio para o escorregão rumo à insensatez coletiva.
Nesse contexto é que Trump virou a personificação e figura de identificação para milhões que se sentem perdidos e sozinhos, com a solidão ironicamente reforçada pelo apego a redes sociais. O que não diminui de maneira alguma suas “qualidades”, como a de fazer do espetáculo um capital político. Como toda figura política de amplitude nacional, Trump tem significados diferentes para grupos diferentes em função de motivações diversas – mas nenhum o escolheu por apego a “virtudes civis”, como os clássicos gostavam de elogiar as qualidades da democracia americana.
Ficou escancarado como na presente corrida eleitoral os concorrentes descreveram resultados em favor do adversário como “abismo” e “precipício” sem volta. Não é mera retórica eleitoral. É como segmentos importantes da sociedade americana se encaram, e se estranham. São universos vivendo ao lado e ao mesmo tempo em enorme distância um do outro. Esse “nacionalismo branco” representado por Trump aflorou como uma característica que não desaparece com um resultado eleitoral.
Nesse sentido, Trump não foi repudiado pois não é possível repudiar uma sociedade histórica. Ela simplesmente existe. As eleições não deram sinal claro de que os americanos estejam reconstruindo a confiança nas suas instituições, que rejeitem política baseada na mentira e na distorção e que reencontrem o tal “espírito coletivo” capaz de sobreviver a divergências e se alimente da diversidade.
Em outras palavras, o retorno às tais “virtudes civis” não depende só de derrotar uma figura política.
Luiz Carlos Azedo: A vitória de Biden
A gravidade do que Trump está fazendo, ao tentar melar as eleições, é a ruptura com a ordem democrática dos Estados Unidos, o regime republicano mais antigo e estável do planeta
Ao contrário do republicano Donald Trump, que se declarou reeleito e prometeu contestar o resultado da apuração das eleições à Presidência dos Estados Unidos na Suprema Corte, o candidato democrata Joe Biden não cantou vitória antes da hora. Aguarda a conclusão da apuração dos votos em todos os estados, embora Arizona, Nevada e Wisconsin, desde a tarde de ontem, e Michigan, no começo da noite, já sinalizassem a vitória democrata, que ainda podem virar o resultado na Pensilvânia e ampliar a margem sobre os republicanos. Trump, porém, não quer deixar a Casa Branca, está fazendo tudo para melar a apuração dos votos e pode levar os Estados Unidos à inédita crise institucional, o que torna o pleito ainda mais paradigmático.
O sistema eleitoral norte-americano é complicado, difere de todos os demais países democráticos. As eleições nacionais são para a Câmara dos Deputados, o Senado e a Presidência. Há um total de 435 representantes na chamada Câmara Baixa (House of Representatives) do Capitólio americano, com mandato de dois anos. A cada 10 anos, um censo é realizado para contabilizar a população e dividir essas cadeiras. No Senado, a Câmara Alta, cada estado tem dois representantes, independentemente do tamanho de sua população, totalizando 100 senadores, com mandato de seis anos.
Há somente dois partidos grandes, o Partido Republicano e o Partido Democrata; os pequenos só têm abrangência estadual ou local. O sistema eleitoral foi criado em 1787, pela Constituinte, fruto da Revolução Americana. O pacto da Independência firmado pelos estados e as colônias, que se relacionavam diretamente com a administração britânica — o nome já diz, Estados Unidos da América —, estabeleceu um sistema que lhes garantisse a maior autonomia possível em relação à União. Por isso, o presidente não é eleito pelo voto popular direto, como ocorre no Congresso (Câmara e Senado). A instituição que escolhe o presidente é o Colégio Eleitoral, que tem previsão constitucional, formado por delegados indicados pelos estados. Foi a maneira encontrada para manter a influência dos estados e, assim, mitigar a decisão da maioria dos eleitores.
Realinhamento
Por isso, é possível que um candidato ganhe pelo voto popular, mas perca no Colégio Eleitoral. Foi o que ocorreu nas eleições de 2016 com Hilary Clinton e Donald Trump, e em 2000, quando o democrata e então vice-presidente Al Gore perdeu as eleições para George W. Bush. Antes, isso só havia ocorrido em 1876 e 1888. A quantidade de delegados dos estados é igual ao número de senadores e deputados. A Califórnia tem 55 delegados no Colégio Eleitoral porque tem 53 representantes na Câmara mais dois senadores. Montana, Wyoming, North Dakota, South Dakota, Alasca têm três delegados, que incluem seu único representante na Câmara e os dois senadores. Washington, DC, tem três delegados, mesmo sem representantes no Congresso Nacional. Há 538 delegados no total, vence quem obtiver maioria simples: 270 votos. Com 70 milhões de votos, Biden tinha 248 delegados no momento em que Trump, que contabilizava 214 delegados, tentava paralisar a apuração.
O mundo acompanha as eleições norte-americanas porque sabe que os Estados Unidos são a principal potência mundial em termos econômicos, tecnológicos, científicos e militares. A política de Trump, nacionalista e reacionária, teve muito mais impacto nas democracias do Ocidente do que no Oriente, embora o eixo de sua confrontação fosse com a China, um regime comunista, e o Irã, um Estado teológico. A presença de Trump na Casa Branca foi disruptiva até mesmo em relação ao chamado “sonho americano”. A gravidade do que está fazendo agora, ao tentar melar as eleições, é a ruptura com a própria ordem democrática dos Estados Unidos; isso servirá de exemplo para outros governantes com mentalidade autoritária, em momentos de apuros eleitorais. Apesar do anacronismo do seu sistema de votação, a democracia americana é o regime republicano mais antigo e estável do planeta.
O presidente Jair Bolsonaro é sócio da derrota de Trump, no qual apostou suas fichas como um jogador compulsivo na política. O estrago pode ser ainda maior se insistir na narrativa de que houve fraude na apuração, porque isso significaria questionar a legitimidade do futuro presidente dos Estados Unidos. Com a vitória de Biden, haverá um grande realinhamento na política mundial, na qual estaremos na contramão. A não ser que o governo Bolsonaro faça uma revisão das políticas externa, ambiental e de direitos humanos.
Vinicius Torres Freire: O extremismo odiento, com ou sem Trump
Polarizações socioeconômicas e ódios diversos não vão passar tão cedo nos EUA
Donald Trump é uma doença ou sintoma de um mal pior? Derrotado ou vitorioso, já terá deixado sequelas, de qualquer modo. Trump inspirou, incentivou ou legitimou supremacistas brancos, a xenofobia, a desconfiança na razão, em instituições que promovem o debate público esclarecido e que arbitram conflitos de modo democrático, promoveu a mentira sistemática e a disseminação da paranoia. Avacalhou tudo isso que faz parte do pacote básico da democracia liberal.
Há surtos de paranoia ou ressentimento reacionários que causam comoção e sofrimento, mas passam. Ao menos, acabam não tendo força bastante para abalar pilares dessas democracias liberais.
Não foi o caso nem com o macarthismo dos Estados Unidos dos anos 1950, por exemplo. Deixou marcas, destruiu vidas e inoculou para sempre na política americana a rejeição mesmo a ideias sociais-democratas e o delírio anticomunista, mas não produziu instituições autoritárias.
Um movimento contemporâneo, na França, o poujadismo, agregou o ressentimento da pequena burguesia reacionária, corporativista, revoltada com a modernização do país e com instituições da democracia francesa da época, que funcionavam muito mal, aliás, tanto que acabaram em um golpe militar disfarçado, em 1958. Mas a democracia francesa progrediu e o poujadismo é uma nota de rodapé, embora uma de suas crias, Jean-Marie Le Pen, tenha dado brotos depois de quatro décadas dormente.
Trump muita vez é explicado pelo ressentimento dos trabalhadores largados nas regiões decadentes da indústria, pela revolta das comunidades do interior, dos desconfiados da civilização dos costumes e dos direitos de minorias ou discriminados quaisquer, contra as “elites” ilustradas e a indiferença dos tecnocratas econômicos.
A desigualdade de renda e de educação teria sido um fator também, assim como, contraditoriamente, o ressentimento contra programas sociais que justamente atenuam tais iniquidades (de modo diminuto, nos EUA).
Mas mesmo tais ressentimentos não bastam para explicar a força renovada do racismo, das milícias armadas ou o descaramento neonazista. Um grande, embora controverso, sociólogo americano, Richard Sennett escreveu nesta semana no jornal britânico “The Guardian” que o ressentimento seria mais profundo. Reflete uma degradação civilizacional mais séria e que seria a atitude de uns 30% dos americanos.
Trata-se de pessoas para quem a vida socioeconômica é um jogo de soma zero: reconhecer direitos de outros por si só implica a perda dos próprios direitos; rebaixar outrem é um progresso para si. Seria assim parte dos brancos americanos, diz Sennett, um pessimista a respeito da vida pública, do sentimento do propósito da vida ou da situação do trabalho contemporâneo.
Parte da base trumpista de 2016 desertou o presidente agora, acredita Sennett (aposentados, trabalhadores da indústria, pequenos empresários, classe média alta dos subúrbios e parte dos evangélicos). Restaria um núcleo fanático, mas imenso, que tende se tornar ainda mais extremista em caso de Trump: viriam a se sentir mais abandonados e, agora, traídos por outros eleitores e pelo “sistema” em geral.
As feridas americanas não serão curadas tão cedo, conclui Sennett. É difícil captar de modo mais preciso esse ressentimento branco entranhado. Mas decerto tão cedo, no mínimo, não vai se dar um jeito nas polarizações de cor, renda, educação, poder e da falta de entendimento básico do que sejam razão e terreno comum de diálogo.
Bruno Boghossian: Quatro anos de Trump levaram política marginal para o centro da democracia
Ciclo deu ares de normalidade a atitudes anômalas; efeitos devem ser duradouros
Os quatro anos desde a eleição de Donald Trump nos EUA consolidaram um método marginal na política. O show comandado pelo magnata a partir de 2016 deu ares de normalidade a recursos como a desinformação e o estímulo à violência. O efeito negativo desse ciclo para a democracia deve ser duradouro.
O americano abriu essa caixa de ferramentas para construir a imagem de um político disposto a desmantelar o centro corrupto do poder. A mentira, o discurso preconceituoso e a demonização de adversários eram marcas que pareciam conferir autenticidade a um personagem que ignorava as regras do jogo.
Aqueles que vestem esse figurino geralmente não têm vontade ou habilidade para desmantelar coisa nenhuma. Eles reclamam e dizem que o sistema poderoso impediu a missão. O único produto que são capazes de entregar é o retrocesso de governos e do exercício da política.
Trump e seus seguidores mundo afora levaram anomalias para o centro da arena pública. O americano adotou uma postura aberta de incentivo à violência quando se recusou a condenar grupos extremistas que atuam a seu favor. Ele explorou a desinformação como um lance aceitável e recorreu à negação da ciência na pandemia, sem se importar com seu impacto na saúde pública.
A fabricação mais nociva é a tentativa corriqueira de apontar fraudes em larga escala em eleições, sem apresentar provas. A artimanha passou a ser empregada com naturalidade para enraivecer militantes e abrir caminho para contestações que reduzem a crença no sistema político. Um presidente que usa essa carta só para manter o poder ativa uma corrosão grave da democracia.
Quando o uso desses instrumentos se torna comum na arena política, eles também servem como um diversionismo eficaz. Se um político mente ou inventa uma conspiração qualquer, o foco do debate público muda. A distração pode ser suficiente para que ele não seja punido politicamente por seus fracassos ou sua crueldade como governante.
Ricardo Noblat: Biden perde o favoritismo, vira azarão, mas pode surpreender
Nunca antes na história dos Estados Unidos um presidente da República falou em fraude em meio a apuração de votos. Mas Donald Trump não seria o que é se não fosse o primeiro a falar, mesmo quando sua eventual vitória poderá ser confirmada a qualquer momento.
Por que o fez? Sabe-se lá. Talvez por receio de que os votos que ainda faltam ser apurados em Estados importantes possam favorecer o Democrata Joe Biden. Ou talvez para ser coerente com o discurso que mais repetiu durante a campanha, o de que poderia ser vítima de uma fraude.
Biden amanheceu nesta quarta-feira com 238 votos no Colégio Eleitoral dos 270 necessários para que se eleja, contra 213 de Trump. Esse placar é das 6h30m. E com algo como dois milhões de votos populares a mais do que Trump. Sua sorte depende dos resultados da apuração em Nevada, Geórgia e Pensilvânia.
Caminha para vencer em Nevada. Na Geórgia, os votos que restam ser apurados são dos condados de Fulton e DeKalb. Ficam em Atlanta. DeKalb já apurou 98% dos votos, e ali Biden tem 83%. Fulton falta contar todos os seus 440 mil votos. Espera-se mais de 70% para Biden. Ou seja: ele tem chances de vencer na Geórgia.
A apuração na Pensilvânia será retomada às 11h. Trump, ali, está na frente. Dos 2 milhões e meio de votos enviados pelo Correio, só 39% foram apurados. Filadélfia, capital da Pensilvânia, costuma votar em democratas. Há poucos instantes, Biden emparelhou com Trump no Estado do Wisconsin.
A eleição ainda está aberta.
Bolsonaro inventa vacina para se imunizar contra derrotas
Se não se reeleger em 2022, seu discurso da derrota já está pronto
Em 2016, a vitória de Donald Trump sobre Hillary Clinton surpreendeu o mundo, inclusive o próprio Trump que até o último minuto da apuração não acreditava que venceria. Já fazia planos para retornar aos seus milionários negócios imobiliários.
À época, portanto, não passava pela cabeça de Trump bater às portas da Suprema Corte para contestar sua eventual derrota. Não falava disso. Passou a falar agora quando se viu desafiado por Joe Biden. “Perder logo para esse cara?” – comentou com um amigo.
Pelo menos nisso, Jair Bolsonaro largou à frente de Trump. Em 2018, ao lançar-se candidato a presidente, começou a desqualificar o processo eleitoral caso não vencesse. Disse que jamais reconheceria os resultados se não fosse eleito.
Para espanto dele mesmo, elegeu-se. Na verdade, o que ele pretendia com sua candidatura era ajudar a carreira política dos seus três filhos mais velhos – Flávio aspirante a senador, Eduardo a deputado federal e Carlos à reeleição como vereador.
Este ano, em março, ao visitar os Estados Unidos de onde voltou com a ideia de que o coronavírus não passaria de uma gripezinha, Bolsonaro afirmou que a eleição presidencial brasileira de 2018 fora fraudada para impedir que ele ganhasse no primeiro turno.
Sim, ele garantiu que tinha provas disso e que as apresentaria em breve. Como sempre, mentiu e por conveniência esqueceu o assunto. Ontem, temendo uma derrota de Trump de quem se diz amigo, idiomas à parte já que um não fala a língua do outro…
Bolsonaro, que despreza a utilidade de vacinas contra o coronavírus, inventou uma para se imunizar contra possíveis derrotas nas urnas – hoje ou no futuro. Hoje, a julgar pelo que se desenha nos Estados onde ele apoia candidatos a prefeito.
Não há um só candidato bolsonarista a prefeito em cidades importantes que lidere as pesquisas de intenção de voto. Havia um até ontem: o Capitão Wagner (PROS), em Fortaleza, que evita falar o nome de Bolsonaro ou defender o seu governo. Não há mais.
Wagner deve sua posição nas pesquisas ao desempenho como deputado estadual e ao fato de que liderou uma greve ilegal de policiais militares. Se for para o segundo turno, enfrentará uma parada dura contra um candidato apoiado pelo PT e PDT.
Foi de olho nestas e nas eleições de 2022 que Bolsonaro, ante a ameaça de ver Trump na lona, criticou a “ingerência de outras potências” nas eleições americanas, e advertiu que isso poderá repetir-se também por aqui. Bolsonaro com a palavra:
– No Brasil, poderemos sofrer uma decisiva interferência externa, na busca, desde já, de uma política interna simpática a essas potências, visando às eleições de 2022.
Se ele não se reeleger como pretende, seu discurso da derrota já está pronto. Com a diferença de que não adiantará apelar para o Supremo Tribunal Federal porque, ali, não contará com a maioria folgada de votos que Trump detém na Suprema Corte.
Bernardo Mello Franco: A mentira contra a vida
Pós-verdade foi a palavra do ano de 2016. Como manda a tradição, o dicionário “Oxford” anunciou a escolha em dezembro. Um mês antes, Donald Trump havia sido eleito o 45º presidente dos Estados Unidos.
Na era da pós-verdade, os fatos importam pouco. O que conta são as versões, que podem ser fabricadas para confirmar crenças, preconceitos ou visões de mundo.
Trump usou uma mentira deslavada para se lançar na política. Ele ajudou a propagar a falsa tese de que Barack Obama teria nascido no Quênia. Isso o tornou popular entre os radicais do Partido Republicano, que não se conformavam com a presença de um negro na Casa Branca.
Na campanha, o magnata continuou a espalhar lorotas. Ele inventou que o crime não parava de crescer (as estatísticas mostravam o contrário), que os mexicanos estavam invadindo os EUA (havia mais gente saindo que entrando no país) e que Obama teria fundado o Estado Islâmico (essa dispensa comentários).
Ao assumir o poder, Trump transformou o embuste em arma cotidiana. Em julho, o jornal “The Washington Post” informou que ele já havia divulgado 20 mil informações falsas ou distorcidas.
Como todo mitômano, o republicano se apresenta como portador da verdade. Quem ousa contestá-lo é acusado de produzir fake news. Assim ele mina a confiança na ciência, na imprensa e nas universidades.
A pandemia ensinou que a indústria da pós-verdade, alimentada por populistas como Trump, pode provocar danos ainda maiores que a corrosão da democracia. “Mentiras e desinformação, conspiração e ódio não prejudicam apenas o debate democrático, mas também a luta contra o coronavírus”, afirmou na semana passada a chanceler alemã Angela Merkel.
A conservadora fez o alerta após ser vaiada por deputados do partido de extrema direita AfD, que se opõe às medidas de combate à Covid. “Não é apenas o debate democrático que depende do nosso compromisso com os fatos e a informação. As vidas humanas dependem disso também”, prosseguiu Merkel.
A frase ajuda a explicar o que está em jogo na eleição americana de 2020.
Míriam Leitão: Hora de o país acertar o passo
O final desta eleição tensa e deste tempo infeliz pode ser o fortalecimento da democracia americana. Os Estados Unidos viram de perto os defeitos do seu sistema que permitiu a um presidente manipular os fatos, acirrar conflitos, dividir o país, tentar restringir o voto. O país chegou à eleição com tapumes nas lojas, cerca na Casa Branca e temor de escalada da violência. Nada disso é normal, como escreveu Dorrit Harazim.
Depois de duas eleições em 16 anos nas quais o vencedor do voto popular perdeu no colégio eleitoral, depois de um governo tão extremista quanto o de Donald Trump, está claro que os Estados Unidos precisam atualizar o legado dos fundadores da pátria. O federalismo não pode dar tanto poder às autoridades locais para restringirem o direito de voto, eliminando postos eleitorais. Não pode haver o temor de que o voto pelo correio vá para o lixo. Aumentaram as vozes respeitáveis nos Estados Unidos propondo reforma do sistema eleitoral.
Dias atrás, em conversa com o embaixador Rubens Ricupero, ouvi a sua expectativa:
— Eu tenho muita esperança de que as eleições provoquem uma reviravolta — ainda tenho medo de me decepcionar uma vez mais — mas se Trump perder nós vamos ter um verdadeiro terremoto, porque isso vai mudar todo o clima ideológico, político, psicológico do mundo. A eleição dele foi um choque de ruptura violentíssimo. A derrota dele não quer dizer que vamos voltar a uma situação maravilhosa, mas é como você despertar de um pesadelo, quando acorda você não está no paraíso. O fim do pesadelo não é o começo do sonho. É a volta à realidade.
A realidade tem uma recessão forte e uma pandemia descontrolada. Apesar disso, essa é a chance de um reencontro dos Estados Unidos com eles mesmos, se os líderes aproveitarem o momento para o recomeço.
Aqui também o melhor é acertar o passo. Quando Jimmy Carter foi eleito previa-se tensão com o Brasil porque ele defendia os direitos humanos e o fim da tortura nos países latino-americanos. O governo Ernesto Geisel torcia o nariz e se falava em intervenção em assuntos internos. Que país deve ser livre para torturar e desrespeitar os direitos humanos? Agora, se fala em tensão entre Joe Biden e Jair Bolsonaro. É, na verdade, a chance de Bolsonaro sair de duas posições erradas: o isolacionismo na política externa e o estímulo ao desmatamento da Amazônia.
Na sua série de tuítes ontem sem pé nem cabeça, Bolsonaro já estava em posição defensiva. Falou, no contexto da eleição americana, em ingerência estrangeira “visando às eleições de 2022”. E se referiu às “nossas riquezas, nosso futuro”.
A política ambiental do governo Bolsonaro até agora estimulou o desmatamento, o garimpo ilegal e a grilagem. Isso é que põe em perigo o nosso futuro e destrói a nossa riqueza. O ministro das Relações Exteriores do governo Bolsonaro acha bom o Brasil ser um “pária”. O cargo dele é cuidar das “relações exteriores”. Por óbvio, um país pária não as tem. Ernesto Araújo está no emprego errado. Biden prometeu um governo multilateralista, a volta dos Estados Unidos ao Acordo de Paris e defendeu a proteção da Amazônia. Tudo isso é ótimo porque o Brasil fez muito nas negociações do clima para que se chegasse ao acordo e somos os maiores beneficiários do combate ao desmatamento.
Uma pressão externa contra os crimes ambientais se somará aos grupos cada vez mais majoritários, até do agronegócio, que exigem mudança. Seria tão absurdo requerer soberania para desmatar quanto se Geisel tivesse defendido o direito soberano de o Brasil torturar.
A melhor resposta para a crise da democracia é mais democracia. Não se pode tolerar um presidente que pede a grupos supremacistas brancos que recuem e aguardem. Não se pode tolerar um presidente numa manifestação que pede fechamento do STF. Países lenientes com desvios dos seus governantes correm o maior dos riscos, o da perda da democracia.
A resposta da sociedade americana foi um comparecimento recorde às urnas. Uma senhora negra de 69 anos, da Carolina do Norte, entrevistada pela NBC, disse que votou pela primeira vez em sua vida. A repórter quis saber porque ela mudara de comportamento, e ela respondeu que ficou em casa por causa da pandemia, pôde se informou melhor e decidiu participar. Ela votou Biden-Harris. Os caminhos da democracia são sempre surpreendentes.
Lourival Sant’Anna: Onda azul não veio, e Trump está tão forte no jogo quanto Biden
Resultado não está definido, e matematicamente ambos podem ainda ganhar
Quando a contagem dos votos começou, o caminho de Joe Biden para a vitória na eleição dos EUA passava por 11 Estados. A madrugada avançou com esses Estados reduzidos a seis: Arizona, Geórgia, Pensilvânia, Michigan, Wisconsin e Nevada.
O resultado não está definido, e matematicamente ambos podem ainda ganhar. Mas uma onda azul, a cor do Partido Democrata, não aconteceu, e o presidente Donald Trump está no jogo tanto quanto Joe Biden.
Em mais um lance que mostra como essa é uma eleição atípica, Biden fugiu totalmente ao protocolo e fez um breve discurso pouco antes das 3h da manhã, hora de Brasília, 1h em Wilmington, Delaware, onde mora.
O candidato enfatizou que a tendência estava a seu favor, mas o propósito visível do pronunciamento era mobilizar seu eleitorado para garantir que todos os votos fossem contados, apesar das ameaças anteriores de Trump de não reconhecer as cédulas apuradas depois do dia da eleição.
Pela tradição americana, os candidatos presidenciais só se pronunciam depois do fechamento das urnas para informar que telefonaram para o adversário para lhe conceder a vitória, ou para celebrar seu triunfo. Trump anunciou em seguida pelo Twitter que estava ganhando e que falaria “esta noite”, significando a madrugada desta quarta.
Trump venceu em 2016 com 306 votos no Colégio Eleitoral — 36 a mais do que os 270 necessários. De lá para cá, segundo todas as pesquisas, ele não conquistou nenhum Estado novo. Por isso o mapa eleitoral de 2016 servia de base para a estratégia de vitória de ambos os candidatos.
A tarefa de Biden é derrotar Trump em Estados que totalizem 38 cadeiras no Colégio, evitando também o empate por 269 a 269, que levaria a decisão para a Câmara dos Deputados.
A votação no caso seria entre as bancadas, com cada Estado valendo um voto. Na atual Câmara, os democratas venceriam, mas a votação seria feita pelos deputados eleitos neste pleito, cujo resultado ainda não se sabe.
Os 11 Estados que poderiam ajudar na vitória democrata eram aqueles nos quais, segundo as pesquisas, Biden estava à frente de Trump, dentro ou fora da margem de erro. Com a evolução da apuração, os democratas foram perdendo cinco desses Estados: Flórida, Ohio, Carolina do Norte, Iowa e Texas.
Biden ganhou um voto no Nebraska, um dos dois Estados que separam os resultados por distritos. Agora, para atingir 270, ele precisa somar 37 votos seguindo diferentes combinações possíveis de Arizona (11 cadeiras no Colégio Eleitoral), Geórgia (16), Pensilvânia (20), Michigan (16), Wisconsin (10) e Nevada (6). Ou 36, se ganhar em um distrito do Maine, o outro Estado em que o vencedor não leva tudo.
Desses seis Estados, Biden liderava a contagem parcial de votos apenas no Arizona. Aquele em que ele perdia pela menor margem, às 4h da manhã desta quarta-feira, era o Wisconsin: Trump estava 4 pontos à frente.
A esperança dos democratas era que grande parte dos votos antecipados ainda não tinha sido contada nesses Estados. Esses votos são predominantemente democratas. É por isso que a principal mensagem dos democratas, nessa madrugada, era: deixem contar até o último voto.
- É COLUNISTA DO ESTADÃO E ANALISTA DE ASSUNTOS INTERNACIONAIS
Ligia Bahia: A saúde sai do limbo nos EUA
Trump insistiu nas declarações sobre a disposição de Biden para fechar a economia seguindo a ciência
As estratégias para enfrentar a Covid-19 ocuparam o centro das atenções nas eleições nos EUA. O apreço ou desprezo pela ciência, a incapacidade para coordenar o enfrentamento da pandemia ou a defesa da economia e os defeitos ou qualidades atribuídos ao Obamacare orientaram a definição dos votos.
Joe Biden declarou que apoiaria, em vez de difamar, pesquisadores e especialistas. Disse ainda que incentivaria o uso de máscaras sempre, garantiria avanços para a testagem por meio de investimentos em testes rápidos e se certificaria sobre padrões nacionais seguros para a abertura de escolas e empresas.
Donald Trump afirmou que considera ter nota A+ no gerenciamento da pandemia e apenas um D em divulgação, “porque são produzidas notícias falsas”. O atual presidente insistiu nas declarações sobre a disposição do adversário para fechar a economia seguindo recomendações científicas, disse que tinha testado positivo e retomou a campanha por ter recebido tratamento com anticorpos e outros medicamentos. Contudo o que está em jogo é mais do que a condução política contra a pandemia. O resultado das eleições decide o destino da Lei de Cuidados Acessíveis (ACA, na sigla em inglês) — o Obamacare —, aprovada em 2010 pelos democratas e que, segundo Trump, é “muito cara e não funciona.”
O sistema de saúde nos EUA, que se baseia em planos privados e programas governamentais, vai descer do muro. O plano apresentado por Biden propõe a expansão de coberturas por meio da organização de um seguro público e da redução na idade (de 65 para 60 anos) para ingresso. Enquanto o atual governo atua junto à Suprema Corte defendendo a inconstitucionalidade do Obamacare.
Embora uma decisão jurídica contrária ao aumento da proteção à saúde fosse improvável (houve sentenças que acataram a legislação em 2012 e 2015), a morte da progressista Ruth Bader Ginsburg e a indicação de Amy Coney Barrett, reforçando uma maioria de juízes conservadores (6 a 3), aumentariam as chances de anular a lei. Os republicanos apoiam e prometeram conservar garantias para pessoas com doenças preexistentes, contidas na ACA, mas não apresentaram normas para obrigar que as empresas vendam planos para quem tem mais probabilidade de risco. Outros temas, como direitos reprodutivos e a atenção à saúde para imigrantes, provocaram polêmicas laterais.
Trump cortou recursos para clínicas de planejamento familiar que realizam ou oferecem orientação sobre aborto, permitiu que as empresas empregadoras excluíssem o acesso a anticoncepcionais e programas para pacientes LGBTQ e expandiu a “Política da Cidade do México” (datada de 1984, gestão Reagan), que bloqueia assistência internacional a organizações envolvidas com a interrupção segura da gravidez.
O republicano quer reverter a decisão da Suprema Corte de 1973 (Roe versus Wade) sobre direito ao aborto. Biden tem posicionamentos opostos, prometeu reverter políticas discriminatórias de gênero. Assim como propôs mudar as regras de separação entre pais e filhos na fronteira e instituir um roteiro rumo à cidadania para imigrantes ilegais, incluindo a permissão de adesão a planos privados e a remoção do tempo de espera de cinco anos para o ingresso em programas governamentais de saúde dos legalizados.
Oportunidades de expor programas para a saúde foram bem aproveitadas por Biden. Trump não é um candidato convencional, atacou constantemente a burocracia e recentemente os médicos, a quem acusou de receber dinheiro para registrar indevidamente mortes por Covid-19. Seu admirador no Brasil tenta com afinco parecer igual, mas não consegue. O governo federal organizou uma burocracia militar dispendiosa e ineficiente na saúde e cultiva uma base de médicos militantes. Para Biden, Trump não soube proteger a América. A frase teria que ser adaptada para fazer sentido entre nós, onde a pandemia também segue ceifando vidas. Ficaria assim: Bolsonaro não soube proteger o Brasil, mas conseguiu arrumar a vida de um monte de gente ao bagunçar a saúde pública.
Alberto Aggio: EUA no centro do mundo … uma vez mais
É indiscutível a importância dos EUA para o mundo. O século XX foi caracterizado, com razão, como o “século americano”. Depois do fim do comunismo, no início da década de noventa, isso ficou ainda mais claro. Depois de percorridas duas décadas do século XXI, nem mesmo o protagonismo assumido pela China conseguiu deslocar a importância dos EUA no mundo, se considerarmos as dimensões tecnológicas, econômicas, culturais, etc.. Ainda que se possa falar de um relativo arrefecimento do poder dos EUA, não resta dúvida a respeito do papel hegemônico que os EUA ainda jogam na cena mundial.
Mesmo não sendo eleitores, nós brasileiros, assim como boa parte da população mundial, não temos como não expressar grande interesse sobre o embate que se trava nas eleições presidenciais norte-americanas. Depois dos quatro anos de Trump, há uma grande expectativa sobre o resultado destas eleições. Há muitas razões para ser assim, a começar pelo fato de que já se espera que o resultado não seja conhecido de imediato em razão tanto da polarização confrontacional que Trump instituiu ao processo eleitoral, com acusações de fraude e ameaça de não respeitar os resultados, que fica difícil antever quando se dará a conhecer o vencedor da eleição.
De toda maneira, é inegável que os EUA ocupam o centro do sistema mundial atualmente existente. Direta ou indiretamente, as escolhas políticas feitas nos EUA invariavelmente repercutem de maneira global. E isso vale para problemas que os EUA acabaram gerando – como se observou na grave crise global de 2008-9, cujas repercussões ainda sentimos – quanto para decisões de governança que, sem a presença norte-americana, perdem em credibilidade e até mesmo em eficácia.
Por outro lado, os EUA exercem um papel pedagógico sobre o mundo que não tem padrão de comparação com outros países. Assim, o que ocorrer lá repercute positiva ou negativamente numa dimensão global. A vitória de Trump em 2016 foi sinal verde para o avanço de lideres e governantes iliberais em diversos países, com o destaque infeliz de Bolsonaro não só para os brasileiros. É de se esperar, como apontam as pesquisas, que uma derrota de Trump nessas eleições corresponda a um efeito inverso, abrindo espaço para se restituir ou restaurar uma nova situação no cenário internacional de caráter mais colaborativo e de afirmação do multilateralismo.
Isto porque, com Trump se pôde observar com mais clareza a fragilidade da ordem internacional. Nos últimos 4 anos houve um visível déficit de governança mundial, aprofundando uma lacuna entre a globalização e as instituições responsáveis por dirigi-la e governa-la. E isto gerou contradições e tensões bastante perigosas, voltando-se a favar em uma “nova guerra fria”. Como diz Mario del Pero, cientista político da CienciPo, de Paris, com Trump abriu-se um “fosso entre globalização e a globalidade”. Estas eleições são importantíssimas uma vez que a superação dessa situação demanda um empenho ativo dos EUA no interior da ordem mundial.
Trump contaminou o cenário internacional com uma orientação reacionária inteiramente extemporânea. Enfraqueceu o lugar hegemônico dos EUA aos olhos do mundo, mas não a vitalidade da sociedade norte-americana em defesa de valores democráticos, humanistas e igualitários. Quis restituir os termos do antigo imperialismo a partir da lógica de “única potência”, coisa que já não é mais possível no mundo de hoje. O resultado é que, depois de 4 anos, lhe faltam tanto aliados sólidos e importantes, quanto um horizonte de futuro que possa ser compartilhado pelos demais países, especialmente pelos aliados tradicionais dos EUA como foram os países europeus desde o pós-guerra.
Ao futuro de sociedades democráticas de perfil ocidental, em sentido gramciano, interessa vivamente uma recomposição da aliança entre EUA e União Europeia (UE), não o seu enfraquecimento como objetivou Trump. O conflito econômico mundial não foi abolido com o fim da URSS, ele apenas ganhou novos contornos que precisam ser governados a partir de critérios de interdependência, multilateralismo e democracia. Os problemas da EU, tais como um novo padrão de crescimento econômico, a imigração descontrolada, a luta contra o jiradismo mulçumano, o desemprego, etc., têm demonstrado uma resiliência muito grande e tudo o que a UE não precisa é da confrontação de tipo unilateral que Trump instituiu nos últimos anos. Por tudo isso que estas eleições se apresentam ao mundo todo como históricas. Serão dias e noites que europeus, latino-americanos e boa parte da população mundial estarão atentos ao que vai se passar nos EUA. O clima é de que se possa ultrapassar os descaminhos dos últimos anos.
*Alberto Aggio, historiador, professor titular da Unesp