Trump
Ruy Castro: Manual de trampolinagem
Carbono de Trump, Bolsonaro está atento às lições do mestre da trapaça política
Em 1983, o colunista Zózimo Barrozo do Amaral noticiou que o empresário americano Donald Trump e o libanês-brasileiro Naji Nahas estavam se associando numa empreitada. A firma ainda não tinha nome. Zózimo, conhecedor das vísceras da dupla e pela eufonia de seus nomes, sugeriu: "Trampolinagem". Você sabe: golpe, mentira, trapaça.
Era 1983, lembre-se. Seis anos depois, em 1989, os negócios de Naji Nahas quebraram a Bolsa de Valores do Rio. Ela nunca mais voltou a existir. E, agora, ao tentar ganhar uma eleição no grito, Donald Trump pode estar quebrando a espinha dos EUA.
Em Brasília, do banquinho onde se senta sobre as traseiras e saliva ao ouvir a voz do dono, Jair Bolsonaro acompanha, temeroso e extasiado, a eleição americana. Por um lado, o resultado das urnas o assusta --é uma amostra do que também pode esperá-lo por aqui, embora ele, precavido, esteja dedicando todo o seu primeiro mandato a fazer campanha com dinheiro público para assegurar um segundo mandato. Por outro, está recebendo uma aula de trampolinagem eleitoral, à base de coices na democracia.
Não é que Trump e Bolsonaro sejam contra a alternância do poder. Eles gostaram muito quando chegaram a ele pela via eleitoral e tiveram suas posses asseguradas pelos antecessores, com votos de boa sorte dos adversários que derrotaram. Só que, por seus atos no exercício do poder, não podem mais se dar ao luxo de largá-lo —para não serem processados por crimes contra as instituições, a inteligência e a vida.
Alguém ainda se lembra do papel carbono? Servia para se copiar um texto escrito à mão ou à máquina e, como só existia em função de um original, era usado uma vez e logo descartado, embolado e atirado à cesta. Bolsonaro é um reles carbono de Trump e, com o original em grave perigo, precisará copiar também as apostilas do pós-doc em trampolinagem que Trump está oferecendo.
*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.
Hélio Schwartsman: O que deu errado?
Trump driblou os caciques para ser indicado pelos republicanos à Presidência
Donald Trump não perdeu de lavada. O que isso diz sobre os EUA em particular e sobre o mundo em geral? Não faltavam motivos para votar contra o presidente americano. Para começo de conversa, ele é um mentiroso compulsivo que não tem o menor respeito por minorias nem pelas instituições, incluindo a própria democracia.
Como se não bastasse, sua gestão foi um fracasso frente à pandemia de Covid-19, tendo transformado os EUA num dos países mais mortíferos do planeta. A economia, que poderia ser uma razão plausível para votar em Trump, ia bem até a chegada do vírus, mas, desde então, entrou em forte recessão.
Em tempos normais, bastaria um desses fatores para arrasar qualquer tentativa de reeleição e afundar o partido que a patrocinasse. Mas não estamos em tempos normais nem lidando com um candidato normal. Trump foi um postulante competitivo, e o Partido Republicano não foi mal no pleito, sendo grandes as chances de conservar maioria no Senado e até de ampliar suas cadeiras na Câmara. Como é possível?
Uma das características da atual leva de líderes populistas é que eles parecem ter o dom de levar eleitores a desapegar-se de fatos e da ideia, tão central para a democracia, de punir governantes por maus resultados.
A pergunta relevante, então, é como um sujeito com as características de Trump, tão pouco afeitas à tradição do presidencialismo americano, conseguiu chegar à Casa Branca?
Cada país tem seu conjunto de salvaguardas para impedir que políticos muito controversos conquistem o poder. Em presidencialismos mais modernos, há o segundo turno. Deu errado no Brasil, mas funcionou na França.
Nos EUA, a função de "gatekeeper" cabe aos partidos políticos. O sistema falhou quando uma figura como Trump driblou os caciques e conseguiu a indicação dos republicanos para disputar a Presidência em 2016. Já há quem fale que ele pode voltar em 2024.
Reinaldo Azevedo: A democracia e as mulheres sob ataque
Ascensão da extrema direita populista, ancorada nas redes sociais, traz desafio
O único regime, já escrevi aqui, em que tudo pode é a tirania. Assim é para o próprio tirano e para os seus amigos. A democracia tem interdições. E aí está o busílis. A ascensão da extrema direita populista, ancorada nas redes sociais, traz um desafio.
Não raro, sólidas reputações liberais, inclusive neste jornal, confundem, por exemplo, a prática de crimes com a liberdade de expressão, pedra angular da civilidade. E tal confusão é um caminho muito curto para que se tome a liberdade de expressão por um crime.
Assim tem sido nos Estados Unidos, no Brasil e em toda a parte em que a democracia ainda resiste. O momento é delicado. O sistema tem sido refém de uma leitura liberticida de suas próprias premissas. Há uma pergunta, que não é recente, mas que está ainda a pedir resposta adequada: a democracia deve tolerar a ação daqueles que se aproveitam de suas garantias para solapá-la caso cheguem ao poder?
Vejam o que se passa nos EUA. Os celebrados "founding fathers" criaram um modelo em que o federalismo se opõe à democracia genuína, de modo que um homem não vale um voto. Os sinais de esclerose são evidentes. Além do samba e do ditongo nasal "ão", podemos ensinar aos gringos como se organiza uma votação eficiente.
É fato: a forma que assumiu o federalismo americano, somada ao subdesenvolvimento da tecnologia do voto, joga o mundo num impasse. Que tomem emprestadas as nossas urnas eletrônicas! Nada impede que se digite lá o número de um estúpido. Mas o resultado, ao menos, sai com mais rapidez. Assim, o modelo em vigor potencializa a ação de um vândalo da democracia como Donald Trump.
Pergunta com resposta que a mim soa evidente, embora pouco haja a fazer por lá —e já vou chegar ao nosso quintal. É moralmente aceitável que um chefe de Estado coloque em dúvida o arcabouço legal que lhe assegurou a vitória quando este está prestes a certificar a sua derrota? E que fique claro: esse "pôr em dúvida" não se limita a um arroubo retórico.
O chefe da nação convoca abertamente suas milícias digitais a entrar em ação, o que, segundo os padrões americanos, pode implicar comparecer ao local da apuração dos votos com um rifle nos ombros para parar a contagem, como pede o bandoleiro. Deve a democracia garantir ao chefe de Estado a "liberdade de expressão" para incitar a luta armada contra as regras do jogo? É preciso, nesse caso, que o moralmente inaceitável seja também um crime punível.
Olhemos para nossos próprios desatinos. A democracia brasileira deve tolerar que Jair Bolsonaro diga asneiras contra as vacinas enquanto faz, com a força da representação, a apologia de drogas comprovadamente ineficazes contra a doença, usando para tanto a visibilidade que lhe confere o aparelho de Estado?
As democracias estavam preparadas para enfrentar aqueles que, à margem do sistema, buscavam se organizar para destruí-la. Seus aparelhos de repressão, diga-se, atuam muitas vezes para esmagar até o protesto justo de oprimidos que só reivindicam direitos, o que é lamentável e tem de ser coibido.
O regime, no entanto, tem se mostrado inerme para punir a ação daqueles que o sabotam a partir dos aparelhos de Estado, buscando minar por dentro as suas virtudes. E isso, hoje, é uma ameaça concreta às nossas liberdades.
Uma nota sobre o caso Mariana Ferrer, que também atine à democracia: "estupro culposo" é uma senha para um estado de coisas. O tipo penal não existe. Mas é preciso que os tribunais não atuem como se existisse. Nem preciso entrar no mérito da sentença ou do cometimento ou não do crime para apontar o que está estupidamente errado no que se viu —e eu me refiro à íntegra do vídeo.
Um tribunal julga o réu —culpado ou inocente—, não a vítima. Ou estaremos de volta aos tempos da heroicização de Doca Street e da demonização de Ângela Diniz. Escrevi e sustento: mais grave do que o "estupro culposo" é o "estupro por merecimento", já que "ela" tira fotos sensuais ou tem um estilo de vida que intimida a macharia que se sente acuada pela história. Há os que não suportam democracia e mulheres. Para estes, não são coisas de macho.
César Felício: Turbulência em qualquer cenário
Eleição americana pode radicalizar o bolsonarismo
A próxima Presidência americana trará consequências para o bolsonarismo no Brasil, em qualquer cenário. A vitória de Bolsonaro em 2018 decorreu de vários fatores e um deles foi a ascensão da direita nos Estados Unidos, alavancada, sobretudo, pela habilidade no uso de redes sociais.
Até o momento em que essa coluna é escrita, não há certeza sobre quem estará na Casa Branca a partir de janeiro do próximo ano. Tenha o desfecho que tiver a contenda entre republicanos e democratas, Donald Trump pode ter cruzado uma linha vermelha, ao buscar o Judiciário para tentar se manter no poder.
Se reeleito em um pleito decidido na Suprema Corte, com intervenções judiciais não apenas em um Estado, como se deu na Flórida em 2000, durante a eleição presidencial de George W.Bush, o presidente atual tende a ser muito contestado nas ruas.
Terá um déficit de legitimidade insanável que pode desencadear uma radicalização, com reflexos no Brasil.
Caso seja derrotado, Trump planta a semente de uma possível candidatura presidencial em 2024 - ele estará legalmente habilitado a fazê-lo - e conduzirá um exército de apoiadores que passará a descrer do sistema eleitoral como solução política. As tribos de Trump e de Bolsonaro se confundem.
Um contingente grande dos influenciadores digitais mais duros do conservadorismo brasileiro está nos Estados Unidos. A começar do mais famoso deles, Olavo de Carvalho.
A extrema-direita brasileira rompeu o casulo graças a um movimento que veio de fora para dentro. Bolsonaro pessoalmente se empenhou em fazer um amálgama entre a política brasileira e a americana, tarefa da qual Eduardo Bolsonaro foi o principal operador.
Embaixador do Brasil nos Estados Unidos que foi sem nunca ter sido, patrono do primeiro congresso brasileiro do CPAC, o evento mais importante do conservadorismo americano, o deputado está aí para demonstrar quem é matriz e filial nesse processo. Não há dúvidas de que a disputa americana levou incerteza ao bolsonarismo sobre o que o destino lhes reserva na eleição brasileira de 2022.
“A esquerda é bem organizada em nível mundial. Por isso é importante acompanhar as eleições nos Estados Unidos. O que acontece lá pode ser repetir aqui”, escreveu no Twitter anteontem, apreensivo. Um aliado seu, Daniel Silveira (PSL-RJ), foi além, na mesma rede social. “Isso mostra o tamanho do perigo e o potencial do inimigo que enfrentamos. Aqui no Brasil não será diferente em 2022 para tentar retirar o presidente Bolsonaro do governo”.
Assim como Trump está fazendo nos Estados Unidos, se a coisa apertar, entrará no radar bolsonarista de pronto a contestação de resultados eleitorais, talvez por meio de uma judicialização.
Como indicou no Twitter outro aliado, o pastor Marco Feliciano (PSC-SP), é de se esperar mais questionamentos ao sistema brasileiro de voto eletrônico, e o aumento de fabulações sobre possíveis fraudes na eleição que obrigou Bolsonaro a disputar segundo turno, há dois anos: “Se por lá fazem isso com cédulas, imagino o que acontecerá aqui em 2022. Afinal por aqui usamos a tecnologia, sabidamente manipulável, com um agravante, as máquinas não são auditáveis”.
Se Biden for o eleito, deve haver de início um grande movimento do presidente democrata em relação a posições mais centristas.
Como comentou o empresário e cientista político Jared Cohen, convidado a apresentar uma palestra ontem em evento do Banco Itaú, Biden será levado ao pragmatismo para impedir que a maioria republicana no Senado obstrua por completo sua administração. Ele não terá muitos caminhos para demarcar diferenças em relação a Trump, ao menos enquanto persistir essa situação.
Na opinião do historiador Niall Ferguson, palestrante no mesmo evento, será talvez a mais fraca presidência democrata em muito tempo, com condições limitadas para avançar em muitas das agendas que se comprometeu durante a eleição. Os especialistas americanos ouvidos ontem pelo Itaú não acreditam em guinadas significativas do governo americano em relação às prioridades nacionais: enfrentar a China na nova guerra fria que divide o mundo e controlar a pandemia, que, na opinião de Ferguson, poderá matar 500 mil pessoas nos Estados Unidos antes de ser vencida.
Jogar duro com o Brasil pode, portanto, ser uma alternativa interessante para atender a um eleitorado democrata mais radical. Bolsonaro mexe com dois símbolos caros a este contingente: a ameaça ambiental e o extremismo ideológico. Para Cohen, dois países no mundo entram em uma zona de risco de problemas na relação: Brasil e Arábia Saudita.
Como nem só de extremistas vive o governo Bolsonaro, é razoável supor que a ala militar e os aliados do centrão possam aumentar o protagonismo dentro do governo federal, encolhendo a ala ideológica, com quem travam permanente disputa por espaço.
São Paulo
A pesquisa de ontem do Datafolha posiciona o ex-governador paulista Márcio França (PSB) com chances concretas de chegar ao segundo turno. Não tanto pelo seu desempenho, mas pelo fato de Guilherme Boulos (Psol) ter parado de crescer e sobretudo por Celso Russomanno (Republicanos) cair em parafuso. A se confirmar um duelo entre Bruno Covas (PSDB) e França, a eleição em São Paulo teria uma particularidade não vista desde 1985: nenhum candidato de esquerda em primeiro ou segundo lugar. Embora filiado ao PSB, França é um político de centro. Centristas têm alguma dificuldade para chegarem ao segundo turno, mas vantagem quando cruzam esta barreira, por oferecerem atrativos aos dois polos.
O curioso é que Covas, ao contrário do que fez o governador João Doria há dois anos, ao buscar associação com Bolsonaro, também se coloca no centro. Caso haja este duelo, a eleição paulistana quebraria a tendência nacional de polarização. Ambos teriam que buscar tanto os eleitores de Boulos quanto os de Russomanno, o que embalhararia o segundo turno.
Carlos Melo: Qual a razão da força de Trump?
A força do mal-estar dos excluídos pela 4ª Revolução é que faz Trump ousar e contestar
Goste-se ou não, Donald Trump é um forte. Pois, posto à sabatina do manuais da política, fez tudo ao contrário do que se pode esperar de um presidente de um grande país: governou basicamente para seus eleitores; fragmentou ao invés de agregar; açulou o ódio racial, o hedonismo, a arrogância. Criou mais confusões do que concórdia, não deu caminhos de solução para os problemas; não apontou saídas para os impasses de uma sociedade perdida na transição entre a velha e a nova economias. E, ainda assim, Donald Trump chegou longe, a ponto de, desde o início da apuração, deixar analistas assustados com a hipótese de mais uma surpreendente vitória. Seu desempenho é melhor do que muita gente esperava.
Qual a razão dessa força de Donald Trump? Seu poder não brota de qualidades pessoais, certamente. Ela não reside no seu carisma duvidoso; na rudeza de seus gestos ou na estreiteza de sua sofisticação intelectual. No palco da grande política mundial, Trump não passa da categoria de canastrão incapaz de ombrear-se com grandes nomes da história – a comparação que tentou forjar com Abraham Lincoln soou risível. Seus atos e seu texto são limitados, voltados para o público do que os próprios americanos chamariam de soap opera, novelas e dramalhões de gosto duvidoso.
E, por tudo isso, mais uma vez a pergunta se faz necessária: qual a razão de sua força? Sua força brota do mal-estar da sociedade; no pouco-caso com que a economia tem tratado milhões de pessoas desalojadas do mundo do trabalho, inviabilizadas para a sociedade do consumo, apartadas dos salões chiques onde se reúnem ricos e intelectuais, despreocupados com o que fazer com toda a desigualdade. Donald Trump e seus genéricos mundo a fora surgem na incapacidade que a política e a democracia têm demonstrado em relação ao futuro.
É certo que Trump tampouco demonstrou saber o que fazer com tudo isso: objetivamente, não tem projeto. Mas, é fato que no seu estilo bruto e sem brilho tem sabido dialogar com essa multidão de esquecidos pela política e pela globalização dos ricos, vocalizando todo seu rancor e sua fúria. Trump fala a língua do desespero.
Há que se admitir que Barack Obama, com suas imensas qualidades – seu charme, elegância e humanismo –, foi incapaz de estabelecer conexão direta com essa população brutalizada pela vida, pela desigualdade, pela incompreensão de um liberalismo dogmático e pela presunção de políticos que acreditam poder passar ao largo do mal-estar do mundo moderno. É essa força que expressa o mal-estar da civilização contemporânea, que faz Trump ousar a contestar uma eleição possivelmente perdida, dentro das regras do jogo.
Esse poderá ser o grande desafio de Joe Biden, se triunfar o democrata: compreender os problemas de seu país – e por que não do mundo –, estabelecer vínculos com os rejeitados pela 4.ª Revolução.
✽Cientista Político, professor do Insper
Rubens Barbosa: Judicialização do processo
O recurso que Donald Trump está interpondo à Suprema Corte diz respeito ao resultado da apuração em alguns Estados e o que está sendo pedido é a recontagem ou a anulação de votos
Na eleição presidencial de 2000, acompanhei de Washington o impasse na apuração dos votos na Flórida, que gerou pedido de George Bush à Suprema Corte para suspender a contagem dos votos. Depois de um mês de incertezas, o Judiciário, por um voto, decidiu suspender a apuração e, com isso, o candidato republicano venceu a eleição naquele Estado e tornou-se presidente dos EUA.
A situação hoje é diferente. O recurso que Donald Trump está interpondo à Suprema Corte diz respeito ao resultado da apuração em alguns Estados (Pensilvânia, Geórgia, Nevada e Michigan) e o que está sendo pedido é a recontagem ou a anulação de votos. Como a Suprema Corte decidiu recentemente que todos os votos devem ser contados, dificilmente a judicialização favorecerá o atual presidente.
Trump tem repetidamente colocado em dúvida o sistema eleitoral, prevendo fraudes e contestando o sistema de votos pelo correio, sem nenhuma evidência. Na noite do dia 3, à frente na maioria dos Estados, afirmou que havia vencido, mas que havia uma manobra para “roubar” a eleição e dar a vitória para o candidato democrata.
O resultado da apuração mostrou o alto grau de divisão existente hoje nos EUA. A pequena margem entre os dois candidatos encoraja a alegação de Trump. Duvidar da legitimidade eleitoral pode abalar a confiança pública no sistema, embora tenham sido raros os casos de ilícitos comprovados ao longo da história política dos EUA e nenhum deles afetou o resultado final.
Apesar de o sistema eleitoral americano não dispor de uma Justiça Eleitoral nacional, mas estadual, é constrangedor ver um presidente, no exercício de suas funções, questionar a lisura das apurações com acusações sem provas. Trata-se de um mau exemplo, vindo de um país que tem a pretensão de ser um modelo democrático para o mundo. Essa atitude representa um sério problema para o funcionamento do sistema eleitoral no futuro, pelas incertezas que desperta, mas não chega a ameaçar nem a democracia nem a credibilidade do país.
A repetição desse recurso, em prazo tão curto, começa a despertar discussões sobre a necessidade de revisitar o sistema eleitoral. Deverão aumentar as críticas à eleição indireta por um colégio eleitoral, com regras que variam de Estado a Estado, e a apuração manual, longe das urnas eletrônicas. As mudanças, contudo, serão difíceis, sobretudo se, com Joe Biden, o Senado continuar com maioria republicana.
A Suprema Corte também poderá começar a ser visada, sobretudo em relação à forma como os juízes são escolhidos. Como no Brasil, a escolha é feita por indicação do presidente, com forte influência ideológica. Sistema eleitoral e Suprema Corte passarão a ser temas de discussão no cenário político americano e poderão estimular esse debate também no Brasil.
*Foi embaixador do Brasil nos EUA
Pedro Doria: O golpe de Trump e as redes
Nesta semana, um presidente americano tentou impedir que votos fossem contados. Isto tem nome. É golpe de Estado
É inevitável, nesta semana eleitoral americana, que nos debrucemos sobre a constatação de que mudou de vez a maneira como se portam as plataformas de redes sociais. Facebook, Instagram e Twitter agiram ativamente para conter a circulação e alertar os usuários a respeito das tentativas de inflamar a população e dos ataques frontais aos ritos democráticos pelo presidente americano, Donald Trump. A ação não surpreende — já haviam anunciado que fariam isso. A decisão é responsável. É também polêmica. Por um motivo muito simples: é uma decisão editorial. Uma decisão de editor.
A questão fundamental aqui é simples: o que é uma rede social? Melhor começar pelo que não é. Parece, mas não é a praça pública. Embora seja um ambiente no qual muitos de nós nos reunimos para conversar sobre o que é do interesse da sociedade ou mesmo nos informarmos, embora elas até pareçam com uma versão digital da praça pública, elas não são um bem coletivo. O problema não é nem que tenham dono, que sejam privadas. O problema é que seu controle é planetariamente concentrado nas mãos de poucos. O ideal é que tivéssemos muitas redes sociais e nenhuma fosse dominante, que todas fossem de donos distintos e que portanto seu impacto total fosse distribuído. Que a decisão de um destes donos não tivesse capacidade de estragos imensos na sociedade. Não é assim, infelizmente.
A praça pública é este ambiente coletivo que criamos, enquanto sociedade, no qual discutimos sobre o que é de nosso interesse conjunto. É onde, juntos, nos convencemos uns aos outros em diálogo constante para que possamos ir às urnas tirar conclusões. Mas a realidade é que este ambiente privado e com pouquíssimos donos, as redes sociais, é onde conversamos hoje sobre nossa política. Esta propriedade concentrada está diretamente ligada à ascensão de populistas autoritários e, em grande parte, isto ocorre porque o ambiente foi construído com inúmeros vícios. Um deles são os algoritmos que manipulam nossos cérebros para nos prender. Ficamos horas e horas perante estas telas. Outro é que estes mesmos algoritmos são susceptíveis a distribuir mais o que nos incita uns contra os outros. A reforçar tribalismo ao invés de união.
Muitos ativistas defendem que as redes não deveriam interferir manualmente para que notícias falsas circulem, para que líderes populistas possam atacar suas democracias. Afinal, se interferem nisto, podem interferir em qualquer coisa. É verdade. Podem mesmo. Mas interferência já existe. Edição já existe. É a dos algoritmos. A entrada ‘manual’, a decisão de entrar num post no qual Donald Trump incita sua militância a considerar fraude eleitoral a contagem de votos numa democracia não é apenas correta. É a medida responsável a se tomar.
Só que é uma medida que também redefine estas redes sociais. Elas não são meras plataformas, ambientes neutros nos quais conversas ocorrem. São veículos que definem o que pode e o que não pode ser dito nelas. Elas editam, como jornais e revistas. Assim como jornais e revistas, quando uma autoridade mente, elas informam a seus leitores — não usuários, leitores — que aquilo dito é mentira. E as redes como são muito poucas, sua propriedade é concentrada e têm escala planetária, oferecem às democracias um problema novo, muito grande e barbaramente complexo.
Isto tudo posto, é preciso reconhecer que houve avanço. Porque é importante não ter ilusão, esta semana o inimaginável ocorreu. Um presidente americano tentou impedir que votos fossem contados. Isto tem nome. É golpe de Estado. Não chegou perto de ter chances de dar certo. Em grande parte, porque as redes sociais atuaram como editoras. Corretamente. Que atuem com a mesma responsabilidade por aqui.
Luiz Carlos Azedo: Hora de cair na real
O governo está desorientado, o ministro da Economia, Paulo Guedes, parece enveredar pelo “quanto pior, melhor”, para prorrogar a “economia de guerra”
Vinte e quatro horas passaram-se, e as eleições para a Presidência dos Estados Unidos continuam no rumo de uma crise institucional, porque Donald Trump não quer sair da Casa Branca como derrotado e, por isso, constrói uma narrativa de que a votação de Joe Biden foi fraudada. Desde ontem, a contagem dos votos estava 264 a 214, faltando apenas seis delegados para o desfecho já previsível — a vitória de Biden —, mas a chicana republicana, além de atrasar o resultado final e acirrar a tensão social, pode resultar na sobrevivência do trumpismo como robusta força de oposição, negacionista, ainda mais antidemocrática e reacionária. Não devemos subestimar esse fato aqui no Brasil, porque isso se reproduzirá como discurso da ala ideológica do governo Bolsonaro.
Amplos setores da sociedade e uma parte significativa do governo torcem por Biden, na esperança de que isso signifique uma mudança de rota na nossa diplomacia e na política ambiental. “O homem é o homem e a sua circunstância”, dizia o filósofo espanhol José Ortega e Gasset, 100 anos atrás. Bolsonaro precisa cair na real de que a situação na economia é perigosa e tanto a política externa quanto a ambiental complicam desnecessariamente a vida de nossos agentes econômicos. O Brasil está em apuros financeiros, a conta da pandemia do novo coronavírus está chegando a passos de ganso. O governo está desorientado, o ministro da Economia, Paulo Guedes, parece enveredar pelo “quanto pior, melhor”, para prorrogar a “economia de guerra” e fugir à responsabilidade do ajuste nas contas públicas.
Ontem, o Tesouro teve dificuldades para rolar a dívida pública, nos relata Vicente Nunes, no Correio Braziliense. Da oferta de até 750 mil títulos indexados à taxa Selic, as chamadas LFTs, com vencimento em 2022 e em 2027, foram comprados 433,5 mil, ou seja, 49%. O Tesouro arrecadou R$ 4,7 bilhões, menos do que na semana passada, quando vendeu R$ 5,19 milhões em títulos. A taxa Selic (2% ao ano) está abaixo da inflação, que já passa dos 3%.
Para rolar a dívida pública, outra alternativa está sendo vender títulos pré-fixados, as chamadas LTNs, com taxas bem acima da Selic. Esses títulos são de curtíssimos prazo, com vencimentos em 2021, 2022 e 2024. Ontem, 8 milhões de títulos expirando em 2024 foram vendidos, com taxa de juros 6,39% ao ano, para o governo arrecadar R$ 6,6 bilhões. Mais R$ 1,8 bilhão foram arrecadados com a venda desses títulos com vencimento em 2022. Um terceiro lote, com vencimento no próximo ano, de 5 milhões de unidades, foi vendido que integralmente, arrecadando R$ 4,9 bilhões para os cofres do Tesouro.
Populismo
O problema é que o governo está pagando uma taxa de 7,39% ao ano para títulos pré-fixados com vencimento em 2021. É um excelente negócio para quem tem dinheiro para investir, mas péssimo para um governo que não tem como pagar suas contas sem se endividar ainda mais, e terá de resgatar esses títulos no próximo ano. É onde mora o perigo, porque os sinais de afrouxamento fiscal vêm de todo lugar. Na quarta-feira, por exemplo, o Congresso derrubou o veto de Bolsonaro às desonerações trabalhistas, que foram prorrogadas por mais um ano, com uma impacto na queda de arrecadação de R$ 4,9 bilhões.
No lusco-fusco das eleições norte-americanas, foi aprovada pela Câmara uma garfada de R$ 1,4 bilhão dos recursos da Educação básica para obras de infraestrutura, uma reivindicação dos políticos do Centrão. Farinha pouca, meu pirão primeiro: tiraram do futuro das crianças para as obras indicadas pelas legendas que apoiam o governo, a cargo dos ministérios do Desenvolvimento Regional e da Infraestrutura. Não é à toa que Bolsonaro mantém seu périplo pelo Nordeste. Em vez de avançar nas reformas administrativa e tributária, caminha-se para romper o teto de gastos e implantar, a qualquer preço, o projeto Renda Cidadã. A discussão sobre o Orçamento da União, em que o pacto populista pode ser consolidado, é empurrada com a barriga, na surdina, para o recesso parlamentar.
Há sinais de recuperação da indústria, muito positivos, que poderiam apontar noutra direção, se fossem acompanhados de uma proposta efetiva de retomada da economia. Entretanto, o governo não tem prioridades, improvisa. A política de Bolsonaro é feita sem estratégia, na base da transa com objetivos eleitorais imediatos. Nesse aspecto, as eleições municipais estão mostrando um cenário em que os eleitores estão sendo bem mais pragmáticos e objetivos, estão refratários a aventuras e apostam nos políticos com propostas e bons serviços prestados.
Ivan Alves Filho: O populismo, ontem e hoje
Trata-se de um equívoco acreditar que o fascismo seja um fenômeno de economias pouco desenvolvidas. Os fatos não mentem: tanto a Itália de Mussolini quanto a Alemanha de Hitler se alinhavam entre as nações mais industrializadas da Europa, nas décadas de 20 e 30, do século XX. O fascismo pode ser expressão do atraso, mas do atraso político.
O mesmo podemos dizer em relação ao populismo brasileiro. Seu berço maior é São Paulo, a chamada locomotiva do Brasil. Dali partiram Ademar de Barros, Jânio Quadros, Paulo Maluf e Lula da Silva.
Ademar foi interventor federal sob o regime estadonovista (1938-1941), duas vezes governador de São Paulo (1947-1951 e 1963-1966) e duas vezes candidato à presidência da República, ficando na terceira colocação em ambas as disputas (1955 e 1960). Deu origem ao ademarismo.
Jânio Quadros foi vereador por São Paulo (1948-1950, quando assumiu o mandato após a cassação dos vereadores do Partido Comunista - PCB). Em seguida, foi eleito deputado estadual (1951-1953), prefeito de São Paulo (1953-1955), governador (1955-1959) e, finalmente, Presidente da República (eleito em 1960). Uma carreira meteórica, portanto. Deu origem ao janismo.
Paulo Maluf foi outro populista de São Paulo. Teve uma carreira parecida com aquela dos demais: prefeito de São Paulo (1969-1971 - voltando ainda ao posto nos anos 90), governador (1979-1982) e candidato à Presidência da República, perdendo para Tancredo Neves, a 15 de janeiro de 1985, no Colégio Eleitoral. Deu origem ao malufismo.
Luiz Inácio Lula da Silva, sindicalista, disputou o governo de São Paulo em 1982, perdendo as eleições. Posteriormente, disputaria as presidenciais nada mais nada menos do que quatro vezes, vencendo o último pleito, em 2002, exatamente 20 anos depois de disputar o governo paulista. Deu origem ao lulismo.
Todas essas candidaturas têm em comum a demagogia, o despreparo administrativo, o aventureirismo, o conluio com o grande capital, o autoritarismo, apoiando-se sobre a figura de um líder carismático, que tenta passar por cima das instituições, desprezando-as e buscando o diálogo direto com as massas populares. Todas se revelaram uma farsa política.
É possível que já esteja em gestação - não para agora; nunca é… - uma nova candidatura populista, partindo de São Paulo.
Daí a importância da união do Campo Democrático na principal unidade da Federação, rechaçando o populismo - muitas vezes um fascismo que não ousa dizer o nome - do nosso horizonte. E essa união pode ser realizada em torno de Bruno Covas.
É possível. Também.
*Ivan Alves Filho, historiador, autor de mais de uma dezena de obras, das quais a última é A saída pela democracia (2020)
Bernardo Mello Franco: Trump igualou os EUA a uma república bananeira
Os americanos gostam de dar lições de democracia, mas não têm muito a ensinar sobre eleições. Mais uma vez, a corrida à Casa Branca terminou em tumulto. Ontem à noite, ainda não era possível cravar quem venceu a disputa presidencial.
Parte dos problemas decorre de um sistema arcaico. Os Estados Unidos resistem a abandonar o voto indireto, que distorce a vontade dos cidadãos. Quem recebe mais votos nem sempre leva a Presidência. Na matemática do colégio eleitoral, um morador do Wyoming vale por três da Califórnia.
A apuração dos votos também deixa a desejar. No país mais rico do mundo, muitos estados ainda usam cédulas de papel. Em 2000, a eleição empacou por falhas na contagem de cartões perfurados. Agora o problema é a demora para contabilizar os votos enviados por correio.
Na disputa deste ano, surgiu um novo e poderoso fator de incerteza. Mau perdedor, Donald Trump quer garantir sua reeleição no grito. Ele cantou vitória antes da hora e disse, sem qualquer prova, que haveria fraude para prejudicá-lo. Um factoide para tumultuar o processo e desacreditar os números oficiais.
O circo armado pelo republicano igualou os EUA a uma república bananeira. Se um líder latino-americano fizesse algo parecido, seria chamado de golpista e candidato a ditador. As ameaças de Trump não despertam a mesma indignação de entidades que dizem zelar pela democracia, como a OEA.
Vista do Brasil, a a confusão americana sempre causa espanto. Aqui a votação é eletrônica e os resultados são divulgados em poucas horas. Na noite da eleição, o país já sabe quem o governará pelos próximos quatro anos. Isso não significa, no entanto, que a nossa democracia seja muito melhor que a deles.
Enquanto os americanos contavam seus votos, o MP informou que Flávio Bolsonaro finalmente foi denunciado no caso da rachadinha. Acusado de embolsar dinheiro público, o senador passou o feriado em Fernando de Noronha com passagens pagas pelo Senado. Nos EUA, ele já teria perdido o mandato e trocado o paletó por um uniforme laranja.
Ascânio Seleme: Frustração, vergonha e medo
Uma parcela gigantesca da população acreditou e segue acreditando em Trump
Mesmo que Joe Biden ganhe a eleição, o fato que se sobrepõe é que os poderosos Estados Unidos são uma nação aterrorizada pelo medo. Há diversas explicações para os milhões de votos dados a Donald Trump, o mais antidemocrático presidente americano de todos os tempos, mas o fantasma do radicalismo de esquerda é de longe o fator mais importante. Uma parcela gigantesca da população acreditou e segue acreditando na acusação de Trump de que Biden e os democratas são perigosos socialistas. Uma bobagem sem tamanho. Nas questões econômicas, os democratas estão mesmo à direita dos republicanos.
Ainda assim, o discurso de que políticas socialistas dos democratas mudariam a cara dos EUA se Biden ganhasse conquistou número astronômico de eleitores. O avanço de Trump sobre os votos hispânicos, tradicionalmente democratas, ajuda a explicar esse medo. Trump disse ao longo da campanha, e mesmo antes dela, que os democratas abririam as fronteiras. Mentira. Mas, se fosse verdade, poderia se supor que seria uma boa novidade, porque enfim os imigrantes se reuniriam com familiares que ficaram para trás. Nada disso. Mais de 75% dos hispano-americanos nasceram nos EUA, seus círculos familiares e pessoais estão lá assentados, e uma abertura ampla para imigração ameaçaria diretamente seu posto de trabalho.
Deve-se considerar também que os hispânicos são religiosos e conservadores. Na Flórida, onde Biden perdeu, os cubano-americanos lideram a comunidade e extravasam seu ódio ao comunismo desde 1960, quando Fidel Castro tomou o poder em Cuba. Nos últimos 20 anos, um grande contingente de venezuelanos imigrou para o estado americano, fugindo da política de Chávez e Maduro, e trouxe na bagagem o mesmo espírito. Além disso, ao redor dos Estados Unidos, o medo do desarranjo econômico que os “esquerdistas radicais” poderiam produzir também impulsionou a campanha de Trump.
Apesar de a economia americana ter sofrido um impacto enorme com o coronavírus, como de resto o mundo inteiro, americanos médios que acreditam na retórica de Trump tremem de pavor só em pensar que a situação pode se degradar ainda mais sob o comando dos “radicais” democratas. A aposta de que a economia poderia definir uma eleição e o slogan “America First” (América em primeiro lugar) mais uma vez acalentaram corações assustados.
A verdade, até este ponto da apuração, é que os votos no presidente que busca a reeleição surpreenderam os republicanos e frustraram os democratas. Todos, uns efusivos e outros calados, esperavam uma vitória clara e incontestável de Joe Biden. O que se vê, mesmo que as projeções estejam certas e ocorra uma vitória democrata, é que as pesquisas mais uma vez erraram. A eleição que se esperava dar com uma vantagem categórica pode acabar nos tribunais.
A diferença entre a expectativa e o resultado que emergiu das urnas, que também se explica pelo medo, tem um outro componente, visto reiteradamente em eleições ao redor do mundo. As pessoas mentem aos pesquisadores por vergonha, sobretudo numa eleição como esta, inflamada pelo descaso do presidente com o coronavírus e pela campanha “Vidas negras importam”. Muitos dos que queriam manter Trump na Casa Branca por razões genuinamente políticas podem ter se sentido constrangidos em apontar corretamente seu voto. Poderiam parecer negacionistas ou, pior, aliados dos supremacistas brancos.
Claro que os Estados Unidos saem desta eleição mais divididos do que nunca. Isso já foi dito pelos analistas, desnecessário acrescentar qualquer coisa. Mas é importante ressaltar que a chance de se reconstruirem pontes é muito mais provável se Biden for o eleito. O democrata é um conciliador pragmático que saberá desobstruir canais e aproximar opostos em torno de objetivos comuns. Esse é seu perfil. O contrário, a reeleição de Trump, seria mais do que a manutenção do estado de beligerância interna, seria seu aprofundamento. Nesse caso, nada mais atual que o velho provérbio americano: “A única coisa que se aprende em uma nova eleição é que não aprendemos nada com a última”.
Maria Hermínia Tavares: A sombra do populismo
Ganhando ou perdendo eleições, o populismo está aí para ficar
Se confirmada, a derrota de Donald Trump fará bem à democracia nos Estados Unidos e no mundo. Atestará que a corrosão das instituições representativas não é a única sina dos países que se entregaram a líderes populistas. Tendo ascendido pelo voto livre, podem ser por ele dispensados antes de consumar os seus projetos autoritários.
Mas o provável resultado das eleições americanas não garante a transferência suave do governo para os democratas. E ainda que ocorra no final das contas, enfraquecerá, mas não erradicará, lideranças que, naquele país ou em qualquer outro, e não apenas nos dias que correm, se afirmam representantes do "povo verdadeiro" —o volk, no jargão nazista— em contraposição a elites cosmopolitas, surdas aos anseios das pessoas comuns. Em seu nome, os populistas agem para solapar as regras que limitam o poder dos governantes e garantem os direitos de todos, inclusive das minorias.
A Itália oferece um exemplo da força e resiliência do fenômeno. Desde que o sistema de partidos do segundo pós-Guerra, ancorado na Democracia Cristã, veio abaixo nos anos 1990, políticos populistas, ora no governo, ora na oposição, tornaram-se participantes destacados da vida política do país. Casos de Silvio Berlusconi, Giuseppe Conte, Matteo Salvini, Beppe Grillo, à frente de diferentes partidos —Força Itália, Liga Norte, Liga, Movimento 5 Estrelas— com significativa projeção eleitoral.
"O populismo é uma sombra permanente da moderna democracia representativa" diz o historiador alemão Jan Werner Müller, da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos. Alimenta-se do que o filósofo italiano Norberto Bobbio chamou de promessas não cumpridas da democracia. Populistas exploram expectativas frustradas e variados temores, reais ou imaginários: do desemprego, da destituição, dos imigrantes, dos negros, dos pobres, dos esquerdistas ateus. E se beneficiam da exposição às feias engrenagens da política por parte de um público mais informado.
O fato é que, já há algumas décadas, a desconfiança dos cidadãos em face de partidos, parlamentos e governos só faz crescer em todo o mundo democrático. No Brasil, a propósito, é assustadoramente elevada. Cidadãos insatisfeitos e desconfiados são mais sensíveis a políticos, tanto faz se de direita ou de esquerda, para os quais a vitória eleitoral é só o que conta, não passando de um estorvo os mecanismos de controle do poder típicos do sistema representativo.
Ganhando ou perdendo eleições, o populismo está aí para ficar. Mas fará toda a diferença para a democracia sempre que for batido nas urnas.
*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.