Trump
Luiz Sérgio Henriques: Derrotar Trump, desconstruir o trumpismo
Não há possibilidade de escrever nem mesmo uma linha sobre política que não carregue consigo a alta tensão elétrica que nos rodeia e angustia. A atmosfera pesada em que temos vivido não se dissipará com o provável resultado favorável a Joe Biden nas eleições norte-americanas, e não só por causa do arsenal de chicanas que são o elemento vital de personagens como Donald Trump. Mais do que isso, a direita subversiva no poder – não podemos esquecer nunca que há outras modalidades de direita, que aderem aos valores constitucionais e, por isso, são participantes com todos os títulos do jogo democrático – sempre deixa como herança um terreno deliberadamente minado; e, como se sabe, minas explodem muito tempo depois de terem sido enterradas, estropiando e matando aleatoriamente. Continuaremos, por isso, a conviver com o perigo por tempo indeterminado.
O caso norte-americano é, na prática, um exemplo de manual, pronto para ser aplicado, ou reiterado ainda mais fanaticamente, em várias partes do mundo. Por mais que Trump e o Partido Republicano, remodelado ao seu feitio, tenham obtido resultados não previstos pela generalidade das pesquisas, o fato é que essencialmente lidamos com um líder e um agrupamento de vocação “minoritária”. Maiorias eleitorais, se e quando acontecerem, serão conquistadas a golpes publicitários, manipulação nas redes sociais, difusão organizada de fake news, tudo voltado para a exploração de medos e paranoias coletivas. Não se faz nenhum segredo quanto a isso.
Nunca é muito difícil achar bodes expiatórios contra os quais mobilizar artificialmente eventuais maiorias: a partir do judeu, o “outro” do Ocidente por excelência, podem-se inventar variados inimigos da raça superior ou da pátria excepcional. Houve um tempo, por exemplo, em que judeus e bolcheviques se misturavam e viravam alvo deste tipo doentio de imaginação; mesmo hoje, por trás dos tais “comunoglobalistas”, pode-se entrever a cauda repugnante do velho antissemitismo. E, como estamos no terreno resvaladiço do engodo, também não é complicado canalizar o ódio e o desprezo para outros portadores de estigma – para o imigrante, por exemplo, inclusive o de origem islâmica. Não se peça coerência e racionalidade ao moderno populismo de extrema direita: a linguagem do ódio é o seu meio, o objeto dela pode variar amplamente ao sabor do acaso.
Empregada como método, esta linguagem tem como resultado a regressão intelectual de amplas camadas da população e a consequente degradação da esfera pública. O que se busca é romper o nexo virtuoso entre participação e conhecimento, democracia e ciência, política e cultura. Seitas como QAnon, especializadas em caçar supostos pedófilos entre opositores políticos e até líderes religiosos, aparecem ruidosamente em cena, reivindicando voz e representação parlamentar. Para não falar, ainda no caso norte-americano, de milícias tão fortemente armadas que tornaram há quase duas décadas o “terrorismo doméstico” uma ameaça muito mais real e presente do que o extremismo jihadista ou qualquer outro extremismo.
Não é possível nos determos aqui nas vertiginosas mudanças “estruturais” que abalam as sociedades modernas e que, “em última análise”, como talvez ainda se possa dizer, condicionam fenômenos como os brevemente apontados. É inteiramente certo, porém, que estes últimos obedecem a uma dinâmica própria e gozam de ampla autonomia. É no contexto deles que vastas parcelas da população se mobilizam, muitas conjunturas eleitorais se definem, dificuldades econômicas e medos existenciais encontram uma explicação qualquer, por mais torta ou equívoca que seja.
O conservadorismo revolucionário – valha-nos o oxímoro – explora e aprofunda tais dificuldades; por definição, não pretende governar democraticamente os conflitos ou buscar alguma forma de recomposição social, mas sim afirmar um poder autocrático por sobre sociedades profundamente divididas ou mesmo dilaceradas em razão de situações agudamente críticas. Sequer uma circunstância pandêmica, como a que vivemos, “comove” este tipo de poder. A máquina econômica tem de seguir adiante inapelavelmente, como se não houvesse nada ao redor, e isso é tudo.
Se há algum consolo no drama que nos afeta, é que, pelo menos num plano mais imediato, não há maiores dúvidas para o diagnóstico: a crise do nosso tempo está toda contida na oposição entre democracia política e subversão de direita (bem entendido, a “direita revolucionária”). Neste sentido, os democratas americanos, até o momento, agiram magnificamente em meio às dificuldades sabidas. Bem verdade que, dado o bipartidarismo vigente naquele país, a montagem da amplíssima frente necessária para barrar a reeleição de Trump constituiu um assunto interno dos próprios democratas, o que em tese terá facilitado suas ações ao longo da campanha pré-eleitoral.
O resultado alcançado diz muito: Joe Biden e Kamala Harris não são um mero biombo atrás do qual se escondem perigosos socialistas e comunistas, mas, antes, a expressão de um centro forte e pragmático, capaz de atrair os republicanos tradicionais que não se submeteram a Trump. E desta vez, ao contrário de 2016, a própria esquerda partidária, representada entre outros por Bernie Sanders, parece ter entendido a dimensão da aposta em jogo: sem ocupar o centro político, só pode haver proposições virulentas e minoritárias, cujo método de ação é o caos, a demagogia, a manipulação. Em suma, só pode haver, e nos seja perdoada nova expressão paradoxal, leninismos de esquerda e de direita, todos os dois muito aquém dos requisitos da política contemporânea e portadores de soluções autoritárias.
Vencer eleitoralmente é, pois, a tarefa imediata rumo à recuperação de um mínimo de equilíbrio e sanidade. Desarmar as minas retardatárias do trumpismo e seus avatares mundo afora é outra história, muito mais complexa, que nos ocupará por muito tempo nos Estados Unidos e nos outros países do Ocidente político, o que inclui obviamente o Brasil.
*Luiz Sérgio Henriques, tradutor e ensaísta, foi um dos responsáveis pela mais recente edição das “Obras” de A. Gramsci (Civilização Brasileira), em 10 volumes. Preparou, em particular, as Cartas do cárcere. Em colaboração com Giuseppe Vacca, coordenou o livro Gramsci no seu tempo (Fundação Astrojildo Pereira, 2019, em segunda edição). Dirige, nesta Fundação, a coleção Brasil & Itália, com duas dezenas de livros publicados. Sua atividade de tradutor tem como eixo difundir a cultura democrática e socialista italiana. Há 10 anos é colaborador regular de O Estado de S. Paulo, uma colaboração de que resultou o volume Reformismo de esquerda e democracia política (Verbena & FAP, 2018).
Marcus Pestana: Os ventos que sopram do norte
Quase tudo já foi dito sobre as eleições americanas. Escrevo ainda no calor da apuração depois da postagem de mensagens dos dois candidatos à presidência dos EUA no Twitter que dão a dimensão do impasse que assistiremos nos próximos dias. Donald Trump lançou em letras garrafais: “Parem a contagem!”. Em direção oposta o democrata Joe Biden afirmou: “Todos os votos devem ser contados”. Mas, as primeiras iniciativas de judicialização das eleições demonstram que o conflito político se arrastará por dias, semanas.
Nunca houve na história americana um presidente que confrontasse de tal forma as instituições, tradições e práticas democráticas. Trump não tem nenhuma contenção na instrumentalização do poder e não reconhece legitimidade em seus adversários e críticos. Foi apontado por estudo da Universidade de Cornell como o maior disseminador de desinformação sobre a COVID e tornou prática cotidiana a promoção de fakenews “chapa branca” contra adversários.
A vitória de Biden tem dimensão histórica e universal em dois sentidos. O primeiro é o fortalecimento da democracia nos EUA e no mundo, revertendo a onda que se convencionou chamar de “populismo autoritário”. A postura agressiva e antidemocrática de Trump ecoa e estimula a radicalização de setores de extrema-direita em escala global. A eleição de Biden vai permitir que ele se alinhe a estadistas como Angela Merkel e Emmanuel Macron na defesa dos fundamentos do sistema democrático, do valor da tolerância e do diálogo, e do compromisso com a liberdade em todas as suas facetas. O segundo sentido é, em substituição ao unilateralismo do “América first”, a retomada do multilateralismo e a valorização da integração global para o enfrentamento conjunto dos desafios sociais, econômicos, sanitários, ambientais, militares e de combate ao terrorismo. Acordos, como o de Paris em favor do desenvolvimento sustentável, serão revalorizados e organismos multilaterais receberão o prestígio que merecem.
Aqui no Brasil temos muito a aprender e mudar. Dissolver o clima de contaminação ideológica das teorias da conspiração reinantes. Não há plano macabro e secreto da China de implantar o comunismo em escala global através da vacina, do 5G, ou seja lá do que for. Não há uma armação diabólica e um fio condutor ligando a nova constituição do Chile, a vitória da esquerda na Bolívia, o moribundo governo Maduro e o fracasso peronista na Argentina. É preciso urgentemente recuperar as melhores tradições diplomáticas brasileiras que sempre advogaram uma postura independente, profissionalizada, pragmática e sem alinhamentos automáticos. Não deveríamos ter saído da ideologização introduzida pelo petismo de um “terceiro-mundismo equivocado” para o extremo oposto de um alinhamento político e ideológico absoluto e sem resultados com Donald Trump.
Por último, o processo eleitoral jogou luzes sobre aspectos em que o Brasil está muito melhor que os EUA. Isto é uma verdadeira vacina contra o nosso suposto “complexo de vira-lata” ou de “pária internacional”. Temos um sistema público de saúde (SUS) mais bem resolvido que o americano, apesar de nosso investimento público por habitante ao ano ser nove vezes menor do que nos EUA (US$ 500 dólares aqui e US$ 4.500 lá). E, sem dúvida, o nosso sistema de eleição do presidente da República e de apuração é muito superior.
*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB- MG)
Hélio Schwartsman: Democracia na América
Sistema eleitoral nos EUA é pouco republicano e ruim de apurar
Se fizéssemos um concurso para escolher o pior sistema eleitoral do planeta, teríamos dificuldades para projetar algum que superasse o americano. Ele é pouco republicano (os votos dos cidadãos não têm o mesmo peso), ruim de apurar e multiplica por 51 a probabilidade de resultados apertados que podem dar margem a contestações. Ainda assim, não vejo como se possa afirmar que os EUA não são uma democracia.
E isso nos leva ao tema da coluna de hoje: boas leis ajudam a criar um ambiente favorável à democracia e a outras virtudes públicas, mas é possível exercê-las mesmo se as leis não forem muito boas. Temos um justificado fetiche por protocolos e normas escritas que tanto nos facilitam a vida, mas eles são só a face mais visível da institucionalidade, que, ao fim e ao cabo, tem mais a ver com os comportamentos e atitudes adotados no mundo real do que com sua codificação.
Isso nem deveria ser uma surpresa. O Reino Unido e Israel são democracias mesmo sem dispor de uma constituição escrita. No polo oposto, a constituição soviética de 1936 era ótima no capítulo dos direitos e liberdades, o que não impediu a URSS de ser uma ditadura.
Nada disso era segredo para Tocqueville, que, em sua obra clássica, identificou nas atitudes da sociedade civil a força da democracia na América. Podemos ter visto uma demonstração disso na reação de cidadãos, empresas e instituições à tentativa de Trump de melar as apurações.
O presidente transpôs uma linha vermelha, porque até políticos aliados e órgãos de comunicação simpáticos ao magnata rejeitaram com veemência seu discurso delirante sobre fraudes. Redes de TV aberta chegaram a interromper a transmissão de sua fala. Algo parecido se deu nas redes sociais. Órgãos federais, como a FAA (agência federal de aviação) e o Serviço Secreto, em tese subordinadas a Trump, já começaram a proteção do virtual presidente eleito —sem perguntar nada para o chefe.
Míriam Leitão: O inesperado caminho de Biden
Joe Biden parecia a pessoa errada mas passou todo o tempo provando ser a pessoa certa. Era preciso saber escalar quem enfrentaria nas urnas o presidente mais perigoso da história para a democracia americana. O Partido Democrata o escolheu. Joe Biden não tem a popularidade de Bernie Sanders, a combatividade de Elizabeth Warren, é um homem branco, o mais velho a postular o cargo, sem carisma, sem o dom da oratória e, como ele mesmo tornou público, foi gago. Além disso, foi acusado durante as primárias — época de explicitar divergências partidárias internas — de ser próximo demais de republicanos. Ele venceu as eleições contra o presidente que mais usou a presidência para os seus propósitos eleitorais. Onde foi que ele acertou?
Ele acertou em chamar Kamala Harris para a sua chapa. Ela representa um outro patamar no nível de representatividade que toda democracia deve almejar. Primeira em muitos quesitos. Mulher, negra, filha de um latino e uma asiática, casada com um judeu. Quando ela se sentar na sala de vice-presidente dos Estados Unidos muitas barreiras estarão sendo superadas. Com Kamala se retoma também a caminhada dos negros para uma sociedade de iguais. À eleição de Barack Obama se seguiu um movimento radical no sentido oposto. O presidente Donald Trump é supremacista, como tornou evidente.
Joe Biden acertou em ser ele mesmo. A empatia que todos dizem ser da sua natureza foi mostrada na campanha. E esse era um elemento que faltava na política do país mais atingido pela pandemia de Covid-19. Seus dramas pessoais foram muitos e são conhecidos. Ele os expôs na medida certa. A morte da mulher e da filha bebê, seu esforço para ser pai e mãe dos filhos pequenos na viuvez e manter seu mandato de senador, o golpe da morte do filho Beau de câncer no cérebro. Até o fato de ser gago foi mostrado na história de um menino a quem ele tem estimulado na superação da dificuldade. Enfim, ele não era o super-homem que enfrentaria o mal. Era mesmo o Joe.
Ser normal diante de tanta anomalia trumpista foi um ativo. Mas houve outros improváveis caminhos do sucesso. Na primeira vez que tentou disputar as primárias, era jovem, pouco mais de 40 anos. Na segunda vez, perdeu para Barack Obama e virou seu vice e amigo. Agora não seria tarde demais? Os avanços da ciência nos trouxeram a longevidade, mas a pandemia, subitamente, mostrou aos mais velhos o quanto eles são vulneráveis. O candidato expôs esse sentimento misto. É um veterano ainda em busca do seu sonho maior, mas ao mesmo tempo fez uma campanha cuidadosa, sem aglomerações, com uso insistente de máscara. Foi até alvo de deboche de Donald Trump por usar supostamente máscaras enormes. Joe Biden mostrou saber que a vida é frágil. Um sentimento que compartilha com tantos num país em que o vírus contaminou 10 milhões, atinge mais de 100 mil todos os dias e matou 240 mil pessoas. Só na semana passada, os EUA tiveram 650 mil novos casos, mais do que a Alemanha durante toda a pandemia.
Biden acertou em costurar uma coalizão agregando forças dentro do partido e na sociedade. Sua campanha atraiu independentes e até republicanos, o que mostrou uma capacidade de diálogo que será muito exigida nos próximos e difíceis anos que os Estados Unidos têm pela frente no trabalho de reconstrução. Destruir é fácil, e foi a essa tarefa que se dedicou Donald Trump. Ele demoliu muitas pontes com países aliados. Hostilizou o Canadá, tratou de forma arrogante países europeus, a tal ponto que a chanceler Angela Merkel disse que até agora não entendeu como os americanos escolheram Trump. Biden terá que buscar os organismos multilaterais maltratados e acordos abandonados por Trump. E, nesse caminho, nós sempre teremos Paris. O Acordo de Paris.
No primeiro debate, Trump parecia ter engolido Joe Biden. Era o comunicador agressivo que impunha sua hora de falar, contra o homem que parecia travar em certos momentos. Quem estava certo? Qual é a melhor estratégia na eleição e na vida? A vitória eleitoral de Joe Biden inverte a avaliação sobre o que é sucesso. A vitória não é impor-se. É convencer. Sem a capa da invencibilidade que o seu adversário exibe, Joe Biden derrotou o maior perigo que já rondou a América.
Merval Pereira: Perna curta
A decisão das três redes de televisão abertas dos Estados Unidos - ABC, CBS e NBC - de tirar do ar o pronunciamento do presidente Donald Trump na Casa Branca acusando a apuração da eleição presidencial de fraudulenta sem apresentar a menor prova foi drástica, mas com certeza já havia sido combinada entre as redes para o caso de uma declaração estapafúrdia colocar em risco a credibilidade da eleição. Aconteceu quando o presidente já era um “pato manco”, como se define um político em fim de mandato.
A drástica decisão tem uma explicação: o presidente Trump estava colocando em risco a segurança nacional e a dos cidadãos, ao dizer que estava sendo roubado, incentivando protestos de seus eleitores. O temor de vandalismo que levou diversas cidades dos Estados Unidos a proteger suas lojas e casas com tapumes, inclusive Washington com a Casa Branca, numa triste imagem espalhada pelo mundo, motivou a atitude das redes de televisão, assumindo um papel delicado, o de censurar a palavra de um presidente da República em pronunciamento oficial na Casa Branca.
Há uma série de erros a partir daí, a começar pelo fato de que Trump não poderia usar a Casa Branca para fazer proselitismo político em meio à apuração da eleição. Foi uma atitude clara de pressão sobre os estados em que perdia, além de passar adiante boatos e rumores que ganham ares de verdade saindo da boca do presidente da República.
Trump mentiu, como sempre, no pronunciamento que provocou a decisão polêmica das redes de televisão. Mas sempre foi assim, e a imprensa nunca tomou uma decisão tão definitiva como essa. Eu prefiro uma posição mais razoável, como a CNN Internacional ou a Fox fizeram: deixá-lo mentir, e, em seguida, denunciar a mentira. Mentira tem perna curta.
Não cabe aos meios de comunicação censurar o presidente da República, por mais baixo e vulgar que ele seja. No caso em questão, seria impossível não transmitir, pois, embora desconfiassem qual seria sua posição, nem os jornalistas nem os políticos tinham certeza de quão longe ele iria.
Aqui no Brasil, pôde-se tomar a decisão de parar de acompanhar as falas do presidente Bolsonaro na porta do Palácio do Planalto pelas manhãs porque ele assumiu uma atitude de menosprezo pelo trabalho dos jornalistas, jogando-os contra seus seguidores mais fanáticos que ali compareciam para pedir favores ou simplesmente tirar uma foto com ele. Bolsonaro segregou os jornalistas em um curral, e incentivava seus seguidores a criticá-los, o que deixou de ser um acompanhamento da atividade do presidente para se transformar em um circo político contra o jornalismo independente. Além do mais, não eram pronunciamentos oficiais, mas conversas informais com seus seguidores.
Os EUA não têm tribunais regionais, nem um tribunal superior para lidar com as questões das campanhas eleitorais, e mais uma vez os fatos demonstram que é melhor tê-los. O que parecia um exagero de nosso sistema judicial mostrou-se muito útil, sobretudo em situações como a que a apuração da corrida presidencial nos Estados Unidos chegou.
Como não há um órgão centralizador para organizar os recursos eleitorais, cada estado terá que lidar de maneira diferente com os recursos de Donald Trump em seu próprio sistema judicial. E cada estado tem legislação diferente sobre a eleição e seus desdobramentos. Depois de 2000, alguns estados decidiram recontar os votos automaticamente se a diferença for de menos de 1%. Outros recontam se a diferença for de 0,5%. Outros só recontam se a Justiça mandar.
Os recursos são encaminhados à justiça de primeira instância, e alguns podem subir até a Suprema Corte, dependendo da situação. Por isso, ainda vai demorar alguns dias para Joe Biden ser anunciado oficialmente como presidente dos Estados Unidos. A pressão sobre Trump já está muito grande, por parte de assessores mais corajosos e de políticos republicanos.
Tentam convencê-lo de que o Partido Republicano teve uma eleição vitoriosa, podendo manter a maioria do Senado e aumentando o número de votos, tudo isso devido à sua liderança política. O próprio Trump recebeu mais votos que Barack Obama quando foi eleito, aumentando sua votação em relação a 2016.
Mas, em vez de sair como um grande líder político e preparar o partido para retomar o poder em 2024, Trump pode perder força política interna depois das atitudes e declarações irresponsáveis, que andaram incomodando no interior do partido Republicano, embora mantenha a força popular.
Marco Aurélio Nogueira: Uma vitória para resgatar a democracia
Se confirmada, vitória de Biden mudará o estado de espírito do mundo
O processo é longo, os resultados demoram a sair, o sistema é intrincado e arcaico. A incerteza o acompanha até as últimas urnas. Ao final, o vitorioso carrega consigo o galardão da legitimidade, dada pelo povo, mas referendada de fato pelos 538 delegados do Colégio Eleitoral. É uma batalha democrática, mesmo que impregnada de seletividade e restrições.
Hoje em dia, as eleições norte-americanas tornaram-se um show televisionado, seguido por todos. Têm forte efeito simbólico, repercutem na política internacional, alteram o humor mundial. Especialmente numa época como a nossa, em que a democracia está sob o assédio de líderes e movimentos autoritários (nacionalistas, populistas) em diversos países. Donald Trump é um deles, o que mais longe levou a corrosão democrática da democracia, quer dizer, a problematização da democracia mediante a manipulação das regras de um sistema que se mantém formalmente democrático.
As eleições de 2020 não foram entre democratas e republicanos, por mais que os dois partidos tenham sido protagonistas. Tratou-se de uma disputa em torno da democracia, do seu significado, da sua defesa e valorização ou de sua desmoralização.
O caso Trump ainda será objeto de estudos sequenciais. Nunca um presidente norte-americano agrediu tanto o sistema democrático de seu país, nunca rompeu tantas regras de conduta, nunca mentiu tão cínica e compulsivamente. Valeu-se de falcatruas constantes, explorando o ressentimento, o medo e a raiva que se acumularam nos EUA com a “desindustrialização”, a vida digital, a perda de força relativa da economia americana diante do avanço implacável do dragão chinês e da mudança dos termos do comércio internacional. Encontrou à disposição uma população preparada para a charlatanice, cortada pelo desespero e pela desilusão, levada pela perda de referências a desconfiar do sistema democrático e a se atirar nos braços de personagens “heterodoxos”, abertamente demagógicos. As redes sociais fizeram com que o rastilho se espalhasse e adquirisse status de verdade.
O personalismo populista e raivoso de Trump, sua agressividade permanente, mobilizou parte importante dos norte-americanos. Apesar de tudo – a resposta pífia à pandemia, as mentiras, o desprezo pela vida, o abandono do meio ambiente, o egocentrismo narcísico, os maus tratos com imigrantes, o racismo, a misoginia explícita – ele conseguiu conquistar mais 4 milhões de votos quando comparado com as eleições de 2016. Tem milhões de seguidores no Twitter, no Facebook e no Instagram. É um poder de fogo não desprezível, que lança torpedos tóxicos a cada minuto, minando a confiança dos cidadãos nas instituições democráticas.
Chega a impressionar que tal torrente de pessoas tenha aderido a uma plataforma tão mesquinha e reacionária.
Se confirmada, a vitória do democrata Joe Biden mudará o estado de espírito do mundo, impulsionará uma troca de oxigênio, afetará o modo como os cidadãos enxergam a democracia. O movimento em favor de uma internacional de extrema-direita, dita “conservadora”, perderá gás para se viabilizar. Depois do descaso e do reacionarismo antidemocrático de Trump, poderá haver novamente política democrática. Mas nada será automático. Primeiro porque os EUA estão polarizados de cima a baixo. Segundo, porque a democracia norte-americana enveredou por uma senda enviesada, torta, que distanciou o povo das instituições e da confiança nos procedimentos democráticos – uma senda que permanecerá aberta mesmo com Trump derrotado. Muito trabalho terá de ser feito para repor as coisas no lugar, abrindo espaços para as novas gerações, os movimentos de contestação e antirracistas, as mulheres. O momento pede um esforço articulado para neutralizar o populismo e repor a confiança dos cidadãos na política democrática. Sistemas, afinal, precisam saber se atualizar e cuidar de suas válvulas de escapa, para que não se inviabilizem quando as águas subirem e o vapor aumentar.
Os EUA são uma democracia mais imperfeita do que se imagina. Seu sistema político foi desenhado para beneficiar certos grupos da população mais do que outros, os estados em detrimento do poder federal. Tem um corte oligárquico acentuado. Sempre houve, por exemplo, manobras para dificultar o voto dos mais pobres, dos negros, dos menos instruídos. O próprio sistema é elitista, os votos populares não pesam como deveriam, os delegados ao Colégio Eleitoral são escolhidos de forma restrita. Com o trumpismo, o quadro piorou. O movimento conservador atual maltrata os fundamentos da democracia e mais recentemente passou não só a restringir a votação e a corromper a lógica política, como a judicializar o processo democrático, agindo em nome de um projeto que hostiliza a ideia de justeza das escolhas populares, que precisam ser acatadas. Como se vê nas eleições deste ano, faz-se o possível para roubar legitimidade dos resultados eleitorais.
A judicialização não é exclusividade norte-americana. Está instalada no mundo, reflete a crise da política em que se vive. Não é comum, porém, que se ponha em xeque a lisura das eleições ou que se as leve a decisões judiciais. Governantes autoritários e de extrema-direita é que costumam fazer isso. Bolsonaro mesmo, no Brasil, vive dizendo que teria havido fraude na sua própria eleição em 2018. A extrema-direita faz uso intenso e sistemático da deslegitimação dos processos políticos. Levanta suspeitas, faz acusações e ameaças para que se possa confundir e assustar os eleitores. A ideia é desconstruir a democracia liberal, implodir e manipular as regras e os procedimentos democráticos. É uma espécie de “golpe branco”, que interdita o diálogo, o pluralismo, a vigência de direitos e políticas sociais. Tudo contra o “sistema”, mas por dentro dele, usando-o contra a democracia.
O discurso de Trump na noite de 05/11, no qual ele acusou os democratas de estarem inventando “votos ilegais” para “roubar as eleições”, foi uma demonstração clara disso. Uma admissão dissimulada de derrota para o “sistema”.
A derrota de Trump não será o fim do trumpismo, que se enraizou na sociedade norte-americana. Será preciso acompanhar para ver como ela repercutirá no Partido Republicano e como será processada pela população. Perde a pessoa, não necessariamente o movimento por ele representado e por ele ativado. Também não é um recado a governantes que com ele se alinharam e que ajudaram a incensá-lo. Mas é uma indicação clara de que enquanto houver democracia, regras do jogo e eleições competitivas, a extrema-direita não poderá se proclamar dona do universo.
A presidência Biden não terá impacto imediato no Brasil, sobretudo porque o governo Bolsonaro agarrou-se ideologicamente a Trump e optou por seguir uma política externa obscurantista, de isolamento e auto-exclusão das negociações multilaterais. O País deixou de ter voz ativa no cenário internacional. O governo brasileiro poderá optar pelo aprofundamento da condição de “Estado-pária”, manter-se indiferente ao mundo, numa espécie de suicídio nacional. Biden é um democrata pragmático e que seguirá a via diplomática. Deverá, porém, exercer pressões não desprezíveis sobre a política ambiental brasileira e levar o ministério de Relações Exteriores a corrigir o discurso e buscar um realinhamento. Poderá contribuir para mostrar a farsa que o bolsonarismo montou no País.
A vitória democrata nos EUA não é boa notícia para Bolsonaro. Mas poderá ser ótima para o Brasil.
Terá impacto sobre as eleições presidenciais brasileiras de 2022? É difícil dizer, há dois anos de distância e sem considerar os resultados das eleições municipais de 2020. Com a derrota de Trump, o bolsonarismo tenderá a perder parte da “narrativa” e sofrer algum abalo; as correntes democráticas ganharão um fôlego adicional e serão instigadas a procurar maior unidade e coordenação. Mas tudo continuará dependendo das políticas que o governo vier a praticar até 2022 e da capacidade que tiverem os democratas brasileiros de avançarem de fato em termos de articulação. Sem que se forme uma rede sólida de entendimentos unindo liberais, conservadores democráticos, socialistas e socialdemocratas o processo político seguirá curso errático e tenderá a se inclinar em sentido não democrático.
Agora, é preciso esperar o fechamento completo das urnas, o desfecho dos questionamentos judiciais e a posse do novo presidente.
Bolsonaro está obrigado a telefonar para Biden e lhe desejar sorte. O presidente brasileiro, porém, não é dado a tais cordialidades, é mais tosco e bruto. Fará algo protocolar, mas por baixo do pano deverá mergulhar na nostalgia de um tempo em que podia se vangloriar de ser “amigo de Trump”.
Sérgio Abranches: EUA de volta ao futuro
A vitória de Joe Biden marca um novo momento político nos Estados Unidos. Em um sentido muito direto, ela repõe o país na trilha que havia sido aberta pela eleição de Barack Obama. É mais do que a eleição de Biden, um senior Democrata moderado, para presidente. A eleição de Kamala Harris é um marco em si e além do que Biden representa. É a primeira mulher, a primeira pessoa de origem em várias minorias, negra, latina, asiática, a ocupar a vice-presidência dos Estados Unidos. Esta vitória é resultado da formação de uma coalizão que uniu Democratas moderados e de esquerda, em torno dos dois. Uma nova coalizão progressista, que aposta no Green New Deal e repõe a diversidade americana no caminho da plena cidadania.
A eleição de 2008 foi um marco. Levou à Casa Branca, pela primeira vez na história, um presidente negro. Foi o resultado de uma longa luta, que começou, no plano institucional, com a aprovação da 14a Emenda à Constituição, em 1868, dando aos afroamericanos os direitos de cidadania política. Mas eleitores negros continuaram a ser barrados nos locais de votação e a supressão do voto negro continuou. Para enfrentar mais seriamente este bloqueio, a 15a Emenda à Constituição, aprovada em 1870, determinou mais claramente que o direito aos cidadãos dos Estados Unidos não podem ser negados ou reduzidos pelos Estados Unidos ou qualquer um dos estados, com base em raça, cor, ou situação prévia de servidão. Mas, a luta prosseguiu, penosa e sangrenta. Passou pelos anos 1960 e 1970, por Martin Luther King, seu sonho e seu assassinato, até chegar a 2008 e a eleição de Obama, filho do segundo casamento de um economista queniano e uma antropóloga de origem anglo-saxônica.
Mas, a luta não acabou. As vítimas negras da brutalidade policial, atravessaram o governo Obama e aumentaram com Donald Trump. O assassinato de George Floyd à luz do dia, por dois policiais brancos, tornou-se o leit motiv para o movimento Black Lives Matter, que globalizou. O retorno à trilha inaugurada por Obama, entretanto, é efetivo e relevante. Kamala Harris na Vice-Presidência dos Estados Unidos compartilha os símbolos do poder imperial da Presidência — ela terá a segurança, o avião e o helicóptero Air Force Two, o respeito e a deferência prestados aos governantes dos Estados Unidos. Esta mulher sintetiza, para além de Obama, a possibilidade de estar no poder do conjunto das minorias étnicas do país e das mulheres. Não é pouco, nem é trivial.
Este resultado é importante, também porque demonstra, inequivocamente, a incidentalidade de governantes como Donald Trump. Ele entrou numa eleição atípica, em 2016, e sai numa eleição atípica em 2020. Como eu disse ser a trajetória provável dos governantes incidentais em meu livro (O Tempo dos Governantes Incidentais, Companhia das Letras, 2020). Quando este tipo de governante obtém o segundo mandato, é muito perigoso, porque escala o ataque às instituições democráticas por dentro. Eleição atípica, no segundo caso, por duas razões. A primeira, a campanha desigual, com Biden respeitando as regras de segurança na pandemia, mesmo com prejuízo de sua presença em colégios eleitorais relevantes e da reunião de eleitores no seu entorno. Trump, ao contrário, manteve comícios em desprezo a qualquer protocolo de segurança sanitária e, nos últimos três dias, fez um rali de comícios, chegando a ir a dez estados por dia. E perdeu. A segunda, a quantidade inédita de votos antecipados e, principalmente, por e-mail. Estes votos foram esmagadoramente por Biden, porque ele e seus correligionários convocaram os eleitores a votar desta maneira, o voto era importante e a necessidade de votar de forma segura, sem aglomerações ou filas, também. Foi a vitória da responsabilidade contra a insensatez.
Politicamente, a eleição de Biden foi apoiada por uma ampla coalizão antiTrump e pela democracia, que uniu o centro e a centro-direita do partido à sua esquerda, buscou os independentes e atraiu personalidades republicanas. Uma ampla coalizão que alcançava também os representantes e os movimentos sociais das minorias. Esta amplitude e diversidade teve como representante Kamala Harris.
No plano geopolítico, a vitória de Biden/Harris, tem várias implicações importantes. É uma mensagem dizendo que os governantes incidentais, por mais poderosos que pareçam, podem ser derrotados. É, também, uma convocação para a luta contra a intolerância contra minorias étnicas, imigrantes e todas as demais minorias. Deve demarcar o início do processo de reconstrução do multilateralismo, em maior sintonia com os desafios existenciais desafiando a governança global, como a mudança climática, os refugiados, os imigrantes, a crise global e a vertiginosa transição estrutural e tecnológica.
Biden não mudará radicalmente a atitude internacional dos Estados Unidos. Não tenho a ingenuidade de imaginá-lo como um revolucionário, no plano doméstico ou internacional. Obama tampouco o foi. Mas são avanços significativos e devem ser considerados como tal. Joe Biden e Kamala Harris, presidente e vice-presidente dos Estados Unidos, repõem os Estados Unidos de volta à trilha do futuro.
*Sérgio Abranches, cientista político
Alon Feuerwerker: Vai e volta
A polarização nas eleições americanas é permanente, e facilitada por um fato singelo. Ali só dois partidos disputam o poder. É como se todas as eleições fossem um segundo turno. Há situações de candidatos independentes, e mesmo de certo partido lançar mais de um candidato. Mas são residuais, e vão para um segundo turno quando ninguém alcança metade mais um.
Joe Biden é um candidato dito moderado, apoiado por uma ampla aliança que vai do dito liberalismo progressista (ou progressismo liberal, conforme a vontade do freguês) a uma esquerda de raiz. Igualmente do outro lado. Donald Trump é apoiado por uma ampla gama que vai da direita que não se envergonha de si mesma a um conservadoriamo mais liberal (ou um liberalismo mais conservador).
A isso misturam-se recortes de classe, ideologia, gênero e raça. Além da condução errática e desastrosa da Covid, Trump poderá debitar suas dificuldades eleitorais à condução que deu na trágica morte de George Floyd. Acessoriamente, os resultados no Arizona certamente refletem seu tratamento desrespeitoso a John McCain. Tudo que vai, volta.
Descasamento
Enquanto estamos entretidos com o vai-não vai das eleições americanas, nossos problemas permanecem estacionados aguardando solução. Uma delas é alguém dizer concretamente, e de modo factível, como o governo vai cumprir o teto de gastos constitucional em 2021.
O buraco primário em 2020 ficará em mais ou menos dez vezes o previsto no orçamento federal, por causa dos gastos com a pandemia. Eles evitaram uma catástrofe econômica mas deixam um problema: como recolocar o gênio dentro da garrafa assim de repente?
Agora um estudo acrescenta algo novo. Por causa do descasamento entre o índice previsto de correção das despesas e a taxa real de inflação, só por causa disso, o governo precisará cortar uns 20 bilhões de reais do orçamento (leia). Que aliás aguarda a solução da pendenga entre o presidente da Câmara e o centrão.
Em matéria de tecnologia para rolar problemas com a barriga, as exóticas apurações da eleição nos Estados Unidos não dão nem para o começo se confrontadas com o know-how desenvolvido por aqui no quesito de deixar as coisas para depois.
Realidade brincalhona
A principal poêmica sobre as eleições de terça-feira nos Estados Unidos se dá em torno do voto antecipado e do voto pelo correio. Promete pano para manga e uma novela de vários capítulos. O número cresceu exponencialmente este ano por causa do medo da Covid-19.
Ali quem quis votar votou, de um jeito ou de outro. Já por aqui, o único jeito de dar o voto nas eleições municipais deste mês será ir à seção eleitoral e apertar os botões na maquininha. É muito mais seguro no aspecto eleitoral, um modelo a ser copiado, mas exigirá rigor nas medidas sanitárias.
Cada um com seu sistema e seus problemas. Ali, está a confusão a que todos assistimos. Aqui, corremos o risco de um maior absenteísmo, gente deixando de votar, com medo no SARS-CoV-2. As pesquisas mostram que pode ser quase metade do eleitorado.
Mas é melhor esperar para ver antes de concluir qualquer coisa apressadamente. A realidade costuma ser brincalhona com as conclusões muito antecipadas. Eleição após eleição, essa é uma verdade que sobrevive bem com o tempo.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Demétrio Magnoli: Regra de ouro 'um eleitor, um voto' é estranha à democracia dos EUA
Adotar a fórmula clássica exigiria uma refundação tão radical quanto a experimentada na esteira da Guerra Civil
Caos. Na noite fatídica, 3N, apurações congelaram à espera da contagem de votos enviados por correio em estados decisivos, enquanto Trump declarava vitória na guerra ainda incerta. República de bananas: o presidente contestava a apuração de milhões dessas cédulas, sugerindo a declaração de um vencedor antes da contagem de todos os votos.
Aritmética ocultista. Calculava-se, alta madrugada, as probabilidades de empate, dependentes da repartição dos delegados nos dissidentes Maine e em Nebraska, que fogem à regra do “vencedor leva tudo”. Mais uma vez, como há 20 anos, o sufrágio desviava-se rumo à tortuosa estrada vicinal dos tribunais. E, novamente, como em 2000 e 2016, erguia-se o espectro da cisão entre o voto popular e o Colégio Eleitoral.
Um eleitor, um voto. A regra de ouro das democracias é estranha à democracia americana. No seu lugar, inventou-se a regra do sufrágio estadual ponderado pelo sistema do Colégio Eleitoral. O republicano George W. Bush triunfou, em 2000, por 271 a 266, mesmo perdendo por meio milhão de votos. Trump venceu, em 2016, por 304 a 227, perdendo por quase três milhões de votos.
História. Os EUA nasceram, em 1776, como uma confederação das antigas colônias britânicas, transformando-se na atual federação com a Constituição de 1787. Os federalistas articularam um pacto entre as elites estaduais que assegurava a cada uma delas as autonomias de tributar, impor taxas alfandegárias e conservar o trabalho escravo. O artigo 2º da Constituição estabeleceu o Colégio Eleitoral, concedendo às assembleias estaduais a prerrogativa de escolher os delegados que elegem o presidente.
Nas décadas seguintes, universalizou-se a prática de selecionar os delegados pelo voto popular estadual e, em 1836, generalizou-se a regra do “vencedor leva tudo”.
Filosofia. A democracia é a vontade da maioria? Mais ou menos: democracia é a vontade majoritária temperada por instituições que protegem valores perenes e os direitos da minoria. O Colégio Eleitoral foi justificado como vacina contra o populismo, a tirania da maioria. O argumento corre paralelo ao outro, anacrônico e cada vez menos invocado, da preservação da autonomia estadual e das liberdades dos estados menos populosos. Há, porém, democracia quando o voto nacional majoritário pode ser ignorado seguidamente?
Reforma. Há duas décadas, desde o trauma da Flórida, crescem os clamores pela eliminação do Colégio Eleitoral. Um eleitor, um voto —a fórmula clássica exigiria uma refundação constitucional dos EUA tão radical quanto a experimentada na esteira da Guerra Civil, entre 1865 e 1869, com as três emendas que aboliram a escravatura, definiram a cidadania e proclamaram o direito universal de voto. Um caminho alternativo, proposto por diversos estados, é a reforma do próprio Colégio Eleitoral pelo estabelecimento da distribuição proporcional de delegados. A via reformista seria uma ruptura com a tradição, mas cabe na moldura da Constituição.
Reforma impossível. A substituição da regra do “vencedor leva tudo” pela proporcionalidade converteria o Colégio Eleitoral num espelho levemente distorcido do voto popular. As mudanças demográficas dos EUA impulsionadas pela expansão das grandes cidades e pelo crescimento relativo da minoria latina tendem a inclinar fortemente o voto popular para o lado dos democratas. Nesse cenário, é difícil imaginar a possibilidade de triunfos republicanos num hipotético Colégio Eleitoral proporcional. Os estados republicanos não renunciarão à tradição de quase dois séculos.
Guerra civil. Os EUA têm apenas dois partidos que contam. O voto popular direto ou um simulacro dele, pelo Colégio Eleitoral proporcional, significariam a virtual eliminação da perspectiva de poder de um deles. Partido único? A nação desceria o abismo de uma nova guerra civil antes disso.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Merval Pereira: Bananas americanas
O que estamos vendo nos Estados Unidos nos últimos dias é a surpreendente repetição, com anos de atraso, de situações que já vivemos aqui no Brasil no tempo em que tínhamos votação em cédulas eleitorais, contabilizadas manualmente. De acordo com a geografia da apuração, um candidato poderia sair à frente, e depois perder força. Havia, claro, fraudes, e ficou famoso, por exemplo, políticos mineiros atribuindo aos votos “da Zona da Mata” uma mudança de tendência.
Trump está surpreso com o crescimento de Biden com os votos pelo correio, e acusa fraude. Ao mesmo tempo, o presidente Bolsonaro promete aqui pressionar o Congresso pela volta da cédula eleitoral. Desde que temos as urnas eletrônicas, nunca mais houve acusações de fraude, e Bolsonaro insiste na denúncia de fraudes sem provas, como seu avatar Trump. E pretende pressionar o Congresso pela volta da cédula eleitoral.
À medida que a apuração da eleição presidencial nos Estados Unidos vai mostrando uma provável vitória do democrata Joe Biden, fica claro também que não é apenas a agenda internacional que será alterada, obrigando o governo brasileiro a se reposicionar. Também a maneira de se expressar e de tratar os adversários políticos e temas sensíveis no mundo ocidental mudará sensivelmente, o que colocará o presidente Bolsonaro no papel de espécie de político em extinção em países civilizados.
Restarão a ele exemplares raros, como o Aleksandr Lukashenko, da Bielorússia, que queria resolver a COVID-19 com vodka e sauna; o presidente do Turcomenistão, Gurbanguly Berdimukhamedov, que proibiu a palavra coronavírus, o premier húngaro Viktor Orbán. Todos eles, e mais pequenos ditadores africanos e do Oriente Médio, têm em comum com o ainda presidente Donald Trump uma agenda conservadora que vai da negação da ciência, aí incluído o meio ambiente, à defesa hipócrita da pátria e dos valores da família.
A provável derrota de Trump não o retirará da política, pois já existe um movimento interno para fazê-lo candidato em 2024. Existe essa possibilidade porque a 22ª emenda da Constituição americana se refere apenas à impossibilidade de eleição para presidente por mais de dois mandatos.
A limitação foi aprovada depois que Franklin Roosevelt foi eleito por quatro mandatos. Tradicionalmente, um ex-presidente não exerce nenhum outro cargo, embora existam casos de ex-presidentes que voltaram ao Senado, como Andrew Johnson, ou William Howard Taft, que exerceu o cargo de Chefe de Justiça após sair da presidência. O único presidente que, não tendo sido reeleito, voltou à presidência depois foi Grover Cleveland, em 1892.
Nada indica que o presidente Trump aceite uma eventual derrota sem questiona-la na Justiça, tentando ir até mesmo à Corte Suprema, como reafirmou ontem. Não foi à toa que ele insistiu em nomear antes mesmo da eleição uma juíza para a vaga aberta. Com seis votos conservadores em nove, ele acredita que poderá ganhar no último recurso.
Talvez a principal razão para que Trump se entregue com tanto afinco a não aceitar uma derrota seja o receio das possíveis ações legais que teria que enfrentar em Nova York, onde está a maioria de seus negócios. Mais do que seu ego, que é outro grande obstáculo a uma posição razoável. Assessores e líderes republicanos não concordaram com a declaração de que havia fraude na eleição, mas Trump já disse que, “ganhar é fácil, perder é difícil”.
O ex-vice-presidente Biden tem se dedicado a marcar a diferença entre ele e Trump. Todos os seus pronunciamentos têm sido no sentido de unir o país, de pedir calma e paciência para que todos os votos sejam contados e garantir indiretamente que aceitará o resultado das urnas em caso de uma derrota que ele não vislumbra.
Já o presidente Trump dedica-se a mandar mensagens pelas redes sociais alertando contra supostas fraudes nunca comprovadas, e pedindo que as cédulas eleitorais chegadas pelo correio não sejam contadas. À noite, fez a mais sensacionalista declaração desde o início da apuração, reforçando, sem mostrar provas, a denúncia de que está havendo fraude na contabilização dos votos.
É um fato singular na história da democracia americana, que coloca o país no rol das repúblicas de banana, expressão criada pelos próprios americanos para definir pejorativamente países politicamente instáveis, submetidos a governantes autoritários.
Míriam Leitão: Tempo suspenso e a democracia
O tempo parou nos Estados Unidos. O tempo parou no mundo. Por quase dois dias, intermináveis horas, os ponteiros marcando o número de votos dos candidatos ficaram congelados em 253 e 214, enquanto a apuração seguia em câmera lenta em cinco decisivos estados. Foi impossível não ser capturado por esse cipoal de regras estaduais, de tendências políticas de condados, do debate sobre os votos pelo correio ou presenciais. Toda eleição americana atrai atenção, esta parece ser uma decisão sobre o fim do mundo. A mais consequential eleição do nosso tempo, como definiu a revista “Economist”. O que a torna tão dramática atende pelo nome de Donald Trump.
Trump está disposto a ser até o fim um perigo para a democracia americana. Num discurso patético e criminoso, disse que a eleição está sendo roubada e que vai à Suprema Corte. Ele escalou a guerra jurídica, aumentou o tom das acusações de fraudes, sem qualquer evidência, continuou corroendo a credibilidade das instituições junto aos seus eleitores. Quanto mais o candidato democrata Joe Biden foi ampliando suas chances, mais Trump elevava sua reação, dando trabalho ao Twitter de ir retirando seus conteúdos com a explicação de que eles desinformavam sobre a eleição e o processo cívico. Quando alguém poderia imaginar uma rede social tendo que eliminar conteúdo de um presidente dos Estados Unidos por ele estar atacando o processo cívico de uma eleição?
As principais lideranças republicanas ficaram em silêncio. A má notícia é que não discordaram de Trump, a boa é que não fizeram coro com as suas alegações de fraude. O que é um sinal antecipado do que acontecerá quando ele sair da Casa Branca dentro de 75 dias. O poder que o aparato da presidência americana dá ao titular do salão oval é enorme, mas se esvai instantaneamente. Aos seus ex-ocupantes concede apenas influência e prestígio e na medida dos seus méritos.
O sistema do colégio eleitoral é obviamente disfuncional. As regras, criadas num tempo de representação limitada, teriam a virtude de impedir outsiders, segundo seus defensores. Desta forma, a democracia americana continuaria no seu movimento pendular entre os dois grandes partidos, blindado contra aventureiros. Ninguém mais pode dizer isso depois de Donald Trump, que despencou de um reality show de má qualidade direto para a Casa Branca. Nos últimos quatro anos atentou diariamente contra as bases da democracia americana, misturou os interesses e bens públicos com seus negócios privados, quebrou todas as regras de conduta que um chefe de Estado de país democrático deve seguir. Mentiu de maneira tão compulsiva e doentia que sua presidência não pode ser entendida pelos manuais de ciência política, mas sim pelos tratados de medicina ou por códigos penais.
Por isso, as falas de Joe Biden dão uma sensação de alívio. Elas são normais. Ontem, ele disse que o voto é sagrado, que todos precisam ser contados, que através do voto as pessoas expressam sua vontade. “É a vontade dos eleitores, e de ninguém mais, que escolhe o presidente dos Estados Unidos.” Biden é desprovido de carisma. Não tem o apelo magnético de um Barack Obama. Mas depois dessa tempestade de dissonâncias que tem sido a presidência Trump, seu tom monocórdico soa como uma harmonia.
Enquanto os votos eram contados numa lentidão enervante, o mundo teve que se informar sobre cada particularidade da geografia americana. Omaha, o condado de Nebraska dono de um voto, entrou no mapa da imprensa de vários países. Nevada parecia o centro do mundo na noite de quarta-feira, mas aí o estado decidiu suspender a contagem e ir dormir com os seus seis votos parados no ar. Na quinta de manhã, houve o “dilema no deserto”, segundo escreveu o “Financial Times”, na explicação sobre os 11 votos do Arizona que entraram e saíram da conta. No começo da tarde, Geórgia estava em todas as mentes. No fim do dia todas as calculadoras voltaram-se para o ponto inicial da República nascida das 13 colônias: Pensilvânia e seus 20 votos que teriam o poder de encerrar a longa agonia. Nunca a expressão “cada voto conta” fez tanto sentido. Foi assim que o planeta passou as horas paradas desta semana, enquanto se decidia o futuro da democracia.
Eliane Cantanhêde: Caindo na real
Se Trump perder, arrasta junto a política externa e os delírios internacionais de Bolsonaro
O Brasil é o Brasil, o presidente Jair Bolsonaro é o presidente Jair Bolsonaro. O que é bom para o Brasil não é necessariamente bom para Bolsonaro e a recíproca é verdadeira. Aliás, muitas vezes é o oposto. O risco de derrota de Donald Trump é também de Bolsonaro, com sua política externa e seus delírios ideológicos, mas não para o Brasil, que lucra com um mundo melhor.
Com Trump e os Estados Unidos era uma coisa, sem ambos é outra. O projeto de um mundo de extrema direita vira um sonho (ou pesadelo) de uma noite de verão. É hora de acordar e cair na realidade – que, aliás, não está fácil, com pandemia, economia quebrada, dívida pública descontrolada e milhões de desempregados. O caos não é ideológico, é real.
Em 2018, após a vitória do pai, o deputado Eduardo Bolsonaro patrocinou a Cúpula Conservadora das Américas, em Foz do Iguaçu, como contraponto ao Foro de São Paulo, das esquerdas, mas a sociedade não deu bola para um nem para o outro. Em 2019, no primeiro ano de governo, ele voltou à carga, anunciando “o maior evento conservador do mundo” em São Paulo, mas só se ficou sabendo que o filho 03 foi recebido aos gritos de “mitinho” e que o seu guru só apareceu no telão, direto da Virgínia.
O 03 orna a parede da sala de jantar com um rifle (ou sei lá o que é aquilo), fritou muito hambúrguer nos EUA, desfilou com o boné da reeleição de Trump e passou vergonha ao ser indicado pelo papai para ser embaixador em Washington. Por sorte (dele e do Brasil), os senadores avisaram que era um pouco demais.
A ideia morreu, mas o delírio conservador – e autoritário – sobreviveu. Em fevereiro deste ano, o chanceler Ernesto Araújo – que definiu Trump como o único Deus capaz de salvar o Ocidente – foi a Washington para a criação, com EUA, Hungria e Polônia, de uma “Aliança Internacional pela Liberdade Religiosa”. O carimbo de “religiosa” escamoteava algo muito mais ambicioso.
O passo seguinte seria a ida do próprio presidente Bolsonaro à Hungria e à Polônia, ainda neste segundo semestre, para consolidar a aliança da extrema direita. Por ironia, a pandemia de Covid 19, tratada com igual ignorância por Trump e sua réplica brasileira, impediu a empreitada. Sem a reeleição de Trump, o que Bolsonaro poderia fazer agora em Budapeste e Varsóvia? Só chorar as mágoas.
O democrata Joe Biden não tem nada de socialista, diferentemente do que disse Trump e os cubanos e venezuelanos da Flórida engoliram. Biden é um liberal na economia, antirracista, defensor de minorias, direitos humanos, meio ambiente Acordo Climático de Paris, ONU, OMC e OMS. Eleito, interromperá as investidas de Trump e dos Bolsonaro, calcadas em ódios e armas, sob inspiração do mentor da extrema direita internacional, Steve Bannon, que nem Trump aguentou e anda às voltas com a polícia.
Sem Trump e EUA, evaporam o projeto ultra conservador e política externa de Bolsonaro. Bolsonaro chutou China e Europa porque tinha Washington na retaguarda, mas, agora sozinho, repete o muxoxo de que as potências querem nos tomar a Amazônia e empurrar a América do Sul para a esquerda. Não tem pé nem cabeça tanto que, sob a perspectiva de vitória de Biden, as Bolsas subiram, o dólar caiu no Brasil. Esse mercado está cada vez mais socialista…
Com a cabeça no lugar, o vice-presidente Hamilton Mourão trata a China com pragmatismo e lembra que a relação entre Brasil e EUA é entre Estados, não entre pessoas. É um claro contraponto a Bolsonaro, tão candidato a perdedor quanto Trump. O Brasil, porém, não perde nada com o equilíbrio político e pessoal de Joe Biden e a obrigação de voltar fazer política externa. Bolsonaro e Ernesto Araújo são capazes de fazer?