Trump
Celso Rocha de Barros: Trump perdeu, falta Bolsonaro
Contraste com democracia dos EUA voltando ao normal faz situação brasileira parecer ainda mais triste
Joe Biden é o novo presidente dos Estados Unidos. Em seu discurso da vitória, defendeu a união de todos os americanos, inclusive dos que não haviam votado nele, e prometeu que governaria para todos. Perdi o trecho seguinte porque comecei a rir lembrando que teve gente com fama de sério apostando que Bolsonaro um dia faria o mesmo.
Biden fez belas citações bíblicas e mencionou os transexuais entre os americanos que quer defender. Agradeceu especialmente aos negros americanos, que foram decisivos para sua vitória.
Só esclarecendo, não agradeceu apenas o Hélio Negão que estava ali do lado, agradeceu Kamala Harris, primeira mulher a ocupar o cargo de vice-presidente, agradeceu seu antigo companheiro de chapa, o ex-presidente Barack Obama, e agradeceu o poderoso movimento de organizadores negros que lhe deram vitórias decisivas em cidades como Detroit e Filadélfia.
Biden também anunciou que nesta segunda-feira (9) vai indicar uma força-tarefa de cientistas para lidar com a pandemia. Duvido que chame o Osmar Terra, duvido que alguém ali seja demitido ou humilhado publicamente se decidir trabalhar, como aconteceu com Mandetta, Teich e Pazuello. Biden deve trazer os Estados Unidos de volta para o Acordo de Paris, que proíbe ministros como Ricardo Salles.
Enfim, o contraste com um país voltando ao normal fez a situação brasileira parecer ainda mais triste. As pessoas dançando nas ruas da Filadélfia não estão comemorando porque Trump foi “moderado pelo centrão”.
A única coisa na eleição americana que me lembrou o Brasil de 2020 foi a tentativa de Donald Trump, o candidato derrotado, de dar um golpe de Estado. Mas é aquilo, se Trump não fosse golpista, Bolsonaro não gostaria tanto dele.
Até o momento de entrega dessa coluna, Trump ainda não havia reconhecido sua derrota. Mentiu que a eleição foi fraudada, mentiu que teve mais votos do que Biden, enfim, “went full Jair”. Torce para que haja protestos de rua que forcem uma judicialização da eleição, e já escalou Rudolph Giuliani, o genro do Borat, para conduzir a batalha legal.
Deve dar errado. Lá não há hipótese dos militares aceitarem um golpe. O Partido Republicano é, no geral, um partido sólido que tem certo interesse na manutenção das regras do jogo. A rede conservadora Fox News não bancou a palhaçada.
Mas esse último crime de Trump contra a democracia pode ter consequências. O artigo de Patrícia Campos Mello publicado neste sábado (7) mostrou que o discurso da “eleição roubada” pode manter a base trumpista permanentemente radicalizada, com cada vez menos fé nas instituições. Os próximos dias devem ser importantes para medirmos a viabilidade desse discurso. Talvez o trumpismo sem poder pareça patético demais para sobreviver.
É possível repetir no Brasil de 2022 a fórmula vencedora dos democratas americanos? O governador Flávio Dino propôs exatamente isso, uma aproximação da esquerda e do centro para derrotar Bolsonaro. Dino tem razão, mas ainda não bolamos uma forma de fazer isso funcionar dentro do multipartidarismo brasileiro.
No Partido Democrata americano estão os equivalentes ideológicos de boa parte do PSDB brasileiro, toda a centro-esquerda e quase toda a esquerda. Sem a estrutura partidária para forçar a união, teremos que ser mais hábeis politicamente do que os americanos.
*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).
Alex Ribeiro: Derrota de Trump não afeta bolsonarismo
Mercado se anima com falso declínio do populismo de direita
As eleições americanas animaram o mercado financeiro na semana passada, com alta da Bolsa e queda dos juros e do dólar. Boa parte dos ganhos se deve à esperança de um comando dividido nos Estados Unidos, com Biden na presidência e o Senado sob controle republicano, que limita extravagâncias da esquerda democrata. Mas analistas citam uma força adicional: a derrota de Trump seria um revés para a onda global populista de direita, incluindo o bolsonarismo.
Embora tenha apoiado a eleição de Bolsonaro em 2018, o mercado financeiro, em geral, não gosta de populismo. A retórica ideológica do governo em áreas como meio ambiente, relações exteriores e saúde causa preocupação dentro da própria equipe econômica. Também gera inquietação a aproximação do presidente com o populismo fiscal. Por isso, o enfraquecimento do populismo de direita seria positivo para a economia e para os mercados financeiros.
O cientista político Christopher Garman, managing director para as Américas da Eurasia Group, discorda da tese de que a derrota de Trump representa um enfraquecimento do populismo de direita. Ele pondera que Trump superou as expectativas. As forças que, em primeira instância, levaram à ascensão do populismo de direita seguem presentes. E são independentes nos Estados Unidos e Brasil, por isso Bolsonaro não será afetado.
“O Trump se saiu bem, superou as pesquisas, demonstrou ser mais resiliente do que as pessoas estavam antecipando”, diz Garman, que cita a melhora de sua performance no votos dos latinos e dos afroamericanos nas cidades. A eleição foi decidida por alguns pontos percentuais em favor de Joe Biden em estados competitivos, em que se alternam vitórias democratas e republicanas. “Se não fosse pela forma desastrosa que lidou com a Covid 19, Trump teria sido reeleito.”
Uma pesquisa feita pelo Ipsos Public Affairs, uma empresa de opinião publica, mostra que às vésperas do pleito 28% dos eleitores consideravam o combate à pandemia como o principal tarefa do próximo presidente. Biden estava 14 pontos percentuais à frente de Trump quando se pergunta quem está mais preparado para lidar com a pandemia
O fato de Trump ter sido um candidato competitivo a despeito da sua incapacidade no tema prioritário para o eleitorado mostra como é forte a sua base de apoio. Garman diz que as forças que levaram à ascensão do populismo nos EUA seguem presentes.
“É o desencanto profundo de boa parte da população com o chamado sistema, com a mídia, com o judiciário, com a política tradicional”, afirma. “Os fatores que levaram a isso são o aumento de desigualdade de renda, cada vez maior, o distanciamento entre o desempenho econômico dos centros metropolitanos com a velha economia industrial e os centros mais dinâmicos, com a nova economia.”
A perspectiva não é muito animadora. A pandemia da Covid-19 deverá exacerbar essas desigualdades. A recuperação econômica se desenha no formato em “K”, com a volta mais forte da nova economia e o desempenho mais fraco do setor de serviços.
As enquetes de opinião pública mostram que os americanos estão muito divididos. Uma pesquisa da Ipsos revela que cerca de um quarto dos americanos (26%) apoiaria a continuidade de Trump no cargo no caso de ele perder a eleição e declarar que o resultado não é legítimo.
“Vejo mais polarização, não moderação. O partido Democrata está migrando para uma base mais liberal, progressista e, no partido Republicano, temos o recrudescimento da base trumpista e um presidente que permanece como uma sobra.”
Não deixa de ser paradoxal o fato de que Biden é a moderação em pessoa - um presidente multilateralista, inclinado ao diálogo e à convergência. Mas seria um erro tomar sua vitória como um sinal de crescimento dos moderados, assim como muitos acharam que Emmanuel Macron, na França, seria um sinal nessa direção. Macron foi um candidado de fora do sistema político convencional.
O Brasil é uma história completamente independente do que acontece nos Estados Unidos. A eleição de Bolsonaro está ligado a fatores locais que levaram a uma profunda descrença nas instituições e na política tradicional. A tese de Garman é que esse terreno fértil ao populismo surgiu com a ascensão da nova classe média, que ficou frustrada com a péssima qualidade de serviços públicos, como saúde, educação e segurança.
“É claro que o presidente Bolsonaro pode imitar, tomar lições do trumpismo, e teve muito disso”, afirma Garman. “Mas o fenômeno bolsonarista foi um desencanto profundo por razões domésticas, e não será o Trump fora do poder que vai mudar isso.” Ele propõe um contrafactual: se Hillary Clinton tivesse derrotado Trump em 2016, o presidente Bolsonaro não teria sido eleito?
Não se deve esperar uma moderação, no Brasil, do discurso ideológico do presidente. Bolsonaro migrou para o centro recentemente, mas foi apenas um recuo tático, diz Garman. “Ele não vai demitir o ministro Ernesto Araújo (Relações Exteriores) nem o ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente) só porque o Biden foi eleito. Acho muito improvável que vá se acovardar para uma liderança mais de esquerda nos Estados Unidos e desagradar a base ideológica.”
O futuro eleitoral de Bolsonaro, diz Garman, dependerá do custo político que terá que pagar com o fim ou redução do auxílio emergencial e de como vai manejar o abismo fiscal no ano que vem, quando os estímulos fiscais que mantém a economia viva terão que ser retirados para retomar o ajuste das contas públicas. “O presidente Bolsonaro deve encontrar um quadro eleitoral bastante competitivo”, afirma. “Qual é a perspectiva de melhora dos serviços públicos em dois anos, com uma crise fiscal em Estados e municípios? O presidente Bolsonaro vai ter que lidar com a falta de melhora desses serviços público e a economia recuperando. O futuro político dele depende disso, não do que aconteceu com Trump.”
Fernando Gabeira: Uma ponte com o mundo
Vitória de Trump representaria a perda de esperança na sobrevivência da própria humanidade
Na noite das eleições pensei em ver um jogo da Copa do Brasil para não passar a noite em claro, sofrendo com algo que não posso influenciar. Trump ou Biden, Botafogo ou Goiás? Este último duelo tinha funcionado para embalar meu sono na semana anterior.
No entanto passei mais uma noite em claro. Afinal, há tanta coisa em jogo. Minha ideia dos Estados Unidos não se alterou. Como nunca fui lá, conecto-me pela cultura, e alguns pontos importantes do mapa são Nova York e a Califórnia. Nesses lugares, Trump foi derrotado de forma acachapante. Continuam, de certa maneira, familiares para mim.
O problema são as decisões tomadas em Washington. No dia anterior, os EUA formalizaram sua saída do Acordo de Paris, deixando os outros países com a enorme tarefa de adaptação ao aquecimento global.
Para os estrategistas, uma solução pró-Trump seria interessante para a China, pois acentuaria a decadência americana no mundo. Para mim, ela representaria a perda de esperança na sobrevivência da própria humanidade, deixando-nos com a alternativa de apenas lutar para que isso seja mais lento.
No meu país, seria um estímulo para que Bolsonaro e Salles acelerem a destruição dos recursos naturais e reduzam as chances de encontrarmos nossa moderna vocação econômica: a exploração sustentável da Amazônia, das fontes renováveis de energia, a abertura de milhares de empregos num projeto de recuperação verde.
Alguma coisa não funcionou na primeira noite. As pesquisas se equivocaram, e Biden não conquistou uma vitória esmagadora. Aconteceu o que todos anunciavam; Trump tumultuaria o processo e buscaria uma saída no tapetão. Ele, como todo mundo, sabia que a maioria dos democratas votou pelo correio e que esses votos demoraram a ser contados.
Independentemente do resultado, tudo isso me faz pensar no Brasil. Lá como aqui, a polarização domina o país. Lá como aqui, o populismo é muito mais resiliente do que pode parecer quando nos referimos apenas aos círculos intelectuais.
Antes de criticar as pesquisas que falharam, é importante registrar que algumas pessoas têm medo de revelar seu voto; outras o escamoteiam porque veem nos institutos de pesquisa um braço do sistema e de dominação, denunciado pelos populistas.
E, antes de criticar os democratas por terem esperado uma onda azul que não arrebentou na praia, é preciso estudar se existem alternativas para certas tendências humanas.
Como não se importar com os imigrantes ilegais, inclusive centenas de crianças separadas dos pais? Nem sempre os latinos legalizados são solidários com os ilegais. Nem sempre os negros se compadecem dos seus irmãos asfixiados até a morte pela polícia.
Na medida em que a vitória de Biden se anunciava de forma mais lenta que o esperado, Trump optou por entrar na Justiça e, de certa forma, tumultuar o processo. Isso preocupa não só pelos Estados Unidos. Trump é uma inspiração para Bolsonaro, que tem uma tendência a questionar resultado das eleições, até mesmo quando as vence.
Ha tantas lições a tirar deste momento que ele nos deixa uma tarefa para muito tempo. Mas é claro que o populismo de direita é enraizado na visão de mundo de seus seguidores, e não podemos subestimá-lo, mesmo diante da derrota eleitoral.
Aliás, a vitória nesse caso lembra-me a fala de um oficial no filme “A Guerra da Argélia”: “É muito difícil chegar ao governo, mas as dificuldades começam de verdade quando se chega lá”.
Biden é um homem com recursos oratórios modestos, mas realizou a tarefa de ser o candidato mais votado da história americana. O panorama que encontra diante de si é minado não só pela pandemia, crise econômica, mas também pelo legado do populismo. Desconfiança nas instituições, notícias falsas, teorias conspiratórias, divisão profunda na sociedade, tudo isso modela um caminho muito difícil de transpor.
Muito mais que a paciência e a unidade necessárias para derrotar o populismo de direita, será necessário construir pontes, apesar dos sabotadores que as explodem com frequência.
A primeira e grande ponte será com o próprio mundo, voltar ao esforço multilateral, reconhecer a importância do trabalho conjunto para enfrentar o grande desafio planetário. A volta ao Acordo de Paris e a reconstrução verde da economia americana seriam um grande começo.
Alon Feuerwerker: O que decidiu: a pandemia e George Floyd
Donald Trump ainda não aceitou a derrota, é possível que a luta nos tribunais se arraste, mas a contagem puramente numérica dos votos aponta vantagem decisiva de Joe Biden, o presidente aritmeticamente eleito dos Estados Unidos. A surpresa foi, e ainda vem sendo, a tensão nas apurações, tensão de origem mais política que aritmética. Causada principalmente pelo ineditismo do número de votos pelo correio. “Culpa” da Covid-19.
A luta pelo poder nos Estados Unidos interessa ao mundo, por razões óbvias. Para nós aqui, será particularmente útil tentar fazer alguma análise mais aprofundada, dado o sabido paralelismo entre as duas correntes atualmente no governo nos dois países. Saber o que aconteceu, ou não, por ali, pode dar algumas pistas de eventuais desdobramentos no Brasil nas eleições presidenciais de 2022.
Em primeiro lugar, deve-se notar que Donald Trump não sofreu erosão na sua base desde que se elegeu. Ao contrário, está recolhendo algo da ordem de sete milhões de votos a mais do recebido quatro anos atrás. A maciça campanha democrata pelo voto parece, curiosamente, ter atingido positivamente também o adversário. O problema de Trump: Biden vem recebendo cerca de nove milhões de votos a mais que Hillary Clinton em 2016.
Esse é outro sinal de que Donald Trump caminhava para uma reeleição, se não tranquila, ao menos bastante provável, antes de dois acontecimentos: a pandemia da Covid-19 e a morte de George Floyd. Ambos desencadearam dois movimentos no eleitorado: uma imparável onda pelo registro eleitoral de votantes pretos e um sentimento de urgência que ajudou a convergência de todos os potenciais adversários do incumbente.
As pesquisas ao longo do ano sempre registraram uma tendência dominante de desaprovação, da ordem de 50%, mas um contingente sólido entre 40% e 45% de aprovação para Trump. Bastaria ao presidente, portanto, manter coesa sua base e impedir que a maioria desaprovadora se agrupasse em torno do adversário. Era possível, mas a maneira como enfrentou a pandemia e a morte de Floyd catalisaram com violência a convergência dos opositores.
Poderia ter acontecido sem esses dois fatos? A dúvida ficará. Há alguns meses, o Partido Democrata vinha dividido, pulverizado numa disputa interna sem luz no fim do túnel e com suas alas divididas. Ao final, convergiu para uma solução convencional, contra uma alternativa que se dizia abertamente de esquerda. Mostrou-se adequado. Teria sido assim não fossem os acontecimentos extraordinários que se seguiram? De novo, jamais se saberá.
E no Brasil? Jair Bolsonaro chegará a 2022 com um desafio parecido ao de Trump em 2020: impedir a convergência dos votos que não são em princípio bolsonaristas. Ao contrário dos Estados Unidos, a dispersão partidária por aqui ajuda. E é possível, provável, que até lá a pandemia tenha sido em grande medida controlada. E os conflitos raciais não parecem ter por aqui, até agora, o impacto eleitoral dali.
Qual será o fator decisivo daqui a dois anos? Uma candidata forte vai ser a economia. Mas, como os Estados Unidos acabam de comprovar, nunca é bom subestimar o imprevisível. Ele é sempre muito difícil de prever.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Dorrit Harazim: O despejo
É quase humilhante constatar que, por quatro anos, mundo civilizado conviveu com um delinquente na Presidência dos EUA
Foram 1.460 dias. É quase humilhante constatar que, por quatro anos, o mundo civilizado sobreviveu e conviveu com um delinquente cívico na Presidência dos Estados Unidos. E essa eternidade não acabou: ao se confirmar sua derrota, Donald Trump dispõe de outras 11 semanas para minar com ferocidade vingativa o funcionamento da máquina governamental até a posse de Joe Biden em janeiro. Esse serviço de porão já foi iniciado. Na última semana de outubro, de forma atipicamente silenciosa, Trump lascou sua assinatura num documento de nome quase esotérico: “Ordem Executiva sobre a Criação do Nível F no Serviço Protegido”. Tradução: pelo novo decreto, uma vasta gama de postos federais passam a ser designados como “cargos de confiança e de formulação de políticas”. Poderão perder o direito à estabilidade que sempre tiveram como servidores de carreira. Esses milhares de funcionários que trabalham e analisam fatos — cientistas e juristas, médicos, economistas — seriam repassados a essa nova categoria F. Inversamente, os nomeados políticos de Trump passam a integrar a classe dos funcionários, com estabilidade e tempo para travar a máquina do futuro governo Biden.
Mas isso são meras migalhas. Atual e alarmante é a combustão do ocupante da Casa Branca, entrincheirado com sua bílis por ter acreditado nas próprias fake news. Na última “New Yorker”, a jornalista Jane Mayer escreve sobre a possibilidade de Trump, quando perder a imunidade, vir a ser preso. Mayer inicia a reportagem com uma cena histórica — a de um presidente dos EUA em pânico dando ordens descontroladas e exigindo dos assessores uma lista de escapatórias. Sem ser particularmente religioso, o chefe da nação cai de joelhos e passa a rezar alto; soluça, bate com os punhos no tapete e grita “O que que houve?”. O chefe de gabinete acha prudente chamar a equipe médica e ordena o confisco de todos os tranquilizantes, para afastar a possibilidade de suicídio. Tudo isso aconteceu de fato na Casa Branca de Richard Nixon, no verão de 1974, e está narrado con gusto pela dupla Bob Woodward-Carl Bernstein em “Os últimos dias”.
Mas Trump não é Nixon — nem na formação intelectual (sim, Nixon tinha sólida formação, o que não deve ser confundido com caráter), nem na índole, nem no reconhecimento da existência de um estado de direito. Nixon nunca foi mimado, tinha medo da vergonha, do opróbrio público. Trump tem medo da humilhação social. São coisas muito distintas. Para o Narciso-em-Chefe na Casa Branca, a ideia de ser perdedor, ou de parecer perdedor, o obrigaria a desprezar a si mesmo — e essa possibilidade inexiste. Parecem nulas as chances de Trump jamais vir a “vestir calça de menino que cresceu e congratular o vencedor”, como sugeriu Jim Kenney, o prefeito democrata da Filadélfia. Mesmo que, ao final da tortuosa apuração dos votos, o resultado lhe tenha sido desfavorável, Trump quer parecer indestrutível aos olhos de seus devotos.
A nação de quase 63 milhões de eleitores que o elegeu em 2016 cresceu e se multiplicou para 70 milhões em 2020. “Me sinto seguro ao garantir que Donald Trump estará entre os candidatos à eleição em 2024”, lançou de Dublin o seu ex-chefe de gabinete e atual enviado especial à Irlanda do Norte, Mick Mulvaney. Não sem razão: em quatro anos Trump conseguiu moer a cúpula partidária em massa de manobra. À exceção de John McCain, que já morreu, não sobrou nenhuma figura de porte nacional. Viraram moluscos. O vice-vassalo Mike Pence só existe enquanto Trump existir. Mesmo derrotado, Donald Trump pretende continuar representando o partido que já teve “Honest Abe” (apelido e sinônimo de Abraham Lincoln) como primeiro presidente republicano.
Ainda assim, e independentemente de quando e como o resultado for referendado, a extraordinária catarse democrática que deu a Joe Biden a maior votação da história do país — mais de 4 milhões acima da de Trump — será um marco indelével. O colosso americano parece ter despertado de uma longa noite de quatro anos para redescobrir o valor de cada voto e o júbilo de votar.
Recompor uma nação separada por duas realidades, duas visões de si e dois conjuntos de fatos poderá levar uma geração inteira. Perdeu-se o conhecimento básico que um cidadão americano acreditava ter do outro. O escritor e colunista Anand Giridharadas, americano nascido na Índia, aponta para a oportunidade de os Estados Unidos aprenderem a real história do país. Hora de aceitar que a visão de James Baldwin da sociedade americana nunca foi radical. Se para nada mais serviu o ano de 2020, ele ao menos consolidou a urgência dos Estados Unidos se reconhecer como nação onde não basta ser não racista. É preciso aprender a ser antirracista.
O radical de hoje é Donald Trump. Por quatro anos, ele comandou uma nação incapaz de deliberar seu futuro baseada numa mesma fonte de fatos. Joe Biden chega para iniciar a longa jornada de retorno, senão à normalidade, pelo menos à sensatez quando diz: “Não cabe a mim nem a Donald Trump declarar quem venceu a eleição. Esta é uma decisão do povo americano”.
Para Trump, a questão do despejo é inconcebível. A única transição de poder que aceita é dele para ele mesmo. Talvez precise de monitoramento.
Vera Magalhães: Nova diplomacia
Guinada dos EUA é chance de livrar Itamaraty do ranço ideológico
Os Estados Unidos contam seus votos em ritmo de tartaruga, enquanto o mundo decora seus Estados e condados e aprende sobre seu complicado sistema eleitoral. Trata-se, para os países, de uma oportunidade de projetar a nova ordem mundial, e se preparar. O Brasil deveria estar nessa fase, não estivessem os responsáveis pela nossa política externa de luto pela confirmação da derrota do amigo Donald Trump.
A troca da guarda na Casa Branca deveria ser um alerta eloquente para o Itamaraty. Não vai mais adiantar se contentar com migalhas de atenção do “primo rico” ao “primo pobre”, com a família presidencial satisfeita em ser recebida para um tapinha nas costas.
Os democratas são conhecidos por adotar políticas protecionistas quando estão no poder. Com o republicano Trump não foi diferente nessa seara, bem sabemos. Então, nos obstáculos ao aço e alumínio brasileiros e ao jogo duro com etanol e commodities agrícolas pouco deve mudar.
Mas existe uma boa chance de a relação azedar em outras plagas, seja por uma reação política dos democratas aos excessos de torcida brazuca pelo adversário, seja pela mudança de discurso dos EUA no campo da política ambiental.
Joe Biden já deixou claras as restrições à maneira como o governo de Jair Bolsonaro trata os desmates e as queimadas na Amazônia, e os recuos brasileiros no comprometimento com metas climáticas, por exemplo.
Acenou com a ideia de constituir um novo fundo para a Amazônia, desde que mediante contrapartidas do governo brasileiro com políticas de preservação da floresta e fiscalização efetiva do avanço de atividades econômicas clandestinas na região.
Ainda entregue à paixão trumpista e imbuídos da crença mística de que ele venceria, não só o Itamaraty de Ernesto Araújo como o Meio Ambiente de Ricardo Salles se apressaram em recusar o dinheiro e dizer que quem manda aqui somos nós.
O prenúncio das relações entre os dois países com esse time dos terraplanistas ideológicos à frente é o pior possível. É por isso que, se fosse minimamente prático e racional, Jair Bolsonaro deveria considerar seriamente a possibilidade de trocar as peças no Ministério das Relações Exteriores (no Meio Ambiente não há nem o que falar, dado o desastre continuado que a presença de Salles provoca).
Um breve retrospecto do “legado” de Araújo, um diplomata obscuro até ser pinçado por Bolsonaro dado a seu fervor olavista, já seria suficiente para ele levar um bilhete azul num reality-show como O Aprendiz, do ídolo Trump.
Araújo se colocou à frente da tentativa de tirar Nicolás Maduro da presidência da Venezuela, e o Brasil foi um dos primeiros a reconhecer Juan Guaidó como “presidente autoproclamado”. Quase dois anos depois, Maduro se diverte com as agruras de Trump e não arreda pé da ditadura que impôs aos venezuelanos. Sob o comando do chanceler, o Brasil também torceu nas eleições da Argentina e da Bolívia e no plebiscito do Chile, sempre levando de 7 a 1.
Na questão do Oriente Médio, o clã Bolsonaro e seu fiel representante no Itamaraty também fizeram balbúrdia à toa: Benjamin Netanyahu, outro “parça” do Jair, enfrenta contestações internas por acusações de corrupção enquanto se fia nos acordos de paz costurados com a ajuda de Trump para se manter como primeiro-ministro de Israel. Anunciamos com estardalhaço uma mudança de embaixada que nunca se efetivou e vamos ficar falando sozinhos, agora que Trump está de saída. Para quê? Absolutamente nada.
É hora de devolver Araújo à sua carreira obscura e o Itamaraty a alguma racionalidade, que é a tradição da nossa antes reputada diplomacia. Mas esperar algo assim de Bolsonaro é como acreditar que Trump fará uma transição decente e democrática para Biden: não vai rolar.
Ricardo Noblat: Bolsonaro escolheu sair derrotado das eleições americanas
O risco do isolamento
Deu no The New York Times, o mais importante jornal do planeta: “Enquanto os líderes da América Latina e do Caribe se apressaram em parabenizar Biden por sua vitória e prometeram trabalhar em estreita colaboração com seu governo, os governos do México, Brasil e El Salvador permaneceram em silêncio”.
O presidente Jair Bolsonaro custou a acreditar que Donald Trump pudesse ser derrotado pelo democrata Joe Badin, “esse cara”. Ao perceber que isso seria possível, passou a acreditar que ao fim e ao cabo as ações movidas por Trump e pelo Partido Republicano acabariam sendo acolhidas pela Suprema Corte.
Ao dar-se conta nas últimas 48 horas de que não serão, decidiu ainda assim que tão cedo enviará a Biden uma mensagem de parabéns. O que ele pensa em ganhar com isso? Até Boris Johnson, o primeiro-ministro do Reino Unido, mais ligado e mais dependente de Trump do que é Bolsonaro, parabenizou Biden.
Não falta vida inteligente ao lado do presidente brasileiro ou ao alcance de um telefonema dele em busca de conselho. Falta vida inteligente em Bolsonaro, bem como disposição de ouvir o que o contrarie. Nisso ele e Trump são iguaizinhos: querem que todos que os cercam digam amém às suas ideias e as exaltem.
Há os que imaginam que existe método na loucura de Bolsonaro. Ocorre que nem sempre há. Sobra estupidez. O que Trump fez por ele ou pelo Brasil para merecer tamanha admiração e vassalagem por parte dele? Nada. O que Bolsonaro fez para que Trump pelo menos se interessasse por ele? Tudo que pode.
Nem assim Trump se interessou. A única coisa em Bolsonaro que chamou a atenção do presidente americano foi o fato de ele ser apontado pela imprensa internacional como o Trump do Brasil. Trump achou curioso e mais de uma vez falou a respeito. Uma coisa, de fato, os aproximava: eram presidentes acidentais.
Bolsonaro é bem capaz de bater o pé e de resistir às evidências de que terá de rever suas posições em relação a vários temas se quiser se entender com Biden depois que ele tomar posse. A questão ambiental é um desses temas, mas não é o único. O respeito aos direitos humanos é outro. A situação da Venezuela, outro.
O que é bom para os Estados Unidos nem sempre é bom para o Brasil, mas algumas coisas podem ser. As apostas internacionais feitas por Bolsonaro deram erradas. O país que ele governa perdeu conceito no exterior. Bolsonaro arrisca-se a se tornar um presidente cada vez mais isolado, o que é péssimo para o Brasil.
Merval Pereira: Efeito Orloff
Certamente o fator decisivo para a vitória de Joe Biden sobre Donald Trump foi a capacidade do ex-vice-presidente de encarnar o que mais os Estados Unidos precisam hoje, um conciliador. O caminho para derrotar um extremista de direita não é um extremista de esquerda, e por isso Bernie Sanders se perdeu pelo caminho durante as primárias, e Biden recuperou sua vantagem moral com os votos dos negros na Carolina do Sul.
O mesmo pode acontecer entre nós. O famoso efeito Orloff, eu sou você amanhã. Se em 2018 o eleitorado queria sangue nos olhos, e por isso o PT ainda conseguiu levar seu candidato Haddad ao segundo turno, menos por ele, que é um moderado, mais pela história do partido, radicalizado pela prisão do ex-presidente Lula, talvez não seja esse o cenário em 2022.
Essa tensão permanente que Trump impunha aos Estados Unidos e ao mundo cobra seu preço, assim como aqui entre nós Bolsonaro já teve que dar uma meia trava em sua beligerância. Trump e Bolsonaro têm os mesmos arroubos autoritários que acabam sendo uma ameaça à democracia que lhes proporcionou chegarem onde chegaram.
Ambos se batem contra as instituições democráticas que limitam os poderes de um presidente da República, como sói acontecer na democracia ocidental. Ambos se colocam contra a imprensa livre e tentam constrangê-la com ataques e críticas. Agora, nos Estados Unidos, Trump viu-se na condição de censurado a bem da verdade pelas três redes de televisão aberta do país, uma atitude drástica que mostrou a que ponto de conflito as relações do presidente com os órgãos de imprensa chegaram.
Os conflitos estimulados, a violência tolerada, como Trump com os supremacistas brancos e Bolsonaro com os radicais que cercaram o prédio do Supremo Tribunal Federal (STF) e ameaçavam o fechamento do Congresso, acabam cansando os cidadãos comuns, que não estão em guerra com o mundo e buscam um ambiente pacífico para viver, especialmente empregos para trabalhar.
Ser popular não requer usar camisas de times de futebol, nem oferecer pão com leite moça a uma autoridade que o visita. Nem fazer piada homofóbica, estimulando pelo exemplo um hábito brasileiro que deveria ser erradicado. Seria preciso uma política econômica que gerasse empregos, uma atitude séria diante da pandemia da Covid-19, um governo sólido que desse aos cidadãos confiança no futuro.
A popularidade de Trump levou o Partido Republicano a ter uma votação histórica, com a possibilidade de manter a maioria no Senado. Mas para Trump, a perda da presidência é uma dor pessoal, não partidária, assim como Bolsonaro já pertenceu a cerca de 10 partidos e continua à disposição de qualquer legenda que lhe ofereça submissão total. Não são políticos a serviço do país, mas deles mesmos.
Diz-se em política que presidência é destino. No Brasil, temos exemplos vários disso, com Collor, Itamar, Sarney, Temer, o próprio Bolsonaro, que nunca sonharam em ser presidente e chegaram lá por caminhos diversos. Com Joe Biden, essa premissa se confirma. Concorreu três vezes dentro de seu partido, quatro anos antes deveria ter sido o candidato natural após os oito anos de vice-presidência, mas as forças políticas dos democratas levaram Hillary Clinton a ser a candidata contra Trump.
Biden chegou a presidente quando menos se esperava, aos 78 anos, mas com o perfil talhado para derrotar o arrogante autoritário que havia chegado à Casa Branca também fora de qualquer possibilidade previsível. Populistas escrachados como Trump ou Bolsonaro apenas aproveitam-se das fragilidades da população para vender ilusões e alimentarem seu autoritarismo. Falta-nos, no momento, uma figura que represente o político de centro-esquerda que Biden encarna, um político confiável como já tivemos, que represente a solidez de uma carreira dedicada à conciliação e ao combate à desigualdade.
Luiz Carlos Azedo: Entre a águia e o dragão
Candidato a marisco entre EUA e China, faltam ao governo Bolsonaro politica externa independente e pensamento estratégico. O alinhamento com Trump foi o melhor exemplo
— Espera! — exclamou Ega. — Lá vem um “americano””, ainda o apanhamos.
— Ainda o apanhamos!
Os dois amigos lançaram o passo, largamente. E Carlos, que arrojara o charuto, ia dizendo na aragem fina e fria que lhes cortava a face:
— Que raiva ter esquecido o paiozinho! Enfim, acabou-se. Ao menos assentamos a teoria definitiva da existência. Com efeito, não vale a pena fazer um esforço, correr com ânsia para coisa alguma…
Ega, ao lado, ajuntava, ofegante, atribulando as pernas magras:
— Nem para o amor, nem para a glória, nem para o dinheiro, nem para o poder…
A lanterna vermelha do “americano”, ao longe, no escuro, parara. E foi em Carlos e em João da Ega uma esperança, outro esforço:
— Ainda o apanhamos!
— Ainda o apanhamos!
De novo a lanterna deslizou e fugiu. Então, para apanhar o “americano”, os dois romperam a correr desesperadamente pela rampa de Santos e pelo Aterro, sob a primeira claridade do luar que subia.
(Os Maias, Eça de Queiroz, 1888)
Essa alegoria do escritor português que tanto influenciou nossa literatura encerra um grande “afresco” literário sobre a atávica e parasitária elite lusitana e a situação de estagnação de Portugal no final do século XIX. Serve sob medida para a situação em que se encontram o presidente Jair Bolsonaro e seu ministro das não-Relações Exteriores, Ernesto Araujo, que agora correm atrás do prejuízo como a dupla Carlos Maia e João da Ega, por causa da vitória de Joe Biden, candidato do Partido Democrata nas eleições para a Presidência dos Estados Unidos. O presidente Donald Trump, um demagogo tresloucado que ocupou a Casa Branca por 4 anos e levou muitos a acreditarem no naufrágio da civilização ocidental, foi escolhido por ambos como aliado incondicional. Entretanto, mais uma vez, a democracia americana se recuperou de um desastre político e retomou o seu curso histórico.
No mundo globalizado — traumatizado por uma pandemia que já matou 1,4 milhão de pessoas, a recessão dela decorrente e o aprofundamento das desigualdades —, falta uma autoridade moral, portadora de valores universais capazes de influenciar a marcha da História, à qual a sociedade contemporânea possa recorrer. O Velho Mundo, com suas ideias iluministas e protagonista da história mundial do século XV ao XIX, hoje não é o candidato natural a essa posição. Somente os Estados Unidos podem exercer esse papel de liderança global nos fóruns internacionais, pela universalidade de seus fundamentos políticos, sua composição étnica e multiculturalismo, além do inegável poder que adquiriu no século passado, após vencer duas guerras mundiais e a “guerra fria”. Nenhum outro país reúne, simultaneamente, capacidade de produção industrial, força militar, pesquisa científica, conhecimento, tecnologia e influência política e cultural para isso.
Marisco
Misógino, homofóbico e chauvinista, Trump havia abdicado desse protagonismo, lançando os Estados Unidos na contramão da História. Mas é um erro supor que tudo começou com o republicano. Na verdade, o erro histórico dos Estados Unidos foi continuar a tratar os vencidos na “guerra fria” — a antiga União Soviética e os países do Leste europeu — como inimigos a serem humilhados, espoliados e isolados politicamente. É esse hegemonismo truculento que está na gênese do trumpismo, marcadamente após a Guerra do Iraque, com o seu intervencionismo para derrubar regimes e refundar nações, alterando abruptamente a geopolítica de regiões inteiras. O ponto de inflexão dessa política, porém, foram os fracassos nas tentativas de derrubar os governantes da Síria, Bashar al-Asha,d e da Venezuela, Nícolas Maduro, por subestimar o poder de intervenção militar da Rússia e a emergência da China como potência econômica e diplomática.
No seu livro Sobre a China, Henry Kissinger, ex-secretário de Estado norte-americano, que no governo Richard Nixon negociou com êxito o restabelecimento das relações dos Estados Unidos com os chineses, chamou a atenção para o fato de que as duas guerras mundiais do século XX resultaram de uma disputa pelo controle do comercio mundial no Atlântico por uma potência continental, a Alemanha, e uma potência marítima, o Reino Unido. Agora, o eixo do comércio mundial se deslocou para o Pacífico e a disputa continua sendo entre uma potência continental e uma marítima: China e os Estados Unidos, respectivamente. É preciso evitar que essa guerra comercial não se transforme numa guerra quente, não se cansa de advertir Kissinger, o ex-diplomata hoje nonagenário.
O erro estratégico de Bolsonaro e seu não-chanceler, Ernesto Araujo, foi acreditar que isolamento diplomático em que o país mergulhou, por causa de uma agenda negacionista, reacionária e antiambientalista, seria compensado pela aliança imediatista, não com o Estado norte-americano, mas com o presidente Trump. Deu errado. A águia do Norte novamente alçou voo, em busca da liberdade, mas o dragão chinês, nosso principal parceiro comercial, espreita o processo em curso antes de estrugir labaredas de fogo. A China dispõe de recursos humanos e financeiros, capacidade industrial e tecnologia para sustentar essa disputa por longos anos. O maior desafio para a diplomacia brasileira é não virar marisco nessa disputa, que continuará com Biden, em outros termos. Bolsonaro colecionou agressões aos chineses, que pacientemente observam o curso de nossas relações com os Estados Unidos. Se forem toscamente discriminados, principalmente no caso do 5G, vão se reposicionar política e comercialmente, com um poder de retaliação muito grande. Se tem uma coisa que falta ao governo Bolsonaro é politica externa independente e pensamento estratégico. O alinhamento com Trump foi o melhor exemplo.
Míriam Leitão: Vitória da causa da humanidade
'A causa da América é, em grande medida, a causa de toda a humanidade.' A frase escrita por Thomas Paine em 1766 amanheceu ontem como nova. “O sol jamais brilhou sobre uma causa com maior importância”, escreveu Paine, o incandescente fundador da pátria, no “Senso Comum”. A vitória de Joe Biden e Kamala Harris tem múltiplos significados. O presidente eleito Joe Biden avisou no seu primeiro comunicado: “O trabalho adiante de nós vai ser duro.” E será. Ninguém expressou melhor o sentimento de deixar para trás um governo que pregou a intolerância e praticou a mentira do que o comentarista Van Jones. E o fez aos prantos. “É mais fácil ser pai esta manhã. Mais fácil falar aos filhos que ter caráter é importante.”
Quando Donald Trump, no primeiro debate, se negou a condenar um grupo que prega a supremacia branca, o negro Van Jones, comentarista da CNN, perguntou o que dizer às crianças, ao filho. Agora há muito a contar aos jovens sobre velhas lutas contra preconceitos. O homem mais velho a ocupar a Casa Branca vem junto com uma mulher negra, filha de imigrantes. “We did it, Joe”, disse ela, rindo no telefonema ao vencedor. Tudo é simbólico. Há 100 anos as mulheres americanas conquistaram o direito de voto. Kamala Harris é água desse rio que corre há um século e que abrigou em seu leito outros rios. Será lindo vê-la assumindo a vice-presidência do país escolhido por sua mãe indiana e pelo seu pai jamaicano. É o momento em que se pensa que não há impossíveis, não há “isso não é para você”.
O dia 7 de novembro é histórico para Joe Biden por lembrar sua posse como senador há 48 anos. Mas para toda a sua geração e as que vieram depois serve como quebra de outro preconceito, o que recai sobre os velhos. Nunca é tarde para um sonho. Essa é a mensagem.
Há, em qualquer eleição, duas direções para olhar o evento. Olha-se para o que virá e o que se deixa para trás. O passado agora é Donald Trump. Ele é o líder que exibiu os piores sentimentos como se fossem normais. “Há muita gente que não consegue respirar, acorda, vê os tuítes, vai a uma loja e vê que as pessoas que antes tinham medo de mostrar seu racismo estão ficando cada vez mais desagradáveis”, disse Jones. Um presidente sempre amplifica suas mensagens. Quando mente, ofende, discrimina, ele autoriza esse comportamento. Trump, certa vez, debochou de um jornalista por ter um defeito físico. Foram quatro anos expostos ao governante do país mais forte do mundo estimulando as piores atitudes. Como ensinar às crianças que ser decente vale a pena se o presidente debocha de valores, desrespeita códigos civilizatórios, descumpre as leis?
Em uma vitória há também o olhar para o futuro e esse é o mais relevante. O futuro não será azul. Será uma transição hostil para um governo que assumirá no meio de uma pandemia e de uma crise econômica. Há ainda as fraturas da América para serem curadas. Todos terão trabalho a fazer para reatar o país partido. Alguns republicanos cumprimentaram o novo presidente, como fez Jeb, da casa Bush, que por 12 anos governou o país. “Eu tenho orado pelo nosso presidente em grande parte da minha vida adulta. Eu vou orar por você e seu sucesso.” Um protestante republicano estava dizendo a um democrata católico que oraria por ele.
Filadélfia foi o berço da Constituição e foi simbolicamente o ponto do recomeço. O ex-presidente Fernando Henrique ressaltou a coincidência e lembrou que em dois séculos e meio nenhum presidente havia atacado os alicerces da democracia. “O atual o fez sistemática e deliberadamente”. No mundo, inúmeros líderes cumprimentaram Joe Biden. O primeiro-ministro inglês, Boris Johnson, falou da aliança na luta contra a mudança climática.
“Vejo as águas que passam e não as compreendo (…) Como poderia compreender-te América?”, Drummond lançou essa pergunta há 75 anos. A dúvida amanheceu ontem como nova. Como entender tudo o que houve nesses dias? Como entender os últimos quatro anos e os 70 milhões de votos em uma pessoa nefasta? “Tantas cidades no mapa… nenhuma porém tem mil anos.” O poeta parecia ver o que vivemos esta semana investigando a geografia americana para adivinhar a cor de cada cidade. É forçoso entender tudo o que houve porque, como ensinou Paine, essa é a causa da humanidade.
Eliane Cantanhêde: O Trump tupiniquim
Com derrota externa e interna, Bolsonaro está abatido, isolado e sem referências
É estarrecedor que o presidente dos Estados Unidos acuse adversários e o próprio sistema eleitoral de fraude e corrupção, atiçando seus apoiadores para uma guerra campal e achincalhando a maior democracia do planeta. Mas Donald Trump é Donald Trump, sai da Casa Branca como entrou e leva o raro troféu de presidente que perde a reeleição, pensando sempre nele, só nele.
Biden prega união nacional, Trump mente, agride e é cortado do ar pelas três maiores redes de TV dos EUA, aprofundando a polarização do País e a divisão no Partido Republicano, que começou quando ele impôs sua candidatura no grito. Cara a cara com a derrota, ele expõe desespero e atrai críticas dos próprios republicanos e parte da direita americana que não é belicosa, mentirosa, autoritária e ignorante. Mas ele tem mais de 70 milhões de votos…
No Brasil, o voto é obrigatório com o sistema de um cidadão, um voto, seja ele banqueiro ou pedreiro. Nos EUA, é opcional e o candidato com mais voto popular pode perder a eleição no colégio eleitoral, como os democratas Al Gore e Hillary Clinton. Se o candidato republicano tem 51% em Iowa, todos os votos do Estado vão para o republicano. Se você votou no democrata, seu voto vai para o lixo.
Quanto à votação, o Brasil tem coordenação nacional e regras do TSE e, desde 1996, a urna eletrônica, segura, fácil, rápida, que permite o anúncio do novo presidente no dia do pleito. Já nos EUA cada estado tem suas regras e as cédulas são de papel, do século passado. A apuração é manual, voto a voto, envolve milhões de pessoas, gera incertezas, disputas judiciais e o resultado pode demorar semanas.
Bolsonaro, porém, insiste na volta da cédula impressa, depois de criar uma figura inédita no mundo: a do eleito que denuncia fraude na própria eleição – sem prova nenhuma, aliás, como o Trump real nos EUA. E as semelhanças não param aí. Trump se nega a coordenar a reação nacional à pandemia, diz que é só uma gripe, desdenha de máscaras e isolamento social e fez propaganda da cloroquina. Você já viu esse filme aqui? Mas isso não é brincadeira, é brincar com a vida.
Trump lá e Bolsonaro cá vivem numa realidade paralela, como velhos populistas convencidos de que podem falar e fazer qualquer coisa, espancar a China, aliar-se ao que há de pior e promover retrocessos em gênero, direitos humanos e meio ambiente na ONU. Bolsonaro só não saiu do Acordo de Paris, como fez Trump no dia da eleição, por falta de condições políticas.
Há, porém, diferenças entre o “mito” Bolsonaro e o “Deus” Trump, que não rasga dinheiro e manteve o slogan “America First” com o Brasil. Ganhou todas, inclusive ao derrubar um brasileiro em favor de um americano no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e ao impor cotas de aço, alumínio e etanol para o Brasil. Logo, usou os produtores brasileiros para comprar votos desses setores nos EUA.
Apesar da ridícula convocação de manifestações pró Trump em cidades brasileiras, até o mercado financeiro avalia como positiva a vitória de Joe Biden, que defende princípios, não é dado a maluquices e vai manter o decantado pragmatismo da política externa americana. Os dois presidentes podem se bicar, mas Brasil e EUA manterão acordos comerciais, programas de cooperação e a negociação em prol dos interesses de cada um. E quem discorda da pressão em defesa da Amazônia?
A troca de Trump por Biden é saudável para o mundo, os EUA e o Brasil, mas Bolsonaro tem razão em estar abatido. Ele perde o único grande parceiro internacional e seus candidatos às eleições municipais afundam como Trump. Com derrota externa e interna e a obsessão por 2022, será cada vez mais engolido pelo Centrão, quicando de um palanque a outro e falando besteira.
Carlos Melo: O desafio de Joe Biden
Ao longo dos últimos dias, a maior parte do mundo civilizado se pôs entre perplexa e desolada diante da hipótese concreta de mais uma vitória de Donald Trump. Para quem prefere ver o mundo com valores humanísticos, seu desempenho foi assustador. Goste-se ou não, é um forte. Agiu de modo oposto ao recomendável e ao razoável e ainda assim foi longe. Governou com vistas a desunir, não a agregar; se indispôs com a arte, com a ciência com a Grande Política; plantou a discórdia, colheu o desprezo de boa parte do planeta. E, ainda assim, por pouco não foi reeleito.
Já fiz essa pergunta em outro artigo, nesse Estadão, mas ela ainda vale: qual a razão de sua força? Ela não brota de qualidades pessoais, certamente. Trata-se de um homem grosseiro, de carisma duvidoso; rude nos gestos, estreito intelectualmente. Um canastrão, no palco da História Mundial, um Quixote da direita, franco atirador movido pela vaidade pessoal, pelo hedonismo dos novos ricos, inebriado pelo poder. Fosse brasileiro, seria comparada aos barões decadentes que estacionam seus carrões em vagas proibidas, exigem mesas especiais nos restaurantes e ameaçam chamar “o seu delegado” particular.
Por décadas, a humanidade especulará em torno dessa força – como faço agora. O fato é que, após Barack Obama, a maior democracia da história deu vida política a Trump e quase o reelegeu. Quem, no início da década de 1990 assistiu ao cult movie “Um dia de fúria”, sabe que o mal-estar ronda o mundo – como disse Tony Judt – há muito tempo. A revolução tecnológica deu saltos, mas nem todos a puderam alcançar: restaram milhões de deserdados – os “invisíveis” que somente agora o ministro Paulo Guedes percebeu existir.
Eles não têm formação, não têm profissão, não têm emprego; sem futuro, agarram-se a algum tipo de uber, num processo de precarização aparentemente sem fim.
Foi dessa decadência que se fez a noite, desse pântano que emergiu o monstro que deu vida ao Brexit, a Donald Trump e às mancheias de genéricos que carregam o mesmo princípio ativo: a demagogia, posto que há muita espuma em barulho, mas nenhuma providência concreta para resolver problemas reais. Quais as grandes medidas adotadas por Trump – ou por Bolsonaro ou pelo Reino Unido, pós Brexit – capazes de alterar a rota de exclusão e desalento, catalisada pela covid-19?
Da estagnação econômica e da desigualdade brota a degeneração política – e se o original traz essa degenerescência, o que dizer das cópias espalhadas pelo mundo? Enfim, são ecos do desespero, é a nostalgia de um passado idealizado – make America great again –, são a ignorância e o ressentimento que apelam à violência e ao oportunismo que invade a religião e assenhora-se de um deus, como se Deus fosse só seus.
O iluminismo de Barack Obama foi incapaz de estabelecer vínculos e diálogos com essa população brutalizada pela desigualdade cuja arrogância do liberalismo radical e dogmático apenas ampliou. Hillary Clinton foi vítima da própria presunção, natural dos bem-nascidos formados na Yve League, que acreditam poder passar ao largo do mal-estar que espreita pelas janelas e ocupa as esquinas, presa fácil de todo tipo de milícias.
Donald Trump é o líder demagogo surge nos balcões do desemprego e da cabeça baixa dos invisíveis — assim como aquele outro que surgiu dos balcões das cervejarias de Munique, na Alemanha dos anos 1920. Ele expressa o mal-estar da civilização contemporânea. É isso que o levou tão longe. Se é verdade que tem contas a pagar, verdade também são os saldos que tem a recolher se a dívida social não for liquidada. Por detrás de si, há uma horda de desvalidos a procura de um fiapo qualquer de esperança. É preciso ter atenção para isso e qualificar essa esperança.
Esse será o grande desafio de Joe Biden: compreender os problemas de seu país e do mundo; não fugir à responsabilidade de governar para todos; somar e não mais dividir, incorporar os destroços do século 20 aos melhores sonhos do século 21. Estabelecer vínculos e políticas públicas com e para os rejeitados pela 4ª. Revolução. Retirar-lhes do sanatório, abrir-lhes a porta de um abrigo seguro e as janelas das oportunidades. Terá no seu encalço, se não Donald Trump, o seu fantasma. Se fracassar, do caudaloso lago da desigualdade e da ignorância, outro monstro da demagogia poderá surgir. Inviabilizá-lo é seu desafio e o desafio do mundo todo.
*Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.