Trump

Sérgio C Buarque: E agora, Jair?

Trump se foi, você ficou só, a fonte ideológica secou, e você já não sabe o que dizer. E agora, Jair? As mentiras falharam, o grito murchou e você ficou mudo. Jair, o seu grande líder esperneia, ameaça e protesta, mas o povo, Jair, o povo norte-americano mandou Trump embora. Ele tentou, Jair, tentou desmoralizar as instituições norte-americanas, como você gosta de fazer no Brasil, atacou e caluniou a imprensa durante todo o seu governo, como você também faz aqui, Jair. Ele tentou desqualificar o processo eleitoral com denúncias falsas de fraude, tudo que ele sabe fazer. Mas ele fracassou, Jair. E tudo indica que este fracasso sinaliza o seu próprio futuro. E agora, Jair?

O ciclo desastroso de Trump acabou, Jair, a manifestação democrática do povo norte-americano desmontou o obscurantismo trumpista e desmanchouo caricato topete do arrogante ex-presidente. Com a vitória de Biden, acabou a inspiração para o seu negacionismo e os seus discursos debochados e reacionários. Jair, você é órfão político de um ídolo de pés de barro, um santo de pau oco cheio de dinheiro falso, um ídolo que nunca deu a menor atenção às suas desvairadas pretensões. Você imitou uma caricatura de líder político que se alimenta do confronto e do ressentimento, destilando ódio e distribuindo ameaças com os adversários e, mesmo, aliados.

Como fica agora a sua política externa, Jair, baseada que foi na obediência cega e na reverência humilhante ao pesadelo norte-americano, como fica agora que seu ídolo despencou. Você está só, Jair, seus alicerces ruíram. Como dizia Drummond no poema que inspira este artigo, “tudo acabou, tudo fugiu, tudo mofou, e agora” Jair? Qual será a posição do seu governo em relação à China, maior parceiro comercial do Brasil que você esnobou, que você agrediu, preferindo apoiar e imitar Trump nas acusações levianas culpando a China pela propagação do vírus?

E o Acordo comercial do MERCOSUL com a União Europeia que você ignorou, enquanto se entregava às promessas de um mentiroso contumaz? Como vai lidar com esta grande oportunidade comercial? E agora, Jair, como seu governo tratará o meio ambiente e a Amazônia uma vez que a sua irresponsabilidade ambiental já não encontra amparo nos Estados Unidos? Parece que você vai ficar falando sozinho, Jair, contra o globalismo e a ciência, contra o fantasma do comunismo, contra as instituições da República e, principalmente, contra a imprensa brasileira. Você está só, Jair.


Eliane Cantanhêde: O impacto em 2022

Além de reinventar seu governo, Bolsonaro vai ter de se reinventar

Derrota de Donald Trump nos Estados Unidos, fragilidade do presidente Jair Bolsonaro nas eleições municipais e total falta de estratégia para enfrentar a crise econômica e social. É nesse ambiente que viceja a articulação de uma chapa alternativa de centro para 2022, com participação de Luciano Huck, João Doria, Rodrigo Maia, Luiz Henrique Mandetta e agora Sérgio Moro, além de Fernando Henrique Cardoso. O cerco vai se fechando contra Bolsonaro.

Mais à centro-direita do que propriamente ao centro, a ambição é atrair a direita moderna, que votou em Bolsonaro, mas agora só pensa em se descolar dele, e a parcela da esquerda que cansou da hegemonia e dos erros do PT, mas tem como prioridade livrar o País de Bolsonaro. Os ventos favoráveis vêm de fora, com a eleição de Joe Biden e Kamala Harris, e de dentro, com as eleições municipais e as investigações sobre rachadinhas no Rio.

Como sempre, Bolsonaro vai na contramão do mundo democrático e se recusa a cumprimentar o vitorioso nos EUA, até mesmo a explicar por que não, o que só piora as perspectivas para a relação com o novo governo. Tão negacionista quanto Trump na pandemia, ele também nega os votos e a realidade, como ele. Bolsonaro acha que Trump venceu? Foi tudo fraude?

Assim, ele repete a campanha de 2018 só na forma, animando claques com muita antecedência pelo País afora, mas vai ter de inventar um novo conteúdo. O de dois anos atrás caducou: “nova política”, combate à corrupção, apoio à Lava Jato, reformas e carta-branca para o “Posto Ipiranga”, caneladas no mundo árabe e alinhamento automático com os EUA de Trump.

No governo, ele mergulhou no Centrão, derrubou Moro, botou a mão em PF, Coaf e Receita, abandonou as reformas tributária e administrativa, tirou gás de Paulo Guedes e agora fica sem Trump – e sem política externa. É bem mais complicado dar caneladas na China. Sem falar da pandemia…

Logo, Bolsonaro precisa, para se reeleger, muito mais do que fazer piadas de profundo mau gosto com Guaraná Jesus, assim como precisa mais do que Celso Russomanno em São Paulo e Marcelo Crivella no Rio para escapar da derrota no domingo. Dificilmente a onda bolsonarista de 2018 se mantém agora e em 2022. O PSL foi um meteoro e passou.

O quadro que se desenha também é outro. Pela esquerda, o ex-presidente Lula, sem viço e sem discurso, já não é o mesmo. E as eleições municipais são um bom presságio do que vem pela frente, com o PT perdendo espaço para PSOL, PDT e PSB, pela ordem, em São Paulo, Rio e Recife e projetando que em 2022 é cada um por si, ou todos por um – que não será o PT.

Pela direita, Bolsonaro reina sozinho, agarrado ao mesmo Centrão que não deu para o gasto com o tucano Geraldo Alckmin em 2018. Mas ele, Bolsonaro, não é mais novidade, sofre o desgaste do poder e não tem o que mostrar. As “qualidades” eram falsos brilhantes, os defeitos se tornam mais e mais evidentes.

Há, portanto, um cenário que favorece o centro conhecido, confiável, que não dará cambalhotas, com surpresas e choques. Os articuladores de uma chapa alternativa veem insegurança por toda parte – na economia, na política, no meio ambiente, na política externa… – e chegaram a uma conclusão: a palavra de ordem de 2022 será estabilidade.

Reunir tanta gente, com tantos interesses e divergências ideológicas, porém, não será fácil. Rodrigo Maia se opõe à integração de Moro, que tenta incluir até o general Hamilton Mourão, rifado da chapa de Bolsonaro. De concreto, portanto, só é possível dizer que a derrota de Trump é um forte baque no bolsonarismo e terá impacto na eleição presidencial de 2022. Além de reinventar seu governo, Bolsonaro vai ter de se reinventar. Alguém acredita que seja capaz?


Joel Pinheiro da Fonseca: O jornalismo deveria fazer oposição ao populismo?

Derrota de Trump anima, mas é desmotivador ver a imprensa se tornar tão parcial

Biden venceu, viva! Uma vitória da democracia, da ciência, das instituições, da imprensa. Mas espere um momento: por acaso a imprensa deveria ser torcedora, ou até participante, nessa disputa?

Todo mundo sabe que não existe veículo completamente imparcial e objetivo. Há sempre valores, ideologias, narrativas, interesses, que inevitavelmente influenciarão as decisões sobre o que e como publicar. Nesse sentido, vejo muitas vozes defendendo que, como a imparcialidade perfeita é impossível, cada veículo de imprensa deveria assumir seu lado. Discordo.

A imprensa é relevante justamente na medida em que não é apenas mais um porta-voz de um campo político. A perfeita objetividade e imparcialidade pode ser uma utopia, inatingível na prática, mas é importante que siga como ideal operante na conduta institucional. A partir do momento em que aceitamos abrir mão de um valor em nome da defesa de um grupo político, é inevitável que a prática seja contaminada e que os padrões rigorosos sejam sacrificados ao partidarismo. À “opinião” do jornal basta o editorial; o jornalismo deve mirar a verdade e objetividade como valores superiores a qualquer causa política, mesmo as desejáveis.

A situação da imprensa não é fácil. Num momento de polarização, em que qualquer conteúdo que não seja feito sob medida para um dos lados da disputa é imediatamente rechaçado por ambos, publicar informações com objetividade não conquistará o amor de ninguém. Por mais que um lado possa estar mais próximo da verdade e dependa menos da fabricação sistemática de mentiras para se viabilizar, a realidade não costuma estar perfeitamente alinhada a ninguém. Assim, um jornalismo objetivo raramente encantará a torcida de qualquer lado. Mesmo quando confirma nossas crenças, não é com a ênfase e na medida que realmente gostaríamos. E aí reside seu valor para alimentar o debate público responsável.

As redes sociais participam desse debate também. Todas buscam alguma maneira de limitar o alcance de fake news. Não tenho a resposta para como fazê-lo, mas sei o tipo de medida que definitivamente não desce: suprimir notícias que prejudicavam o candidato democrata na semana da eleição.

As notícias envolvendo o filho de Joe Biden, veiculadas para tentar manchar a reputação do pai às vésperas do pleito, eram vazias. No entanto, quantas reportagens igualmente irresponsáveis em suas especulações e acusações contra Trump não foram compartilhadas livremente sem qualquer entrave do Twitter? O conluio com a Rússia, o caso com a atriz pornô, o abuso sexual. Se o site decidir que notícias bombásticas, sem o devido rigor jornalístico, devem ser limitadas perto das eleições, então que essa regra seja formulada abertamente e aplicada com transparência. Caso contrário, vira apenas sabotagem contra a direita, ao mesmo tempo em que se toleram todos os excessos do progressismo.

Populistas como Trump fazem do ataque à imprensa parte de seu jeito de governar. É muito fácil para a imprensa reagir conforme o esperado e transformar a oposição ao governo parte de seu ideário. Ao agir assim, apenas confere legitimidade aos ataques sem base de que é alvo. Considero a derrota de Trump um dos melhores eventos deste ano difícil que tem sido 2020. Mesmo assim, é desmotivador ver o The New York Times ou a CNN se tornarem tão abertamente parciais em sua cobertura.

O valor de uma fonte confiável de fatos relevantes para o debate público é muito maior do que o de uma militância de discursos louváveis.

*Joel Pinheiro da Fonseca,economista, mestre em filosofia pela USP.


Cristina Serra: A democracia nas Américas

A correção de rumos nos EUA tem algo a nos ensinar

As imagens de celebração nos Estados Unidos mostram um carnaval incomum. Uma explosão de alegria e alívio por se verem livres do governante que exerceu o poder com doses extremadas de ódio, mentira e violência.

Biden venceu porque conseguiu convencer a maioria dos eleitores de que será capaz de restaurar a civilidade no jogo político. O jogo é bruto, mas para ter sua legitimidade reconhecida precisa ser exercido com algum nível de lealdade e respeito às regras. Fora isso, é a barbárie, que seria aprofundada num segundo mandato de Trump.

Sua derrota é o triunfo de uma percepção de sociedade em que se espera que haja lugar para todos, em que pese a profundidade do abismo que separa as classes. Por isso, a palavra "possibilidade" tão presente nos discursos de vitória da dupla Biden-Harris.

Mais do que palavras, porém, a poderosa figura de Kamala Harris é a tradução concreta dessa possibilidade. Mulher, negra e filha de imigrantes, ela chegou lá, na chapa com o político branco e rico, há 50 anos no mainstream da política.

A dupla vencedora é a imagem síntese das contradições e das possibilidades na sociedade norte-americana. Se isso vai se refletir em políticas de redução ou contenção das desigualdades, só os próximos quatro anos vão dizer.

A chapa eleita também encarna a vitalidade da política identitária. No seu discurso, Biden deu ênfase à necessidade de erradicar o racismo sistêmico e destacou a participação de gays, transgêneros, latinos, asiáticos e populações nativas na aliança que o alçou à vitória. Um contraste notável com seu oponente.

A correção de rumos nos EUA tem algo a nos ensinar, bem como os acontecimentos recentes no Chile e na Bolívia. A extrema direita conta com a apatia e o cansaço da população com a política. É contra esse desânimo que as forças progressistas no Brasil têm que lutar. Não inventaram nada melhor que a democracia para derrotar a barbárie.


Carlos Andreazza: O recado dessas pessoas

É aposta na derrota desqualificar a legitimidade daqueles que votam em Trump — e Bolsonaro

O que ora vemos nos EUA é um dos futuros do Brasil. Este expediente golpista, de acusar fraude no sistema eleitoral, será usado por Jair Bolsonaro daqui a dois anos, qualquer que seja sua condição competitiva. Ninguém se poderá proclamar surpreendido. O presidente brasileiro não esconde as cartas; ou não terá sido ele, poucos meses atrás, a afirmar ter provas — jamais apresentadas — de que a eleição de que saiu vencedor fora fraudada? Não falava de 2018, mas para 2022.

Donald Trump ataca, em 2020, a mais poderosa expressão da democracia na América: o voto combinado à independência federativa. Mobiliza suspeição sobre a integridade da exata mesma estrutura descentralizada por meio da qual se elegeu em 2016. Empreendimento especialmente grave porque mina — com mentiras vestidas de teorias da conspiração — uma instituição, a tradição eleitoral americana, fundada na confiança entre cidadãos.

Não se trata de um mau perdedor, com o que se confundiria com uma criança. Mas de um sabotador. Um populista autoritário que manipula, como fazem os personalistas, a fantasia influente sobre a própria potência. Ou seja: alguém como ele não perde senão roubado — eis a mensagem, destinada a fomentar o choque e manter ativa a militância.

Trump fala para 2024 e age amparado por um precedente lamentável, embora de natureza diversa. Judicialização de processo eleitoral é sempre trauma. Refiro-me à eleição de 2000; aquela em que o democrata Al Gore levou a apertada derrota para o republicano George W. Bush à Suprema Corte. Dirão ambas as partes, os democratas de então e os republicanos de hoje, que recorrer à Justiça é do jogo. Certo. Vendo agravar-se fissura nunca curada, digo eu que, do jogo, certamente não é, ancorar as demandas judiciais plantando dúvida, sem provas, contra um pacto social, o eleitoral, dependente de boa-fé. Democratas afirmam que assim procedem agora os republicanos. Republicanos, que assim procederam os democratas há 20 anos. Aí está. Não é belo; sendo óbvio o tipo de oportunista que se beneficia do império da suspeição.

Trump opera a desconfiança com maestria. Mas só o faz porque produto de uma grande parcela da sociedade americana que descrê. E que, porque descrê, endossa que seu presidente dilapide pilares civilizacionais e aposte na cultura da suspeita. Ele é a manifestação de uma doença no pulmão da democracia liberal. Um sintoma que teve mais de 70 milhões de votos, muitíssimos dos quais ou não acreditam ou não se importam que um aparato eleitoral vigente há mais de dois séculos seja esculachado.

Esperava-se — nas bolhas elitistas — que das urnas emergisse dura resposta a Trump. A realidade que se impõe é outra, porém. Ele perde, mas fica. Vasta porção da comunidade está de saco cheio do sistema e sustenta as condições permanentes para que discurso e prática trump-bolsonaristas, de desconstrução institucional, prosperem. Boa parte da sociedade americana — idem a brasileira — não acredita que o establishment, aí incluído o aparelho eleitoral, represente-a, que cuide de seus interesses. Há uma erosão agressiva do valor da representação. É daí que se eleva o populismo autoritário.

É erro grave enfrentar o que Trump e Bolsonaro são criminalizando aqueles que representam. Eles representam gente. Milhões de pessoas. É erro estúpido, obra de arrogância, aposta na derrota, desqualificar a legitimidade daqueles que votam em Trump — e Bolsonaro — como se fossem monstros fascistas ou imbecis alienados. Trump, como Bolsonaro, é fruto do esgarçamento do tecido social; esgarçamento que decorre de as pessoas sentirem, na pele, que o fosso se alarga e aprofunda entre elas e aqueles que as deveriam defender. Descrença. As pessoas estão convencidas de que o establishment se voltou para si, que existe apenas para cuidar dos próprios interesses, o que vai agravado — no caso brasileiro — pelo processo de condenação da atividade política.

O fosso aumenta. A antiga classe média, outrora liga, perde — perdeu — a musculatura. Amplia-se o volume de excluídos. Amplia-se a sensação de desamparo dos que se sentem traídos, abandonados, pelas elites político-econômicas. A ideia de voto se deteriora. Amplia-se a base de ressentimentos e de ressentidos. É o circuito que alimenta a desconfiança.

O trump-bolsonarismo é um orgânico complexo enriquecedor e explorador de ressentimentos. Chamar de gado quem dá vazão a suas insatisfações-desilusões votando em Bolsonaro é empurrar ainda mais esses indivíduos aos braços do populismo; equivale a tratar como bovina uma rara escolha — talvez a forra — de quem muitas vezes nunca tem escolha. Trump e Bolsonaro ascendem dessa captação de sentimentos, desse arrebanhar de impotentes. Eles atacam as instituições republicanas autorizados por uma engrenagem de descrenças que processa República como coisa de poucos.

Vá falar a um desempregado, cuja esperança é não ter o filho cooptado pelo tráfico, sobre a importância da democracia… Trump ora se insurge — será Bolsonaro amanhã — contra o mesmo sistema que o cidadão do país profundo sente que o exclui. Eles têm mandato para isso. É preciso entender o recado dessas pessoas.


Bernardo Mello Franco: Meninos mimados. O chororô de Trump e Bolsonaro

Jair Bolsonaro quer bajular Donald Trump até o fim. Em Washington, o republicano se recusa a admitir que foi derrotado por Joe Biden. Em Brasília, seu imitador se finge de morto para não cumprimentar o presidente eleito.

A birra de Bolsonaro expõe o país a mais um vexame diplomático. Ao ignorar a vitória de Biden, o Brasil aprofunda seu isolamento no mundo. Outras nações governadas pela ultradireita, como Hungria e Polônia, já reconheceram a derrocada de Trump.

Por aqui, todos os ex-presidentes vivos deram os parabéns ao democrata: Sarney, Collor, FH, Lula, Dilma e Temer. A galeria reúne políticos de esquerda, de direita e de centro. Só o extremista Bolsonaro, atual inquilino do Planalto, insiste na tática do avestruz.

Não é por falta de oportunidade. Ontem o capitão conversou com eleitores, discursou numa solenidade e fez propaganda para candidatos a prefeito de São Paulo, Rio, Belo Horizonte, Fortaleza, Manaus, Santos e Parnaíba. Pediu voto até para Wal do Açaí, que foi apontada como sua funcionária fantasma e agora quer ser vereadora em Angra dos Reis.

Bolsonaro falou de tudo, menos do que interessa. Na cerimônia oficial, repórteres tentaram saber quando ele pretende cumprimentar Biden. O presidente ouviu as perguntas, mas desviou o olhar e saiu de fininho.

Um chanceler com juízo teria evitado o novo desastre diplomático. Mas o Itamaraty permanece nas mãos de Ernesto Araújo, que vê comunistas embaixo da cama e enxerga em Trump o salvador do Ocidente.

O capitão insiste em pôr paixões ideológicas acima do interesse nacional. Ele já havia hostilizado a China, provocado os países árabes e boicotado líderes eleitos na Argentina e na Bolívia. Agora comete outro erro grave para não melindrar seu ídolo americano.

Os dois presidentes se comportam como meninos mimados. O americano sai de cena como mau perdedor, e o brasileiro mostra, mais uma vez, que é incapaz de ser pragmático e agir como um adulto. As relações de Biden e Bolsonaro já seriam difíceis sem esse chororô. Agora devem começar sob tensão ainda maior.


Míriam Leitão: Política externa perdida no mundo

O Brasil fica mais distante da OCDE, do acordo com a União Europeia e do mundo, enfim, com a eleição de Joe Biden e Kamala Harris. Isso porque o governo brasileiro deveria ter a esta altura uma estratégia de como mover suas peças no tabuleiro do xadrez mundial. Mudaram as circunstâncias, e o erro bolsonarista ficará mais caro. Estados Unidos e União Europeia estarão mais juntos a partir de agora na questão ambiental, e Jair Bolsonaro é o vilão óbvio, com sua política de desprezo à preservação ambiental, de desrespeito aos indígenas, de afronta aos negros.

O governo Biden tem uma lista imensa de urgências. A pandemia é a primeira delas e por isso ontem já estava sendo anunciado o grupo de transição que vai preparar o plano de combate ao coronavírus. A crise econômica é outra emergência. O plano de socorro terá que ser maior do que o programado, e no meio do caminho tem o Senado. A campanha de Biden, muito energizada pela vitória, está jogando tudo para garantir as duas cadeiras do Senado da Geórgia que foram para segundo turno. Caso se confirme o controle dos republicanos no Senado, tudo será mais difícil.

Na área ambiental, contudo, o avanço está garantido. O governo Biden já avisou que voltará ao Acordo de Paris. E poderá também desfazer ordens executivas e regulações infralegais que foram impostas pelo governo Donald Trump, que entregou a Environmental Protection Agency (EPA), a agência de proteção ambiental, a um lobbista da indústria do carvão. Nesse contexto de volta aos princípios do acordo e às regulações ambientais mais severas, os Estados Unidos ficarão mais próximos da Europa, que já tem pressionado o Brasil. Portanto, Bolsonaro estará mais sozinho com a sua política insensata na área do meio ambiente.

A política externa atual tenta apagar o Brasil do mapa-múndi. É um esforço diário para nos tornar irrelevantes. Demorar a cumprimentar o presidente eleito Joe Biden e não enviar autoridade para a posse de Luiz Arce na vizinha Bolívia são decisões obtusas. Caberia a Ernesto Araújo avisar a Bolsonaro: pode já ir se acostumando. Mas ficaram os dois velando o falecido governo Trump, erro que nem o autocrata Viktor Orban cometeu. Fazer pirraça com a Bolívia é ridículo. O país vizinho escolheu em eleições livres trazer de volta o partido de Evo Morales e não nos cabe desgostar.

O Brasil tem muito a perder com os erros da dupla. Primeiro, porque Bolsonaro com suas falas rudimentares sobre a Amazônia é um alvo fácil. Se fosse só ele, tudo bem. O problema é que empresas brasileiras também podem ser prejudicadas por essa política externa e ambiental sem sentido. Por isso, se Bolsonaro insistir em não ter um plano convincente de preservação ambiental, aumentarão as pressões aqui dentro. Empresas e o terceiro setor, a imprensa, os especialistas, lideranças políticas estão cada vez mais se alinhando numa coalizão pela preservação. Sem Trump, Bolsonaro ficará mais só e entre dois fogos. Caberia ao Itamaraty traçar uma estratégia. Mas o Ministério não pode fazer seu trabalho porque está sendo dirigido por um dos mais medíocres diplomatas que a Casa já produziu.

A ditadura militar no Brasil nasceu no contexto da guerra fria. Naquele momento, havia países comunistas, e os militares eram, por suposto, adversários da ideologia. Pois o Brasil de Ernesto Geisel foi o primeiro a reconhecer o governo do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), apesar de ser comunista.

O mais elementar em política externa é saber a distância entre as preferências pessoais do chefe de Estado e o seu papel de representante do país. Bolsonaro pode ter torcido muito contra Joe Biden e Luis Arce, mas em processos eleitorais legítimos Biden é hoje o presidente eleito dos Estados Unidos e Arce acaba de assumir a Bolívia. É um erro não mandar um alto representante para a posse do governante da Bolívia, país com o qual o Brasil tem a sua maior fronteira (3.423km). Os bolivianos escolheram a volta do partido de Evo Morales e não nos cabe desgostar. Com o país vizinho temos um acordo do gás e antigas tradições de amizade. Com os Estados Unidos, inúmeros interesses. A demora dos cordiais parabéns ficou ridícula para o Brasil. A descortesia com a Bolívia não faz qualquer sentido.

A OCDE tem regras de conformidade ambiental que ficarão mais fortes com o governo Biden. A União Europeia não ficará sozinha exigindo do Brasil mudança da política ambiental. O projeto de Ernesto Araújo de transformar o Brasil num grande pária avançou ainda mais nos últimos dias.


José Casado: Cresce pressão sobre o Brasil

Bolsonaro tem 71 dias para escolher se muda ou fica refugiado nas cinzas da era Trump

A realidade bate à porta do insone Jair Bolsonaro. O delírio da “reinvenção do Brasil” numa “nova ordem mundial” sob comando de Donald Trump, como repetia seu chanceler, acaba na quarta-feira 20 de janeiro, quando Joe Biden assume com o plano de mudar o rumo dos Estados Unidos. Aos 78 anos, ele terá pressa em abrir um “caminho irreversível” para a inovação tecnológica em saúde, comunicações e energia limpa.

Se conseguirá, é outra história. Mas sinaliza o fim de uma tragicômica sintonia de negação da ciência: enquanto Trump considerava a mudança climática uma conspiração chinesa, Bolsonaro reduzia a pandemia a gripezinha.

Outra consequência é o impulso ao cerco legislativo ao Brasil. Democratas e republicanos atravessaram os últimos 12 meses apresentando um novo projeto a cada 50 dias para forçar Brasília a conter o desastre na Amazônia e proteger os indígenas.

Bolsonaro se enrolou na bandeira da soberania nacional quando viu Biden acenar com US$ 20 bilhões (R$ 104 bilhões) para “deixar de destruir” a Amazônia. Mas aceitou, em silêncio, uma interferência externa bem mais barata. No Orçamento de 2020, o Congresso americano separou US$ 15 milhões (R$ 78 milhões) para financiar “assistência estrangeira na Amazônia”, condicionados a provas de respeito aos direitos humanos. Também não reclamou da repetição da ajuda em 2021, com veto ao uso do dinheiro na remoção de indígenas (emenda nº 6395, já aprovada na Câmara).

O cerco legislativo à antipolítica ambiental antecede Biden. Desde o ano passado, avançam projetos como a “Lei da Amazônia” (HR nº 4263), com punições como bloqueio de ativos e de importação de algumas commodities, além de restrições militares — entre elas a revogação da recente designação do Brasil como aliado militar dos EUA fora da Otan.

Bolsonaro tem 71 dias para escolher se muda o rumo ou atravessa a segunda metade do mandato, e a campanha de reeleição, refugiado na saudade e nas cinzas da era Trump.


Rubens Barbosa: Notas sobre a eleição presidencial nos EUA

A sociedade americana optou por um presidente moderado e conciliador

A histórica vitória de Joe Biden será analisada por muitos anos. O resultado da eleição foi surpreendentemente equilibrado, refletindo a profunda divisão do país. A onda azul, democrata, não se concretizou, mas a sociedade americana preferiu eleger um presidente moderado e conciliador, que promete reduzir o ódio e unir os EUA. O resultado das urnas mostrou que o eleitor separou a figura do presidente falastrão do seu partido. O Partido Republicano, que teve desempenho muito melhor que Trump, saiu fortalecido, com maior número de deputados na Câmara dos Representantes e com a possibilidade de manter a maioria no Senado.

A polarização política nos EUA vem se acentuando nas últimas décadas e esse quadro não se deve alterar no futuro previsível, em razão, entre outros fatores, do aprofundamento, com a pandemia, dos contrastes existentes no país mais rico e mais avançado do mundo. A crescente concentração de renda acentuou as desigualdades entre as pessoas, as regiões e entre os centros urbanos e as áreas rurais, fato agravado pelas consequências econômicas. O impasse, se o Senado continuar republicano, dificultará a execução das reformas prometidas por Biden nas áreas de saúde, economia, energia, imigração, meio ambiente e no fortalecimento da democracia e dos direitos humanos.

Os EUA estão deixando de ser um país com maioria branca e calvinista para se tornarem uma democracia multirracial e multicultural. Quase 75 milhões de eleitores se manifestaram contra um presidente com abordagem não convencional na política, negacionista, percebido como egoísta, mentiroso, vaidoso e que põe seus interesses pessoais e eleitorais acima dos interesses do país. Trump impôs políticas que favoreceram o populismo, o protecionismo, o racismo e o isolacionismo, sempre ressaltando que isso ampliaria o emprego do trabalhador norte-americano e reforçaria a ideia de que os EUA sempre estariam em primeiro lugar. As políticas seguidas por Trump acentuaram o divórcio racial e os conflitos relacionados à imigração. Em alguns Estados, porém, os votos de jovens negros, latinos e muçulmanos foram acima do esperado para o Partido Republicano, apesar de algumas políticas de Trump terem sido claramente contrárias aos interesses dessas minorias. Acentua-se, assim, a divisão em torno de temas culturais, enquanto há mais convergência em torno das políticas econômicas, menos conflitivas por estarem voltadas para o crescimento do emprego e da renda.

Apesar da rejeição pessoal, as bandeiras que Trump levantou deverão permanecer. O movimento populista, nacionalista e conservador se fortaleceu com o voto nas áreas rurais, mais pobres, de maioria branca, sem instrução superior e de menor renda. Os republicanos emergem estranhamente como o partido da classe trabalhadora, mais afinado com os anseios da nova composição social e racial da sociedade norte-americana.

Outro aspecto relevante que ficou claro com os resultados eleitorais é a questão do uso político da religião. O recado das urnas aos políticos foi claro: igreja e Estado não devem ser misturados e confundidos. Os eleitores manifestaram-se a favor de discussões sobre questões práticas que afetam diretamente seus interesses e refutaram uma guerra religiosa, em especial contra imigrantes muçulmanos.

As incertezas que as transformações internas na sociedade norte-americana acarretam deixam também uma lição sob o ângulo das relações externas. O alinhamento político e econômico com os EUA é perigoso. Depender dos EUA não representa um apoio estável de médio e longo prazos, dadas as modificações que pode haver nas tendências dos eleitores em eleições seguintes. As políticas de Trump em relação aos aliados dos EUA, no tocante aos organismos internacionais, ao grau de confrontação com a China, à política de meio ambiente, deverão, como já anunciado, ser modificadas no governo Biden. O que poderá acontecer em 2024? Serão mantidas as políticas do governo democrata? Voltarão as políticas isolacionistas?

Uma vez que são muito fortes as instituições no país, as acusações de fraude e a judicialização do processo eleitoral promovidas por Trump, que tantas incertezas despertam e de certo modo representam um sério problema para o funcionamento do sistema eleitoral, não chegarão a ameaçar a democracia, nem a credibilidade das eleições, mesmo com eventuais violências isoladas.

Os institutos de pesquisa voltaram a se equivocar de maneira grave. Os meios de comunicação (TVs, jornais e rádios) tornaram-se, na prática, braços dos dois partidos políticos, estimulando a divisão. O papel da mídia social foi menor do que na eleição de 2016.

Ficam no ar algumas perguntas. Dada a força de Trump como líder de uma parte do Partido Republicano, e sobretudo pelo peso dos mais de 70 milhões de votos, qual será o papel do atual presidente a partir de 20 de janeiro? Trump vai se recolher, como fizeram todos os seus antecessores, ou continuar ativo no Twitter, mantendo-se como uma presença forte no cenário político norte-americano? A Constituição dos EUA determina que nenhuma pessoa poderá ser eleita mais de duas vezes para o cargo de presidente. Trump poderá muito bem querer se apresentar novamente em 2024. Como o Partido Republicano vai reagir ao trumpismo?

*Presidente do IRICE


Luiz Carlos Azedo: Biden antecipa 2022

“O encontro do apresentador Luciano Huck com o ex-ministro da Justiça Sergio Moro mexeu com o tabuleiro político. O apresentador de tevê se fingia de morto”

“Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem como querem: não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e, sim, sob aquela com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”. Quem já não leu ou ouviu essa frase na crônica política? É citada com frequência, literalmente ou não, mas com o mesmo sentido. Está no segundo parágrafo do O 18 Brumário de Luís Bonaparte, de Karl Marx (Martin Claret), escrito em Londres, sob encomenda, para um semanário que seria lançado em Nova York, em 1º de janeiro de 1852, cujo editor, Joseph Weydemeyer, morreu. O texto acabou publicado numa revista mensal intitulada Die Revolution e introduzido na Alemanha semiclandestinamente, antes de virar um livro-reportagem sobre o golpe de Estado de Napoleão III, em 1851. O título faz alusão ao golpe de 9 de novembro de 1799, esse, sim, dado por Napoleão Bonaparte. É um clássico da análise política, que cunhou os conceitos de “bonapartismo”, “transformismo político” e “cretinismo parlamentar”.

O presidente Jair Bolsonaro não foge à regra dos grandes personagens da História que se repetem, citados por Marx naquele texto: depara-se com circunstâncias que não escolheu e são completamente diferentes daquelas nas quais se elegeu. É como se a roda da Fortuna tivesse girado a favor dos seus adversários, zerando a vantagem estratégica que a conjuntura de 2018 havia lhe proporcionado. Para piorar a situação, antecipou sua campanha à reeleição em todos os movimentos que fez desde quando assumiu a Presidência e, agora, com o gênio fora da garrafa, não tem como pô-lo de volta. Nem bem o primeiro turno das eleições municipais acabou, o quadro eleitoral de 2022 começa a ser desenhado à sua revelia, agora impulsionado por um fator externo cujo impacto no Brasil não pode ser subestimado: a vitória do democrata Joe Biden nas eleições presidenciais dos Estados Unidos, inequívoca, embora o presidente Donald Trump se recuse a admiti-la e se movimente como quem deseja criar uma crise institucional para permanecer no poder.

Não é à toa que líderes mundiais como Vladimir Putin, da Rússia; Xi Jinping, na China; e López Obrador, no México, ainda não enviaram congratulações ao democrata e aguardem o resultado oficial da disputa, cuja divulgação Trump procura retardar ao máximo, com seus recursos judiciais. São líderes políticos que têm grandes contenciosos com os Estados Unidos e não desejam tornar a vitória de Biden ainda mais consagradora, fortalecendo-o nas negociações. Nenhum deles, porém, tem tanta identidade ideológica com Trump como Bolsonaro. Também não se manifestaram durante o pleito a favor do candidato republicano. O retardo em reconhecer a vitória de Biden, por lealdade a Trump, está aprofundando o mal-estar que já existia com o novo presidente dos Estados Unidos. Além das implicações da vitória dos democratas em relação à política externa e à questão ambiental no Brasil, já estão aparecendo suas consequências para a política nacional propriamente dita, inclusive do ponto de vista eleitoral.

O centro renasce
Por exemplo, o encontro do apresentador Luciano Huck com o ex-ministro da Justiça Sergio Moro mexeu com o tabuleiro das eleições presidenciais. O jovem comunicador se fingia de morto e sua candidatura somente existia no Twitter do ex-deputado Roberto Freire, presidente do Cidadania. A partir do momento em que se tornou público seu encontro com Moro e que ambos discutiram o cenário eleitoral de 2022, todos os possíveis candidatos e seus aliados se mobilizaram. É ingenuidade acreditar que o encontro em si alterou o cenário político — o prestígio de ambos estava em declínio nas pesquisas —, o que mudou a correlação de forças foram as novas circunstâncias criadas pela vitória de Biden, com uma narrativa que não tem sintonia com Bolsonaro, com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nem mesmo com Ciro Gomes (PDT).

O encontro de Huck e Moro sinalizou que o campo liberal-democrático pode buscar uma convergência e ocupar, novamente, o centro político, mas isso passa, ainda, por João Doria (PSDB), governador de São Paulo; Eduardo Leite (PSDB), governador do Rio Grande do Sul; Rodrigo Maia, presidente da Câmara; Luiz Henrique Mandetta (DEM), ex-ministro da Saúde; e Marina Silva (Rede), ex-ministra. Unificar o centro democrático não é uma tarefa fácil, nunca foi. Ulysses Guimarães e Tancredo Neves, no MDB, disputaram a liderança da oposição até a derrota das Diretas Já. Fernando Henrique Cardoso teve de dobrar Mário Covas, no PSDB, para consolidar sua aliança com o PFL, de Antônio Carlos Magalhães e Marco Maciel.

De volta aos programas de tevê com forte cunho social, Huck se movimenta de forma dissimulada, mas sua permanência na TV Globo tem data marcada, precisa decidir até meados do próximo ano se é candidato ou não. Moro enfrenta o sereno na planície, é um candidato encabulado, mas tem um partido pronto para abrigá-lo, com forte bancada no Senado, o Podemos. Doria tem as dificuldades de todo político paulista para sair do Palácio dos Bandeirantes, podendo se reeleger, e arriscar a Presidência. Mandetta é candidato declarado, enquanto houver pandemia, terá pista para correr, mas precisa seduzir a cúpula partidária, que sonha com a candidatura de Huck pela legenda. Eduardo Leite pode ser a nova cara do PSDB, se Doria não concorrer. Marina Silva sonha em renascer como Fênix, para viabilizar a Rede. Reunir todos numa candidatura é um projeto ambicioso. Além disso, não se deve subestimar a força da oposição de esquerda, que pode se reagrupar, a partir das conversas entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula (PT) da Silva e Ciro Gomes (PDT), para chegar ao segundo turno.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/biden-antecipa-2022/

Cacá Diegues: A última que morre

Biden, sem consciência disso, representou, por sua serenidade diante do que lhe favoreceu, a face positiva da mudança

A democracia não é uma ciência. Muito menos exata, como a matemática. Você pode somar ou subtrair seus elementos sem provocar os mesmos resultados, dependentes de onde, quando e com quem o fizer. Isso, em qualquer lugar do mundo. Imagine então num espaço de grande mudança étnica e cultural em curso que, por sua vez, produz novos conceitos éticos, religiosos e cívicos, que mexem com a vida diária de uma população, como nos Estados Unidos da América de hoje. Hoje, a maior contribuição dos EUA ao mundo contemporâneo não são o capitalismo financeiro, as viagens ao espaço ou os craques da NBA. Mas a ideia de um país com entrada para outros povos, capaz de absorver peles de outras cores, línguas de outras origens, costumes dos outros. Um país que será sempre novo, porque tem como se renovar.

Mudanças radicais produzem sempre consequências para o bem e para o mal. Nesse caso, para o bem, acho que é sobretudo a excitação do que ainda pode nos surpreender, os rumos inéditos que a humanidade toma em qualquer canto da Terra. Para o mal, é sem dúvida o medo do que não se conhece, traduzido em providências de impedimento e rejeição, quando professamos um nacionalismo de direita oportunista, que nos diz que o que é diferente de nós não pode prestar. Nessa recente eleição americana, Joe Biden, sem consciência disso, representou, por sua serenidade diante do que lhe favoreceu, a face positiva da mudança. Quanto ao mal, ficou, mais uma vez, com Donald Trump e seu horror ao que não entende, ao diferente e ao inesperado, ao com o que não contava.

Na terceira noite de apuração, quando as coisas já iam mal para ele, Trump fez, no salão da Casa Branca, um discurso cheio de mentiras e falsidades tão revoltantes que as equipes de televisão que cobriam o evento desligaram as câmeras e se retiraram revoltadas, antes que o presidente encerrasse sua intervenção hedionda.

Durante seu mandato, Trump separou filhos pequenos de seus pais imigrantes, sem nenhuma compaixão. Centenas de crianças centro-americanas estão até hoje em cárceres coletivos, sem que os pais saibam onde se encontram. O mais estranho é que Trump, nesta eleição, ganhou votos importantes em centros de imigrantes, hispânicos e negros, como a Flórida. Durante seu mandato, o presidente ainda protegeu e incentivou grupos neofascistas, como os Proud Boys e os Patriot Players, que, em suas camisetas com o slogan trumpista costurado(Make America Great Again), esfaquearam à morte dois membros do movimento Black Lives Matter em Portland. E Trump ainda assustou seus eleitores mais ingênuos, com a notícia de que, do outro lado, estava o fantasma do socialismo, como se o Muro de Berlim ainda estivesse de pé.

É claro que não é essa a nova América que surge dessa eleição e que queríamos saudar. Mas a América que sai dela gloriosa pela confirmação de uma outra nação que se constrói aos poucos, na mistura de tudo. Não é possível esquecer a gigantesca militância de Nova York ou da Califórnia, mas também não se pode desprezar a importância das minorias, protagonistas nos resultados da Geórgia ou da Pensilvânia, redutos clássicos do voto conservador.

Nosso coração ficou mais leve quando comecei a me dar conta das forças políticas que animam o novo, quando jovens americanos vibraram porque Joe Biden se referiu, em sua curta fala de menos de dois minutos, à “hora de ouvir um ao outro, de ver, respeitar e cuidar um do outro, ficar juntos como uma nação”. Conforta saber que foi esse o discurso que fez a Miragem Vermelha (os Republicanos de Trump) esbarrar na Muralha Azul (Democratas de Biden), fazendo uma diferença de cerca de 5 milhões, entre uns e outros, no voto nacional.

Ao longo de sua história, os Estados Unidos não são um país que se caracteriza por ter sofrido muito, embora tenha feito tanta guerra. Já o Brasil quase não fez guerra, mas é muito louco, como diz Nelson Motta: “De tanto sofrer, ficou pirado”. Podemos dizer que, em vez de ciência, a democracia é um desejo que cada povo alimenta como pode e quer, em nome de sua liberdade e da liberdade do outro, em benefício de um novo mundo a construir. Vivemos da esperança nesse novo mundo.


Ana Cristina Rosa: Yes, we can'

Kamala Harris tem significado enorme em termos de representatividade

As Américas estão vivendo em 2020 um ano memorável para as mulheres na política. Depois das conquistas femininas na Bolívia e no Chile, pela primeira vez uma mulher, negra de ascendência asiática, chega à Vice-Presidência de um dos países mais influentes do planeta.

A vitória da chapa Biden-Harris é um marco dos mais significativos na luta pela igualdade de gênero e de raça não só nos Estados Unidos, mas também no mundo. Como vice-presidente, Kamala será também a pessoa que irá presidir o Senado.

O ineditismo da eleição de Kamala Harris para Vice-Presidência dos Estados Unidos tem significado enorme em termos de representatividade. Por representatividade, entenda-se permitir que as pessoas, sobretudo as que integram grupos que estão à margem das esferas de poder e de decisão, se reconheçam no outro.

E isso não diz respeito necessariamente a minorias quantitativas, mas também a grupos numerosos que são minorizados em termos de representação. É sentir-se capaz a partir da linha do exemplo, independentemente de rótulos e preconceitos.

A mensagem é clara por si, mas foi reforçada e explicitada por Kamala em seu primeiro discurso como vice-presidente eleita ao dirigir-se às crianças do país e recomendar que "sonhem com ambição, liderem com convicção e se vejam onde os outros podem não ver, simplesmente porque eles nunca viram antes".

Esta não é a primeira vez que Kamala Harris desbrava e conquista espaços, ajudando a abrir o caminho para as mulheres que seguramente virão depois. Como ela mesma afirmou, "serei a primeira vice-presidente dos Estados Unidos, mas não serei a última". Ela foi a primeira pessoa negra a assumir a procuradoria-geral da Califórnia e uma cadeira no Senado por aquele estado.

A eleição de uma mulher negra para o segundo mais alto cargo eletivo da maior potência do mundo ocidental traz à memória o slogan de campanha do primeiro negro eleito presidente dos EUA: "Yes, we can".