Trump
Fernando Schüler: Estamos mesmo dispostos a não tratar nossos adversários como inimigos?
Isto implica, quem sabe, a parar de pensar que sua posição política corresponda à própria democracia
Joe Biden fez um apelo interessante em seu discurso de vitória. Pediu que as pessoas parassem de demonizar e tratar os adversários como inimigos. Linhas à frente, disse que havia vencido para “restaurar a decência e defender a democracia”.
Observe-se como mesmo um político moderado e boa gente como Biden tropeça. Se um lado “organiza as forças da decência” e expressa, ele mesmo, os valores da democracia, o que sobra exatamente para o outro lado?
Acho que foi apenas uma escorregada de Joe Biden. Sua história o credencia para ajudar a “curar a América” do diálogo de surdos em que se transformou a política americana. Vamos finalmente testar a tese de que basta que o exemplo venha de cima e tudo se ajeita.
Não acho que as coisas sejam tão simples. O processo de polarização nas democracias é mais profundo do que costumamos reconhecer. O discurso radicalizado de quem está no poder ou de quem faz oposição é antes consequência do que causa desse processo.
Apenas um exemplo. O Pew Research Center mostrou que 74% dos eleitores de Biden acham que é “muito mais difícil ser um negro do que um branco neste país”. Entre os eleitores de Trump, apenas 9% concordam com isso.
Estamos tratando de temas que vão muito além dos limites convencionais do debate político. Não apenas a distância entre as visões de mundo duplicou, desde os anos 1990, como se ampliou o arco dos temas sobre o qual se diverge, em um quadro em que tudo ganhou dramaticidade.
Há muitas razões que explicam isso. Piketty vem observando, com base em boa pesquisa acadêmica, como os setores à esquerda do espectro político refletem cada vez mais a mentalidade de elites metropolitanas e bem educadas, e à direita o interiorano, menos culto e tradicional. A clivagem entre “globalistas” (alta educação, alta renda) vs. “nativistas” (baixa educação, baixa renda).
Em grandes linhas, foi o que se viu na eleição americana. É apenas um indicador. As razões do crescimento da polarização política dizem respeito a uma mudança de eixo do debate público em boa medida determinada pelo impacto da revolução tecnológica sobre a democracia.
Ocorre que o ingresso massivo e direto dos indivíduos na cena pública mudou a pauta do debate político. Temas de identidade passaram a definir muito da pauta política e, na direção contrária, a defesa da tradição. Questões por definição menos abertas à argumentação e à geração de consensos relativamente aos temas tradicionais da politica institucional.
Pode-se discutir com alguma frieza e eventualmente chegar a um acordo sobre déficit orçamentário ou política previdenciária, mas não há chance quando a pauta gira em torno de convicções mais profundas envolvendo religião, raça, gênero, o começo da vida ou papel da família.
Além da incomunicabilidade, são temas próprios à atitude típica do ativista digital: a sinalização de virtude, para si, e a regulação da vida e da linguagem, para os outros. Atitude que só gera conformidade fácil, na própria tribo, e raiva, na do vizinho.
John Stuart Mill deu pistas sobre isso, século e meio atrás, em seu livro sobre a sujeição das mulheres. Ele dizia que uma opinião fortemente enraizada nos sentimentos “fica ainda mais sólida quando enfrenta uma massa de argumentos contra ela”. A lógica do diálogo, central na democracia, é estranha e pouco efetiva diante da barreira cultural.
Talvez é disso que Biden esteja tratando quando fala em “abaixar a temperatura” da politica americana. Quem sabe voltar aos termos das eleições de 2008. À época, tanto Obama quanto McCain deixaram claro que não havia questão de “decência” ou de amor ao país entre eles, mas apenas de visões sobre a política.
Vai aí o desafio. Desdemonizar a política significa aceitar seus limites. Aceitar que a falibilidade, a ideia de que em uma democracia ninguém tem monopólio da virtude e da verdade. Na prática, parar de imaginar que a sua posição casualmente corresponda ela mesma à própria democracia.
Um pouco de humildade. Sou meio cético, mas acho que Biden pode, de fato, dar uma grande contribuição aí.
*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.
Maria Hermínia Tavares: Na defesa da Amazônia, apenas jogo de cena
Apego a ideias arcaicas impede que o país volte a ter relevância internacional nas questões ambientais
A vitória de Joe Biden abre uma fresta de esperança de que se possa evitar a catástrofe climática provocada pelo aquecimento do planeta. O esperado retorno dos EUA ao Acordo de Paris, a disposição da União Europeia a abraçar uma agenda de recuperação econômica verde e o compromisso unilateral da China com a descarbonização total até 2060 dão margem a moderado otimismo.
Nesse quadro, o Brasil poderia voltar a ser um ator internacional relevante, numa das poucas arenas nas quais tem trunfos consideráveis. Para tanto, porém, o governo teria de abandonar a sua tola atitude negacionista, munindo-se de ânimo e aptidão para conter o desmatamento, a fim de proteger a Amazônia e sua biodiversidade —o cerne de nossa questão ambiental.
Apesar da limitada capacidade estatal de fazer cumprir as regras existentes, o país tem um bom marco legal e bons instrumentos de monitoramento —ainda que deliberadamente debilitados pela dupla Bolsonaro-Salles. Obstáculo tão ou mais importante é a concepção de soberania nacional que enquadra o pensamento dos militares no governo em relação ao meio ambiente.
Há pouco, o Conselho Nacional da Amazônia Legal, presidido pelo vice, Hamilton Mourão, ao lado de uma agenda de temas relevantes —combate aos ilícitos ambientais e estímulo à inovação e à bioeconomia—, debateu um documento revelador. O texto fala da gula das grandes potências e organizações internacionais pelo estoque de recursos hídricos do país e o suposto conluio entre entidades ambientalistas e governos europeus. No mesmo tom, durante a reunião se propôs o controle das ações das ONGs presentes na região, em nome do interesse nacional.
A fantasia de que toda pressão externa visa o acesso a nossos recursos estratégicos e que organizações não governamentais —ou mesmo populações indígenas— estão prontas a servir à ganância estrangeira cria uma linha de defesa contra inimigos imaginários e tolhe a capacidade de mobilização necessária para uma ação eficaz.
Há no Brasil forças valiosas —na opinião pública, na sociedade organizada, no empresariado e nos governos subnacionais— capazes de dar lastro a iniciativas comprometidas com a sustentabilidade, o que transformaria cobranças em apoio externo concreto. Mas, sem aposentar ideias arcaicas, fortalecer os meios de monitoramento e controle, incorporar a experiência das comunidades locais e das organizações ambientalistas enraizadas há décadas na região, e ainda sem recursos internacionais, as vistosas operações militares e os pronunciamentos do vice-presidente serão apenas jogo de cena, em prejuízo do país.
*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap
Sergio Fausto: Lições para o Brasil da eleição nos Estados Unidos
A mais óbvia: há que construir uma ampla coalizão e tirar votos do campo adversário
O título deste artigo deve ser lido com um pé atrás. As características do sistema partidário e do processo eleitoral são muito diferentes nos dois países. Ainda assim, a vitória de Joe Biden sobre Donald Trump deixa lições úteis para as forças de oposição ao governo Bolsonaro.
A mais óbvia delas é a necessidade de construir uma ampla coalizão e subtrair votos do campo adversário. Quando o país está praticamente dividido em duas metades iguais, não basta contar com todos os votos do seu próprio campo político para assegurar a maioria eleitoral. Nos Estados Unidos, a questão se colocou de imediato e influenciou as próprias primárias do Partido Democrata. Aqui, imagina-se que esse seja um problema para o segundo turno. Trata-se de um engano. Em sociedades destrutiva e perigosamente polarizadas, é preciso construir uma alternativa já para o primeiro turno.
Como a chapa Joe Biden-Kamala Harris conseguiu obter apoio maciço de sua base política e, ao mesmo tempo, captar votos de quem havia votado em Trump quatro anos atrás? A escolha dos personagens importa. A soma das características políticas e pessoais dos candidatos democratas explica em boa medida o sucesso da campanha do partido para a Casa Branca: ele, um político capaz de ser aceito, mesmo sem entusiasmo, por um amplo contingente de eleitores; ela, uma mulher negra que, sem puxar a chapa muito para a esquerda, acrescentou à dupla a marca identitária valorizada pelos eleitores mais jovens e “progressistas”. E mais: ele, um homem crivado pela tragédia, pai amoroso, querido pela mulher, pelos amigos e mesmo por muitos adversários, por sua simpatia natural; ela, uma filha de imigrantes que se integrou ao establishment por trabalho e mérito, ex-procuradora geral da Califórnia, “liberal” nos costumes, porém “firme” em matéria de lei e ordem.
Mas na política, como nas artes cênicas, não basta escolher os personagens, é preciso criar o enredo. Ou melhor, é necessário que atores e narrativa sejam congruentes entre si e adequados ao momento. A campanha democrata produziu uma mensagem feliz para definir o que estava em jogo: a battle for the soul of America (uma batalha pela alma dos Estados Unidos). Feliz porque permitiu uma conexão emotiva dos eleitores com a campanha e estabeleceu o terreno onde o Partido Democrata pretendia jogar o jogo: o campo dos valores e do caráter. A ressonância religiosa do slogan é evidente. Bela sacada num país, como o nosso, em que o sentimento religioso é estendido e profundo.
Ao contrário dos republicanos, os democratas não mobilizaram a religiosidade para demonizar o adversário, mas sim para convocar “our better angels” (os nossos anjos bons, em tradução livre) a enfrentar os desafios do país. Não foi uma campanha, como a de Trump em 2016, para insuflar a raiva e o ressentimento, e sim para assoprar a chama do “melhor lado de todos os americanos e americanas”. Foi uma campanha contra Trump, mas não contra os seus eleitores, referidos sempre como “fellow americans” (compatriotas), e não como “a basket of deplorables” (um monte de gente deplorável, como disse Hilary Clinton em 2016).
A batalha pela alma dos Estados Unidos pôs na linha de frente alguns poucos valores básicos – decência, civilidade, solidariedade, etc. – e os traduziu em termos concretos nas propostas de fortalecimento da proteção social (saúde, em particular), transição para uma economia de baixo carbono (com geração de renda e empregos) e luta contra o racismo estrutural (apresentada como uma luta pela igualdade). Dessa maneira projetou uma visão contrastante com a de Trump sobre o que são e o que podem ser os Estados Unidos, capaz de ser compreendida e reproduzida pelo eleitor comum.
Cada país é um país, cada eleição é uma eleição. Faltam dois anos para a próxima eleição presidencial no Brasil. É muito ou pouco tempo? Depende para quê. Para escolher os personagens é muito, mas para criar o enredo está mais do que na hora de começar. Num país com vários e pouco estruturados partidos, onde o personalismo impera, a escolha dos personagens consome tempo e energia excessiva em prejuízo do que deveria ser o essencial, principalmente a esta altura: com base em que valores, em torno de que propostas e por meio de que mensagem política é possível formar uma aliança de forças suficientemente ampla e consistente para derrotar Bolsonaro e o bolsonarismo e governar o País a partir do próximo mandato presidencial?
Para ajudar na resposta recorro à sabedoria alheia. Perguntado num jantar com “representantes da sociedade civil”, cada qual com sua bandeira, sobre como deveria ser o programa de uma “frente progressista” em 2022, um governador de Estado, relativamente jovem, mas macaco velho na política, respondeu: deve ser mínimo, conter apenas o essencial e falar aos corações e mentes do brasileiro comum, homens e mulheres, pretos e não pretos, cristãos e não cristãos, homo e heterossexuais, na condição de cidadãos brasileiros.
*Diretor-Geral da Fundação FHC, é membro do Gacint-USP
William Waack: As riquezas dos maricas
Bolsonaro é o pior inimigo de si mesmo quando se trata de ridicularizar sua autoridade
Era óbvio e esperado que, ao perder a aposta feita em Donald Trump, o presidente brasileiro Jair Bolsonaro fosse incluído na coluna “perdedores” em todas as listas de governantes que se deram mal com a vitória de Joe Biden. Não são poucos, e incluem países tão diferentes entre si como Israel, Arábia Saudita, Turquia, Reino Unido e Hungria. Mas o que a língua solta do presidente está produzindo é uma rápida perda da própria autoridade
A popularidade que resulta de auxílios emergenciais é tão efêmera quanto a duração desses auxílios, e até aqui o governo não conseguiu dizer como vai incluir uma renda básica no Orçamento do ano que vem (que, aliás, não foi votado). Sim, é popularidade que pode ser reconquistada, ainda que a custo literalmente alto para os cofres públicos – e enquanto a economia não sofrer desarranjos maiores, fantasma que o próprio ministro Paulo Guedes anda alimentando.
Com autoridade é diferente. Um presidente não precisa necessariamente ter grande autoridade para ser popular, mas precisa ser levado a sério para governar. A autoridade de Bolsonaro está sendo diluída por ele mesmo ao cair no ridículo, um ácido capaz de corroer qualquer pedestal. Personagens que dizem coisas “folclóricas”, toscas, ofensivas, desvinculadas da realidade, abusivas ou mentirosas avançam até o ponto em que afundam nas próprias palavras.
A briga de Bolsonaro com a vacina “chinesa” conseguiu gerar desconfiança em qualquer vacina, justamente quando os especialistas alertam para o fato de que o Brasil provavelmente enfrentará uma segunda onda de covid-19, tal como acontece no momento na Europa e nos Estados Unidos. E a politização afeta a confiança em duas instituições essenciais para saúde pública: as que produzem a vacina (como o Instituto Butantan) e as que regulam sua aplicação (como a Anvisa). O resultado geral é péssimo para todos os governantes e causou séria apreensão nos governadores.
Da mesma maneira, pode-se argumentar indefinidamente sobre quem atrasa mais a aprovação das reformas que lidem com a questão fiscal, se é o Congresso ou se é a equipe do Ministério da Economia. Mas, no sistema político brasileiro, é o presidente quem tem o poder de ditar a agenda política, e a pergunta cada vez mais pesada no ar é se alguém sabe o que Bolsonaro pretende além de manter popularidade a um custo que a passagem do tempo só torna mais caro do ponto de vista fiscal.
O grau de isolamento internacional do Brasil por conta das apostas de Bolsonaro é inédito, ainda que lhe reste o consolo de estar na companhia de países como China, Rússia e México, que até aqui se recusam a parabenizar Joe Biden pela vitória nas eleições presidenciais. Ocorre que esses três países tem contenciosos importantíssimos com os Estados Unidos, enquanto Bolsonaro está aparentemente ávido para encontrar um: a Amazônia.
Biden mencionou US$ 20 bilhões de possível ajuda, o agronegócio tecnológico e nossa matriz energética têm tudo para ganhar num impulso rumo à economia “verde”, mas o presidente prefere falar de “pólvora” quando esgotar a diplomacia em relação à pressão americana em questões ambientais. No caso brasileiro, nossa diplomacia esgotou-se ao exercer a ridícula opção preferencial de se subjugar a Donald Trump. Os que realmente possuem “pólvora”, como China e Rússia, não ficam falando disso.
De qualquer forma, faltou Bolsonaro esclarecer como pretende usar eventualmente pólvora para enfrentar os malandros de olho nas nossas riquezas, se ele considera que preside um país de maricas.
*JORNALISTA E APRESENTADOR DO JORNAL DA CNN
O Estado de S. Paulo: Pessimistas sobre luta jurídica, aliados de Trump já falam em volta em 2024
Assessores admitem privadamente que batalha judicial é uma miragem e oficialização da vitória de Biden é uma questão de tempo; para arrecadar fundos, presidente criou comitê que deve ser usado para manter o Partido Republicano em suas mãos
WASHINGTON - Enquanto o presidente eleito dos EUA, Joe Biden, recebe ligações de líderes mundiais e monta seu gabinete, Donald Trump segue encastelado na Casa Branca. Após seis dias sem ser visto publicamente, ele foi ontem a um evento no Cemitério de Arlington, no Dia do Veterano, mas não falou com a imprensa. Privadamente, seus aliados mais próximos admitem que a batalha legal é uma miragem e muitos já falam em lançá-lo como candidato em 2024.
Trump desafia sua derrota na Justiça em seis Estados – até agora, nenhuma ação relevante foi adiante. O fracasso levou seus principais aliados, entre eles Ronna McDaniel, presidente do Partido Republicano, Corey Lewandowski, ex-chefe de campanha, e Mark Meadows, seu chefe de gabinete, a reconhecerem, em conversas privadas, que a oficialização da vitória de Biden é menos uma questão de “se” do que de “quando”.
Por isso, alguns republicanos importantes já apoiam a ideia de uma nova candidatura em 2024, apesar de insistirem publicamente que a eleição “não acabou”. A 22.ª Emenda da Constituição diz que um presidente só pode ser eleito duas vezes. Na história recente, dois perderam a reeleição, mas não se candidataram de novo: Jimmy Carter, em 1980, George Bush pai, em 1992.
Após Joe Biden ser declarado vencedor das eleições, Trump criou um comitê de ação política, uma espécie de fundação autorizada a arrecadar fundos que podem ser gastos em viagens, pesquisas e propaganda política. O objetivo é garantir sua influência e manter o Partido Republicano em rédeas curtas, mesmo fora da Casa Branca.
“O presidente sempre planejou fazer isso, ganhando ou perdendo”, afirmou Tim Murtaugh, porta-voz de sua campanha. “A ideia é apoiar candidatos e questões que lhe interessam, como o combate à fraude eleitoral.”
Muitos aliados já sugerem abertamente que Trump concorra novamente. “Eu o encorajaria seriamente a pensar no assunto”, disse o senador Lindsey Graham à Fox News Radio. Mick Mulvaney, ex-chefe de gabinete da Casa Branca, disse não “ter dúvidas” de que ele será candidato em 2024. “Acho que o presidente continuará envolvido na política e estará na lista de candidatos que concorrerão em 2024”, disse. Segundo o site de notícias Axios, dois assessores teriam ouvido do próprio Trump a intenção de se candidatar outra vez.
O desafio, no entanto, é grande. Paul Waldman, colunista do Washington Post, acredita que Trump deixará sempre subentendida a chance de se candidatar para não perder a atenção da mídia e da base de eleitores. No entanto, ele precisará vencer vários obstáculos.
O primeiro é a Justiça. O presidente enfrenta investigações criminais em Nova York por fraude e sonegação. O segundo são as dívidas. Ele tem centenas de milhões de dólares em empréstimos que vencem no ano que vem – e suas empresas devem precisar de dinheiro. Por fim, haverá concorrentes dentro do partido, esperando para herdar o espólio de Trump, que terá 78 anos em 2024. / W.Post
RPD || Rubens Ricupero: Decifrando as lições da eleição americana
A extrema direita sofreu um golpe notável ao perder o controle do poder na maior potência do mundo e a união de todas as forças progressistas e de centro foi o que permitiu a derrota da Trump, avalia Rubens Ricupero
Muito do que se predisse da eleição americana não se realizou. Mais uma vez as pesquisas se enganaram feio, a mídia voltou a subestimar Trump, a onda Democrata se revelou uma marolinha. Os Democratas não conquistaram o Senado (até agora), perderam espaço na Câmara, não ganharam na Flórida nem no Texas.
Qual foi o efeito eleitoral do alinhamento de Trump ao programa Republicano de reduzir impostos para os ricos e tentar derrubar o Obamacare? Essa traição das promessas da campanha explicaria sua derrota em Michigan, Wisconsin e Pensilvânia. Como entender, então, que, em West Virginia, bastião de brancos pobres, ele tenha vencido por 7 a 3?
Teremos de esperar análises da classe social dos eleitores para ver até que ponto se manteve fiel a Trump o setor de operários industriais brancos prejudicados pela globalização.
Biden afirma que a eleição foi uma disputa pela alma da América. Nesse caso, o resultado indica que o país teria duas almas. Uma, urbana, moderna, educada, das grandes cidades das costas Leste e Oeste, foi conquistada por Biden. A outra, conservadora, com menor grau de educação, das zonas rurais e pequenas cidades do Oeste, Sul e Meio-Oeste, permaneceu com Trump.
O crescimento da economia e do emprego antes da pandemia ajudou o governo. Já o fiasco em lidar com a Covid-19 o prejudicou amplamente, embora não seja claro que tenha alienado os idosos, como se antecipava na Flórida.
O acirramento do conflito racial em torno dos protestos do “Black Lives Matter” mobilizou o eleitorado negro. Ao mesmo tempo, a violenta destruição de estátuas e as demandas radicais de corte nos recursos das polícias ocasionaram reação adversa de medo e ressentimento.
Essa enumeração incompleta dos fatores que influíram sobre os resultados serve para mostrar o risco de extrapolar para realidades diferentes o que deriva das especificidades americanas. Feita a ressalva, que lições de interesse geral seria possível extrair da derrota de Trump?
A primeira talvez seja sobre o autoritarismo de extrema direita, que dava a impressão de onda irresistível do futuro. Embora tenha revelado resistência insuspeitada, é indiscutível que sofreu golpe notável ao perder o controle do poder na maior potência do mundo. Movimentos similares na Europa, no Brasil e outras regiões tampouco se saíram bem na pandemia, o que sugeriria que o pico da tendência está ficando para trás.
A segunda conclusão decorre do exemplo. O que permitiu derrotar o apelo populista de Trump foi a união de todas as forças progressistas e de centro. Sem o apoio de Bernie Sanders e de Elizabeth Warren, num extremo, e de Republicanos desiludidos, no outro, teria sido difícil vencer. Esse é um dos méritos do bipartidarismo americano, que obriga a concentração de forças rivais no seio de coligações heterogêneas.
Em comparação, o sistema brasileiro de múltiplos partidos e eleição em dois turnos atua em sentido oposto, estimulando a dispersão de candidaturas no primeiro turno, o que dificulta e deixa pouco tempo para a união no segundo.
Uma terceira observação tem a ver com o tipo de vínculo quase religioso que une o líder carismático a seus fiéis fanatizados. Trump não trouxe de volta empregos industriais perdidos para a China, não reduziu o déficit comercial, não reverteu o declínio do carvão, fracassou na luta contra a pandemia.
Nada disso impediu que seu núcleo de apoio continuasse leal. É que o carisma depende muito mais da identificação entre líder e seguidores que dos resultados concretos das políticas. Haveria nisso alguma lição para os que descansam na crença de que o fiasco econômico de Bolsonaro bastará para derrotá-lo?
A conclusão mais importante para nós de fora se refere ao potencial que a eleição de Biden tem para mudar o mundo, muito mais que mudar os Estados Unidos. Na esfera interna, não será fácil, sem controlar o Senado, aumentar impostos das corporações, aprovar pacote trilionário de estímulo, alterar a ideologia da Suprema Corte.
Já na área externa, Biden terá mais latitude para voltar ao Acordo de Paris, converter o meio ambiente em prioridade central, liderar a busca de vacina na OMS, convocar a prometida Cúpula em favor da Democracia, restituir à diplomacia e ao multilateral o papel central na política externa. Se não fizer mais nada, já terá transformado a agenda mundial de modo decisivo.
*Rubens Ricupero é jurista, historiador e diplomata brasileiro com proeminente atividade de economista. É presidente honorário do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, sediado em São Paulo.
RPD || Paulo Baía: O destino manifesto da negação
Eleição norte-americana escancara o negacionismo de Trump e, por tabela, do presidente Jair Bolsonaro, avalia Paulo Baía em seu artigo, onde analisa o bolsonarismo na visão de Jairo Nicolau, autor do livro O Brasil dobrou à Direita
Dentro de uma eleição analógica para a Presidência dos EUA, nada mais pertinente do que a fala do Presidente Jair Bolsonaro – “a esperança é a última que morre”, torcendo para que o atual presidente norte-americano Donald Trump se reeleja. Em tempos de negacionismo, a maior democracia mundial vive momentos em que o poder nas mãos de um populista de extrema-direita questiona o sistema eleitoral, negando as regras democráticas do país, que funciona da mesma forma há séculos. E o espelho ao Sul da América deixa de ser representante de uma nação para virar cabo eleitoral e torcedor fervoroso daquele que acredita ser seu amigo. E quem sabe assim uma boa relação de favor não resolva os graves problemas brasileiros. O interessante é que o atual Presidente da República do país representante da liberdade, garantidor dos valores liberais e iluministas, é aquele que deseja ser reeleito no tapetão, suspendendo a contagem de votos dos que não votaram nele.
É o retrato da negação. Nas terras de cá, negam-se os mais de 14 milhões de desempregados, o aumento da pobreza extrema, a crise fiscal por causa da pandemia, a inflação nos produtos da cesta básica por conta do aumento do dólar e o empresariado preferindo vender para o mercado externo do que o interno, diminuindo a oferta e aumentando a procura. Tampouco existe pandemia nem morreram mais de 160 mil brasileiros: portanto, a vacina não deve ser obrigatória. Ou seja, todos os graves problemas por que passa o Brasil são reflexos de uma disputa partidária, criados pelos adversários para roubar seu poder.
Jairo Nicolau, professor de Ciência Política, acaba de lançar o livro: O Brasil dobrou à Direita. Neste livro, ele compila uma série de dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Cruzando dados como, por exemplo, idade, gênero, religião, educação etc., o pesquisador chega a conclusões muito interessantes sobre os eleitores de Bolsonaro. Ele foi o primeiro candidato que rompeu a ideia de que, para vencer, o presidente precisa de uma máquina eleitoral. Bolsonaro foi o preferido nas três faixas de ensino: fundamental, médio e ensino superior. Em 2018, foi a primeira vez em que o fator gênero se fez presente.
Bolsonaro foi o preterido de 2 a cada 3 homens, batendo o adversário em 10% a mais. E teve, respectivamente, 53% votos das mulheres e 64% dos homens; já Haddad obteve 47% dos votos dos homens e 36% das mulheres. Outro fator diz respeito ao cruzamento entre dados de homens e instrução: Bolsonaro ganhou em todos os níveis de ensino, todavia, quanto maior a instrução, menor a aceitação. Na variável religião, Bolsonaro ganhou nas duas maiores religiões do país em número de adeptos: católicos e evangélicos. Todavia, no setor evangélico, ele teve 70% a mais no número de votos. Para Jairo Nicolau, não houve influência na polarização petismo e antipetismo. Na pesquisa usada de opinião, 10% do eleitorado se identificavam com o PT, ao passo que 1/3 do eleitorado o rejeita.
O maior número, porém, representando metade do eleitorado, é de neutros, não rejeitam nem o apoiam. Dessa forma, o bolsonarismo é um fenômeno urbano. Nos 36 municípios brasileiros com mais de 500 mil habitantes, ele venceu em 30 cidades. Para Jairo Nicolau, o PT está agora restrito às pequenas cidades e, com um eleitorado com pouca instrução, entenda-se, até o nível fundamental.
Neste sentido, pode-se resgatar Weber e ampliar uma questão nova sobre o tema de sua obra A ética protestante e o Espírito do Capitalismo, apontando existir uma simetria entre o ideal de salvação das matrizes protestantes e a interpretação e conduta ascética, de que produzir e guardar dinheiro é sinônimo de salvação, principalmente no calvinismo e no puritanismo. Dessa forma, o livro lança uma questão: quais são as éticas protestantes, principalmente, dos grupos evangélicos que mais crescem no Brasil, a saber, pentecostais e neopentecostais, que vão ao encontro da urbanização, ou então, deste estilo de vida das grandes metrópoles?
Como Weber nos ensinou, isolar um fenômeno pode ser um bom caminho para o entendermos. Bolsonaro ganhou em todas as faixas de renda, inclusive, nos mais pobres. Em termos sociológicos, pode-se dizer que o discurso bolsonarista apresentou ampla hegemonia, termo tomado emprestado de Gramsci, que se refere à capacidade de ordenação. Ter o conhecimento de que o eleitorado simpatizou com o discurso do presidente é um caminho para entender melhor este fenômeno urbano eleitoral – o bolsonarismo.
*Paulo Baía é sociólogo e cientista político
Roberto DaMatta: Uma vitória da democracia
Donald Trump foi derrotado pelo seu desprezo pelos valores democráticos – diferenças devem igualar e não construir muros
Na véspera de minha primeira viagem aos Estados Unidos, em 1963, recebi de Dick Moneygrand – que iniciava suas pioneiras pesquisas no Brasil – um conselho inesquecível. “Na América – recomendou – faça sempre o contrário do que manda o seu brasileiro coração. Coma a pizza com a mão; não se preocupe com desodorantes, mas pinte o cabelo; obedeça ao que estiver escrito, jamais encoste a mão no seu interlocutor e não olhe fixamente para uma mulher bonita. Seja compulsivamente pontual e, acima de tudo, note bem – recomendou meu amigo com ênfase –, acalme-se quando sua reclamação for importante. Quanto mais difícil for o seu problema, mais calmo você deve ficar. Lembre-se de que, nos Estados Unidos, não existe o vosso nervoso e recorrente ‘Você sabe com quem está falando?’”
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O narcisismo e a base teatral da arrogância de Donald Trump me fez supor que Joseph Biden seria derrotado. Afinal, dizia meu julgamento cultural brasileiro, ele é idoso, é muito controlado e enfrenta uma dura polarização. Puxando, porém, pela memória, me lembrei de como os americanos enfrentaram polarizações muito mais tenebrosas como, em 1860, a Guerra Civil; na década de 50, o macarthismo fascista; em 1960, o movimento pelas liberdades civis, e outros eventos nefastos com decisiva serenidade democrática.
Talvez a quietude seja um traço cultural puritano que obriga a aprender com os erros, convoca calma diante da pressa, resistência diante da agressão e controle diante do nervosismo. Um otimismo e uma confiança que a nossa ética da malandragem e do jeitinho trata como ingenuidade. Mas foi como eles reagiram a Pearl Harbor, ao assassinato de John Kennedy, ao terrorismo das Torres e, agora, diante da presidência etnocêntrica e antiglobalista de Donald Trump.
Trump sabe agora que não foi eleito rei, mas presidente. Conforme os recém-eleitos enfatizaram nas suas falas inaugurais, eleitos recebem periodicamente mandatos. Tarefas legitimadas pelo voto.
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Algo jamais discutido no Brasil, onde os eleitos literalmente não inauguram, mas “tomam posse” de cargos que garantem a impunidade e facilitam o enriquecimento. No Brasil, os eleitos pelos pobres ficam imensamente ricos. Além disso, esquecem seus compromissos e atuam pessoalmente. Tal como Bolsonaro, eles se comportam de modo absolutista, olvidando que mandato não é fidalguia.
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Donald Trump foi derrotado pelo seu desprezo pelos valores democráticos – diferenças devem igualar e não construir muros e, acima de tudo, a preocupação com o planeta e não apenas com o seu poderosíssimo país.
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Essa vitória da democracia americana renovou em mim a crença nos ideais perdidos. Os únicos, aliás, pelos quais vale a pena lutar. Foi como um escutar da inteligência. Sobre isso, diz Thomas Mann: “O intelecto humano é fraco comparado com a vida instintiva do Homem. Mas há algo especial nessa fraqueza – a voz do intelecto é suave, mas ela não descansa antes de ter adquirido ouvidos. No fim, depois de inúmeras e repetidas rejeições, ele os encontra”.
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Tive a tentação de chamar essa crônica de “Mister Biden goes to Washington” (O senhor Biden vai a Washington) porque a vitória de Biden&Harris tem sido valorizada pelo recalcitrante narcisismo de um Trump que rejeita o princípio da realidade e não aceita a derrota. A dramaticidade da vitória levou-me ao filme de Frank Capra, realizado em 1939. No filme Mr. Smith Goes to Washington conta-se como um ingênuo senador suplente chega à capital das tramoias e dos cínicos realistas para derrotar com sua inocente integridade (toda integridade é inocente) um político corrupto e restabelecer valores adormecidos.
Quando ouvi o emocionante discurso de Kamala Harris – negra, filha de imigrantes, mãe indiana e pai jamaicano, educada naqueles Estados Unidos que reencarnavam a América –, veio-me a lembrança de um rapaz de Niterói que, graças à filantropia, foi estudar em Harvard e lá foi tratado como um igual. Daí ao filme de Capra foi um passo, pois rememorei o seu espírito e, na sua obra, a marca democrática dos que torcem pela igualdade como eu. Aquele momento foi, não tenho a menor dúvida, editado por Capra. Era a vida imitando no campo sujo da política, a arte; ou era o ideal democrático fundado em eleições a afirmar que existem ideais?
*É historiador e antropólogo social, autor de ‘Fila e Democracia’
Ruy Castro: O mundo que espere por Bolsonaro
E espere sentado porque, enquanto não for a hora certa, ele não cumprimentará Biden
O vice-presidente, general Hamilton Mourão, declarou que Jair Bolsonaro irá cumprimentar o presidente eleito americano, Joe Biden, “na hora certa”. Significa que, para Mourão, os líderes mundiais que ignoraram o esperneio de mau perdedor de Donald Trump e reconheceram a vitória de Biden, como os representantes de Alemanha, França, Reino Unido, Canadá, Índia, Israel, Emirados Árabes, Irã, Iraque, Egito, Jordânia, Líbano, União Europeia, ONU, OMS, Otan e até nossos vizinhos Argentina, Uruguai e Chile, fizeram isso na hora errada.
Para Mourão, especialista em dizer platitudes ao ser abordado em trânsito entre um gabinete vazio e outro desocupado, Bolsonaro faz bem em “esperar que termine esse imbróglio aí, de discussão, se tem voto falso, se não tem, para dar o posicionamento dele”. Deve imaginar que Biden e os países mais adultos e responsáveis estão esperando sentados, sem respirar, por Bolsonaro. E que, quando ele falar, as relações entre Brasil e EUA tomarão seu caráter institucional normal, como entre dois países com o mesmo peso.
Mas não é assim, claro, ou Bolsonaro e seus zeros não teriam dedicado os últimos dois anos a abjetos shows de subserviência diante de Trump —que, ao contrário do que eles pensam, não foram recebidos com apreço pelo clown americano, mas com o desprezo devido aos que rastejam diante do nhonhô. Se, como se diz, Trump chama seus próprios seguidores de “otários”, imagine sua opinião sobre Bolsonaro —se é que alguma vez este lhe veio à cabeça fora da agenda oficial.
Além disso, Trump tem mais com o que se preocupar neste momento do que com o apoio de remotos políticos bananeiros. Está consciente de que, assim que for evaporado da Casa Branca, uma chuva de processos o espera na dona Justa.
Recomenda-se a quem achar no lixo o boné de Eduardo Bolsonaro com os dizeres “Trump 2020” que o deixe lá. Pode ter sido ele que deu azar.
*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.
Ricardo Noblat: Bolsonaro é a mais perfeita tradução do seu (des) governo
De volta à normalidade
Em dia de fúria, o presidente Jair Bolsonaro teve pelo menos um momento de argúcia. Foi quando desabafou, em cerimônia no Palácio do Planalto: “Não estou preocupado com a minha biografia. Se é que eu tenho biografia”. De fato, não está. Do contrário, não teria feito o que fez em um período de poucas horas.
Começou o dia celebrando o falso insucesso da vacina chinesa contra a Covid-19. Depois disse que o Brasil, temeroso do vírus, não passa de um país de maricas. Por fim, afirmou que se não houver entendimento com o futuro governo de Joe Biden em torno do futuro da Amazônia, chegará a hora de usar a pólvora.
Biden ameaça o Brasil com sanções econômicas se Bolsonaro não cuidar melhor da Amazônia, onde aumenta o desmatamento e multiplicam-se os focos de incêndio. Bolsonaro tenta vender aos brasileiros a ideia de que outros povos querem ocupar a Amazônia porque ela é muito rica em minérios. Daí a referência a guerra.
Foram os chineses que inventaram a pólvora. Segundo garantiu há oito anos o general Maynard Marques Santa Rosa, ex-secretário de Política, Estratégia e Assuntos Internacionais do Ministério da Defesa, as Forças Armadas do Brasil não possuem munição suficiente para sustentar uma hora de combate.
Bravata pura de Bolsonaro! Que mereceu, uma hora mais tarde, a resposta indireta do embaixador americano no Brasil. Viralizou nas redes sociais o vídeo postado pelo embaixador sobre a passagem de mais um aniversário do Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos. Uma demonstração de força bem a propósito.
O saldo do dia em que Bolsonaro despiu a fantasia recém-vestida de presidente normal e reconciliou-se com o que sempre foi, é e será, pode ser resumido assim:
- Aumentou a desconfiança em relação a uma vacina promissora como tantas outras que estão sendo testadas aqui e lá fora;
- Aumentou também a desconfiança nas decisões técnicas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, até aqui amplamente respeitada no exterior;
- O Supremo Tribunal Federal sentiu-se obrigado a interferir na questão dando um prazo de 48 horas para que o governo explique por que suspendeu os testes com a Coronavac;
- Outra vez, os governadores se uniram contra o presidente da República e o acusaram de politizar o combate à pandemia.
O que mais, além do medo de não se reeleger em 2022, levaria Bolsonaro a comportar-se da forma estúpida e amadora como se comportou criando uma uma nova crise? Não é possível que a derrota do seu ídolo Donald Trump o tenha afetado tão gravemente a ponto de ele perder o juízo.
Maior do que o medo de não se reeleger deve ser o medo de assistir ao colapso da carreira política do seu filho mais velho Flávio Bolsonaro, réu pelos crimes de peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa no esquema de desvio de dinheiro público à época em que era deputado estadual no Rio de Janeiro.
O presidente acidental eleito há dois anos transformou-se num presidente atormentado. Ruim para ele, pior para o país.
Para o livro dos pensamentos de um presidente atormentado
Medo de perder a cadeira e apelo para que deixem sua família em paz
- “Morte, invalidez, anomalia. Esta é a vacina que o [governador João Doria] queria obrigar todos os paulistanos a tomá-la”, escreveu o presidente como resposta. O presidente disse que a vacina jamais poderia ser obrigatória. Mais uma que Jair Bolsonaro ganha”.
- “Tudo agora é pandemia. Tem que acabar com esse negócio. Lamento os mortos, todos nós vamos morrer um dia. Não adianta fugir disso, fugir da realidade, tem que deixar de ser um país de maricas”.
(Maricas, segundo os dicionários, quer dizer: que tem comportamentos tidos como femininos; efeminado; que é homossexual; gay; repleto de covardia e medo.)
- “Começam a amedrontar o povo brasileiro com a segunda onda. […] O que faltou para nós não foi um líder, foi não deixar o líder trabalhar”.
- “Vem uma turminha aí falar ‘queremos o centro’, nem ódio para cá nem ódio para lá. Ódio é coisa de maricas. Meu tempo de bullying na escola era porrada. Agora chamar um cara de gordo é bullying. Nós temos como mudar o destino do Brasil, não terão outra oportunidade”.
- “Querem chegar lá [na presidência] não pelos seus próprios méritos. Não querem chegar pelos seus méritos, mas derrubar quem está lá. Se alguém acha que tenho ‘uma tesão’ por aquela cadeira lá está completamente enganado.”
- “Não teremos um líder feito no Brasil de dois anos, não vai aparecer. A não ser montado na grana, comprando um tantão de coisa por aí, em especial os marqueteiros. Fora isso, não terão outros líderes num curto espaço de tempo”.
- “O Brasil não pode ir para esse lado (da esquerda), meu Deus do céu. Minha cadeira está à disposição. [Vejo pessoas] criticando, falando mal, falando besteira, mentindo, provocando, caluniando, perseguindo meus familiares o tempo todo”.
Elio Gaspari: Diplomacia sem cloroquina
Pitis são irrelevâncias nas relações entre os países
Donald Trump está oferecendo ao mundo uma cena de desequilíbrio explícito recusando-se a admitir sua derrota eleitoral. Problema dos americanos. O Brasil nada tem a ver com isso. Desde o fim da semana passada, criou-se uma saia justa porque o presidente Jair Bolsonaro não felicitou Joe Biden pela sua vitória. É um bom tema para alimentar conversas, mas sua relevância é igual à da cloroquina para a cura da Covid. Pode, no máximo, ser um silêncio descortês, mas, nesse negócio de reconhecimento indevido, a medalha está com a diplomacia americana, que, em 1964, reconheceu o deputado Ranieri Mazzilli como presidente, enquanto João Goulart ainda estava no Brasil. Pior, fizeram isso sem consultar o presidente Lyndon Johnson.
No dia 20 de janeiro, Joe Biden assumirá a Presidência dos Estados Unidos. No limite, Trump deixará a cidade antes disso. Tudo bem. Em 1801, John Adams foi-se embora e não participou da posse de Thomas Jefferson. Talvez Trump fique de cara fechada na limusine que o levará, ao lado de Biden, da Casa Branca ao Capitólio. Tudo bem de novo. Em 1953, o general Eisenhower e o presidente Truman mal trocaram algumas palavras durante o percurso. Malquerenças à parte, no dia seguinte Jefferson e Eisenhower governavam os Estados Unidos, e, a partir da tarde do dia 20, Joe Biden assinará seus primeiros papéis na Casa Branca.
Pitis são irrelevâncias nas relações entre os países. Bolsonaro e Biden têm opiniões diferentes em relação ao meio ambiente, uma ninharia se comparadas a divergências anteriores, como a do Acordo Nuclear que o Brasil assinou com a Alemanha, e o governo americano ostensivamente ajudou a detonar. Salvo a ação de agrotrogloditas nacionais e de suas milícias piromaníacas, há um imenso campo para o entendimento com os Estados Unidos e as grandes nações europeias em relação à floresta. Até há bem pouco tempo, o Brasil não era um pária. Se passou a sê-lo, com um chanceler que se orgulha disso, o problema é do atual governo. Assim foi com a agenda dos direitos humanos no século passado. Ela era um espinho no pé da ditadura, não de Pindorama. Nunca é demais lembrar que a famosa frase “o Brasil não é um país sério” jamais foi dita pelo presidente francês Charles De Gaulle. Seu autor foi o embaixador brasileiro em Paris.
Como perguntou o documento do Conselho Nacional da Amazônia Legal revelado pelo repórter Mateus Vargas: “Será que vale a pena a troca de provocações nas Relações Internacionais?”.
Joe Biden é um dos poucos presidentes eleitos americanos que estiveram no Brasil. Isso garante que ele não pensa que a capital do país seja Buenos Aires. George Bush não sabia que aqui há negros, e em 1945 Franklin Roosevelt achava que Getúlio Vargas fosse um general. Ao contrário de Trump, o presidente eleito dos Estados Unidos tem uma relação racional com o Departamento de Estado, e pode-se esperar que pratique uma diplomacia ouvindo os profissionais. Em 2015, ele cruzou com o venezuelano Nicolás Maduro numa reunião em Brasília. Tudo pronto para um piti, Biden cumprimentou-o e disse que, se tivesse a cabeleira do colega, seria presidente dos Estados Unidos. Mesmo com uns poucos fios transplantados, conseguiu.
Quem preferir algum tipo de diplomacia temperamental jogará para seu público interno.
Luiz Carlos Azedo: O presidente dos maricas
As reações de Bolsonaro são típicas de quem tem uma grande perda, no caso, o colapso da sua aliança estratégica com Trump. É um processo que começa pela negação e evolui para a raiva
O presidente Jair Bolsonaro ainda não conseguiu processar a derrota de Donald Trump nas eleições para a Presidência dos Estados Unidos. Em parte, isso explica o fato de não ter manifestado, ainda, as congratulações devidas ao democrata Joe Biden, o novo presidente norte-americano, somando-se aos poucos chefes de Estado que ainda não o fizeram, entre os quais Vladimir Putin, da Rússia, e Xi Jinping, da China, que têm disputas estratégicas com os norte-americanos muito diferentes das nossas contradições com os EUA. No momento, a atitude de Bolsonaro situa o Brasil nesse quadrante político, mas isso não tem a menor aderência à realidade geopolítica da qual fazemos parte historicamente.
Para usar uma velha expressão popular, Bolsonaro está sem pai nem mãe na política internacional. Seu comportamento parece emocional, porém, politicamente, é muito semelhante ao de Vladimir Putin em relação ao então presidente norte-americano Barack Obama, e à primeira-ministra alemã, Angela Merkel. Ambos o decepcionaram por tratarem a Rússia como uma nação decadente e a ele, pessoalmente, como um líder de segunda classe. Putin deu as costas ao Ocidente e recorreu ao nacionalismo russo para se manter no poder, até hoje, com apoio dos militares, controle do Judiciário e da imprensa, e uma estreita aliança com a Igreja Ortodoxa Russa, para uma contrarreforma nos costumes.
Entretanto, na prática, uma conexão ideológica com Putin não faz o menor sentido em termos geopolíticos. As reações de Bolsonaro são típicas de quem está em dificuldades diante de uma grande perda, no caso, o colapso da sua aliança estratégica com Trump. É um processo que, psicologicamente, começa pela negação e evolui para a raiva. O presidente da República parece estar entre uma fase e outra. Num divã de psicanálise, suas declarações levariam a essa conclusão: “A minha vida aqui é uma desgraça, problema o tempo todo. Não tenho paz para absolutamente nada. Não posso mais tomar um caldo de cana na rua, comer um pastel. Quando eu saio, vem essa imprensa me perturbar. Pegar uma piada que eu faço com Guaraná Jesus para tentar me esculhambar”.
Bolsonaro disse, ontem, que o Brasil é um “país de maricas”, por duas vezes: “Tudo agora é pandemia. Tem de acabar com esse negócio, pô. Lamento os mortos, lamento. Todos nós vamos morrer um dia. Não adianta fugir disso, fugir da realidade. Tem de deixar de ser um país de maricas, pô. Olha que prato cheio para a imprensa, para a urubuzada que está ali atrás. Temos de lutar. Peito aberto, lutar. Que geração é essa nossa? A geração hoje em dia é toddynho, nutella, zap. É uma realidade”, disse.
Saliva e pólvora
Depois, ao se referir às articulações envolvendo o apresentador Luciano Huck, o ex-ministro da Justiça Sergio Moro e o governador de São Paulo, João Doria, revelou certo temor de que a oposição de centro se unifique em torno de um desses nomes: “Vem uma turminha falar ‘ah, queremos um centro: nem ódio para cá, nem ódio para lá’. Ódio é coisa de marica, pô. Meu tempo de bullying na escola era porrada. Agora, chamar o cara de gordo é bullying. Nós temos como mudar o destino do Brasil. Não terão outra oportunidade. O Macri, na Argentina, não conseguiu implementar as suas políticas. Começou a levar pancada dos seus seguidores, como eu levo, agora, também. Voltou a turma da Kirchner, Dilma, Maduro e Evo”.
Bolsonaro voltou a investir contra a urna eletrônica: “Não temos um sistema sólido de votação no Brasil, que é passível de fraudes, sim. Tudo pode mudar no futuro com fraude. Eu entendo que só me elegi presidente porque tive muitos votos, e não gastei nada, não: 2 milhões de reais, arrecadado por vaquinha”. Bolsonaro defende a volta do voto impresso, já rechaçada pelo presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Luís Roberto Barroso, e endossa as acusações de Donald Trump de que a vitória de Biden está sob suspeita de fraude, o que, a essa altura do campeonato, é um desastre diplomático.
Mas o fato que assustou todo mundo, inclusive ministros do governo e os líderes governistas no Congresso, foi a declaração de Bolsonaro comemorando a morte de um dos voluntários que estão testando a vacina chinesa CoronaVac, em pesquisa do Instituto Butantan, que a Anvisa, indevidamente, suspendeu. Além da absurda falta de empatia, Bolsonaro mentiu, ao afirmar que a vacina foi a causa mortis, quando se trata de um caso de suicídio. Se o presidente da República continuar nessa rota, teremos um formidável caso de suicídio político.
Sua declaração de que pode defender a Amazônia com pólvora, contra a suposta interferência de Biden, é simplesmente insana: “Assistimos, há pouco, um grande candidato a chefia de Estado dizer que, se eu não apagar o fogo da Amazônia, ele levanta barreiras comerciais contra o Brasil. E como é que podemos fazer frente a tudo isso? Apenas na diplomacia não dá, não é, Ernesto (Araújo)? Quando acaba a saliva, tem de ter pólvora, senão não funciona. Não precisa nem usar pólvora, mas tem de saber que tem. Esse é o mundo. Ninguém tem o que nós temos.”