Trump
Pierre Rosanvallon: “O aspecto ‘positivo’ do populismo foi subestimado durante muito tempo”
Pierre Rosanvallon, referência intelectual da França contemporânea e professor do Collège de France, teoriza em seu ambicioso livro sobre “a ideologia ascendente” deste século
Se existe um fantasma que assombra a Europa e o mundo hoje é o do populismo. Reação de ira, estratégia política, palavra para deslegitimar ou estigmatizar o adversário político, o uso do conceito é tão diverso quanto as realidades a que se refere. No entanto, renunciar a ele e voltar a categorias de análise mais antigas seria perder a oportunidade de entender o caráter inédito “do ciclo político que se iniciou no início do século XXI”. Assim acredita Pierre Rosanvallon (Blois, França, 1948), cujo último livro, O Século do Populismo: História, Teoria, Crítica (ainda sem edição no Brasil), é uma ambiciosa tentativa de teorizar e definir a essência do que considera ser “a ideologia ascendente” deste século. Uma teoria do fenômeno, entendido como uma proposta política coerente, afirma o historiador, professor do Collège de France, que se recusa a ver na derrota de Donald Trump, o “grande ator do iliberalismo”, um sinal de enfraquecimento dessa corrente. A página não está sendo virada nos Estados Unidos, nem o populismo vai recuar no mundo, acredita Rosanvallon, que se dedicou nos últimos 20 anos ao estudo das mutações da democracia contemporânea.
Pergunta. Por que o senhor acredita que o populismo é uma doutrina e merece uma teoria política?
Resposta. Considerar o populismo simplesmente como uma reação de ira ou uma expressão do “fora todos eles” não é suficiente para explicar o fenômeno. Há um cansaço democrático subjacente na vida política de muitos Estados que se expressa de maneira muito ampla. E também uma espécie de esgotamento da política, de sua capacidade de ação. Se o populismo tem uma força de atração é porque aparece como solução para problemas contemporâneos como a crise de representação ou as injustiças sociais. Queria mostrar esse aspecto positivo do populismo porque acredito que foi subestimado durante muito tempo. Pareceu-me importante passar de uma visão do populismo como uma reação a uma visão do populismo como uma proposta política positiva e própria.
P. A diversidade de populismos, seja entre o de direita e o de esquerda ou na extrema direita chama a atenção...
R. Se você olhar para as personalidades populistas de hoje, pode ter a sensação de que existe uma grande diversidade. Porque, o que pode haver em comum entre Trump e Salvini, ou entre Mélenchon e Duterte? Mas se observamos o populismo a partir das categorias amplas que o caracterizam, podemos encontrar temas comuns que são sempre articulados de uma maneira específica.
P. Apesar dessas semelhanças, o senhor não acredita que há um abuso do qualificativo no debate atual ou na caracterização de algumas personalidades políticas ou regimes?
R. Vimos o surgimento de movimentos e regimes que não podem ser simplesmente categorizados como autoritários, ou como fascistas ou ditatoriais. Existem regimes, como na Rússia, que se inclinam, poderíamos dizer, legalmente para o autoritarismo mediante a aprovação de reformas constitucionais que permitem a eleição quase indefinida de seus líderes. A tentação desses regimes de se tornarem democracias é uma característica absolutamente comum dos populistas, ou seja, regimes autoritários validados pelo sufrágio universal.
P. O qualificativo serve para estratégias adotadas por líderes como Emmanuel Macron, que ganhou as eleições em 2017 se opondo ao que chamava de o “velho mundo” de partidos tradicionais?
R. É difícil comparar Macron com Viktor Orbán, Boris Johnson ou Evo Morales, mas o que mostra a estratégia que adotou em 2017 é que o populismo está presente na própria atmosfera das sociedades democráticas e pode ser entendido como a difusão de um todo conjunto de questões para além dos partidos ou regimes de essência estritamente populista.
P. Entre as cinco características que compõem o tipo ideal do populismo, o senhor insiste na instrumentalização das emoções.
R. Se tivesse que destacar uma importante contribuição do populismo –ainda que seja muito ambígua– para a democracia contemporânea, seria ter entendido que se governa também de acordo com as emoções. Os sentimentos de pertença, de identidade, de rejeição determinam a visão que os indivíduos têm de seu papel na sociedade. Frequentemente, aqueles que criticam essa ideologia não a entendem. Não se pode criticar o populismo superficialmente ou limitar-se a dizer que promove uma democracia antiliberal. Quando isso acontece é porque a democracia liberal não está cumprindo sua agenda. Está em crise.
P. Uma fórmula com a qual Trump esteve prestes a ganhar novamente a presidência dos Estados Unidos... Como o senhor interpreta o momento político?
R. Há dois pontos essenciais. O primeiro: Trump teve 10 milhões de votos adicionais, o que significa que o voto populista está solidamente instalado na sociedade e hoje representa quase metade da população. O segundo: o Partido Republicano entendeu que se quiser manter grande parte de seus representantes no Senado terá que abraçar e aceitar a fórmula populista. Deixou de ser um partido reaganista e passou a ser um partido trumpiano.
P. E inclusive conquistou o voto latino em certos Estados e em alguns casos o afro-americano...
R. O voto latino é compreensível de um ponto de vista sociológico e psicológico. Depois que um imigrante obtém seus documentos e se torna um cidadão norte-americano, é frequente que mude de atitude em relação à imigração. É muito mais difícil de entender no caso do voto afro-americano. O populismo fez que a sociedade norte-americana, que costumava se definir por suas classes sociais, hoje se defina por suas identidades, no sentido mais reacionário do termo.
P. O senhor explica em seu livro que o populismo nasce das falhas intrínsecas da democracia e insiste muito em sua fragilidade. É realista pensar que a democracia ocidental pode desaparecer?
R. A democracia não funciona apenas com regras de direito, mas também com uma moral democrática. Voltando a Trump, ninguém antes dele havia demitido um diretor do FBI por não lhe ser fiel, e não há dúvida de que com um segundo mandato ele teria continuado a minar as instituições democráticas. A história está cheia de exemplos de democracias que desaparecem. A Grécia Antiga e o Século de Péricles são um bom exemplo. A democracia não é uma conquista. É uma frente de batalha. É frágil e morre se não for renovada. Sem instituições democráticas vivas existe o risco de que os cidadãos se cansem desse modelo e consintam seu desaparecimento.
P. Chama muito a atenção a posição central ocupada pelas redes sociais na estratégia política de líderes e de movimentos populistas e a escassa regulamentação vigente...
R. Sem dúvida, a regulamentação da Internet e em particular das redes sociais é um ponto central para a continuidade da democracia. É vital legislar porque, do contrário, sobre muitas questões, se continuará alegando que existe uma verdade alternativa. O melhor exemplo disso está sendo oferecido por Trump ao se recusar a reconhecer a vitória de Biden. Uma posição à qual adere, sem dúvida, grande parte de seu eleitorado, que acredita que houve fraude e que a vitória democrata foi um roubo. Essa faixa do eleitorado de Trump já não faz sociedade comum com os outros. E essa foi a grande novidade, por assim dizer, dos últimos anos: descobrir um país dividido em dois campos irreconciliáveis enquanto a própria essência da democracia consiste em pensar que existe uma base comum que permite falar dessas diferenças, negociar, acordar. A regulamentação das redes terá de ser acompanhada por uma política de educação que inculque no cidadão a importância dos argumentos, e que não existe apenas a sua verdade.
P. O senhor apresenta o populismo como a ideologia em ascensão do século XXI, mas a crise da covid-19 foi um golpe para a imagem desses líderes.
R. Podemos nos perguntar se estamos presenciando uma espécie de ponto de inflexão no discurso populista, já que esse discurso costuma ser apresentado como o detentor da verdade absoluta sobre a realidade. A dimensão objetiva desta crise de alguma forma encurralou os líderes populistas. Ninguém pode negar esta pandemia. Por outro lado, o populismo na Europa também entrou em confronto com o papel da União Europeia. A Itália e a Espanha estão entre os principais beneficiários do que pela primeira vez qualificaria como uma espécie de orçamentação e oficialização da solidariedade entre os países europeus. Existe uma dupla realidade que ninguém pode ignorar: a realidade do vírus e a realidade da crise econômica. Dito isso, o populismo mantém uma visão da democracia, da liderança e da vontade política que conserva seu poder.
Paul Krugman: Com Janet Yellen no Tesouro, política econômica dos EUA será ditada por quem sabe o que está fazendo
Escolha de Joe Biden para o cargo anima economistas não só por ela ter uma carreira notável no serviço público e ter sido uma pesquisadora séria; existe algo de revanche contra Donald Trump
É difícil extrapolar o entusiasmo dos economistas com a escolha de Janet Yellen para próxima secretária do Tesouro. Parte dessa euforia reflete o caráter revolucionário da sua nomeação. Ela não só é a primeira mulher a comandar essa secretaria, mas será a primeira pessoa a assumir todas as três posições de comando da política econômica dos Estados Unidos - como presidente do Conselho de Assessores Econômicos, do Federal Reserve (Fed, o banco central dos Estados Unidos) e do Tesouro.
E, sim, existe algo de revanche contra Donald Trump, que negou a ela um muito merecido segundo mandato como presidente do Fed, ao que consta porque achava que ela era muito baixinha.
Mas a boa notícia sobre Janet Yellen vai além da sua notável carreira no serviço público. Antes de assumir o cargo ela era uma pesquisadora séria. E, em particular, uma das figuras na vanguarda de um movimento intelectual que ajudou a salvar a macroeconomia como uma disciplina útil quando essa utilidade estava sob ataques internos e externos.
Antes de chegar a esse ponto, uma palavra sobre o tempo que ela passou no Federal Reserve, especialmente quando participou do conselho diretor da instituição, no início de 2010, antes de presidi-la.
Na época, a economia dos Estados Unidos vinha lentamente se recuperando da Grande Recessão - uma recuperação impedida, não por acaso, pelos republicanos no Congresso que fingiam se preocupar com a dívida pública impondo cortes de gastos que afetaram de maneira importante o crescimento econômico. Mas a questão dos gastos não era o único tema do debate; também eram ferozes as discussões sobre a política monetária.
Especificamente, muitas pessoas da direita condenavam os esforços do Fed para salvar a economia dos efeitos da crise financeira de 2008. A propósito, entre elas estava Judy Shelton, uma pessoa totalmente desqualificada que Trump ainda tenta colocar no conselho diretor do Fed e que, em 2009, alertou que as políticas adotadas pela instituição resultariam numa “ruinosa inflação” (o que não ocorreu).
Mesmo dentro do Federal Reserve havia uma divisão entre os que preconizavam medidas mais duras em relação à inflação e os defensores de uma política mais leniente permitindo um pequeno aumento da inflação que, no final, incentivaria o crescimento e a criação de empregos, e que o combate à depressão devia ser prioritário. Janet Yellen era um deles e uma análise feita em 2013 pelo The Wall Street Journal concluiu que, entre os articuladores políticos do Fed, ela foi a mais precisa nas previsões.
Por que ela acertou? Parte da resposta, eu diria, remonta ao seu trabalho acadêmico na década de 1980.
Na ocasião, como já afirmei, a macroeconomia útil estava sob ataque. O que quero dizer com “macroeconomia útil” é o entendimento, compartilhado por economistas como John Maynard Keynes e Milton Friedman, de que as políticas fiscal e monetária devem ser usadas para o combate das recessões e reduzir o impacto negativo sobre as pessoas e sobre a economia.
Esse entendimento não falhou quando foi testado na realidade, pelo contrário, a experiência do início dos anos 1980 confirmou vigorosamente os prognósticos da tese macroeconômica básica. Mas estava sob ameaça.
De um lado, políticos de direita defendiam doutrinas excêntricas, especialmente a tese de que os governos podem engendrar um milagroso crescimento reduzindo impostos devidos pelos ricos. De outro lado, um número importante de economistas rejeitava qualquer papel da política no combate das recessões, afirmando que ele era desnecessário se as pessoas agissem racionalmente em seus próprios interesses, e que a análise econômica sempre devia supor que as pessoas são racionais e buscam seus próprios interesses. E mesmo um pouco de realismo sobre o comportamento humano renova a defesa de políticas agressivas para combater as recessões. Em trabalhos posteriores, Yellen mostrou que os resultados para o mercado de mão de obra dependem muito não só dos cálculos de ganhos e lucros, mas também da percepção de equidade.
Tudo isto parece ininteligível, mas posso responder, pela minha própria experiência, que esse trabalho teve um enorme impacto sobre muitos economistas jovens, basicamente dando a eles permissão para serem mais sensatos.
E me parece que existe uma linha direta do realismo disciplinado da pesquisa acadêmica de Janet Yellen para seu sucesso como estrategista econômica. Ela sempre foi alguém que compreendeu o valor dos dados e modelos. E com efeito, a reflexão rigorosa se torna mais, e não menos, importante em tempos como estamos vivendo hoje, quando a experiência passada oferece pouca orientação sobre o que deveríamos estar fazendo. Mas ela também nunca esqueceu que a economia tem a ver com pessoas, que não são as máquinas de calcular insensíveis que os economistas às vezes querem que elas sejam.
Agora, nada disso significa que as coisas necessariamente irão de vento em popa. A corrida não é dos velozes, como o pão não é dos sábios, e tampouco o entendimento dos responsáveis pelas políticas garante o sucesso, mas o tempo e a oportunidade possibilitam tudo isto. O gabinete de governo de Trump foi um show de palhaços - possivelmente o pior gabinete na história dos EUA. Mas foi apenas em 2020 que as consequências da incompetência deste governo ficaram totalmente aparentes.
Mas é imensamente tranquilizador saber que a política econômica será ditada por uma pessoa que sabe o que está fazendo. / Tradução de Terezinha Martino.
Demétrio Magnoli: Luta de classes nos EUA
Progressistas decidiram falar exclusivamente à 'elite' das grandes cidades e às minorias negra e latina
Jeffrey Sachs, economista, foi o guru das reformas de mercado na Polônia dos anos 1990. Anthony Scaramucci, empresário das finanças oriundo de uma família de trabalhadores, é um republicano convicto que rompeu com Donald Trump. Barack Obama, presidente antes de Trump, é a principal voz do Partido Democrata. Os diagnósticos deles sobre a eleição americana formam um mosaico que ilumina a encruzilhada histórica que se apresenta diante dos progressistas.
Sachs: “A política nos EUA é basicamente uma luta entre os que têm ensino superior e os que têm ensino médio”. Os primeiros votaram nos democratas; os segundos, nos republicanos.
Trump perdeu, mas desmentiu a antiga lenda que associa a expansão da proporção de votantes a triunfos esmagadores do Partido Democrata. Na eleição com maior participação desde 1908, Trump obteve 10,5 milhões de votos a mais do que em 2016 e os republicanos ampliaram sua minoria na Câmara.
O “povo branco” —isto é, os brancos da classe trabalhadora— novamente escolheu Trump, apesar da pandemia e da recessão. Mais: Trump avançou entre os latinos e até entre os homens jovens negros, perdendo nesses setores por margens menores que quatro anos atrás. De certo modo, o Partido Republicano repaginado pelo nacionalismo de direita é o partido popular dos EUA. Há, nisso, um alerta para o Brasil.
Scaramucci: “Foi um voto de protesto contra a elite e a mídia que diz mais sobre os eleitores do que sobre Trump. Essas pessoas já não creem que o sistema serve a seus interesses”.
Não se deve confundir 73 milhões de americanos com um núcleo de fanáticos direitistas. A massa de eleitores de Trump não é formada por “deploráveis”, o rótulo empregado por Hillary Clinton, e não compartilha os trechos mais desprezíveis de seu discurso xenófobo, racista e autoritário.
Mas, sob o impacto da dissolução do “sonho americano”, eles votam contra o “sistema”. A lição vinda dos EUA ajuda a decifrar a popularidade de Jair Bolsonaro.
Obama: “A minha simples presença na Casa Branca desencadeou um pânico profundo: o sentimento de que a ordem natural foi despedaçada. Trump ofereceu, a milhões de americanos assustados pela visão de um homem negro na Casa Branca, um elixir para sua ansiedade racial.” É verdade —mas uma verdade que solicita contexto.
Nos EUA, entre os brancos, a divisão de classes refrata-se como cisão geográfica. A população com ensino superior vive nas principais cidades; os demais, nos núcleos interioranos.
As desigualdades sociais, acirradas nas últimas décadas, empurraram a universidade para fora do alcance de grande parcela da classe média. Um Everest de US$ 1,6 trilhão de dívidas estudantis pesa sobre as costas das famílias que, um dia, nutriram-se do sonho de ascensão social. Trump fala ao “americano esquecido” que desistiu de ouvir Obama.
O mapa eleitoral conta a história inconveniente. O Obama de 2008 triunfou nos estados decisivos do Meio-Oeste em declínio econômico: Pensilvânia, Michigan, Wisconsin, Minnesota e até Ohio e Iowa. O Trump de 2016 venceu em 5 dos 6.
A “ansiedade racial” só se manifestou após o duplo mandato do “homem negro na Casa Branca”. Biden recuperou três desses estados, mas por margens apertadas decorrentes da elevada participação das maiores cidades.
O Partido Democrata tornou-se o partido popular dos EUA por meio de duas rupturas fundamentais separadas por três décadas: Franklin Roosevelt e o New Deal conquistaram a classe trabalhadora do Meio-Oeste; Kennedy, Johnson e a Lei dos Direitos Civis conquistaram o voto negro.
Porém, nos últimos tempos, hipnotizados pelo multiculturalismo, os progressistas decidiram falar exclusivamente à “elite” das grandes cidades e às minorias negra e latina.
A opção asfaltou a estrada na qual transita a direita nacional-populista. Biden não assinala o fim da história.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Raul Jungmann: 5G - Politização e interesse nacional
Esta semana, mais uma vez, tivemos um conflito diplomático entre o Brasil e China, motivado por um tuite desrespeitoso e irresponsável do Presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara seguida de resposta do embaixador da China.
Os países mais avançados na introdução de tecnologia 5G são a Alemanha, China, Coreia do Sul, EUA e Japão. Existem atualmente 40 operações comerciais de 5G em 16 países, conduzidas por duas dezenas de operadoras.
O Brasil é um player de peso no comércio global das tecnologias de informação e comunicações e nas principais instâncias da governança cibernética. Somos, depois da China, Índia e EUA, o quarto maior usuário global da Internet. Entre 2000 e 2017, o percentual da população brasileira com acesso à Internet evoluiu de 3% para 67,5%.
A companhia chinesa Huawei é hoje a principal ofertante de serviços 5G, com preços de mercado mais vantajosos do que as outras duas concorrentes, Nokia e Ericsson. O governo dos EUA pressiona seus parceiros econômicos a não adquirir os produtos e serviços de 5G da Huawei, sob a argumentação de que eles trariam graves riscos securitários.
Países influentes nas agendas econômica e securitária globais, como Alemanha, Coreia do Sul, França, Índia e Reino Unido têm indicado, entretanto, intenção de não desconsiderar a priori quaisquer das ofertas de 5G, inclusive da Huawei, desde que atendidos os objetivos nacionais de desenvolvimento tecnológico e critérios de segurança.
Contrariando essa tendência, o Reino Unido e a Suécia reviram sua decisão recentemente e colocaram impedimentos para a participação da Huawei em projetos de 5G.
Em junho de 2019 o Ministério da Ciência Tecnologia e Inovações divulgou a Estratégia Brasileira de Redes de Quinta Geração. Em 31/10/2019, foi instaurado Grupo de Estudo sobre a tecnologia 5G.
O principal objetivo do grupo é subsidiar o Governo federal para a adoção de um ecossistema 5G que atenda aos requisitos de maior cobertura nacional possível, prestação eficiente de serviços, fomento à pesquisa e ao desenvolvimento tecnológico e segurança das infraestruturas críticas e cadeias de produção.
A Anatel e o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) têm defendido o princípio de neutralidade tecnológica. Em fevereiro de 2020, a Anatel aprovou proposta de edital de leilão 5G.
O leilão deverá movimentar R$ 20 bilhões em arrecadação e investimentos. Após sucessivos adiamentos, a estimativa do Presidente da Anatel é a de que o leilão ocorra no primeiro semestre de 2021.
Ideologizar e/ou politizar essa decisão estratégica e seguir um dos lados em disputa, EUA ou China, e não o interesse nacional é desservir ao Brasil.
*Raul Jungmann - ex-deputado federal, foi Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.
Reinaldo Azevedo: Bolsonaro cumpre promessa e desconstrói o Brasil
Em reunião com forças conservadoras em Washington, o presidente foi profético sobre o próprio governo
O governo de Jair Bolsonaro acaba de comprar mais um conflito estúpido com a China; ainda não reconheceu a eleição de Joe Biden nos EUA; acusou recentemente países europeus de comprar madeira ilegal do Brasil —o que os tornaria, quando menos, corresponsáveis pelo desmatamento— e é hostil à Argentina, um dos principais clientes, ainda que em declínio, da combalida indústria brasileira.
O festejado acordo UE-Mercosul é agora só miragem, e o ingresso do país na OCDE vai ficando mais distante. Bolsonaro é hoje um dos líderes mais isolados no planeta. Em seu rosto, percebem-se laivos de nanico orgulhoso, que não se dobra à grande conspiração contra os homens justos. Não é sem razão que suas honras viris mereceram o reconhecimento de Vladimir Putin.
Em nota oficial, a embaixada da China reagiu, em termos apropriadamente duros, à acusação feita por Eduardo Bolsonaro —filho de Jair e presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara— de que os chineses pretendem usar a tecnologia 5G para praticar espionagem. O texto lembra que o país governado por Xi Jinping, a quem o “capitão” claramente se opôs na reunião virtual do Brics, responde por 33,5% das exportações brasileiras.
Se não cabia ao Itamaraty pedir desculpas —afinal, não se tratou de manifestação de governo—, menos apropriado seria reagir com críticas adicionais à China, como se a nota dura da embaixada representasse uma ofensa ao próprio governo. Mas foi precisamente o que aconteceu. O Ministério das Relações Exteriores tomou as dores do filho do presidente.
Assim, a família Bolsonaro e o grupo de lunáticos que o cerca —incluindo Ernesto Araújo, o chanceler— confundem a própria pantomima com a história e os interesses do país. Os malucos têm uma certeza: a China precisa da soja brasileira, da carne brasileira, do ferro brasileiro. Logo, não pode advir desse confronto mal nenhum ao país, e a ameaça de retaliação seria pura bravata.
Não ocorre a esses gênios da raça que os chineses não precisam abrir mão das commodities brasileiras. Causariam um estrago considerável ao agronegócio, e ao nosso país, se comprassem menos soja, menos carne e menos ferro do Brasil. Até em briga de rua, no meu tempo de ser moleque, a gente avaliava antes as consequências de um confronto. A noção de honra, às vezes, a tanto nos obrigava. Mas nenhum de nós podia fazer mal nenhum a não ser à própria cara. Esses celerados estão empenhando o futuro do país. Alguma surpresa?
Não. O Brasil tem uma elite econômica temerária —é claro que há notáveis exceções—, capaz de flertar com o caos sob o pretexto de salvar o país do demônio. O “mal”, no caso, segundo essa gente, acaba se confundindo com a cara média do povo brasileiro, que é meio preta e pode morrer de susto, bala, vício ou asfixia num hipermercado. Já em 2018 eu me perguntava, e a questão permanece, por que setores do empresariado e do mercado financeiro imaginavam que Bolsonaro poderia ser a solução para as suas angústias.
Em parte, sei a resposta. O ódio à política, liderado pela Lava Jato, levou pesos pesados do PIB brasileiro a acreditar numa espécie de purificação mística. Se os “espertos”, na narrativa escatológica então inventada, haviam criado o país da corrupção e da impunidade, talvez nos faltassem brutalidade e crueza em estado puro.
E existia a personagem que encarnava todos esses baixos instintos —tudo aquilo que a civilização, na verdade, deve reprimir pelo caminho da educação e do decoro para que a vida em sociedade seja possível. E Bolsonaro chegou lá, com seu séquito de neófitos arrogantes e truculentos, vocalizando os preconceitos mais sórdidos sob o pretexto de conjurar, então, as forças do mal que teriam se entranhado no país.
Em março do ano passado, numa reunião com forças conservadoras em Washington, o presidente foi profético sobre o próprio governo: “O Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa.”
Homem de palavra. Ele está desconstruindo o Brasil.
William Waack: Falando sozinho
Os principais freios à política externa de Bolsonaro vêm da iniciativa privada
É preciso um pouco de paciência, mas a força dos interesses privados brasileiros está conseguindo impor severos limites aos rompantes de política externa do governo Jair Bolsonaro. A “linha” externa foi basicamente subordinar-se a Donald Trump, um erro grotesco do ponto de vista “técnico” de diplomacia e um exemplo já clássico de como a cegueira ideológica conduz a decisões que são pura estupidez.
O agronegócio foi o primeiro a gritar contra a gratuita hostilização de parceiros comerciais no Oriente Médio e na Ásia, seguido de perto por setores modernos industriais e do mundo financeiro em relação a políticas ambientais. Os mais novos grupos a entrar no “vamos dar uma segurada” são de setores tecnológicos ligados a telecomunicações e infraestrutura, preocupados com o dano que a hostilidade à China possa trazer a investimentos no 5G.
Especialmente no agro “tecnológico” – aquele que colocou o Brasil como uma superpotência na produção de grãos e proteínas – a postura externa do governo Bolsonaro é vista com consternação e abertamente criticada. O racha já chegou à relação entre entidades que representam os variados grupos desse setor. Aqueles apelidados de “ruralistas”, e identificados com a soja e a pecuária “primitiva”, continuam apegados à noção de que, sendo o Brasil um campeão na produção de alimentos, não importa o que aconteça ou o que se diga, o mundo continuará comprando aqui.
Mas coligação de peso é a que passa pelos bancos, grandes indústrias (química, por exemplo), instituições financeiras (plataformas de investimentos), empresas de ponta no setor digital (aplicação de inovação digital na agricultura, por exemplo), serviços e varejo de massa (por suas ligações com o exterior). Elas se entendem como parte de grandes cadeias internacionais, o que significa levar em grande consideração o que vai pela cabeça de massas de consumidores – e as preocupações de acionistas idem.
Estabeleceram com o presidente do Conselho da Amazônia, o general Hamilton Mourão, uma espécie de interlocução que se faz notar, por exemplo, na maneira como o vice-presidente reagiu ao anúncio de Biden de que retornaria aos acordos do clima de Paris – mais uma vez, a voz de Mourão é abertamente dissonante em relação à de Bolsonaro. Aliás, na cabeça dos executivos desses grupos a vitória de Joe Biden é vista como uma excelente oportunidade de, pelo menos, restaurar parte das cadeias produtivas globais. E fala-se da China com bem menos hostilidade política.
Nenhum desses dirigentes admite em conversas particulares enxergar qualquer vantagem no isolamento internacional a que as posturas de política externa de Bolsonaro levaram o País, e simplesmente ignoram o que diz o governo. Olham para os acordos de comércio recentemente assinados na Ásia (abrangendo 30% do PIB mundial e alguns países “ocidentais” como a Austrália, por exemplo) e examinam em grupos nutridos de análise da situação internacional como não perder o bonde (mais um).
Nesse sentido, a anunciada adesão do Brasil à iniciativa americana de “rede limpa” (clean network), que exclui a chinesa Huawei do 5G brasileiro, foi considerada prematura e desnecessária também por militares envolvidos em programas de Defesa – e que não viram na dedicação de Bolsonaro a Trump qualquer vantagem prática em termos de acesso a tecnologias sensitivas (notadamente nos setores nucleares e de mísseis) tradicionalmente bloqueadas por governos americanos, democratas ou republicanos.
Qual o resultado de tudo isso: será o retorno às deliberações multilaterais (incluindo o acordo de Paris), a moderação na resposta às críticas à política ambiental, mais cuidado no trato com parceiros comerciais importantes na Ásia e Oriente Médio e a reiteração (bem antiga, já) aos que controlam tecnologias de Defesa de que somos internacionalmente “adultos e responsáveis”. Em outras palavras, é deixar a área externa do governo, incluindo filhos, assessores e alguns ministros de Bolsonaro, falando sozinhos.
El País: Biden lança um Governo para enterrar a era Trump: “Os EUA estão de volta, prontos para liderar o mundo”
O presidente eleito delineia um Gabinete antagônico ao ideário do republicano, embora, por enquanto, sem gestos à ala esquerdista do Partido Democrata
O processo de transmissão de poderes começou formalmente nos Estados Unidos, com um Donald Trump finalmente derrotado pela realidade, que concordou em colocar em movimento a maquinaria da transferência, e um presidente eleito, Joe Biden, imerso na criação de sua equipe de Governo. O perfil do Gabinete que começa a tomar forma em Washington ainda não tem gestos para a ala esquerdista do Partido Democrata, aposta em veteranos da Administração de Barack Obama, mas deixa clara sua missão: enterrar a era Trump. “Os Estados Unidos estão de volta e prontos para liderar o mundo”, disse Biden, ao apresentar seus primeiros escolhidos.
As nomeações conhecidas até agora representam uma espécie de emenda a toda a estratégia externa de Trump e sua guinada isolacionista. Um adeus ao ‘América primeiro’ que caracterizou a doutrina do republicano. Antony Blinken, nomeado chefe da Diplomacia, é um paladino do multilateralismo; como Jake Sullivan, que trabalhou para Hillary Clinton no Departamento de Estado e será assessor de Segurança Nacional. Antigos membros da Administração de Barack Obama, ambos encarnam a doutrina, ou melhor, o estilo, que na época um funcionário democrata resumiu como “liderar por trás” no caso da Líbia e que muitos de seus detratores usaram como argumento de crítica. A própria criação de um czar do meio ambiente ―o ex-secretário de Estado John Kerry― é o sinal definitivo de que a era Biden tentará reverter boa parte das políticas de Trump, que por sua vez desmantelou os planos ambientais de Obama.
“Esta é uma equipe que manterá nosso país seguro e é uma equipe que reflete que os Estados Unidos estão de volta. Prontos para liderar o mundo, não para se retirar dele. Prontos para enfrentar nossos adversários, não para rejeitar nossos aliados e prontos para defender nossos valores”, destacou Biden durante a cerimônia de apresentação de seus primeiros indicados, em Wilmington (Delaware), a cidade do presidente eleito, de onde desenha o futuro Governo. De fato, acrescentou o democrata, “nas conversas por telefone que tive com líderes mundiais desde que venci as eleições, fiquei surpreso com o quanto esperam que os Estados Unidos recuperem o papel histórico de líder mundial”.
As intervenções posteriores ressaltaram essa vocação. Blinken defendeu que os Estados Unidos devem se comportar com “humildade e confiança” no mundo. Humildade, disse ele, porque eles não podem “resolver os problemas sozinhos e que é preciso cooperar com outros países”. E confiança porque, apesar disso, os Estados Unidos, na sua melhor versão, “são o país com maior capacidade de unir o resto para enfrentar os desafios do nosso tempo”. Alejandro Mayorkas, que será o primeiro hispânico a dirigir o Departamento de Segurança Interna, disse que os Estados Unidos devem “avançar” em sua “orgulhosa história” como país de “boas-vindas”. Kerry prometeu que Biden “confiará em Deus”, mas “também na ciência”. “E a afro-americana Linda Thomas-Greenfield, nomeada embaixadora nas Nações Unidas, proclamou: “O multilateralismo está de volta. A diplomacia está de volta. Os Estados Unidos estão de volta”.
Voltar, regressar. Esses foram alguns dos verbos mais repetidos. Até agora os nomes apontam mais para a restauração de uma era do que para o início de outra. Nenhum dos altos cargos tornados públicos significou uma integração dos setores mais progressistas do Partido Democrata, embora haja nomeações pendentes. O círculo do senador esquerdista Bernie Sanders fez saber que o veterano político de Vermont gostaria de ser secretário do Trabalho e outras fontes fizeram circularam neste outono a candidatura da senadora Elizabeth Warren como possível secretária do Tesouro, embora a própria Warren tenha comemorado a nomeação de Janet Yellen.
O Gabinete de Biden deve ser referendado pelo Senado, que atualmente tem maioria republicana, e perfis demasiado inclinados à esquerda enfrentariam dificuldades. Marco Rubio, senador da Flórida e candidato à presidência em 2016, adotou um tom trumpiano de crítica, agitando a bandeira antiestablishment. “Os escolhidos por Biden para o Governo frequentaram as universidades da Ivy League [de elite], têm bons currículos, vão às conferências certas e serão educados cuidadores do declínio dos Estados Unidos”, escreveu em sua conta de Twitter Rubio, que se apresenta como aspirante a manter o legado trumpista para 2024. “Apoio a grandeza dos Estados Unidos e não tenho interesse em voltar à ‘normalidade’ que nos deixou dependentes da China”, acrescentou.
Na realidade, o vínculo dos futuros membros do Governo, além de Biden, com a nata da educação universitária norte-americana ―seja este um sintoma melhor ou pior― é um dos poucos elementos de continuidade entre a era Trump e a que Biden começa a esboçar, pelo menos por enquanto. O secretário de Estado da atual Administração republicana, Mike Pompeo, formou-se em Harvard; o secretário do Tesouro, Steven Mnuchin, também, e o procurador-geral William Barr, em Columbia, por exemplo. O próprio presidente Trump estudou na escola de negócios Wharton, da Universidade da Pensilvânia, membro do seleto grupo de oito universidades que fazem parte da Ivy League.
Com a transferência de poderes finalmente iniciada, o dirigente republicano cumpriu nesta terça-feira um dos últimos ritos presidenciais que o aguardam, o perdão de dois perus por ocasião do Dia de Ação de Graças, que se comemora nesta quinta-feira. Um Trump ciente de que o fim está próximo aproveitou o discurso para lançar um apelo a favor da “América primeiro” que marcou o seu tempo e que, disse ele, “não deveria ser abandonada”.
Embora continue sem aceitar publicamente o resultado eleitoral e ameace uma nova intentona nos tribunais, sua sorte está decidida. Se havia alguma dúvida, basta ver como a Bolsa de Valores de Nova York reagiu na terça-feira à luz verde que o republicano acabou dando na noite anterior para que todos os protocolos de transição de um Governo a outro fossem finalmente ativados. O Dow Jones, um dos índices de referência de Wall Street, bateu recorde impulsionado pelo cenário de estabilidade que se abre na maior potência mundial depois de vários dias de otimismo com as notícias sobre as vacinas contra o coronavírus. Enquanto isso, Pensilvânia, Nevada e Carolina do Norte se juntaram aos Estados que já confirmaram os resultados. A era Trump começa a se desfazer.
Monica De Bolle: A transição
Começo da transição do governo Biden deixa claro que os surtos de anomalia aguda vêm e vão
No fim, as profecias mais pessimistas sobre “o fim da democracia americana”, entoadas com ar de gravidade por diversos analistas nos EUA e no Brasil, não se confirmou. E era mais do que esperado que não se confirmasse. Como escrevi tanto neste espaço quanto em coluna para a revista Época, Donald J. Trump gosta de quebrar porcelana, mas, quando se trata das instituições deste país onde vivo há muitos anos, entre idas e vindas, tudo funciona conforme se espera.
O Judiciário descartou praticamente todas as tentativas de Trump de subverter as eleições, muitas das quais risíveis. Cenas absurdas marcaram as semanas que transcorreram desde 3 novembro, e a elas voltarei em um instante. Além do Judiciário, as legislaturas estaduais, os responsáveis pela certificação das eleições, entre outros, não se deixaram abalar pelas investidas do ainda presidente, que já havia desistido de governar para se entregar a tentativas esdrúxulas de invalidar as eleições e a rodadas de golfe nos fins de semana. Prevaleceu o que prevaleceria: a vitória do presidente eleito, o democrata Joe Biden.
Para falar sobre a transição de Biden, é preciso discorrer sobre os absurdos que testemunhamos desde a coletiva no estacionamento da hoje famosa Four Seasons Total Landscaping. Para quem não se lembra do episódio, ele aconteceu no dia em que Biden foi declarado vencedor pelos principais veículos de notícias. Nesse dia, Rudy Giuliani, advogado de Trump, convocou a imprensa para falar sobre a estratégia jurídica da campanha. Desafortunadamente para ele – para muitos foi uma delícia –, alguém da equipe apontou e acertou no Four Seasons errado. Por força do erro, a entrevista se deu não no sofisticado hotel, mas em um dilapidado estacionamento que fica entre o crematório e a “Ilha da Fantasia”, nome do sex shop ao lado. A Four Seasons Total Landscaping desde então faz sucesso com a venda de camisetas e máscaras protetoras com dizeres variados.
O segundo episódio dentre aqueles absurdos se deu na semana passada, quando um Giuliani de aparência desarranjada suava em frente às câmeras, a tinta do cabelo escorrendo pelas bochechas. A imagem foi menos lúdica do que a do famoso estacionamento, mas, no conjunto, os dois episódios ilustram bem por que o ar grave no trato do resultado das eleições e as sentenças de morte da democracia eram descabidos. O que havia era não um ato ominoso, mas uma chanchada, algo burlesco.
Na segunda-feira, a agência responsável liberou os recursos federais e deu permissão para que a transição se inicie. Mas Biden não está perdendo tempo. Antes mesmo de ser “oficializada” a troca de comando, já tinha se reunido com aqueles que pretendia indicar para os cargos mais importantes. Em pouco mais de um par de dias, anunciou quem seriam os principais assessores da Casa Branca, quem ocuparia a chefia do Departamento de Estado, do Tesouro, da Segurança Nacional, entre outros. Para o Departamento de Estado, escolheu Antony Blinken, diplomata de carreira, tarimbado e experiente tanto em assuntos externos quanto em temas de segurança nacional. O presidente eleito sinaliza, assim, que seu governo retomará as rédeas do multilateralismo achincalhado por Trump e por adeptos da tese do globalismo malvado mundo afora. Tal grupo inclui vários membros de alto escalão do governo Bolsonaro, gurus de seus filhos, além de seus filhos.
Para o Tesouro, Biden chamou Janet Yellen. Yellen foi a primeira mulher a presidir o Fed, durante o governo Obama. Agora ela será a primeira mulher a chefiar o Tesouro. Tive o prazer de conhecê-la e estar com ela em várias ocasiões aqui em Washington, tanto em palestras no Peterson Institute for International Economics, onde trabalho, quanto em ocasiões mais prosaicas. Yellen era frequentadora assídua de uma cafeteria onde eu costumava almoçar antes da pandemia. Sempre em companhia ilustre, a economista nunca deixou de me cumprimentar. Yellen reúne qualidades únicas: é uma acadêmica de peso, além de uma grande gestora de política econômica. Sua visão sobre os males que afligem os EUA passa por um entendimento sofisticado e abrangente das mazelas estruturais responsáveis pela desigualdade no país. É de alguém como ela que precisamos na futura liderança do Ministério da Economia.
A transição de Biden, ainda que a pandemia esteja se agravando por aqui, tem deixado claro algo que precisa ser internalizado também no Brasil. Os surtos de anomalia aguda, os gravíssimos acidentes históricos representados pela ascensão de Trump e de Bolsonaro, são parte da história. Vêm e vão. O Brasil não está destinado a perecer nas mãos da incompetência, assim como não o estavam os EUA. Tudo muda. Tudo está sempre em transição.
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
El País: Derrota de Trump abala o populismo no mundo, mas não o derruba
Os Governos e partidos da Europa e da América Latina que recebem com frustração o afastamento de sua grande referência continuam desfrutando de considerável popularidade
A saída de Donald Trump da Casa Branca deixou os movimentos populistas sem sua liderança mais visível no poder mundial. Alguns líderes e Governos confiavam com entusiasmo na reeleição do presidente dos Estados Unidos, com destaque para Hungria, Polônia e Brasil. Não saiu como esperavam. Mas sua derrota está longe de ser o fim das tendências eleitorais que nos últimos anos colocaram os partidos de extrema direita no comando de vários executivos ou na liderança da oposição.
A vitória de Trump em 2016 foi um presente para líderes como Jair Bolsonaro no Brasil, Viktor Orbán na Hungria, Vladimir Putin na Rússia,Narendra Modi na Índia e Rodrigo Duterte nas Filipinas. O presidente do país mais poderoso do mundo ingressou em um clube de contornos difusos formado por dirigentes nacional-populistas. “Isso complica um pouco suas vidas porque eles perdem seu ídolo”, diz o analista Oliver Stuenkel, colunista do EL PAÍS, que acrescenta: “É óbvio que eles vão analisar os erros que Trump cometeu e que farão o que for preciso para evitá-los. Trump não tinha a disciplina necessária para permanecer no poder. Com um pouco mais de disciplina, de tenacidade, de pragmatismo, poderia ter vencido as eleições”.
Na Europa, em particular, tanto os partidos nascidos antes da vitória do presidente dos Estados Unidos em 2016 como aqueles que cresceram no rastro de seu mandato continuam a gozar de uma importante parcela de popularidade, como é o caso de Orbán. E embora o drama da covid-19 tenha deixado em segundo plano seus proclamas identitários e xenófobos, analistas alertam que a tremenda ressaca econômica e social que a pandemia deixará poderá revitalizar a força eleitoral de partidos como o Reagrupamento Nacional, na França, a Liga na Itália, a Alternativa pela Alemanha (AfD) e o Vox, na Espanha.
A vitória de um político com o perfil de Trump há quatro anos teve mais repercussão entre os populismos do que a derrota agora do republicano. Pawel Zerka, analista do Conselho Europeu de Relações Exteriores, acredita que o ímpeto de 2016 sobreviverá à saída do atual inquilino da Casa Branca “porque Trump mostrou que não há tabus e isso torna mais elegíveis os populistas europeus ou de qualquer outra parte do mundo”.
Além do mais, a hidra populista agora tem muito mais cabeças, tanto visíveis como soterradas. E sua influência não se limita mais aos extremos do arco político, pois também está no cerne das formações tradicionais à direita e à esquerda. Tanto o Partido Popular Europeu (PPE) como os Socialistas (S&D) e os Liberais (Renew) abrigam grupos e líderes claramente identificados com a corrente populista mundial que entre 2016 e 2018 assumiu o poder nos Estados Unidos, Brasil e Filipinas, ficou às portas do Governo na Holanda e na Itália e conseguiu a saída do Reino Unido da UE.
“Sofreram um duro golpe com a derrota de Trump, mas o trumpismo e o populismo continuam vivos”, concorda Shada Islam, analista e fundadora do New Horizons Project, uma empresa de consultoria e serviços estratégicos com sede em Bruxelas. Islam acredita que os partidos tradicionais cometeriam um erro se dessem por derrotadas as candidaturas eleitorais populistas. E recomenda que a presença de Joe Biden na Casa Branca seja aproveitada “para se estabelecer uma corrente transatlântica progressiva que se contraponha à articulação internacional que o populismo organizou durante o mandato de Trump”.
A pressão populista no Velho Continente atingiu seu auge entre 2016 e 2019: o Brexit se impôs no referendo do Reino Unido, a extrema direita de Marine Le Pen parecia estar às portas do Eliseu na França e a de Geert Wilders aparecia com possibilidades de assumir o Governo da Holanda. O líder da extrema direita italiana, Matteo Salvini, alcançou a vice-presidência do Governo (vice-premiê) de seu país. Além disso, Steve Bannon, ex-conselheiro de Trump, agora caído em desgraça por seus problemas com a Justiça, desembarcou na Europa com a intenção de encorajar uma onda populista que arrasasse nas eleições para o Parlamento Europeu.
Mas as previsões mais catastróficas não se concretizaram. A vitória de Emmanuel Macron na França marcou um ponto de inflexão no avanço dos populistas, que também não conseguiram se tornar uma força-chave no Parlamento europeu. Bannon partiu em retirada. E Salvini caiu do Governo por um erro de cálculo eleitoral. A reeleição de Trump significaria o fim da sequência de reveses. Mas a maré de votos democratas impediu seu segundo mandato, apesar do bom resultado obtido por ele.
“Uma das consequências positivas do populismo é que provoca uma grande mobilização do restante do eleitorado”, diz Zerka. Ele recorda que a grande participação nos Estados Unidos também ocorreu nas eleições presidenciais de julho na Polônia, onde o populismo nacionalista liderado por Jaroslaw Kaczynski continua vencendo as eleições, mas se depara com uma resistência popular cada vez maior.
A Europa Central e do Leste se tornou um dos principais celeiros do voto populista no âmbito da UE. E o único onde os dirigentes mais próximos de Trump estão no poder, seja de forma arraigada, como Orbán na Hungria, ou de maneira instável, como Janez Jansa na Eslovênia. Tanto Orbán quanto Jansa pertencem ao PPE. Mas suas estratégias políticas são muito mais semelhantes ao populismo de Trump do que ao conservadorismo tradicional da primeira-ministra alemã, Angela Merkel.
“Sem dúvida, a vitória de Biden complicará a futura atitude política de líderes como Orbán ou Jansa”, prevê Boris Vezjak, filósofo e professor da Universidade de Maribor, na Eslovênia. Vezjak acredita que a Hungria, a Eslovênia e outros países da Europa Central terão mais dificuldade em continuar com políticas que, na opinião deste filósofo, “defendem novas formas de autoritarismo e a chamada democracia iliberal, com a liberdade individual limitada e subordinada a uma cultura nacional e à tradição”.
Os populistas europeus perderão, de cara, o incentivo que recebiam da Administração Trump por meio de seus embaixadores e enviados no Velho Continente. “Os embaixadores de Trump se dedicavam a propagar o populismo, a insultar a UE e a tentar erodir o sistema democrático em geral”, acusa Islam. Talvez o mais beligerante de todos os diplomatas procedentes de Washington tenha sido Richard Grenell, estrategicamente colocado em Berlim e enviado especial aos Bálcãs para mediar o conflito entre a Sérvia e Kosovo. Grenell chegou a ser descrito na Alemanha como “uma máquina de propaganda tendenciosa”. Assim que chegou a Berlim e em meio à ascensão da AfD, de extrema direita, Grenell afirmou que parte de sua tarefa como diplomata era “dar poder a outras forças conservadoras na Europa”, aludindo à substituição de partidos tradicionais como o de Merkel.
A perda do incentivo diplomático de Washington e do apoio financeiro que Bannon tentou canalizar pode enfraquecer os populistas europeus. Entre os potenciais prejudicados está o atual primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, que, embora não se enquadre na classificação de populismo puro, mostrou sem rodeios sua boa sintonia com Trump. Depois do Brexit, Johnson esperava chegar a um rápido e vantajoso acordo comercial com os Estados Unidos, graças a essa relação privilegiada com a Casa Branca, que obrigasse a UE a aceitar termos semelhantes. O pacto de Londres com Washington não chegou e a entrada de Biden deixa essa possibilidade ainda mais distante, o que forçará Johnson a ajustar sua posição negociadora com Bruxelas a menos de 50 dias da consumação, em 31 de dezembro, da saída do Reino Unido da UE.
Zerka também acredita que os ultraconservadores norte-americanos vão se concentrar nos próximos quatro anos na oposição a Biden e na tentativa de retornar à Casa Branca, o que deixará líderes próximos a Trump, como Johnson, Orbán e Kaczynski, sem interlocutores disponíveis em Washington. Islam, por sua vez, está convencida de que “a colaboração populista transatlântica se intensificará porque essas forças têm uma agenda de longo prazo e a experiência dos Estados Unidos lhes mostrou que aquelas que ainda não tomaram o poder podem fazer isso”.
Os analistas concordam em que a grave crise econômica causada pela pandemia, cujo maior impacto poderia ocorrer no primeiro semestre de 2021, dará ao populismo europeu a oportunidade de recuperar o terreno perdido. Nos últimos meses se viu deslocado pelas medidas de ajuda emergencial e de estímulo fiscal adotadas pela maioria dos Governos. “Mas se a pandemia se prolonga, a frustração aumentará e os líderes populistas estão cientes de que poderão transmitir sua mensagem”, prevê Zerka. Sem Trump e com a pandemia no meio, o populismo europeu está abalado, mas não afundado. Somente agachado.
Revés para Bolsonaro
Fora da Europa, o Brasil é um dos principais expoentes do populismo. O resultado eleitoral dos Estados Unidos representa para Bolsonaro, além de um descontentamento pessoal, um revés político e diplomático. Primeiro, perde seu aliado mais estratégico e poderoso. E também “a narrativa de que esta é uma espécie de Governo do futuro, na vanguarda do processo político, foi derrotada”, explica Oliver Stuenkel, da Fundação Getulio Vargas. Uma boa notícia para os que acreditam na democracia e nas sociedades abertas.
A chegada de Trump à Casa Branca em 2017 deu asas à vitória eleitoral de Bolsonaro, seu discípulo mais fiel, mas não é o único fator que a explica. O brasileiro se encaixa perfeitamente na tradição do caudilho latino-americano. A primeira consequência para o Brasil de Bolsonaro é que, sem um Trump no poder atraindo quase toda a atenção, o escrutínio sobre o gigante latino-americano aumentará. E “com Biden apoiando o multilateralismo e o meio ambiente, o custo da atuação radical do Bolsonaro no exterior vai aumentar muito”, acrescenta o analista.
Mas moderar suas posições dentro e fora do Brasil implica um desgaste do apoio fundamental que lhe dão seus partidários mais extremistas. A política externa brasileira deu um giro enorme neste biênio para focar em questões que, em sintonia com a Casa Branca trumpista, ativam sua base eleitoral mais leal, como as críticas pontuais e estridentes à China, o alinhamento com Israel, a defesa de valores conservadores cristãos, a batalha contra o feminismo e os direitos das minorias.
O Brasil ficará isolado como nunca antes, mas a popularidade do presidente tem melhorado, apesar de sua recusa explícita em administrar a pandemia que causou mais de 160.000 mortes, enquanto os desempregados agora já são 14 milhões. Bolsonaro deu mostra de seu instinto político ao aprovar rapidamente um dos maiores pacotes de ajuda pública do mundo, o que amorteceu o golpe e fez sua popularidade disparar.
Outro grande aliado de Trump na América Latina é Andrés Manuel López Obrador, no México. A vitória de Biden abalou a política externa do Governo mexicano, que mantém sua recusa em felicitar o democrata, informa Jacobo García. A reação de Trump após a derrota remete ao protesto público que López Obrador empreendeu em 2006, quando perdeu a eleição presidencial para Felipe Calderón por uma estreita margem de 250.000 votos e mobilizou milhares de seguidores nas ruas. Isso provocou uma crise institucional sem precedentes.
Ao mesmo tempo, a derrota de Trump exige de López Obrador um jogo de cintura política incomum para ele. O presidente terá de reciclar as boas relações que estabeleceu com Trump, a quem sempre se refere em termos elogiosos como um presidente respeitoso. As boas relações que afirma ter com ele significaram, no fundo, suportar em silêncio cada um dos ataques de Trump e permitir que o republicano usasse desde sua primeira campanha em 2016 os insultos ao México como forma de somar votos entre o eleitorado mais racista.
Fernando Gabeira: Tudo que é estúpido se desmancha no ar
Alívio é anterior à derrota de Trump. Ele começa na prisão de Queiroz
No auge da quarentena, pensei que a última luta de minha vida seria contra um governo que destrói a natureza, a autoestima e a imagem internacional do Brasil. Confesso que dramatizei. Sinto-me aliviado agora e ouso fazer planos mais ambiciosos para depois da chegada da vacina.
O marco temporal dessa sensação de alívio é anterior à importante derrota de Donald Trump. Ele começa na prisão de Fabrício Queiroz. Ali emergiu com clareza o esquema de financiamento de Bolsonaro e seu clã. Ele não teria mais condições de pregar o fechamento do Congresso ou do STF. Os próprios militares, apesar de ambíguos até ali, não o seguiriam na aventura.
Bolsonaro não teve outro caminho além de buscar aliados no Congresso, precisamente aqueles para os quais o desvio de dinheiro público não é um pecado capital. E de se aproximar desse tipo de juiz brasileiro que não hesita em absolver quando há excesso de provas contra o acusado.
A eleição de Biden resultou de uma ampla compreensão de que era necessária uma frente para derrotar Donald Trump e o Partido Republicano. A própria esquerda dos democratas, que vive um momento de ascensão, decidiu conceder para que a vitória fosse possível.
Ao término das eleições municipais, comecei a duvidar se era mesmo necessária uma frente para derrotar Bolsonaro. A construção de um instrumento como esse dá muito trabalho. É preciso constantemente se livrar dos caçadores de hereges, como chamava Churchill os que dentro de uma frente ampla estreitam e intoxicam o espaço com uma permanente lavagem de roupa suja.
E se Bolsonaro se derreter com a rapidez com que se derrete Russomanno em suas campanhas? Ou mesmo se for resiliente como Crivella e chegar ao segundo turno com um índice de rejeição tão alto que perca para qualquer adversário?
Não consigo precisar o ritmo, mas acho que Bolsonaro toma decisões estúpidas diariamente e que ele vai se desmanchar no ar. Quando o vi selecionando uma lista de vereadores para apoiar, pensei: perdeu.
Não adianta conferir na urna se Wal do Açaí foi ou não eleita. Um presidente que se dedica a isso de certa forma está apenas dizendo que é pequeno demais para o cargo. Na verdade, essa é sua mensagem cotidiana.
A constatação, no entanto, não pode desmobilizar. Bolsonaro continua à frente de uma política anticientífica que pode nos custar mais vidas no combate ao coronavírus.
A inexistência de uma frente ampla não significa que ela não possa ser erguida em cada momento em que a democracia for claramente ameaçada.
Da mesma maneira, o fracasso de Bolsonaro não significa que possa ser subestimado. A extrema-direita vai ocupar um espaço, embora muito menor do que ocupou nas eleições de 2018. Assim como na França, ela pode também trocar de líder para se modernizar.
O quadro eleitoral na maior cidade do país — Covas/Boulos — nos remeteu à clássica polarização do período democrático. Ilusório também pensar que tudo será como antes.
O primeiro e grande tema de reflexão é este: Bolsonaro dissolve-se no ar, mas as condições que o fizeram ascender ao governo continuam vivas.
Este período dominado pelo discurso e prática da estupidez deveria ser usado para uma profunda crítica do processo de redemocratização. Mesmo sem a construção de uma frente ampla, a proximidade do abismo nos revelou como somos vulneráveis e semelhantes no ocaso da democracia.
Os Estados Unidos abriram o caminho livrando-se do grande pesadelo. Trilhar esse terreno minado será também de grande utilidade para o Brasil.
Afinal, são fenômenos políticos em realidades diferentes, mas partem de alguns pontos convergentes, como a aversão às iniciativas multilaterais.
Imitado por Bolsonaro, o isolamento americano abriu um imenso espaço. Biden representa uma correção de rumos, mas seria bom lembrar o tempo perdido: 15 nações asiáticas e da Oceania, representando um terço do PIB mundial, acabam de celebrar um acordo comercial de grande envergadura.
Aqui Bolsonaro briga com a Europa para defender grileiros, incendiários e contrabandistas de madeira. Aqui a Terra é plana, a hidroxicloroquina fabricada pelo Exército é remédio contra a Covid-19. Até quando não sei. Não passa de 2022, estou seguro.
Folha de S. Paulo: Com derrota de Trump e fracasso nas eleições, militares recomendam moderação a Bolsonaro
Presidente é aconselhado a rever tom sobre coronavírus e firmar alianças com partidos de centro
Julia Chaib e Ricardo Della Coletta, Folha de S. Paulo
Integrantes do Palácio do Planalto e do núcleo militar do governo avaliam que a derrota de Donald Trump nos Estados Unidos e o resultado das eleições serviram como recados ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e indicam que ele terá de fazer adaptações para triunfar nas urnas em 2022.
O principal aprendizado, avaliam fardados, é que a população passou a rejeitar extremos, e discursos inflamados em relação à pandemia podem levar a queda de popularidade.
A análise de aliados de Bolsonaro é que a postura de Trump durante a crise sanitária foi decisiva para sua derrota.
Por isso, Bolsonaro deveria abandonar ou ao menos moderar discursos como o de que o Brasil precisa deixar de ser "um país de maricas", sob pena de perder apoios até mesmo dentro das Forças Armadas.
No lugar de fazer acenos à base mais ideológica de seus eleitores, o principal objetivo do presidente deve ser, pregam auxiliares próximos, trabalhar para aprovar medidas no Congresso que movimentem a economia e façam o Brasil reagir à crise causada pela pandemia.[ x ]
A chave para a reeleição, afirmam assessores presidenciais e políticos experientes no Congresso, estará na economia .
Além da derrota de Trump para o democrata Joe Biden, não reconhecida nem pelo presidente nem pelo Itamaraty, a eleição municipal teve como grandes vencedores os partidos de centro e centro-direta.
O MDB foi o líder no ranking de prefeituras obtidas por partido. Já PP e PSD, duas siglas do chamado centrão, e DEM foram as que mais ascenderam em número de municípios governados pelo país.
Em outra frente, o pleito mostrou encolhimento do PSDB e do PT pelo país e também aponta o relativo fracasso do PSL, sigla pela qual Bolsonaro se elegeu presidente.
O próprio presidente viu a maioria dos candidatos que apoiou fracassar no pleito.
Nas grandes cidades, apenas Marcelo Crivella (Republicanos), no Rio de Janeiro, e Capitão Wagner (Pros), em Fortaleza, foram para o segundo turno.
Essa derrota reforçou no Planalto a avaliação de que o discurso radical está perdendo espaço na população e, por isso, aconselham Bolsonaro a moderar o tom.
Em 10 de novembro, na semana da derrota de Trump, Bolsonaro afirmou que o Brasil precisa "deixar de ser um país de maricas" ao enfrentar o coronavírus.
"Tudo agora é pandemia. Tem que acabar com esse negócio. Lamento os mortos, todos nós vamos morrer um dia. Não adianta fugir disso, fugir da realidade, tem que deixar de ser um país de maricas", disse.
Também fez alusão à vitória de Biden. Sem citar o nome do presidente eleito dos Estados Unidos, Bolsonaro citou a necessidade de ter "pólvora" para fazer frente a candidatos que ameacem sanções pelo desmatamento da Amazônia.
"Assistimos há pouco a um grande candidato à chefia de Estado dizer que, se eu não apagar o fogo da Amazônia, levanta barreiras comerciais contra o Brasil. E como é que podemos fazer frente a tudo isso? Apenas a diplomacia não dá, não é, Ernesto [Araújo, chanceler]? Quando acaba a saliva, tem que ter pólvora, senão não funciona", continuou Bolsonaro. Em debate com Trump na campanha presidencial, Biden disse que "a floresta tropical no Brasil está sendo destruída".
A fala de Bolsonaro incomodou profundamente aliados, que temeram um retorno ao seu estilo mais agressivo. Irritou, principalmente, setores das Forças Armadas.
Militares se sentiram ridicularizados por Bolsonaro ter insinuado que o Brasil poderia usar armamentos e iniciar uma guerra contra os EUA.
A avaliação dos fardados é que, se o presidente fala para sua base mais radical e a entusiasma, pode perder o eleitor que votou nele em 2018 como uma alternativa ao PT.
Os mais ideológicos são cerca de 30% do eleitorado bolsonarista, calculam aliados. Estão com Bolsonaro mesmo nos momentos mais críticos.
São, portanto, considerados fiéis. O restante dos votos é daqueles que Bolsonaro precisa lutar para manter, avaliam.
Além das eleições municipais e de Trump, assessores palacianos dizem que é preciso olhar para os vizinhos do Brasil, que emitem sinais de alerta de que o projeto Bolsonaro pode fracassar se não for bem elaborado.
Auxiliares presidenciais citam o caso da Argentina, que no ano passado elegeu o esquerdista Alberto Fernández como presidente, tendo Cristina Kirchner como vice.
O candidato venceu Maurício Macri, apontado por Bolsonaro como um aliado.
Além de adaptar o discurso, aliados lembram que Bolsonaro precisa pensar em questões práticas, como a que partido ele se filiará.
Integrantes do Planalto atrelaram a derrota dos candidatos do presidente na eleição municipal, em parte, ao fato de Bolsonaro não ser filiado a partido algum.
Teria sido mais fácil, avaliam, lançar candidatos de uma sigla da qual o presidente fizesse parte e associar o número deles ao do presidente, como ocorreu com o número 17 em 2018.
Além disso, Bolsonaro não pode viajar para fazer campanhas pelo risco de ser acusado de desvirtuar viagens da Presidência para outros fins. Presidentes da República podem participar de campanhas políticas, mas essas viagens costumam ser bancadas pelas legendas da qual fazem parte.
Bolsonaro deixou o PSL no ano passado após atritos com a direção. Depois, investiu na criação da Aliança pelo Brasil, sigla que não saiu do papel.
Agora, volta à estaca zero e precisa escolher um novo partido. Boa parte dos aliados avalia que ele deve desistir da ideia de criar a Aliança e partir para uma sigla já existente.
Os auxiliares se dividem sobre se o presidente deveria ir para um partido menor ou um mais consolidado, como os do centrão.
Progressistas, Republicanos e o próprio PSL são opções. Na frente nanica, o Patriota é uma possibilidade. Bolsonaro quase se filiou à sigla em 2018.
Mesmo que não escolha um partido centrista, aliados afirmam que será importante para Bolsonaro se esforçar para manter as alianças com esses partidos —atualmente boa parte deles faz parte da base do presidente no Congresso.
A ideia é ter o apoio das legendas em 2022 e ainda garantir palanques em municípios importantes.
Cristovam Buarque: Dúzia de Trumps
Partidos sem estratégia para o Brasil
Na mesma semana em que Donald Trump afirmou sua vitória contra Biden, dirigentes do PT comemoraram vitória nacional do partido nas eleições municipais. Sofrem da mesma doença: o negacionismo. Mas não são os únicos. Nos mesmos dias, outros comemoraram o fim do PT, negando duplamente a realidade: primeiro, porque este partido tem uma base sólida, está longe de acabar; segundo, porque estes que comemoram a derrota do PT, não têm vitória a comemorar, ao negar a verdadeira dimensão de nossa crise de falta de coesão e rumo, e não terem alternativa para o futuro do país.
O PSOL que se apresenta como vencedor sobre o PT e os partidos conservadores, é uma simpática novidade no nome e na sigla, mas não traz novo rumo para um Brasil sintonizado com o futuro: eficiente na economia, justo na sociedade e sustentável na natureza. Tem a mesma matriz ideológica do PT, sem o ônus de ter passado pelo poder. É a mesma concepção negando as mudanças que ocorrem na civilização industrial: os limites ecológicos ao crescimento, o esgotamento fiscal do Estado, o reacionarismo do corporativismo, a globalização, a instantaneidade nas comunicações, a elitização das classes trabalhadoras do setor formal, a mudança no perfil da pirâmide etária, a robotização e a inteligência artificial. A vitória fez bem ao cenário nacional do presente, mas não aponta uma esperança para o futuro.
Na direita, os que comemoram a vitória são responsáveis, juntos com os democratas-progressistas, pelo Brasil com dramáticos e vergonhosos indicadores sociais, com uma economia ineficiente, sem competitividade, nem inovação, salvo no mesmo setor de 500 anos atrás, agricultura e mineração.
Nenhum dos vitoriosos, na direita ou na esquerda, tem projeto estratégico para o país. Negam responsabilidade nas décadas de atraso e de injustiça, sem vigor transformador, sem olhar para o futuro; imaginando que basta arrumar a sociedade atendendo aos interesses corporativos e identitários, graças a recursos ilimitados do Estado. Negam a realidade e acreditam em mágica. Os centros comemoram vitória sem perceber que são muitos e sem propostas, divididos entre uma parte que quer aderir e outra que quer derrotar o governo.
Não estão vendo a realidade: o estancamento econômico, o tamanho da tragédia social, nem o vazio de propostas para o futuro. Uma dúzia de Trumps.
*Cristovam Buarque foi ministro, senador e governador