Trump

Ruy Castro: O poder gera folgados

Donald Trump, depois de presidente, nunca mais abriu uma porta; Bolsonaro, a Constituição

Num dos melhores episódios da última temporada de “The Crown”, série da Netflix, há uma reveladora sequência envolvendo a personagem de Margaret Thatcher, primeira-ministra do Reino Unido, interpretada por Gillian Anderson. Ela é mostrada em casa, ao fogão, de panela na mão e avental, aviando o jantar, enquanto seus nervosos ministros, também na cozinha, tentam convencê-la a aprovar uma sanção à África do Sul, exigida pelos membros da Commonwealth. É uma decisão de que depende a unidade do Império Britânico. Mas Thatcher nem cogita interromper o preparo de sua omelete ou fritada para discutir o assunto. Eles saem de mãos abanando.

Margaret Thatcher foi uma das mulheres mais poderosas do século 20. Tomou amargas medidas econômicas, peitou a monarquia, declarou guerra à Argentina e ganhou todas. Era a Dama de Ferro. Se quisesse, teria oito chefs à sua disposição para cozinhar, mas preferia ela própria pilotar suas trempes. Em diversas ocasiões, a série a mostra como uma governante modesta, atenta a custos. Numa produção de luxo quase indescritível, seu guarda-roupa pouco varia, como se ela só tivesse mesmo dois ou três tailleurs.

Duvido que sir Winston Churchill, seu mais ilustre antecessor na vida real, tenha algum dia fervido uma água. Ou Evita Perón, “mãe dos descamisados”, dito “Por favor” a um serviçal. Ou Fidel Castro, fumante de charutos, esvaziado um cinzeiro. Ou Jacqueline Kennedy, a deusa, lavado uma calcinha.

O poder faz do mais consciencioso um folgado. Donald Trump, depois de presidente dos EUA, nunca mais abriu uma porta. Jair Bolsonaro, a Constituição.

Acabo de saber que, na dita sequência de “The Crown”, o objeto na mão da Dama de Ferro era uma travessa, contendo um prato a que, com esmero e ternura, ela estava aplicando rodelas de ovo cozido —uma paella, talvez. A dama podia ser de ferro, mas só do gabinete para dentro.


Fernando Gabeira: Mensagem na garrafa

Quais as fontes de Bolsonaro para dizer que houve fraude na eleição nos EUA? A Abin descobriu fatos que escaparam ao FBI e à CIA?

 ‘Minha vida é uma desgraça. É problema o tempo todo, não tenho paz para absolutamente nada. Não posso mais tomar um caldo de cana na rua, comer um pastel.’

Quando Bolsonaro fez esse discurso, os acólitos aplaudiram. Entendi, no entanto, que estava pedindo socorro, de alguma maneira.

No mesmo discurso, disse que não podia tomar um guaraná, pois era assediado pelos urubus da imprensa. Era uma referência ao guaraná Jesus, que descreveu com uma piada machista ao tomá-lo no Maranhão.

Os sensíveis olhos e lentes da imprensa contam uma história cotidiana de Bolsonaro. E as fotos e relatos que saem de Brasília indicam que Bolsonaro está, no mínimo, descompensado.

Ultimamente, sai das solenidades correndo e olhando para o relógio. Às vezes, para para olhar o céu, cercado de segurança; outras, acena para o vazio da Esplanada. Foi visto falando no ouvido de um dragão da Independência e, quando há mulheres bonitas em solenidade, lança olhares sedutores.

Quando veio ao Rio, fez uma declaração importante: houve fraude nas eleições dos EUA, e ele sabia por fontes próprias.

Ninguém se incomodou com isso. A imprensa considerou apenas mais uma frase de Bolsonaro, o Congresso silenciou, os próprios americanos ignoraram.

Quais foram as fontes de Bolsonaro? A Abin do general Heleno descobriu fatos que escaparam ao FBI e à CIA? Ou as fontes seriam agentes do esquema pessoal de Bolsonaro: um sargento na Filadélfia, um delegado em Las Vegas?

Bolsonaro não responde por suas palavras. Isso lhe dá uma sensação de onipotência que atenua, de certa forma, a vida desgraçada de cada dia. Às vezes, ele usa um imenso helicóptero para viajar dois quilômetros do Alvorada ao Planalto. É irracional, mas um brinquedo compensatório.

Na relação com a vacina, o mundo de Bolsonaro é muito cinzento. No mesmo dia em que declarava que não se responsabiliza pelos eventuais danos de uma vacina, anunciava-se algo diferente nos EUA: três ex-presidentes, Obama, Clinton e Bush, vão se vacinar diante das câmeras para estimular os americanos.

São atitudes opostas não apenas sobre a ciência, mas sobre a vida. Preocupa-me também a amargura de Bolsonaro, que se expressa tanto na hostilidade à natureza, na sua compulsão de destruir toda a estrutura legal de proteção ao meio ambiente.

Escrevi artigos mostrando que a destruição da Amazônia, no ritmo de agora, significa queimar dinheiro, perder inúmeras oportunidades econômicas que se abrem num mundo ambientalmente mais atento.

Começam a surgir no exterior, em núcleos militares que estudam o aquecimento global, textos que mostram que, além do desastre econômico, a destruição da Amazônia torna-se ameaça também para a segurança nacional do Brasil.

A dupla negação da Covid-19 e do aquecimento global não pode ser considerada uma reação normal num governante. Alguém dirá que isso aconteceu nos EUA com a passagem de Trump. Mas lá morreram mais de 3 mil pessoas num só dia, e há 100 mil internados. Os resultados são tenebrosos como são no Brasil, em menor escala.

Assim como a epidemia me fez reler “A peste”, de Camus, a vida desgraçada de Bolsonaro me arrasta para a peça “Calígula”, do mesmo autor.

Não há espaço nem tempo para analisar as duas trajetórias. Mas o “Calígula” de Camus, longe de fabulações vulgares, é uma excelente reflexão sobre o absurdo e o poder.

“E de que me serve ter as rédeas na mão, de que me serve meu espantoso poder, se não posso alterar a ordem das coisas, se não posso fazer com o que o Sol se ponha ao nascente, com que o sofrimento diminua, e os homens não morram?”

Bolsonaro é mais prosaico, não quer que o Sol se ponha ao nascente, apenas tomar um caldo de cana e comer um pastel na rua. Estamos longe do tempo dos imperadores romanos, isso não quer dizer que, numa democracia, a delicada relação entre equilíbrio mental e poder tenha sido superada.

Escrevo isso como se lançasse uma garrafa ao mar, gostaria muito que fosse apenas uma mensagem vazia, e que as suspeitas da loucura se voltassem contra mim nessa etapa crepuscular. Certamente, os estragos seriam menores.


Dorrit Harazim: Natal gordo

O ocupante da Casa Branca nem sequer precisa simular que trabalha

Natal não é para amadores, e poucos percebem os desvios que cometem quando hipnotizados pelo festivo arrastão. Basta citar um único excesso coletivo da vida brasileira a cada dezembro. Desde que as luzinhas de decoração vindas da China passaram a custar uma ninharia, elas engolem prédios, lojas, ruas, interiores de casas, postes e praças. Você acorda de manhã, e as árvores que até a véspera pareciam árvores sumiram. Viraram espantalhos, assombrações. Estão de tronco e galhos estrangulados por fileiras cerradas dessas luzinhas que piscam dia e noite, montadas com diligência para lhes esconder qualquer vestígio de natureza. Poderiam fazer parte de algum sonho natalino do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, mas não fazem mal a ninguém. Apenas deveriam ser usadas com mais temperança.

Nos Estados Unidos de Donald Trump, Natal é coisa séria. “Se eu me tornar presidente”, prometeu ao longo da campanha de 2016, “vamos voltar a nos cumprimentar desejando Feliz Natal, e podem esquecer o Boas Festas”. Equiparava esse cumprimento genérico e inclusivo a um ataque contra as tradições cristãs por parte de terroristas politicamente corretos. Também na campanha de 2020, o presidente alertou seus seguidores para o risco de o Natal estar sob ataque. Caso o democrata Joe Biden fosse eleito, ele seria capaz de abolir as festividades em todo o país.

Como se sabe, Biden venceu, será o segundo presidente católico dos EUA a partir de 20 de janeiro (John Kennedy foi o primeiro) e tem problemas concretos para lhe tirar o sono. Na questão natalina, Trump deveria ter olhado com mais afinco à sua volta, pois o perigo morava na própria Casa Branca. Fitas gravadas à sorrelfa em 2018, e vazadas este ano por uma ex- amiga da primeira-dama, atestam a impaciência de Melania com a tarefa que lhe cabia. Como o linguajar usado pela First Lady foi pouco festivo, cabem asteriscos. “Eu ralo pra c*** com essa coisa de Natal, apesar de ninguém dar p* nenhuma pro Natal ou pra decoração natalina. Mas sou obrigada a fazê-lo, certo?”, desabafou em tom de queixa por ter de responder a perguntas sobre crianças enjauladas na fronteira quando seu tempo estava sendo tomado pelo planejamento da decoração.

Naquele Natal, Melania, toda de preto para a filmagem enviada às mídias, inspecionou lentamente a obra finalizada, a começar pela galeria presidencial que decorara com 40 imensas árvores vermelho-sangue, destituídas de qualquer adereço. Em dois outros salões nobres da Presidência, foram instaladas 29 árvores cobertas só de ornamentos escarlates. Foi um auê, com a inevitável enxurrada de memes. Houve quem visse na decoração satânica um quê de Jack Nicholson em “O iluminado”, o clássico de Stanley Kubrick baseado no romance homônimo de Stephen King.

Esta semana o presidente e a primeira-dama inauguraram os festejos natalinos de 2020. Teve pompa, circunstância, não teve máscaras nem distanciamento social, e haverá várias recepções para convidados. Na Casa Branca, não é bem-vinda a lembrança de que o país está de joelhos pela Covid. A decoração deste final de feira foi mais convencional, mas nem por isso mais comedida — nada é excessivo, nenhuma exuberância é over para este casal presidencial.

O primeiro reinado de Trump termina em poucas semanas, e já passa da hora de o mundo não descartar como tolas bravatas a verborragia de superlativos do presidente. Eugene R. Fidell, pesquisador sênior da Escola de Direito da Universidade Yale, recomenda levar a sério alguns delírios verbais do comandante-em-chefe, sobretudo quando são repetidos à exaustão. Não raro Trump proclama de antemão exatamente o que pensa em fazer. E faz, pegando no contrapé o senso comum universal.

Em poucas semanas de entrincheiramento na Casa Branca após a derrota de 3 de novembro, ele conseguiu o impensável: emplacou uma narrativa ficcional de uma nota só — a eleição foi roubada — e mantém galvanizados os 74 milhões de americanos que o inundaram de votos. Dessa fantasia não arredará pé, até porque ela lhe permite deletar a realidade. É provável que historiadores do futuro tenham dificuldade em compreender como essa narrativa surrealista tenha durado mais do que cinco segundos na longeva democracia americana.

Mas é por meio dessa ficção que Trump já conseguiu arrecadar mais de US$ 200 milhões desde a derrocada nas urnas — oficialmente as doações se destinam a financiar a blitz judicial de um circo de advogados farsescos, que simulam reverter a alegada fraude. Em breve, porém, o mote “estamos tentando ficar mais quatro anos” precisará ser aposentado. As doações, então, se voltarão a uma hipotética “reeleição triunfal” em 2024.

Embora tudo isso seja ficcional, as doações, essas sim, são em dinheiro de verdade. Assim como são concretos os 75% do total já reservados para uso pessoal de Trump. Natal gordo, apesar da derrota. O ocupante da Casa Branca nem sequer ainda precisa simular que trabalha. Já conseguiu transtornar o país como seu vigarista-em-chefe.


Luiz Carlos Azedo: Como perder a guerra

Bolsonaro cria mais obstáculos para o desenvolvimento do país do que se imagina, pois aprofunda nosso atraso econômico e tecnológico e retarda a recuperação da economia

Quando invadiu a antiga União Soviética, Adolf Hitler já havia conquistado boa parte da Europa: além da Áustria, Tchecoslováquia e Polônia — o que deflagrou a Segunda Guerra Mundial —, a Noruega, a Dinamarca, a Bélgica, a Holanda, a França, a antiga Iugoslávia e a Grécia, além de ex-colônias europeias na África. A Operação Barbarrosa foi iniciada pelos alemães em 22 de junho de 1941 e mobilizou mais de três milhões de soldados. Sua intenção era conquistar a URSS em oito semanas. Três objetivos estratégicos foram estabelecidos por Hitler. Ocupar Moscou, a sede do governo; obter a rendição de Leningrado (São Petersburgo), a grande porta russa para o Ocidente; e controlar Stalingrado (antiga Tsarítsin, hoje, Volgogrado), para garantir petróleo em abundância. Foram passos maiores que as pernas. A 30 quilômetros de Moscou, que chegou a ser evacuada, os alemães foram repelidos; apesar da fome, a população de Leningrado resistiu até o cerco ser quebrado, em 1944. Estratégica para o controle do Cáucaso, área considerada vital para o abastecimento das tropas alemãs, em Stalingrado, a batalha foi a mais longa e sangrenta de toda a guerra, mudando seu curso.

Os alemães não tinham recursos suficientes para manter uma guerra de longa duração em território soviético, na qual exauriram suas energias. Além disso, a derrota em Stalingrado quebrou a aura de invencibilidade do Exército alemão, que acabou cercado e se rendeu. Cerca de 400 mil alemães, 200 mil romenos, 130 mil italianos e 120 mil húngaros morreram, foram feridos ou capturados. Dos 91 mil alemães feitos prisioneiros em Stalingrado, apenas 5 mil voltaram para a Alemanha. Os soviéticos sofreram cerca de 1,13 milhão de baixas, sendo 480 mil mortos e prisioneiros e 650 mil feridos em toda área de Stalingrado. Quando se rendeu, o comandante do 6º Exército alemão, marechal de campo Friedrich Paulus, referindo-se a Hitler, declarou: “Não tenho intenção de me suicidar por aquele cabo da Baviera”. Nunca antes um marechal de campo alemão havia se rendido numa frente de batalha; preferiam o suicídio à desonra. Ele havia cumprido as ordens de não se retirar de Stalingrado, a qualquer preço, mas acabou isolado, sem munição nem suprimentos.

Tem gente que considera a política uma guerra sem derramamento de sangue. Geralmente, trata os adversários como inimigos a serem exterminados. Entretanto, eles ressuscitam. Um dos três protagonistas da Conferência de Yalta, que dividiu o mundo em áreas de influência — ao lado de Franklin Delano Roosevelt (EUA) e Josef Stálin (URSS) —, o primeiro-ministro britânico Winston Churchill dizia: “A política é quase tão excitante como a guerra e não menos perigosa. Na guerra a pessoa só pode ser morta uma vez, mas na política diversas vezes.”

Frentes de batalha

Não por acaso, analogias de cunho militar são usadas na análise política. Por exemplo, a chegada do presidente Jair Bolsonaro ao poder resultou de uma “guerra de movimento” bem-sucedida na campanha eleitoral de 2018, uma espécie de “britzkrieg”. Na Presidência, manteve essa tática no primeiro ano de governo para ampliar seus poderes, até trombar com o Supremo Tribunal Federal (STF), que investiga o chamado “gabinete do ódio” (a disseminação de fake news e ataques a autoridades nas redes sociais por colaboradores encastelados no Palácio do Planalto) e o caso “rachadinhas” da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, no qual está envolvido o senador Flavio Bolsonaro (Republicanos-RJ). Desde então, opera uma “guerra de posições”, na qual tenta envolver as Forças Armadas, mobiliza os órgãos de controle do Estado, entre os quais o Ministério Público Federal (MPF), e pretende controlar o Congresso, o Judiciário e os grandes meios de comunicação de massa. Mutatis mutandis, foi essa estratégia de Wladimir Putin na Rússia para garantir sua longa permanência no poder.

O problema de Bolsonaro é que a verdadeira guerra está sendo travada em outros terrenos, nos quais não tem a menor chance de vitória. A primeira frente é a política ambiental, que nos levou a um grave litígio com a União Europeia, principalmente, com a Alemanha, a França e a Noruega. Os resultados de sua política são uma contradição em si mesma: quanto mais “passa com a boiada”, mais isolado internacionalmente fica.

A segunda, a crise sanitária, na qual Bolsonaro chegou a um ponto crítico, em razão do seu negacionismo: entrou numa guerra particular com o governador João Doria (SP), de São Paulo, por causa da vacina chinesa, e não tem mais como sair dela, a não ser se rendendo e comprando a CoronaVac, que já começou a ser produzida em grande escala pelo Instituto Butantan. Se não o fizer, a segunda onda da pandemia será uma tragédia ainda maior do que a primeira, porque a vacina de Oxford não está pronta e levará mais tempo para ser produzida pela Fiocruz e aplicada em massa.

A terceira frente é o não-reconhecimento da vitória do presidente norte-americano Joe Biden, que nos leva a um isolamento internacional sem nenhum precedente na História. Com isso, a política externa de Bolsonaro, como a ambiental e a sanitária, está em colapso. Em rota de colisão com a China, nosso maior parceiro comercial, agora ficou de mal com novo presidente dos Estados Unidos, o segundo parceiro, tudo em solidariedade ao presidente Donald Trump, que não se reelegeu. Essas três frentes de batalhas criam mais obstáculos para o desenvolvimento do país do que se imagina, pois aprofundam nosso atraso econômico e tecnológico e retardam a recuperação da economia.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/como-perder-a-guerrax/

Folha de S. Paulo: Trump implodiu direita intelectual e deixa legado populista

Mesmo derrotado, presidente ampliou votação entre negros e latinos e pode moldar futuro do Partido Republicano

Carlos Gustavo Poggio, Folha de S. Paulo

[RESUMO] Mesmo derrotado, presidente se firma como a maior referência simbólica do Partido Republicano desde Reagan. Rejeitado pela elite partidária, ele implodiu a vertente conservadora mais intelectual, impôs uma agenda nacional populista no lugar da liberal internacionalista e ampliou a votação de sua sigla na classe média pouco instruída e entre negros e latinos, o que pode levar a uma completa reformulação trumpista do partido.

As eleições de 2020 nos Estados Unidos confirmaram o diagnóstico que já havia ficado claro em 2016: os republicanos enfrentam um desafio demográfico, ao passo que os democratas estão diante de um dilema geográfico.

A dependência dos republicanos em relação ao eleitorado branco e mais velho em um país que se torna cada vez mais diverso tem sido um problema que há anos assombra as lideranças do partido. Por outro lado, o apoio aos democratas se concentra crescentemente nos grandes centros urbanos.

Como eles perceberam dolorosamente em 2016, em um país que elege presidentes via Colégio Eleitoral e não por voto popular, não basta ser mais votado: os votos precisam estar distribuídos nos lugares certos.

O futuro da política norte-americana vai depender de como ambos os partidos vão lidar com esses impasses. O resultado das urnas neste ano pode nos dar algumas pistas.[ x ]

O caminho para o Partido Democrata, como a vitória de Joe Biden deixou claro, é contar com um alto índice de comparecimento às urnas para aproveitar a vantagem demográfica —e torcer para que a margem de vitória nos grandes centros urbanos de estados-chave seja grande o suficiente para compensar a vantagem republicana no interior.

Pode parecer uma fórmula relativamente simples, mas depende de algum fator que mobilize o eleitorado. Em 2008, esse fator foi Obama. Em 2020, Trump. A má notícia para os democratas é que uma candidatura que gere o tipo de entusiasmo verificado em 2008 e 2020, seja por estímulos positivos ou negativos, não ocorre com frequência.

O desafio dos republicanos, porém, é bem mais complexo. Antes de mais nada, terão de lidar com uma profunda crise de identidade. Até 2016, a referência central do partido era o ex-presidente Ronald Reagan —reconheça-se, contudo, que mesmo antes da eleição de Trump esse apelo dava sinais de enfraquecimento.

Em 2010, Lindsey Graham, senador republicano pela Carolina do Sul, chegou a dizer que mesmo Reagan, fosse vivo, teria dificuldades em se eleger pelo partido naquela ocasião. Todavia, foi com a vitória de Trump que, pela primeira vez em quase 40 anos, surgiu uma figura para disputar a influência simbólica no partido.

Reagan subiu ao poder em 1980 depois de anos de articulação intelectual do conservadorismo norte-americano, a partir da fundação da revista National Review em 1955, por William Buckley Jr. Por outro lado, Trump é produto da implosão dessa vertente conservadora. A questão agora é o que os republicanos vão fazer com os cacos.

A captura trumpista do Partido Republicano ocorreu de baixo para cima e não no nível do establishment —que, a propósito, ainda tem dificuldades em lidar com a novidade. Um dos poucos apoios da elite partidária a Trump veio de Bob Dole, que disputou a eleição presidencial de 1996.

Mitt Romney, candidato em 2012, tem sido um dos maiores críticos de Trump entre os republicanos. John McCain, que morreu em 2018, também rejeitou o atual presidente no pleito de 2016, e a sua esposa fez campanha para Biden neste anoGeorge W. Bush tem adotado uma postura mais discreta, mas sabe-se que não votou em Trump nem em 2016 nem em 2020. O filho de Reagan chegou a declarar em entrevista recente que o pai ficaria horrorizado com o governo que se encerra agora.

Parte do apelo de Trump, contudo, reside justamente na rejeição a esse establishment. Ele soube identificar uma parcela significativa do eleitorado americano que não se sentia representada, por exemplo, pela globalização e seus acordos de liberalização comercial, por uma postura aberta com relação à imigração e por uma política externa assertiva de promoção dos valores americanos ao redor do mundo, mesmo que pela via militar.

Como alternativa a essa postura liberal internacionalista, Trump requentou um nacional-populismo que até então se encontrava às margens no Partido Republicano. Em 1992 e 1996, o representante dessa vertente foi Pat Buchanan, que concorreu às primárias republicanas nas duas ocasiões defendendo uma pauta de caráter nacionalista, isolacionista, protecionista, de combate ao multiculturalismo e fortemente anti-imigração.

Tudo isso estava na contramão dos valores defendidos pela elite republicana nos anos 1990. A rejeição à retórica de Buchanan ficou clara quando ele deixou a legenda e concorreu às eleições de 2000 pelo Partido Reformista. Com o slogan “America first” (“Estados Unidos em primeiro lugar”), obteve menos de 0,5% dos votos e hoje poucos se lembram de sua campanha.

Ajudado pelas novas ferramentas de mídias sociais, que não estavam disponíveis à época de Buchanan, e pelas sequelas da crise econômica de 2008, Trump reuniu uma nova coalizão eleitoral que se mostrou vencedora em 2016 e competitiva em 2020, mesmo com os problemas demográficos enfrentados pelo Partido Republicano.

Da base que sustentava o partido desde Reagan —formada principalmente por defensores do livre-comércio, neoconservadores que advogam uma política externa intervencionista e os conservadores sociais representados pelo eleitorado evangélico—, Trump preservou apenas este último grupo. Os dois primeiros permanecem como os principais críticos internos do trumpismo, mas a sua influência parece ter diminuído consideravelmente.

Para o lugar deles, Trump cooptou uma parcela significativa da classe média e de brancos sem ensino universitário que costumavam votar nos democratas, enfraquecendo a chamada muralha azul em estados como Wisconsin, Michigan e Pensilvânia.

Assim, quando Trump ressuscitou a agenda de Buchanan em 2016, encontrou uma audiência mais receptiva nos eleitores que se afastaram do Partido Democrata tanto por razões econômicas quanto culturais. Esse eleitorado passou a não enxergar diferenças significativas nas pautas econômicas dos dois partidos, dado que ambos levantavam a bandeira do livre-comércio, por exemplo.

Tal diferenciação deslocou-se então para o campo cultural, a partir da rejeição à agenda progressista na esfera dos valores, como a defesa de pautas identitárias e do aborto, e da percepção de que os democratas falavam apenas às elites costeiras, ignorando o interior do país. Nesse contexto, a adoção de uma linguagem politicamente incorreta por Trump ajudou a capturar esse eleitorado.

Não foi à toa que, na convenção republicana de 2016 em que foi sacramentado candidato, Trump voltou-se para o que chamou de os esquecidos pela elite política e bradou: “Eu sou a sua voz”.

O Partido Republicano deve responder agora se a coalizão reunida por Trump será uma divisão interna de relevo ou a nova base de toda a sigla. No médio prazo, parece descartada a hipótese de que a derrota neste ano signifique um retorno completo ao período anterior a 2016. O partido foi profundamente modificado pelo trumpismo.

A questão é de grau, ou seja, se o Partido Republicano irá se reformular completamente à imagem e semelhança de Trump ou se vai simplesmente absorver algumas mudanças, ao mesmo tempo que tenta preservar características da era pré-Trump.

Parte da resposta a essa pergunta passa por compreender quais lições os republicanos vão tirar de 2020, em especial no que se refere aos desafios demográficos —e elas não são óbvias.

Nas últimas oito eleições, da de 1992 à de 2020, os republicanos tiveram três vitórias (duas de Bush, em 2000 e 2004, e uma de Trump, em 2016), mas apenas a segunda de Bush também ocorreu no voto popular.

Desde 1964, nenhum candidato republicano em disputas presidenciais atingiu mais que 15% do voto negro —desde 1980, esse número tem flutuado entre 4% e 12%. Em 1992, um artigo na revista Political Science Quarterly indicava que os republicanos deveriam ter como meta capturar 20% do voto negro para permanecerem competitivos no futuro.

Em 2016, o partido obteve 8% do voto de negros com Trump. A estimativa para 2020 é de 12%, um crescimento de 50%, e apenas a terceira vez em 40 anos que os republicanos chegam a esse índice.
Se considerarmos somente homens negros, Trump chegou a 19%, bem próximo da desejada meta. Mesmo entre mulheres negras, Trump foi de 4% em 2016 para 9% em 2020, um incremento de mais de 100% nesse grupo.

Além disso, para serem eleitoralmente viáveis, os republicanos precisam se esforçar para atrair parcelas expressivas do eleitorado latino, o grupo minoritário que mais cresce nos Estados Unidos e que hoje representa parcela idêntica à do eleitorado negro: 13%.

Aqui também o trumpismo demonstrou ter algum apelo, conseguindo expandir a votação nesse grupo, de 28% em 2016 para 32% em 2020, o melhor índice para o partido em quase duas décadas, com ganhos expressivos em estados como Texas, Flórida e Nova York.

Assim como a expressiva votação obtida por Biden é em grande parte produto da rejeição a Trump, o desempenho de Trump entre alguns grupos demográficos pode ser mais uma rejeição da agenda democrata que um apoio explícito ao trumpismo. Afinal de contas, muitos eleitores negros e latinos, em especial os mais velhos, definem-se como conservadores.

A questão crucial sobre esses dados é se representam uma tendência ou se são pontos fora da curva. Ainda é cedo para responder. Uma hipótese plausível é que o aumento do apoio a Trump em determinados segmentos demográficos deve-se a uma percepção de melhora econômica, terreno em que a avaliação do presidente sempre foi relativamente boa.

Uma pesquisa do instituto Gallup publicada em setembro indicou que 56% dos americanos diziam que estavam em uma situação melhor que quatro anos atrás, um recorde desde que essa pergunta foi feita pela primeira vez, em 1984.

De qualquer forma, dado que muitos analistas estimavam que a retórica de Trump tenderia a afastar grupos minoritários, esses números apresentam um enigma a ser desvendado por estrategistas de ambos os partidos.

Se os republicanos concluírem que um efeito colateral não antecipado do trumpismo foi uma melhora no desempenho entre negros e latinos, isso pode ter impactos significativos para os rumos que o partido deve tomar a partir de 2021.

*Doutor em relações internacionais e especialista em política dos Estados Unidos, é autor de "O Pensamento Neoconservador em Política Externa nos Estados Unidos" (Unesp, 2010)


El País: Trump começa a preparar candidatura de 2024: “Vejo vocês em quatro anos”

Em ato com republicanos na Casa Branca, presidente insinua que voltará à linha de frente na próxima eleição presidencial

Amanda Mars, El País

Quando um presidente norte-americano vê seu tempo na Casa Branca se aproximar do final, começa a trabalhar no seu legado: criar uma fundação, abrir uma biblioteca, escrever memórias, esse tipo de coisa. Donald Trump parece estar decidido a romper também essa convenção e já aponta abertamente uma etapa pós-presidencial na linha de frente da luta política, com a possibilidade inclusive de voltar a disputar o cargo em 2024. “Foram quatro anos fabulosos, estamos tentando ter outros quatro anos. Se não for assim, vejo vocês em quatro anos”, disse na terça-feira à noite em uma festa de Natal antecipada com membros do Comitê Nacional Republicano, como mostra o vídeo do evento publicado no site Politico e corroborado pelo relato de vários presentes compartilhado com o canal Fox.

O encontro ocorreu horas depois de o secretário de Justiça, William Barr, impor o enésimo e mais duro revés até agora ao presidente em sua cruzada judicial contra a vitória eleitoral do democrata Joe Biden. Barr, importante aliado de Trump no Executivo, afirmou à agência Associated Press que o Departamento de Justiça não encontrou provas dessa fraude maciça que o republicano denuncia, ainda obstinado em não reconhecer que seu rival eleitoral foi eleito presidente. Entretanto, com a bandeira dessa batalha judicial contra uma suposta fraude generalizada, Trump arrecadou até agora cerca de 170 milhões de dólares, dos quais a maior parte acabou engrossando um comitê destinado a financiar suas futuras atividades políticas, sob o nome de Salvar a América.

É mais um sinal de que o magnata nova-iorquino não pensa em desaparecer do cenário político depois de 20 de janeiro, quando Biden assumirá o mandato. Ele quer manter mobilizados esses 74 milhões de pessoas que votaram nele. A possibilidade de uma nova candidatura de Trump em 2024 começou a ser mencionada pouco depois da votação de 3 de novembro, a partir de declarações de seu círculo, sob condição de anonimato. Também amigos e outras pessoas próximas à sua filha, Ivanka Trump, que desempenhou o cargo de assessora presidencial nestes quatro anos, afirmaram a diferentes veículos de comunicação que ela também cogita um voo próprio na política. Outros Trumps ―como Donald Júnior, o mais velho entre os homens, e Lara, esposa de seu filho Eric —já consideraram a possibilidade de se lançar a diversos cargos eletivos.

A declaração de terça à noite foi a primeira manifestação pública das futuras intenções de Trump, de quem, em todo caso, não se espera uma aposentadoria discreta em sua mansão de Mar-a-Lago, na Flórida. O perfil que ele adotar, mais ou menos influente, marcará o processo de transição a ser aberto no Partido Republicano para as próximas eleições, algo semelhante ao que o Partido Democrata viveu após sua derrota de 2016.


El País: Departamento de Justiça dos EUA não encontra prova de fraude capaz de alterar o resultado eleitoral

O procurador-geral William Barr, frequentemente apontado por servir aos interesses de Trump, inflige o último revés à ofensiva judicial do republicano

Amanda Mars, El País

Donald Trump sofreu nesta terça-feira sua enésima e provavelmente mais grave derrota até agora na batalha judicial que lançou contra os resultados eleitorais depois de brandir acusações infundadas de fraude. O procurador-geral dos Estados Unidos, William Barr, disse na terça-feira que o Departamento de Justiça não encontrou provas de nenhum caso de irregularidade de importância suficiente para reverter a vitória do democrata Joe Biden. Barr, muitas vezes criticado por servir aos interesses do presidente, frustra a estratégia da campanha de Trump, que continua sem reconhecer o presidente eleito Biden, apesar de ter perdido em todos os tribunais até agora.

“Até o momento, não vimos fraude em uma escala que pudesse ter levado a um resultado diferente na eleição”, disse Barr em declarações à agência Associated Press (AP), dando algo parecido com um tiro de misericórdia para na ofensiva legal do mandatário. Pouco depois da declaração da derrota eleitoral, apesar de se distanciar das teorias da conspiração de Trump e seu círculo, Barr o havia alentado instruindo os procuradores federais de todo o país a investigar acusações que fossem “claramente críveis” e afetassem o resultado. Essa intervenção foi atípica, uma vez que a supervisão do desenrolar das eleições é responsabilidade dos Estados.

Conforme explicou à AP, tais acusações não tinham fundamento. “Foi alegado que poderia haver fraude sistêmica e que algumas máquinas foram programadas para, basicamente, distorcer os resultados eleitorais. O Departamento de Segurança Interna e o Departamento de Justiça analisaram e, até o momento, não viram nada que comprovasse isso”, explicou o promotor.

Trump agitou o fantasma da fraude durante toda a campanha, alegando que a enxurrada de votos pelo correio e antecipados, que as autoridades de muitos Estados facilitaram por causa da pandemia, eram um terreno fértil para irregularidades. Quando Biden foi declarado vencedor, uma equipe jurídica liderada por Rudy Giuliani, assessor pessoal de Trump e ex-prefeito de Nova York, entrou com ações em todos os Estados decisivos para a derrota. As teorias da conspiração alcançaram graus insólitos. Giuliani e o advogado Sidney Powell chegaram a dizer que havia servidores alemães com informações sobre eleitores norte-americanos e um software criado na Venezuela “sob a direção de Hugo Chávez”, que morreu em 2013.

Enquanto todo o estratagema legal desmorona como um castelo de cartas, proliferam rumores sobre um futuro político com Trump na linha de frente. Seu círculo mais próximo deixou escapar que planeja voltar à carga e se apresentar como candidato em 2024, embora na ocasião terá adversários do partido que lhe disputarão o próprio trumpismo. Até então, parece que encontraram o relato idôneo de sua nova campanha, a do presidente despojado do cargo por um roubo.

O republicano arrecadou cerca de 170 milhões de dólares (cerca de 885 milhões de reais) desde 3 de novembro, de acordo com vários veículos de comunicação norte-americanos, graças a doações solicitadas para financiar a malsucedida batalha judicial, mas que também estão engrossando um fundo para suas atividades pós-presidenciais.


Luiz Werneck Vianna: Uma nova oportunidade e seus riscos

Em movimentos lentos, mas contínuos, uma nova era afirma seu caminho em meio a uma resistência de desesperados, como a de Donald Trump, que pretendem barrar o passo aos processos que prefiguram passo a passo a aparição de uma nova ordem nas coisas do mundo. Se esse tempo é de esperança ele também conhece riscos, como testemunha a atual onda de assassinatos de fins políticos e do recrudescimento das possibilidades de uma guerra nuclear. O capitalismo vitoriano a que se concedeu novo alento desde os anos 1970, primeiro com Thatcher, depois com Reagan e, na sua forma mais encorpada com Trump, que lhe difundiu em boa parte do mundo escorado pelos recursos vários de que dispunha, parece preferir o dilúvio a qualquer solução sem ele.

Aqui, na periferia, aguarda-se com fôlego preso a transmissão do governo de Trump a Biden, vitorioso nas eleições com larga margem de votos, quando se deve iniciar de fato a retomada do país da sua identidade e melhores tradições, a começar por sua agenda ambiental, ora posta a serviço dos proprietários de terras e dos interesses da mineração em solo amazônico. A partir daí, ter-se-á o ponto de Arquimedes para a regeneração da inscrição do país no cenário internacional aviltada pela figura anacrônica do chanceler que aí está. Como num jogo de dominó, seguem-se o tema crucial das desigualdades sociais tão bem posta pela candidatura de Guilherme Boulos à prefeitura de São Paulo, e sobretudo um largo debate entre as forças democráticas sobre o rumo a que o país deve perseguir na sucessão presidencial de 2022, se chegarmos até lá.

Não serão tempos fáceis os que temos pela frente, contudo certamente menos amargurados do que acabamos de deixar para trás com a sociedade impondo pela via eleitoral uma indiscutível derrota às forças anti-políticas e ao obscurantismo do governo Bolsonaro.  Em particular, pela crise econômica, patente no desemprego massivo que ameaça as condições de sobrevivência das classes subalternas, já sob os letais riscos da pandemia.

Mas, se as eleições nos trouxeram boas notícias, elas igualmente revelaram as dimensões do nosso primitivismo e atraso políticos. Está aí o Centrão, impando de satisfação, uma nova direita cevada pelo voto, e uma esquerda sem forças próprias e que ainda desconhece o terreno em que pisa, nostálgica do carisma de Lula e imune à autocrítica dos seus graves erros.

Visto do horizonte de hoje, para as forças democráticas que aspiram por reformas sociais o que se tem pela frente não é um cenário estimulante, decerto distante do pesadelo em que vivíamos, percepção contrária da que medra no campo da direita e que descortina o futuro como um campo aberto para a conquista do poder político. Tudo permanecendo constante, como provável, acalenta-se uma solução de centro-direita que marginalize a esquerda. Não é fora de propósito supor que, no caso, se estabeleça um silêncio obsequioso quanto ao descalabro do que tem sido o atual governo, já indicado no telefonema realizado pelo prefeito recém-eleito Eduardo Paes do DEM ao presidente Bolsonaro, cujas ações na presidência seriam estimadas pela limpeza do terreno político da presença da esquerda.

Fora o alívio imediato que as eleições nos trouxeram, evitando a legitimação do atual governo pelo voto, o quadro diante de nós é desalentador quando se pensa em cenários futuros. As forças do mando tradicional demonstraram capacidade de se reproduzirem em cidades abastadas e nos ermos rincões do país, levando de roldão as prefeituras que se vão constituir na plataforma das próximas sucessões, especialmente na presidencial. O travo otimista que nos fica vem principalmente da campanha de Boulos, em São Paulo, de Marta Rocha, de Benedita da Silva e Renata Souza no Rio, com a boa recepção que obtiveram nos redutos periféricos de suas cidades ao denunciarem as alarmantes condições das desigualdades sociais, faltando-lhes compreender a necessidade de uma coalizão entre suas candidaturas.

A sorte futura da esquerda a fim de que seus temas se tornem influentes politicamente no que vem por aí depende de mobilizações dessa natureza. Força própria é a senha para que ela seja ouvida nesse caldeirão de ambições desatadas pelo poder num país que tem a sina de que cada qual que detenha uma nesga de poder queira ser califa no lugar do califa. Por mais que seja verdadeiro o caráter de acidente na eleição de Bolsonaro, ele não pode ocultar o fato do nosso atraso político e da nossa incapacidade de reconhecê-lo, suprindo essa falta com fantasias mesmo que bem intencionadas.

Nessa hora em que se acendem esperanças é preciso cautela com os que procuram nos vender gato por lebre, com candidaturas saídas de suas cartolas sem densidade e tirocínio comprovado. Não há caminhos de ocasião, o que se precisa é pavimentar com segurança a estrada para o futuro na longa caminhada que ora se inicia com espírito de luta que anime a vida popular para a ação e a imaginação aberta para o encontro com os democratas com que marcharemos juntos.

Sem Trump e com Bolsonaro perdido como cego em tiroteio nos dois anos que lhe restam, abre-se uma oportunidade para um esforço bem concertado no sentido de estimular alianças escoradas por baixo pelo apoio popular que traga de volta o que não soubemos conservar.   

Salvo tropeços imprevistos, as coisas do mundo retornam ao leito das instituições e da cultura política forjadas no segundo pós-guerra como a ONU e tantas outras, e não nos faltam nem a tradição e a vocação para desempenharmos no que está por vir um bom papel nesse lugar que ocupamos.

*Luiz Werneck Viannaa, sociólogo, PUC-Rio    


Paulo Hartung: 2020, o ano que não termina

Desafios desta dúzia de meses atormentados ecoarão firmemente no correr dos dias de 2021

Hoje é o primeiro dia do último mês do ano. E o fim não parece próximo. É evidente que no continuum dos dias, dos meses, enfim, da vida compartimentada em calendários, nada nunca termina abruptamente, tudo transborda limites. Mas esta passagem de ano terá ainda menos ares de virada dado o acúmulo de questões a resolver no futuro próximo, em volume e significação inéditos.

Em múltiplos campos, temos questões surgidas ou incrementadas neste 2020 cujas repercussões já pautam atenções, decisões e desfechos nos dias de 2021. Ainda estamos em plena travessia da pandemia do novo coronavírus, pois enquanto não houver vacina disponível não haverá um ponto final possível para esta tragédia humanitária que assola o planeta.

Além de impor reveses dramáticos ao convívio social, a pandemia desligou a economia planetária, com variações de gravidade diretamente proporcionais à capacidade e à racionalidade dos gestores nacionais. Salta aos olhos o desempenho extraordinário de duas mulheres, em nações democráticas, a chanceler alemã, Angela Merkel, e a primeira-ministra da Nova Zelândia, reeleita em plena pandemia, Jacinda Ardern. Esse fato alentador pode e deve chamar a atenção para a impositiva oxigenação na seara das lideranças, hoje tão esvaziada de boas novidades e carente do vigor de olhares diferentes sobre a existência humana.

A relevância da diversidade e da inovação nessa área aumenta ainda mais quando se tem em conta que, com o almejado efetivo controle da covid-19, o mundo precisará debruçar-se sobre uma verdadeira tarefa de reinvenção, imposta por fatores como a piora das desigualdades socioeconômicas, o terremoto na esfera produtiva, especialmente nos modos de trabalhar e na extinção de atividades, e o empobrecimento das populações, via desemprego e recessão, entre outros.

Mas não é só de repercussões desafiantes deste ano que viverá o próximo. Ainda que dinamizados por deveres de casa árduos e complexos, movimentos promissores se colocaram em 2020 e projetam um ano com alguns toques de relevantes novidades. Ao menos três âmbitos estão com luzes amarelas à frente, tendendo fortemente ao sinal verde, nesta travessia anual: o fortalecimento do multilateralismo, a busca da sustentabilidade no planeta e as vastas experiências da digitalidade.

A eleição de Joe Biden nos Estados Unidos acena com uma mudança crucial para a vida em bases civilizadas. A caminhada política é cheia de desvios, obstáculos e surpresas, mas com a nova presidência estadunidense ao menos retomamos o rumo da lucidez. Impôs-se um freio de arrumação na marcha da insensatez que estava guiando o planeta para o precipício de nacionalismos radicais, obscurantismos tantos e negação da ciência, a mesma que rapidamente conseguiu sintetizar conhecimentos sobre uma doença desconhecida e em menos de um ano dotou a humanidade de vacinas capazes de nos livrar da maior crise sanitária em um século.

Também ganham energia com esta mudança política o multilateralismo e todos os seus preceitos de democracia, enfraquecendo a onda global de populismo conservador. Da mesma maneira, a preservação do planeta e a qualidade de vida das futuras gerações se fortalecem com a anunciada decisão norte-americana de voltar ao Acordo de Paris e suas premissas de mitigação das mudanças climáticas. Mas temos de estar atentos ao fato de que continuaremos a testemunhar a disputa de hegemonia entre China e EUA, prejudicial por diminuir o dinamismo econômico mundial, e ainda num cenário de países mais endividados no pós-pandemia.

A remediação da covid-19 via isolamento social, que tantos males tem provocado às relações humanas, acabou incrementando como nunca a migração digital. Educação, trabalho, consumo, medicina, entre tantos outros aspectos da nossa vida, ganharam novos modos de fazer, abrindo-se ainda um universo de oportunidades de acesso a serviços e de melhorias na vida urbana, entre outras.

Mas vale lembrar que esse movimento também ampliou o espaço para verdadeiras pragas, como as fake news e as trevas da intolerância, potencializando o animalesco que habita o humano, cujos instintos só se freiam por limites civilizatórios assumidos como organizadores dos laços sociais. É um desafio sociopolítico investir na apropriação humanística das mais dóceis técnicas jamais inventadas, como salientou o saudoso geógrafo Milton Santos.

Como se vê, ainda que o ano acabe oficialmente na virada de 31 de dezembro para 1.º de janeiro, desafios desta dúzia de meses atormentados ainda ecoarão firmemente no correr dos dias do novo ano. Assim, que sejamos capazes de enfrentar um 2021 com uma certa cara de 2020, com aprendizados, com a esperança da mudança sempre possível e a certeza de que a História não tem destino prescrito. Que sigamos inspirados rumo à experiência das possibilidades e à superação das demandas postas em meio a um tempo trágico, mas que, como toda crise, terá efetivo fim, porta lições, abre caminhos.

*Economista, presidente executivo da Indústria Brasileira de Árvores (IBÁ), membro do Conselho do Todos pela Educação, foi governador do Espírito Santo (2003-2010 e 2015-2018)


Gustavo H. B. Franco: Um acordo de transição

Não, o mercado financeiro não está enxergando nenhum golpe, ou descontinuidade, mas vislumbra ao menos oito boas razões para presumir que a Presidência Bolsonaro iniciada em 2018 vai terminar diferente do que começou

Mesmo antes da derrota de Donald Trump parecia que o Brasil passava por uma transição, como se a segunda metade da Presidência Jair Bolsonaro fosse uma mudança de governo, uma sensação curiosa e paradoxal, pois mudança mesmo só teremos mais adiante, depois das eleições de 2022, ou não.

Entretanto, a “sensação de transição” foi se acentuando nas últimas semanas.

O problema começou com dificuldades com (a rolagem de) a dívida pública (os deságios nas LFTs), um clássico sinalizador de problemas em transições (o sujeito não quer comprar um título de um governo que vai ser pago, ou não, pelo próximo). 

O Tesouro e o BCB têm experiência nesse assunto, sabem trabalhar de forma tópica, mas não são capazes de eliminar as dúvidas ensejadas por uma transição. Só o novo governante é capaz de fazê-lo. 

Bem, como o novo governante é o mesmo, não deveria ser tão complexo. Porém, é fato que estamos experimentando a “sensação de transição” no meio do mandato presidencial. O que pode estar produzindo essa distorção?

Não, o mercado financeiro não está enxergando nenhum golpe, ou descontinuidade, mas vislumbra ao menos oito boas razões para presumir que a Presidência Bolsonaro iniciada em 2018 vai terminar diferente do que começou:

  1. O ocaso do populismo em escala global, iniciado nos EUA e criando um vento de fim de festa na Hungria como em Brasília;
  2. Uma segunda onda de covid, ou simplesmente o desdobramento da primeira, com amplos impactos em escala global, e impactos relevantes na recuperação que o País vinha experimentando; 
  3. Mudanças nas lideranças das duas Casas legislativas e, consequente, revisão da equação de apoio parlamentar do governo. Talvez mesmo com reforma ministerial para atender ao “Centrão”.
  4. O ministro da Fazenda parece uma sombra de si mesmo, não é mais o “infiltrado liberal”, mas alguém mais organicamente ligado ao projeto de poder da família Bolsonaro. O ministro não vai cair, mas não é mais o mesmo, ou ao menos, não é mais atacante nas pautas reformistas, mas um “meia de contenção”, focado em evitar retrocessos. O casamento arranjado com os liberais terminou, pois as entregas em matéria de privatização, abertura e reformas mais profundas foram pífias;
  5. O fim dos auxílios emergenciais, sem que se saiba o que vem no lugar; 
  6. O fim das linhas especiais, e de outras tantas providências dependentes da vigência do estado de calamidade que se encerra oficialmente em 31 de dezembro;
  7. Novos patamares de déficit primário e de dívida pública, o primeiro ultrapassando R$ 800 bilhões, e a segunda se aproximando de 100% do PIB.
  8. Recrudescimento da inflação que, em novembro, pelo IGPM, alcançou estonteantes 24,52% no acumulado de 12 meses;

Portanto, é como se a segunda metade tivesse se convertido no segundo governo Bolsonaro, e com desafios econômico aterradores.

Bem, o Brasil possui uma larga experiência em transições turbulentas, normalmente de um governo para o outro, não dentro do mesmo, para as quais a receita canônica é um acordo com o FMI. Uma das funções mais importantes, e menos faladas, desse tipo de acordo é a de terceirizar culpas, bem como responsabilidades sobre medidas que precisam ser tomadas, que se tornam imperativos de um tratado internacional, e que seriam inexecutáveis fora disso.

Será que é o caso?

Bem, é claro que o FMI, nesse caso, funciona apenas como um exercício retórico. 

Nosso problema agora é fazer um acordo com o FMI, sem o FMI, um acordo do Brasil com ele mesmo. É fácil em tese, mas dificílimo de fazer, no atual estado de polarização, quando o governo está tão isolado que não consegue fazer acordo nem com ele mesmo.

Há sobre a mesa um desafio gigante e urgente, no terreno fiscal, de conciliar uma versão prática e socialmente aceitável da ideia de responsabilidade fiscal, que compreenda a preservação do teto (uma “última defesa” já bastante combalida), com iniciativas que coíbam um aumento catastrófico do desemprego e a volta da inflação.

O verbo aqui é conciliar, um que o governo não costuma conjugar, e para o qual não estava preparado. 

* EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA RIO BRAVO INVESTIMENTOS. ESCREVE NO ÚLTIMO DOMINGO DO MÊS 


José Roberto Mendonça de Barros: Um primeiro balanço da economia global

Uma primeira observação é notar o sucesso relativo de várias regiões em lidar com a pandemia; dentro do espaço econômico, porém, a assimetria de situações e ampliação das desigualdades foram a marca universal

A covid-19 dominou totalmente 2020: pela surpresa com que apareceu e velocidade com que se espalhou pelo mundo, por sua durabilidade e pelos catastróficos efeitos sobre as pessoas, as sociedades e o desempenho econômico. O único alívio é a certeza de que teremos vacinas disponíveis já no primeiro trimestre do próximo ano. 

Vai levar muito tempo para que análises mais consistentes possam ser feitas quanto aos impactos do vírus. Entretanto, é útil fazermos um primeiro balanço. Uma primeira observação é notar o sucesso relativo de várias regiões em lidar com a pandemia, pois o ano foi mostrando resultados bastante diversos. Dentro do espaço econômico, porém, a assimetria de situações e a ampliação das desigualdades entre pessoas, regiões e empresas foram a marca universal. 

Não há nenhuma dúvida de que a Ásia sai ganhadora do enorme desafio de voltar à normalidade. Isso porque a maior parte dos países do continente – a grande exceção é a Índia – acabou por lidar bastante bem com a pandemia. A estratégia bem-sucedida foi similar: quarentena e testagem da população em larga escala. Após um eventual teste positivo, as autoridades sanitárias isolavam todos os contatos do paciente, o que terminou por conter rapidamente a contaminação. Como o vírus apareceu no primeiro trimestre de 2020, já a partir de abril a maior parte dos asiáticos foi voltando ao trabalho. Com isso, alguns países, como a China, apresentarão crescimento do PIB já neste ano. E todos vão crescer com robustez em 2021. Além disso, no dia 15 de outubro, 15 dos países da região assinaram um acordo comercial denominado Parceria Econômica Regional Abrangente, que certamente acentuará a já avançada integração das cadeias produtivas asiáticas, reforçando o crescimento. 

Eis aí mais um custo da gestão Trump, que em uma de suas primeiras medidas retirou os Estados Unidos de outro acordo longamente negociado no governo Obama, o Acordo Transpacífico. Essa negociação buscava reforçar a posição dos parceiros americanos na Ásia de sorte a conter a expansão chinesa. A decisão de Trump criou a oportunidade para a China, que dela alegremente se aproveitou. O crescimento de boa parte dos países da Ásia entre 2020 e 2021 será significativo, especialmente na China, cujo PIB expandirá 10%, segundo as últimas projeções do FMI. 

Os Estados Unidos, por outro lado, ainda estão sofrendo muito com a disseminação do vírus. Na média móvel de sete dias terminada no dia 23, ocorreram quase 170 mil novos casos e mais de 1.500 mortes por dia, um número elevadíssimo. Isso é o resultado do negacionismo do governo americano – aliás, similar ao do brasileiro. A economia deve se contrair 4,3%, o que não será compensado pela projeção de um crescimento de 3,1% no próximo ano. No biênio, a economia americana, embora apresente dinamismo na área tecnológica e no mercado imobiliário, ainda andará de lado porque largas frações dos serviços e o mercado de trabalho continuarão sofrendo com a imposição do distanciamento social. O resultado da eleição mostrou um país muito dividido, que torna muito mais difícil implantar novas políticas públicas.

Com essas projeções, a distância entre a economia da China e a americana encolherá incríveis 10% em dois anos!

O terceiro bloco econômico relevante é o europeu. O impacto da segunda onda da covid no Velho Continente está sendo muito grande. O FMI projeta queda no PIB em torno de 10% na França e na Itália e de 13% na Espanha. O ponto positivo é que, em meio à tormenta, França e Alemanha se puseram de acordo quanto à política fiscal, decidindo pela emissão de € 750 bilhões em bônus para apoiar a retomada. Além disso, o grupo decidiu também estimular investimentos de uma agenda de futuro: descarbonização e novas energias, baterias e eletrificação da frota, inteligência artificial e outras. 

Finalmente, e lamentavelmente, as perdas na América Latina serão enormes, especialmente na Colômbia, no México, no Peru e na Argentina, com retração próxima ou superior a 10% no PIB. Mesmo no Chile, país exemplo da região, a economia deve recuar 6%. Em todos os países, exceto o Uruguai, vemos crises políticas significativas. O Brasil, com nossa projeção de queda de 4%, até que não se sai tão mal no meio desse banho de sangue.

Economista e sócio da MB Associados. 


Luiz Carlos Azedo: Einsten explica

A única relação mecânica entre os resultados das eleições de hoje e as próximas é a seguinte: a campanha eleitoral de 2022 já começou

A teoria da relatividade de Alberto Einstein revolucionou o século passado, estando mais ostensivamente presente no nosso cotidiano do que outra de suas descobertas, o efeito fotoelétrico, que possibilitou o desenvolvimento da bomba atômica, aplicação que nunca passou por sua cabeça. Einstein sempre foi um pacifista. Empregada duas vezes, pelos Estados Unidos, em Hiroshima e Nagasaki, no Japão, a bomba continua sendo um espectro da política mundial. A Coreia do Norte e Israel, por exemplo, sociedades militarizadas, são temidos porque têm a bomba.

No Brasil, durante o regime militar, a Marinha e a Aeronáutica desenvolveram secretamente um programa nuclear paralelo, cujo objetivo era dominar a tecnologia e produzir uma bomba atômica. Cerca de 700 militares e técnicos civis foram enviados pelo governo para estudar na França, na Inglaterra, na Alemanha e nos Estados Unidos, em 1979, o que resultou na formação de 55 doutores, 396 mestres e 252 especialistas em segurança de reatores, materiais nucleares, ampliação de técnicas nucleares, infra-estrutura de pesquisa e desenvolvimento, além de recursos humanos.

O presidente José Sarney, quando assumiu o poder, mandou encerrar o programa. Já havia até um buraco de grande profundidade na Serra do Cachimbo, construído pela Aeronáutica, para testar a bomba. Após o Brasil assinar o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares, restou do projeto o programa do submarino nuclear da Marinha. Isso possibilitou uma mudança da água para o vinho nas relações com os nossos vizinhos, principalmente a Argentina. Quando o presidente Jair Bolsonaro fala em “pólvora” como fator determinante de nossa independência — e sinaliza que o Brasil será o último a reconhecer a eleição do presidente Joe Biden e somos o único país a votar com Donald Trump contra a Organização Mundial de Saúde(OMS) na Organização das Nações Unidas (ONU) —, penso com os meus botões: “Será o Benedito?” Se pudesse, com certeza, Bolsonaro voltaria no tempo.

Felizmente, a teoria da relatividade tem aplicações muito mais úteis para a sociedade. O GPS, por exemplo, utiliza mecanismos advindos da relatividade para determinar com alta precisão as posições na Terra. Os celulares dependem de 24 satélites em órbita ao redor da Terra para determinar a nossa localização. Se não fosse a relatividade, por exemplo, não seria possível a existência do Uber e do iFood, que são a salvação da lavoura para muita gente nesta pandemia. A fórmula mágica de Einsten — E(energia) = m(massa)c2(velocidade da luz elevada ao quadrado) — é necessária para calcular as distâncias e fazer correções, porque os satélites percorrem a órbita da Terra a uma velocidade de 14 mil km/h. É menor do que a velocidade da luz (cerca de 300 mil km/s), mesmo assim, a fórmula possibilita os cálculos necessários.

Eleições

O tempo também é relativo na política, tanto como num parque de diversões meia hora antes de fechar. Passa diferentemente para o avô que brinca com a netinha, o jovem apaixonado que espera a namorada e o pipoqueiro metódico, que confere o faturamento e arruma sua carrocinha. Os militares britânicos têm uma teoria interessante sobre isso: “a sombra do futuro”, uma sacada dos seus estudos de estado-maior sobre a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), uma guerra de posições. Os soldados ingleses e alemães se confraternizaram no Natal de 1914, na cidade de Ypres, na Bélgica. Mas não foi só isso, também houve cooperação tácita em outros momento ao longo dos fronts, quando se atirava no mesmo lugar já conhecido da trincheira inimiga. A “sombra de futuro” dos soldados, que queriam sobreviver e voltar à vida civil, era maior do que a dos seus generais.

A “sombra de futuro” dos que serão eleitos hoje —como os que o foram no primeiro turno — é maior do que a de deputados estaduais e federais, senadores no sexto ano de mandato e governadores, além, é claro, a do presidente Jair Bolsonaro. A única relação mecânica entre os resultados das eleições municipais e as próximas é a seguinte: a campanha eleitoral de 2022 já começou. No mais, tudo é relativo, inclusive os efeito da derrota dos aliados do presidente Jair Bolsonaro, que tem a maioria dos prefeitos eleitos na dependência de financiamentos e outros recursos federais, inclusive os dos partidos de oposição.

É possível inferir das eleições municipais algumas tendências para 2022, do tipo “a extrema-direita foi isolada”, “o centro recuperou suas posições”, “o PT está renascendo das cinzas”, “surge uma nova esquerda”, “a reeleição de Bolsonaro está em risco”, “existe menos espaço para aventureiros”. Essas tendências, porém, podem se afirmar ou não, dependendo da real situação da economia, da superação da crise sanitária com a chegada das vacinas e das entregas administrativas a partir do terceiro ano de mandato de Bolsonaro. Obviamente, o tempo — o recurso mais escasso de seu mandato — vai passar mais rápido para o governo do que para a oposição; para os eleitores descontentes, porém, será uma eternidade. Einstein explica.

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