Trump

‘Projeto da frente democrática deve ser mantido’, diz José Álvaro Moisés

Em entrevista à revista da FAP de dezembro, professor da USP afirma que ‘bolsonarismo não vai se desmilinguir’

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

O professor do Departamento de Ciência Política da USP (Universidade de São Paulo) José Álvaro Moisés diz que o projeto da frente democrática deve ser mantido, já que, segundo ele, a premissa é que “o bolsonarismo não vai se desmilinguir por conta própria”. “Isso é uma presunção em relação a um governo que não tem rumo, tem muitos defeitos e muitas vezes comete crimes de responsabilidade que quase potencializam seu impeachment”, afirma, em entrevista exclusiva concedida a Caetano Araújo e Vinicius Müller, publicada na revista Política Democrática Online de dezembro.

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Todos os conteúdos da publicação, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), são disponibilizados, gratuitamente, no site da entidade. Coordenador do Grupo de Trabalho sobre a Qualidade da Democracia do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, Moisés explica que o bolsonarismo não vai se desmilinguir por conta própria porque, segundo ele, seria como se os bolsonaristas abrissem mão de governar. “Isso não vai acontecer”, afirma.

O professor da Unesp avalia que existe hoje, no Brasil, um vácuo de lideranças democráticas e progressistas capazes de interpretar o momento e os desafios do país e que possam se opor com chances reais de vencer o presidente Jair Bolsonaro nas eleições de 2022. Ele é especialista em temas como transição política, democratização, cultura política e sociedade civil.

Moisés publicou diversos livros de análises políticas como “Os brasileiros e a democracia” (Ed. Ática, SP 1995),"Democracia e confiança: Por que os cidadãos desconfiam das instituições públicas?" (edUSP), “O papel do Congresso Nacional no presidencialismo de coalizão” (2011), e "Crises da Democracia: O Papel do Congresso, dos Deputados e dos Partidos (2019), entre outros.

Na avaliação do entrevistado, o grande desafio da oposição para superar o bolsonarismo - tanto os partidos de centro-esquerda como os da esquerda - é o de se constituir em uma força com reconhecimento da sociedade para garantir a sobrevivência da democracia e, ao mesmo tempo, adotar estratégias adequadas para a retomada do desenvolvimento do País. De acordo com o cientista político, isso envolve o enfrentamento das desigualdades sociais e a necessidade de promover o crescimento econômico.

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Como o Brasil pode ter inserção positiva na economia mundial? Bazileu Margarido explica

Em artigo publicado na revista de dezembro da FAP, engenheiro diz que país tem grande potencial de desenvolvimento da bioeconomia

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

“O Brasil deveria buscar inserção positiva na economia mundial através da diversificação e agregação de valor à sua pauta de exportações e do investimento em inovação e tecnologia e nas novas oportunidades que estão surgindo na transição para uma economia de baixo carbono”. A análise é do engenheiro de produção e assessor econômico da liderança da Rede no Senado, Bazileu Margarido, ex-presidente do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), em artigo que publicou na revista Política Democrática Online de dezembro.

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Todos os conteúdos da publicação, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), são disponibilizados, gratuitamente, no site da entidade. De acordo com Margarido, há um cardápio extenso de atividades econômicas que deveriam ser incentivadas para a recuperação da economia depois da pandemia da Covid-19.

“O Brasil tem grande potencial de desenvolvimento da bioeconomia, das fontes distribuídas de energia renovável e limpa, da agricultura de baixo carbono, da exploração sustentável de florestas nacionais, da universalização do saneamento ambiental, entre outras”, assinala. De 2003 a 2007, ele foi chefe de gabinete da então de meio ambiente, Marina Silva, antes de se tornar presidente do Ibama, de 2007 a 2008.

Segundo Margarido, esses investimentos têm capacidade para gerar milhões de empregos verdes e atrair capital externo ávido por um portfólio de atividades sustentáveis. Isso, segundo ele, para satisfazer as exigências de um novo consumidor, mais consciente dos limites das bases naturais que dão sustentação ao desenvolvimento.  

“Insistir na ocupação da Amazônia pela grilagem de terra, por pastos para criação extensiva de gado e pela mineração ilegal só vai nos levar ao atraso e ao isolamento político e econômico”, alerta o engenheiro. Ele também é mestre em economia e, de 2001 a 2002, foi secretário de Fazenda de São Carlos (SP).

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‘Despreparado para o exercício do governo’, diz Alberto Aggio sobre Bolsonaro

Em artigo publicado na revista mensal da FAP, professor da Unesp avalia o que chama de ‘Ano 2’ do presidente

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) mostra-se “despreparado para o exercício do governo, sequer consegue ganhar uma posição no contexto dramático de combate à pandemia, empreendendo ‘gestão’ desastrosa que não evitou os mais de 180 mil mortos em menos de 12 meses”. A afirmação é do historiador e professor da Unesp (Universidade Estadual Paulista) Alberto Aggio, em artigo que produziu para a revista Política Democrática Online de dezembro.

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Todos os conteúdos da publicação, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), são disponibilizados, gratuitamente, no site da entidade. Em seu artigo, Aggio também critica incapacidade do governo diante de “questões mais estruturais como as reformas tributária e administrativa que vão ficando para as calendas”.

“Sem liderança e sem rumo, a filiação de Bolsonaro a algum partido do Centrão tornou-se disputa rasa, quase um leilão, com vistas a um transformismo que garanta ao presidente um ‘novo’ protagonismo em 202’”, diz o professor da Unesp, em outro trecho de sua análise na Política Democrática Online de dezembro. “Num cenário ainda difuso, já se pode divisar, contudo, outros transformismos em projeção, todos visando alcançar o poder nas próximas eleições”, assevera.

Se, no Ano 1, o governo foi uma usina de péssimas ideias, no Ano 2 a imagem é de desolação, de acordo com o artigo do historiador. “2022 já começou e aos brasileiros importa superar a pandemia que nos assola bem como a crise que desorganiza a nação depois da sanha destruidora que se instalou no poder”, afirma Aggio, para acrescentar: “Só assim se poderá conceber em que termos avançaremos para o futuro, depois da breve – assim esperamos – ‘era Bolsonaro’”.

Em seu artigo, o professor da Unesp lembra que, no final do ano passado, publicou um artigo com o título “Bolsonaro, Ano 1”. “Mobilizei, intencionalmente, a demarcação temporal recorrendo àquilo que Benito Mussolini estabeleceu para a Itália quando instituiu o fascismo. Contava-se a sequência dos anos da ‘Era Fascista’, com início em 1922, ano da tomada do poder com a ‘Marcha sobre Roma’. Como todo aspirante a ‘revolucionário’, Mussolini acalentava a ideia de alterar o tempo histórico”, explica.

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Desastre de Bolsonaro e incapacidade de governar são destaques da nova Política Democrática Online

Revista da FAP analisa o resultado das eleições em direção diferente a da polarização de 2018; acesso gratuito no site da entidade

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

O recado das urnas em direção oposta à da polarização de dois anos atrás, o desastre da gestão governamental de Bolsonaro que gerou retrocesso recorde na área ambiental e a incapacidade de o presidente exercer sua responsabilidade primária, a de governar, são destaques da revista Política Democrática Online de dezembro. A publicação mensal foi lançada, nesta quinta-feira (17), pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), que disponibiliza a íntegra dos conteúdos em seu site, gratuitamente.

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No editorial, a publicação projeta o que chama de “horizonte sombrio”. “Na situação difícil que se desenhou em 2020, é preciso reconhecer que o governo obteve vitórias inesperadas. Conseguiu, de maneira surpreendente, eximir-se da responsabilidade pelas consequências devastadoras, em termos de número de casos e de óbitos, da progressão da pandemia em território nacional”, diz um trecho.

Em entrevista exclusiva concedida a Caetano Araújo e Vinicius Müller, o professor do Departamento de Ciência Política da USP (Universidade de São Paulo), José Álvaro Moisés, avalia que existe, no Brasil, um vácuo de lideranças democráticas e progressistas capazes de interpretar o momento e os desafios do país e que possam se opor com chances reais de vencer Bolsonaro nas eleições de 2022.

Moisés, que é coordenador do Grupo de Trabalho sobre a Qualidade da Democracia do IEA (Instituto de Estudos Avançados) da USP, o grande desafio da oposição para superar o Bolsonarismo é o de se constituir em uma força com reconhecimento da sociedade. Isso, segundo ele, para garantir a sobrevivência da democracia e, ao mesmo tempo, adotar estratégias adequadas para a retomada do desenvolvimento do País.

Outro destaque é para a análise do historiador e professor da Unesp (Universidade Estadual Paulista) Alberto Aggio, que avalia que “o Ano 2 – como dizem os jovens – ‘deu mal’ para Bolsonaro”. Ao final de 2020, diz o autor do artigo, o destino o presidente é cada vez mais incerto, com popularidade declinante e problemas políticos de grande magnitude. “Com a derrota de Donald Trump nas eleições presidenciais norte-americanas, perdeu seu principal referente ideológico”, afirma Aggio.

“O isolamento internacional do País é sem precedentes, depois de desavenças com a China e a União Europeia. Sob pressão, Bolsonaro estará forçado a uma readequação na política externa. Não haverá futuro caso não se supere a redução do Brasil a ‘País pária’ na ordem mundial, admitido de bom grado pelo chanceler Ernesto Araujo”, acrescenta o professor da Unesp.

Ex-ministro da Reforma Agrária, Defesa Nacional e Segurança Pública e ex-deputado federal, Raul Jungmann analisa, em seu artigo, a necessidade de dialogar e liderar as Forças Armadas na definição de uma defesa nacional adequada ao Brasil. Isso, segundo ele, “é um imperativo da nossa existência enquanto nação soberana”.  “Construir essa relação, levar a sério nossa defesa e as FFAA, assumir as responsabilidades que cabem ao poder político e as nossas elites, é também uma questão democrática, incontornável e premente”, assevera.

O conselho editorial da revista Política Democrática Online é formado por Alberto Aggio, Caetano Araújo, Francisco Almeida, Luiz Sérgio Henriques e Maria Alice Resende de Carvalho.

Veja lista de todos os conteúdos da revista Política Democrática Online de dezembro:

  • José Álvaro Moisés: ‘O Bolsonarismo entrou em crise porque ele não tem conteúdo nenhum’
  • Cleomar Almeida: Vítimas enfrentam longa via-crúcis no combate ao estupro
  • Charge de JCaesar
  • Editorial: Horizonte sombrio
  • Rodrigo Augusto Prando: A politização da vacina e o Bolsonarismo
  • Paulo Ferraciolli: RCEP, o maior tratado de livre-comércio do mundo
  • Paulo Fábio Dantas Neto: Em busca de um centro – Uma eleição e dois scripts
  • Bazileu Margarido: Política ambiental liderando o atraso
  • Jorio Dauster: Do Catcher ao Apanhador, um percurso de acasos
  • Alberto Aggio: Bolsonaro, Ano 2
  • Zulu Araújo: Entre daltônicos, pessoas de cor e o racismo
  • Ciro Gondim Leichsenring: Adivinhando o futuro
  • Dora Kaufman: Transformação digital acelerada é desafio crucial
  • Henrique Brandão: Nelson Rodrigues – O mundo pelo buraco da fechadura
  • Hussein Kalout: A diplomacia do caos
  • João Trindade Cavalcante Filho: O STF e a democracia
  • Raul Jungmann: Militares e elites civis – Liderança e responsabilidade

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Bernardo Mello Franco: Diplomacia da desinformação

O Brasil foi o último país do G20 a reconhecer a vitória de Joe Biden nas eleições americanas. A birra não se limitou ao presidente Jair Bolsonaro e ao chanceler Ernesto Araújo. Os dois contaram com o aval do embaixador em Washington, Nestor Forster.

Em telegramas enviados a Brasília, o diplomata se comportou como tiete de Donald Trump. Em vez de aconselhar o governo a cumprimentar o democrata, endossou a falsa versão de fraude contra o republicano.

“Ele comprou o discurso trumpiano quando a vitória de Biden já era inquestionável. Isso demonstra uma falta de profissionalismo no trabalho de informação”, critica o embaixador Roberto Abdenur, que representou o Brasil nos EUA entre 2004 e 2007.

O dever de um diplomata no exterior é retratar os fatos de modo sereno e objetivo, explica Abdenur. “Ele não pode deformar o fluxo de informações por se identificar com a linha ideológica do presidente”, ressalta.

O embaixador conta que tinha “certo respeito” por Forster, que já esteve sob seu comando em Washington. “Confesso que agora fiquei muito decepcionado”, lamenta, referindo-se aos telegramas revelados ontem pelo jornal “O Estado de S. Paulo”. “Ele era um profissional sério e correto. Não dava a impressão de ser um fanático de extrema direita”.

Forster apresentou o atual chanceler ao ideólogo Olavo de Carvalho, guru da família presidencial. No fim de 2019, foi recompensado com o cargo mais disputado entre diplomatas brasileiros no exterior.

“Há uma seita fanática na essência do governo Bolsonaro. A política externa atual está enraizada nesse extremismo”, diz o embaixador Abdenur. “O Brasil se desmoralizou e se isolou no mundo. Estamos hostilizando a China e agora vamos ficar mal com os EUA”, alerta.

Na terça, o Senado rejeitou a indicação do diplomata Fabio Marzano a um cargo em Genebra. Ele é apontado como um dos líderes do núcleo olavista do Itamaraty. Apesar da recusa, Abdenur não vê sinais de mudança no comando da diplomacia brasileira.

“Acho que ainda vamos permanecer como párias por muito tempo”, prevê.


William Waack: Quem se cala...

Profissionais não podem reclamar quando permitem que amadores mandem na política externa

O Brasil não é participante relevante de nenhum agudo conflito internacional, seja ele de fronteiras, geopolítico, étnico, religioso ou comercial (estamos ensaiando um na questão ambiental). Por um lado, não deixa de ser uma bênção: nenhuma família brasileira vai dormir preocupada se um integrante seu estará na linha de fogo de algum confronto internacional – a não ser que se considerem como “internacional” as balas perdidas em comunidades controladas pelo narcotráfico e milícias.

Por outro, é uma espécie de “maldição”. A nossa distância dos grandes conflitos ajuda a entender o estado de “anestesia” pelo qual a sociedade brasileira contempla confrontos internacionais. É uma espécie de mentalidade de “isolamento esplêndido”, dado nosso tamanho e posição geográfica, que nos tira o senso de urgência ou de “ameaça” de problemas vindos de fora. Política externa é um assunto para especialistas, e de escasso apelo ao grande público e só em circunstâncias excepcionais – não é parte relevante de campanhas eleitorais.

Foi preciso que no caso da vitória de Joe Biden a política externa brasileira, entregue por Jair Bolsonaro a uma desastrosa mescla de diletantes amadores e profissionais ideologizados, produzisse uma incomparável vergonha internacional para que o Senado humilhasse o Itamaraty e declarasse que o rei está nu. E que assim pelado fosse “para o inferno”, conforme as palavras do senador Major Olímpio dirigidas ao chanceler Ernesto Araujo.

A mistura de soberba com ignorância dos que formularam as posturas externas no governo Bolsonaro não permitiria mesmo prever nada diferente dos atuais resultados, mas o problema é mais grave. Integram os círculos palacianos militares com passagens por excelentes instituições de ensino (como as academias e escolas de Estado Maior), com formação profissional em relações internacionais, segurança e estratégia, e com experiência pessoal direta em confrontos lá fora, inclusive militares (como as missões de paz em vários países).

Sabe-se por relatos e conversas pessoais que esses profissionais desprezam o amadorismo e a estupidez dos conselhos dados ao presidente pelas figuras nas quais confia em matéria de assuntos internacionais, à testa delas um de seus filhos. Lamentam abertamente os disparates do ministro das Relações Exteriores, tido nesses círculos como figura patética, e o fato de que energias políticas preciosas são gastas apenas para minimizar danos (como no caso da política comercial com a China).

Nesse caso os militares são vítimas da própria formação e do respeito à hierarquia. Não há nada mais difícil para um fardado do que rebelar-se contra um chefe, mesmo achando que está produzindo besteiras (como é o caso atual). Ocorre que é tênue e, para quem está envolvido nas decisões, difícil de ser identificada a linha que separa “lealdade” e “cumprimento da missão” da cumplicidade com a irresponsabilidade com que são tratados os interesses da Nação.

Os danos causados ao País pela política externa de Bolsonaro são graves em várias áreas e as consequências de isolamento, de ser “pária” internacional (do qual, espantosamente, se orgulha o chefe do Itamaraty) estão apenas no início – e isto não se refere apenas à derrota de Trump. Se é que admitem que a reputação das instituições às quais pertencem também estão sendo arranhadas, esses oficiais ou ex-oficiais nos círculos de decisões relevantes preferem permanecer quietos.

Mais um caso na longa galeria de militares profissionais que, ao se calarem, consentem.


Folha de S. Paulo: Votação do Colégio Eleitoral deve frear estratégia 'golpista 2.0' de Trump

Envio dos votos dos delegados marca fim do prazo para contestar resultados da apuração

Rafael Balago, Folha de S. Paulo

Nesta segunda (14), as tentativas de Donald Trump de mudar o resultado da eleição americana encontrarão uma espécie de muro: o prazo legal para resolver queixas sobre a apuração e para que os delegados enviem seus votos para Washington. São estes votos, afinal, que decidem o nome do novo presidente dos EUA.

Contagens, recontagens e dezenas de derrotas judiciais apontam que Trump perdeu para Joe Biden na votação popular de 3 de novembro. Mas o republicano não admite isso e segue tentando reverter o placar, em uma atitude que pode ser considerada uma nova forma de golpismo, avaliam vários especialistas ouvidos pela Folha.

Eles apontam que o conceito tradicional de golpe não se aplica plenamente ao caso atual, mas que tentar mudar as regras do jogo para se manter no poder, como Trump vem fazendo, não pode ser considerado algo normal, ou a sensação resumida na frase "as instituições estão funcionando".

"No contexto do populismo do século 21, vemos um novo tipo de ameaça interna, que são lideranças que corroem a democracia de dentro para fora. A democracia morre por meio de novos mecanismos, e Trump contribui para ser visto como um tipo de golpista '2.0', com roupagem diferente do que estávamos habituados", analisa Fernanda Magnotta, coordenadora do curso de relações internacionais da Faap.

A data de envio dos votos dos delegados é considerada o limite legal para questionamentos da apuração. "Depois do dia 14 de dezembro, não há mais o que fazer fora da institucionalidade", diz Felipe Loureiro, coordenador do curso de relações internacionais da USP.

“Se definirmos que um golpe envolve o desrespeito às leis, estamos caminhando para um cenário golpista, embora o conceito seja heterogêneo”, considera.

Em 2000, quando o resultado da eleição foi parar na Justiça, a Suprema Corte vetou uma nova recontagem na Flórida porque isso faria com que votos do Colégio Eleitoral fossem enviados depois do prazo máximo. Essa decisão, que confirmou a vitória de George W. Bush, foi baseada no Código Eleitoral de 1887, e virou jurisprudência.

Na eleição atual, a Suprema Corte se recusou a julgar um pedido republicano de recontagem. Semanas antes da eleição, Trump nomeou Amy Coney Barrett para aquele tribunal, e disse esperar que a maioria conservadora naquele tribunal pudesse ajudá-lo a vencer processos, caso a apuração fosse judicializada.

Nesta segunda (14), os delegados se reúnem nos estados e, em seguida, enviam seus votos para Washington. No entanto, as cédulas só serão somadas pelo Congresso em 6 de janeiro, em uma sessão conjunta, comandada pelo vice-presidente Mike Pence. Nesta data, Joe Biden será oficialmente proclamado como vencedor da eleição. A posse está marcada para 20 de janeiro.

Biden será eleito porque os votos dos delegados seguem a preferência mostrada nas urnas. Os resultados da apuração, certificados pelos estados, mostram que o democrata obteve 81,3 milhões de votos, contra 74,3 milhões de Trump. Com isso, Biden conquistou 306 delegados no Colégio Eleitoral. Seu rival, 232.

Na sessão de abertura dos votos, há uma brecha para que parlamentares questionem os resultados. Loureiro explica que, para pedir uma revisão da decisão de um estado, é preciso que ao menos um deputado e um senador daquele estado façam uma petição. Em seguida, o pedido é debatido em reuniões separadas da Câmara e do Senado, em até duas horas, e precisa ser aprovado em ambas as Casas para avançar. Como os democratas têm maioria na Câmara, a chance de que um esforço como esse prospere é nula.

No sistema eleitoral dos EUA, não há um órgão federal que centralize a apuração, como no Brasil. Cada um dos 50 estados soma seus votos de forma separada e declara o vencedor local. Assim, um candidato derrotado que se sinta injustiçado precisa reverter o resultado em vários lugares diferentes para obter uma vitória nacional.

O presidente entrou com dezenas de processos, mas não obteve nenhuma vitória significativa, porque não apresentou provas para as denúncias de fraude que fez. E mesmo nos estados onde houve recontagem, as vitórias de Biden foram confirmadas.

O republicano também fazendo tentativas reiteradas de pressionar autoridades estaduais a mudar resultados que apontam vitória de Biden. Segundo o jornal The Washington Post, ele telefonou ao governador da Geórgia, e pediu que ele anulasse a vitória do democrata no estado.

“Com suas ações, o que Trump está pedindo é que haja um golpe de estado, para que ele possa permanecer no poder”, diz Federico Finchelstein, professor da universidade The New School, em Nova York, e especialista em fascismo.

“Mas este é um golpe falido. As ditaduras triunfam quando as instituições, como a Justiça e o Congresso, falham e a população fica apática. Isso não aconteceu agora”, avalia Finchelstein.

"Tecnicamente é um autogolpe, uma tentativa de se manter no poder de forma ilegítima”, considera Jenna Bednar, professora de ciência política na Universidade de Michigan. “Ninguém produziu evidências de fraudes, então a Justiça não tem base para desqualificar os resultados eleitorais. E ele não tem apoio militar para seguir no poder usando a força", prossegue Bednar.

Para Juliana Cesário Alvim, professora de direito na UFMG, o conceito de golpe vem mudando a partir de casos como o da resistência de Trump. “A teoria ainda está correndo atrás de dar conta destes novos fenômenos. Esse cenário não pode ser considerado normal, mas há um uso político da palavra golpe", pondera.

"Enquadrar as ações de Trump em 'golpe' e 'não golpe' obscurece muitas das questões sociais e políticas importantes pelas quais os Estados Unidos têm passado nos últimos anos", questiona Celly Inatomi, pesquisadora do INCT-INEU (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os EUA).

Os pesquisadores apontam que a recusa de Trump em aceitar a derrota é parte de uma estratégia de longo prazo, que não começou agora e deverá se estender pelo futuro, para buscar mantê-lo em evidência e manter seus milhões de apoiadores engajados.

“Ele tem um objetivo sub-repitício que é criar uma narrativa para tumultuar a democracia americana. Trump perdeu, mas continua a fazer discursos, no qual o assunto é a fraude na eleição”, diz Conrado Hübner Mendes, professor de direito constitucional da USP e colunista da Folha. “E é uma narrativa, um comportamento golpista, que ele vinha preparando bem antes da eleição.”

Durante a campanha, o presidente se recusou a dizer que reconheceria a derrota, caso perdesse. Também afirmou que só seria vencido em caso de fraude. E durante a apuração, houve protestos contra o resultado feitos por seus apoiadores. Em Nevada, foram feitos atos do lado de fora de um centro de contagem de votos, com discursos que chamavam os resultados de "roubo".

Há um consenso entre os pesquisadores de que as ações do presidente colocaram a democracia dos EUA em risco, ao questionar sua legitimidade de forma tão forte. "Ele exacerbou e esgotou as linhas morais e legais para questionar a eleição. Por mais que tenha direito de acionar a Justiça, questionar uma eleição tem uma repercussão muito grave. E ele fez isso com base em fofocas. É abusivo ao extremo", diz Mendes.

O Judiciário, os governos estaduais e o Congresso resistiram às pressões de Trump, mas a postura de parte do Partido Republicano gera preocupações. A legenda se divide entre alguns nomes que apoiam o presidente abertamente, outros que reconheceram a vitória de Biden e um terceiro bloco que prefere guardar silêncio e esperar.

Há também o debate se Trump poderá ser processado por agir desta maneira, após deixar a Presidência. Em seu mandato, o republicano premiou aliados com o perdão presidencial, e surgiu o debate se ele poderia dar um benefício do tipo a si mesmo, algo nunca feito na democracia americana. “Se ele se perdoar, assumirá que houve crimes", aponta Finchelstein.


PRÓXIMOS PASSOS DO CALENDÁRIO ELEITORAL

O que falta para Joe Biden se tornar o próximo presidente

14.dez
Delegados do Colégio Eleitoral se reúnem nos estados e enviam seus votos para Washington. Termina prazo de contestação legal do pleito

6.jan
Votos serão contados em sessão do Congresso, na qual Joe Biden será oficialmente proclamado vencedor

20.jan
Joe Biden tomará posse como novo presidente dos EUA


Pedro S. Malan: Quadriênios: Trump e Bolsonaro

É duro imaginar que possa continuar a disfuncionalidade que o Brasil exibe ao mundo

Na campanha eleitoral de 2014, em discurso feito para a militância do PT, Lula afirmou que já se via “com Dilma, em 2022, nas comemorações dos 200 anos da nossa independência, defendendo tudo o que haviam conseguido conquistar nos últimos 20 anos”. Referi-me a essa fala de Lula na abertura do artigo publicado neste espaço há exatos seis anos, Quadriênios: velhos e novos. Apontei então que é perfeitamente legítimo qualquer pessoa expressar de público suas “memórias do futuro”, a bela expressão de Borges para caracterizar desejos, expectativas, sonhos e planos.

Antes de chegar às eleições de 2022 haveria, no entanto, que vencer em 2018. Era óbvio que já não seria fácil explicar, então, as conquistas dos “últimos 16 anos” (2002-2018) como se fossem um período singular, um todo coerente, como havia feito a marquetagem política em 2014 a propósito dos “últimos 12 anos”. Porque Lula 1 foi diferente de Lula 2; Dilma 1, diferente de Lula 2; e (afirmei) Dilma 2 seria muito diferente de Dilma 1, “e o mais difícil dos quatro quadriênios”. Como escrevi à época, “quem viver verá, ou já está vendo”.

Quem viveu viu até mesmo as consequências – notadamente a vitória de Bolsonaro em 2018 e o início de outro problemático quadriênio. Volto ao tema de “quadriênios”, agora a propósito de Trump e Bolsonaro. Este último estará agora privado de sua fonte inspiradora e modelo de comportamento. O quadriênio de Trump terminou de facto na primeira semana de novembro, com as claras evidências da vitória de Biden.

Contudo parte expressiva dos 74 milhões de americanos que votaram em Trump acredita ter havido fraude eleitoral; que Trump fez bem em se recusar a reconhecer o resultado das urnas. “Frankly, we won” foi o tuíte com que se declarou vencedor na madrugada de 4 de novembro, quando ainda faltavam milhões de votos a contar, em vários Estados-chave. Advogados a seu serviço ajuizaram dezenas de ações nesses Estados, enquanto o candidato anunciava sua ida à Corte Suprema, com a qual disse “estar contando” para lhe dar um segundo quadriênio.

Foi e perdeu. No dia seguinte (9/12) chegava à Corte Suprema outra ação, ajuizada pelo procurador-geral do Texas contra vários Estados-chave que haviam certificado a vitória de Biden. Sua tese é de que a alteração, feita por esses Estados neste ano de 2020 de forma supostamente ilegal, teria diluído os votos do Texas no colégio eleitoral. É, talvez, a última tentativa judicial. Até o momento em que este texto está sendo escrito, Trump recusa-se a admitir a vitória de Biden. E os presidentes de Rússia, México e Brasil não cumprimentaram o presidente eleito dos EUA.

O fato é que em 20 de janeiro de 2021 termina o inacreditável quadriênio de Donald Trump. Quatro anos de “fatos alternativos”, de relação conflituosa com a verdade. Mas foram 74 milhões de votos, 10 milhões a mais que em 2016. “74 milhões” é o título do imperdível artigo de Moisés Naim publicado neste jornal (23/11). São 74 milhões, escreve Naim, que “não se importaram em votar em um presidente que mente de forma compulsiva, constante e facilmente verificável. Que (…) não acreditam que Trump seja um mentiroso, ou não se importam com isto, ou têm necessidades e esperanças mais importantes”.

Sobre o quadriênio Bolsonaro. Meu mais recente artigo neste espaço (Faltam dois anos, 8/11) perguntava: dois anos é muito? É pouco? Bolsonaro está a aprender a diferença entre disputar uma eleição e governar um país da complexidade do Brasil. Como notaram vários analistas, nosso presidente atuou sem partido e sem base no Congresso até abril/maio de 2020. Deu-se conta, então, de que a sobrevivência política e sua reeleição dependiam de aceitar o que sempre negara, como pedra de toque de sua campanha eleitoral: a necessidade de abrir espaços para indicações de partidos de sua futura “base” na máquina pública.

Marcus André Mello (O futuro de Bolsonaro, FSP, 7/12) chamou a atenção para o paradoxo: “Um chefe do Estado populista irá se deparar com um sistema institucional que imporá limites à sua discricionariedade. E o apoio do bloco só existirá se Bolsonaro for popular”. Política, afinal, é expectativa de poder, de preservação de espaços ocupados e de expectativas de espaços por ocupar. Como veremos nos próximos meses.

Naquele mesmo artigo chamei a atenção para as importantes lições das transições de 2002/2003 (FHC/Lula) e de 2016 (Dilma/Temer). Em excelente artigo publicado desde então (Um Acordo de Transição, Globo/Estado, 29/11), Gustavo Franco nota que “o Brasil possui vasta experiência em transições turbulentas (…) mas não dentro de um mesmo governo”. Gustavo lista razões a explicar a dificuldade para fazê-lo “no atual estado de polarização, quando o governo (…) não consegue fazer acordo nem com ele mesmo”.

E dizer que metade de seu quadriênio já se foi… Em áreas cruciais como saúde, educação, meio ambiente e relações exteriores, é duro imaginar que na segunda metade possa continuar a disfuncionalidade que o Brasil hoje exibe ao mundo. E não é por falta de gente competente nessas áreas em nosso país.

*Economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC


El País: 'Destruição é a agenda do Tradicionalismo', a ideologia por trás de Bolsonaro e Trump

Benjamin Teitelbaum passou 15 meses entrevistando os principais ideólogos conservadores atuais para escrever ‘Guerra pela eternidade’, que mostra a relação entre os gurus Olavo de Carvalho e Steve Bannon com esta ideologia antimodernista e de fundamentos religiosos

Tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, a escalada populista com flerte autoritário dos Governos de Jair Bolsonaro Donald Trump suscita comparações com o fascismo. Mas para o pesquisador da extrema direita e etnógrafo norte-americano Benjamin Teitelbaum, autor do livro Guerra pela rternidade (Editora da Unicamp, War for eternity: inside Bannon’s far-right circle ―no título original, em inglês), a cruzada em curso contra valores modernos e democráticos nos dois países pode ser melhor compreendida a partir de uma outra doutrina menos conhecida, o Tradicionalismo (com ‘T’ maiúsculo, para diferenciá-lo do conservadorismo tradicional). Não que a alternativa seja melhor, o autor se apressa em esclarecer.

Baseado em mais de 15 meses de pesquisa e entrevistas com ideólogos conservadores como o ex-estrategista da Casa Branca Steve Bannon, o guru do Bolsonarismo, Olavo de Carvalho, e o conselheiro do presidente russo Vladimir Putin, Aleksandr Dugin, Teitelbaum descreve em seu livro como essa teoria obscura seguida por eles têm influenciando os governos dos Estados Unidos, do Brasil e da Rússia.

Nesta entrevista concedida por vídeochamada ao EL PAÍS, o professor de Assuntos Internacionais e Etnomusicologia da Universidade do Colorado (EUA) explica por que ele considera esta ideologia mais radical em suas concepções antimodernistas do que o próprio fascismo. “Há um elemento de destruição no Tradicionalismo que não necessariamente existe no fascismo”, alerta. Mesmo após a derrota de Trump e a prisão de Bannon (sob acusação de desvio de recursos para a construção do muro entre os EUA e o México), o autor avalia que as forças que eles representam continuarão vivas —e testando as instituições democráticas. Também examina como o Tradicionalismo legitima desde o racismo até a propagação de teorias conspiratórias em relação à pandemia do coronavírus.

Pergunta. Seu livro descreve como o Tradicionalismo, que até pouco tempo era considerada uma doutrina marginal dentro da própria extrema direita, alcançou influência global. Para quem ainda não leu o livro, como o senhor sintetizaria essa doutrina?

Resposta. O Tradicionalismo é originalmente uma escola espiritual filosófica que se tornou política em certo nicho. Os seguidores basicamente acreditam que a humanidade está ao fim de um longo ciclo de declínio e que vai ser concluído com destruição e renascimento. O que foi perdido neste ciclo de declínio foi o conhecimento verdadeiro da religião e também a ordem nas nossas sociedades —incluindo a diferença entre homens e mulheres, posições sociais e espirituais. No lugar disso, teríamos um mundo massificado e secularizado, neste processo de modernização. O Tradicionalismo acredita que é preciso haver um cataclismo para restaurar o que acreditam ser a verdade. Um dos elementos desse Tradicionalismo politizado de direita é acreditar que é preciso restaurar uma hierarquia onde homens arianos e líderes espirituais estão no topo, em oposição a materialistas, não-arianos e mulheres.

P. Quais as principais consequências do Tradicionalismo, e o que mais lhe surpreendeu durante a pesquisa para o livro?

R. Vou começar pelo fim. A grande consequência é que o Tradicionalismo acrescenta uma motivação espiritual para o que poderia ser simplesmente uma agenda política do populismo de direita, antiglobalista, antiprogressista. As pessoas podem aderir a isso por diferentes razões, como ressentimento econômico, racismo, antifeminismo… Mas o Tradicionalismo oferece uma motivação religiosa. E esse é um elemento importante. No caso de Olavo de Carvalho, por exemplo, ele não expressa apenas um ódio às elites, desprezo à ciência, à mídia, às universidades. Existe também a visão, um certo mandato espiritual, com o desejo de destruir grandes organizações, como a União Europeia, as Nações Unidas. A seus olhos, a destruição é uma coisa boa. Isso é assustador e preocupante. Os tradicionalistas acham que essas grandes organizações querem unificar e homogeneizar o mundo com o comunismo, ou com dominação chinesa. Então Olavo quer ver o establishment no Brasil ser quebrado em peças e fraturado: sejam os militares, a universidade, a mídia. Destruição é a agenda.

O que me surpreendeu é que não sei por que isso aconteceu agora. Olavo, Bannon e Dugin são bem diferentes. Não conseguem trabalhar juntos, não é um círculo funcional. Mas o estranho é que essas ideias extremas acabaram vindo à tona basicamente no mesmo momento, e não pelas mãos de Bolsonaro, Trump, e Putin, mas pelas mãos das figuras atrás deles, como uma espécie de Rasputin... os conselheiros místicos, influentes.

P. Desde a publicação do livro nos Estados Unidos, no início deste ano, o cenário político mudou. Bannon foi para a prisão e Trump perdeu as eleições. Como você interpreta essas mudanças?

R. Eu sinto quase como se isso pudesse liberar a verdadeira mensagem do livro, porque o real sujeito do livro não são as ações de Bannon, Olavo e Dugin. É a história mais ampla por trás disso, para entender por que em lugares diferentes, com trajetórias independentes, vimos essa ideologia aparecer. A história não é sobre a ação de indivíduos. É sobre o que está por trás disso tudo, porque nos encontramos em um momento em que as pessoas estão buscando ideologias que parecem destoar tanto do padrão. E essa ideologia não é o comunismo, não é liberalismo, não é fascismo. O Tradicionalismo é tão fora do mapa que nenhum cientista político, nenhuma think tank em Washington, ninguém no Congresso e nenhum candidato à presidência jamais ouviu falar dele. E esse movimento ainda assim se sustenta. Há tanto desencanto, tanta frustração com o status quo, que nós vemos atores buscando alternativas radicais.

P. Vários pesquisadores vêm definindo essa guinada populista de direita que estamos vivendo em países como Brasil e Estados Unidos como uma retomada do fascismo. Você discorda, então?

R. Eu discordo, e isso não é pra dizer que eu acho que é melhor. Essa definição é errada, e há um certo nível de falta de interesse e rigor que leva a essa caracterização como fascismo. Mas o único jeito de compreender essa ideologia é levá-la a sério e ouvir o que ela realmente diz, em vez de olhar apenas a fachada. O Tradicionalismo é anti-progressista num nível que raramente vemos. Muitas pessoas costumam chamar a si mesmas de conservadoras, mas quase todo mundo no campo conservador é basicamente progressista no mundo ocidental. Elas acreditam que, se você reduzir as regulações governamentais do capitalismo e aumentar a liberdade individual sobre a propriedade, você pode criar uma sociedade melhor. Eles não são nostálgicos. O Tradicionalismo vai na direção diametralmente oposta. Eles não acreditam que é possível mudar ou melhorar a história, acham que é preciso desfazer todo o mal feito para as nossas sociedades, e isso não significa voltar apenas décadas para trás, mas séculos.

P. Qual a principal diferença entre o fascismo e o Tradicionalismo?

R. O fascismo é futurista, modernista, a despeito de tudo. Hitler e Mussolini queriam transformar radicalmente suas sociedades, revolucioná-las. O Tradicionalismo vai na direção contrária: quer voltar para trás, num nível que ninguém leva muito a sério. E é nesse ponto que as ideologias se separam. Ambas se opõem ao feminismo, ao multiculturalismo, às políticas emancipatórias contemporâneas. Mas as diferenças são significativas. Há um elemento de destruição no Tradicionalismo que não necessariamente existe no fascismo.

P. Você descreve no livro que certos autores tradicionalistas, como o italiano Julius Evola, colaboraram com o fascismo e com o nazismo. Qual o marco dessa separação ideológica?

R. O fascismo historicamente era amistoso com a ideia de modernização e com o pensamento científico. Quando Evola rompeu com os nazistas, foi justamente quando ele achou que eles estavam sendo materialistas demais, científicos demais. O entendimento de raça dos nazistas era visto como muito modernista e biológico para ele. O grande contexto é que o Tradicionalismo é cético em relação à ciência. E não acho que seja coincidência que pessoas na administração Bolsonaro, como Ernesto Araújo, e o próprio Olavo e pessoas de seu círculo, que leem e celebram o trabalho de autores como Guénon [o francês René Guénon, patriarca do Tradicionalismo] e Julius Evola, sejam também os mais adeptos a teorias da conspiração em relação ao coronavírus. Isso não é muito facilmente explicável olhando para o fascismo. É muito mais fácil de entender pelas lentes do Tradicionalismo.

P. Um ingrediente comum das teorias da conspiração em relação ao coronavírus é culpar a China pela pandemia. Seu livro conta que Bannon recebeu um milhão de dólares para militar contra o Partido Comunista Chinês. Não parece ser coincidência que, antes de ser preso, Bannon também tenha sido um dos primeiros a articular essa narrativa conspiratória do “vírus chinês”. No Brasil, vemos o mesmo discurso contra a China. Por que esta questão é tão crucial?

R. No caso de Bolsonaro, isso parece se justificar por uma oposição ao comunismo. Mas, para Bannon e Ernesto Araújo, há uma questão mais específica: o fato de a China ser secular, antirreligião, e ao mesmo tempo massificante, globalizante, por estar eliminando fronteiras. Isso é um problema para os nacionalistas. Não por acaso, Araújo escreveu em seu blog meses atrás que o maior problema não era o fato de a China ser um país contra o capitalismo, mas por ser contra o espírito. Então, para os tradicionalistas, a China não é uma vilã apenas pela questão econômica, mas é um demônio metafísico.

P. Como você vê o papel do Olavo nesse contexto?

R. Comparando com os outros, Olavo é ao mesmo tempo o mais tradicionalista de todos e também o menos. É mais porque não há um partido tradicionalista oficial, um clube, então o único jeito de ser oficialmente afiliado é ser iniciado em um centro religioso afiliado às ideias de Guénon, por exemplo, que podem ser centros hare krishna ou tariqas muçulmanas sufistas. E Olavo foi iniciado numa dessas linhas muçulmanas. Essas são credenciais tradicionalistas muito antigas, que são passadas por uma longa rede de pessoas. Mas olhando para Olavo hoje, ele não segue o Tradicionalismo de forma ortodoxa. É como se o Tradicionalismo fosse um tempero em seu pensamento. E isso é comum entre os tradicionalistas, pessoas que são inspiradas por essas ideias, mas as misturam com outras. E esse parece ser o caso de Olavo.

P. Depois da publicação, o Olavo atacou você, classificando-o como mentiroso.

R. Olavo disse que eu era um mentiroso, mas ele nunca respondeu quando eu enviei para ele um capítulo do livro antes da publicação. Os documentos que reuni mostram basicamente que Olavo se converteu ao islã, era chamado de Sidi Muhammad. E eu acredito que ele ainda seja, de acordo com algumas tradições religiosas.

P. Você disse que Olavo foi o “pior” dos seus entrevistados, o que reagiu de forma mais furiosa à publicação do livro. Por que você acha que Olavo teve a pior reação?

R. Eu acho que há duas coisas: primeiro, que ele ficou um pouco envergonhado de eu expor sua ligação com a tariqa do Schuon [Frithjof Schuon, herdeiro intelectual de Guénon], porque isso contradiz a imagem que ele projeta hoje, de um cristão zeloso. E ele fala e escreve melhor baseado em uma posição de vitimização. É mais fácil me chamar de mentiroso, em vez de ter revisado os materiais que eu havia mandado para ele com antecedência. E há uma questão de personalidade. Eu não quero fazer uma psicanálise, mas nenhum dos outros personagens pareceu tão desapontado.

P. Quando eu entrevistei Olavo, ele me disse que não tinha projeto para a sociedade, que ele só sabia o que ele era contra, não o que era a favor. Isso parece reforçar essa lógica tradicionalista de destruição.

R. Interessante você mencionar isso, porque uma das coisas mais perspicazes que o Olavo me disse durante sua entrevista foi uma frase sobre o tradicionalista René Guénon. Ele disse que Guénon estava certo em tudo o que ele rejeitava e errado sobre tudo o que ele apoiava. E, de certa forma, senti quase como se o Olavo estivesse falando de si mesmo quando estava falando isso. Ele pode criticar , mas não há meta alguma. Não há muito o que construir, é tudo sobre destruição. E se você pensar historicamente, a crítica é muito fácil. A construção de algo é que é difícil. Olhando para o pensamento conservador, a crítica que fazem ao marxismo é justamente o fato de Marx criticar tanto o capitalismo e não conseguir imaginar muito o que colocar no seu lugar.

P. Como o senhor imagina o futuro do Tradicionalismo?

R. Eu não sei quantas pessoas vão se identificar como tradicionalistas. O que eu sei é que muitos republicanos bem posicionados, trabalhando para organizações nacionais, estão mais sintonizados com o Tradicionalismo do que eu jamais imaginaria. O Tradicionalismo está circulando, e isso vem de leituras da alt right. Não é necessário que haja uma evangelização, não precisa. Steve Bannon nunca pensou em fazer isso. Essas são ideias circulando entre a direita intelectual dissidente, pessoas que querem tomar o lugar dos conservadores nos Estados Unidos. Então essas ideias são atraentes para pessoas que se consideram intelectuais e ideólogos. Mas eu acredito que isso é o sintoma de algo maior. Há uma frustração e uma insatisfação política que vai fazer com que essas pessoas continuem procurando ideólogos e pensadores que querem alternativas e mudanças radicais, que querem repensar nossa democracia. E isso pode acontecer via Tradicionalismo ou outra ideologia, mas eu acredito que continuaremos vendo essa tendência.

P. Como a derrota de Trump afeta essa tendência? O movimento se enfraquece?

R. Trump perdeu, mas ele continua sendo incrivelmente popular entre a direita. Não há nada parecido, nenhum republicano jamais recebeu tantos votos nos Estados Unidos. E além disso os republicanos ainda foram muito bem nas votações do Senado, no Congresso. Eles têm uma penetração crescente entre grupos minoritários e pessoas sem diploma. Tenho entrevistado muitos jovens republicanos e eles seguem a cartilha de Trump. Eles acreditam que Trump mostrou que, se conseguirem combinar políticas econômicas liberais com políticas sociais conservadoras, eles podem vencer os democratas. Isso deve manter a ideologia trumpista viva.

P. E como o senhor vê as perspectivas para Bolsonaro, um dos maiores aliados de Trump, após a vitória de Biden?

R. Bolsonaro tem um problema real, não vejo o mesmo potencial para ele. Me parece que ele se antecipou ao se aliar aos Estados Unidos e virar as costas para a China. Agora que os Estados Unidos subitamente se transformaram e não o querem mais como parceiro, quem serão os amigos de Bolsonaro? Acho que o que salva Bolsonaro é que nem todos os seus subordinados no setor público levam tão a sério suas ameaças à China e seguem fazendo seu trabalho para manter as relações. Se tudo o que ele diz fosse levado à risca, o Brasil estaria realmente em apuros.

Antes também tínhamos Bannon, que fazia uma boa interlocução com o governo Bolsonaro. Havia um círculo, formado por Araújo, Bannon, Olavo, o embaixador brasileiro, e Gerald Brant. Eles tinham jantares juntos, confraternizaram frequentemente, em todas as visitas, mesmo Bannon não tendo cargo oficial no Governo Trump. Agora que tudo isso implodiu, é difícil saber quem manterá o entusiasmo por Bolsonaro em Washington. Trump não se importa muito.

P. O senhor tem formação em música. Como começou a pesquisar a extrema direita?

R. Eu era um etnomusicólogo e estava estudando a relação entre música e cultura. Estava na Suécia e ia escrever uma dissertação sobre um ritmo assimétrico na música folk sueca. Ninguém no mundo ia ler isso (risos), mas enquanto eu estava lá a extrema direita assumiu o poder no país, e eles disseram que iriam investir na música folk sueca. Achei isso interessante, e decidi entrevistá-los sobre isso. Percebi que isso significava uma grande mudança para eles. Historicamente, a extrema direita era associada à música metal skinhead white power, mas, assim que tomaram o poder, queriam transformar sua imagem. Então havia uma história ali, a história de como estavam tentando reconstruir sua imagem não pela política, mas pela música.

Esse foi o começo, há mais de uma década. O interessante é que quando eu dizia para as pessoas que era um pesquisador de música, as pessoas falavam comigo. Se eu dissesse que era jornalista, historiador, ou cientista político, certamente ficariam mais desconfiados. Quando você chega perguntando sobre sua agenda política, eles se assustam. Mas se você chega perguntando que tipo de música eles mais gostam, eles se abrem.

P. Uma pergunta que ouço com frequência é por que devemos estudar pessoas como Olavo de Carvalho, ou Bannon. Há quem diga que são malucos, radicais, e que ao escrever sobre eles estaríamos dando plataforma. Por que, na sua opinião, é importante estudá-los?

R. Eu sou um acadêmico. Sou um etnógrafo, um antropólogo. E antropólogos estudam pessoas. Acreditam que todos merecem ser estudados. Meu editor tem uma explicação diferente. Ele diz que essas pessoas geram consequências, e que por isso precisamos compreendê-las. Acho que há um outro aspecto importante: muita análise que se faz da extrema direita é realmente ruim, simplista. Existe tanto medo em contribuir para a criação de mitos que a resposta acaba sendo muito simplista, com rótulos como ‘eles são racistas’, ‘eles são nazistas’. Mas devemos prestar atenção para o fato de que esse discurso também é anti-intelectual. As pessoas ficam com medo dos detalhes, das nuances. E a consequência acaba sendo uma falta de entendimento, se perde o grande contexto. Quando você estuda um fenômeno social, as questões precisam ser bem mais amplas do que se isso é bom ou ruim.


El País: Suprema Corte enterra a tentativa de Trump de reverter as eleições

O tribunal rejeita ação iniciada no Texas, com o apoio do presidente, para anular os votos de quatro estados, o que deixa quase morta a cruzada republicana contra sua derrota

Amanda Mars, El País

A Suprema Corte dos EUA rejeitou nesta sexta-feira uma ação movida pelo procurador-geral do Texas para anular os resultados eleitorais de quatro estados-chave na derrota do ainda presidente Donald Trump―Geórgia, Michigan, Pensilvânia e Wisconsin― e deixou praticamente morta a cruzada legal em andamento para reverter as eleições, acenando com o espectro da fraude. A resolução se soma à da terça-feira passada, que também rejeitou uma tentativa republicana da Pensilvânia na mesma direção, e deixa claro que a mais alta autoridade judicial do país, com maioria conservadora, não participará da campanha incomum do presidente.

Sim, participaram disso vários altos funcionários e membros do Partido Republicano, companheiros de viagem em mais de cinquenta iniciativas judiciais, todas e cada uma delas malsucedidas. Este último processo no Texas foi um dos mais desconcertantes, apresentado pelo procurador-geral Ken Paxton diretamente à Suprema Corte para anular o escrutínio de quatro outros territórios. “O Texas não demonstrou interesse judicial em sua jurisdição na forma como outro estado conduziu suas eleições. O resto das moções pendentes é rejeitado como discutíveis “, disse o tribunal superior em sua decisão.

Além do apoio do próprio presidente, a tentativa do Texas teve o suporte de uma centena de republicanos no Congresso e de mais de uma dúzia de advogados de estados da mesma cor política. Paxton alegou perante o tribunal superior que Joe Biden havia vencido graças a “votos ilegais” naqueles territórios, uma fraude causada pelo relaxamento das regras de votação antecipada e por correio (que um grande número de Estados promoveram pela pandemia). Assim, solicitou que sejam as câmaras legislativas desses Estados a conceder o voto final.

Trump lançou alegações infundadas de fraude ao longo da campanha, alegando que a enxurrada de votos pelo correio era um terreno fértil para irregularidades. Assim que a derrota foi percebida, já na noite das eleições, ele disse que o levaria à justiça. Com os resultados finais, Biden é o claro vencedor das eleições, com seis milhões de votos à frente de Trump, e depois de ter recuperado para os democratas aqueles territórios que o republicano reivindicou para si em vários processos: Wisconsin, Pensilvânia, Michigan , Arizona e Geórgia.

No entanto, nenhum juiz, independentemente de sua cor política, nem seu próprio Departamento de Justiça encontraram vestígios de fraude nas urnas com entidades que alterariam esse resultado. Ainda há algumas questões legais pendentes, mas a Suprema Corte deixou a batalha de Trump mortalmente ferida. Nesta segunda-feira, o Colégio Eleitoral dará os votos finais ao democrata. Os norte-americanos elegem seu presidente de forma indireta: seus votos populares servem para eleger delegados que são os que, na próxima segunda-feira, 14 de dezembro, confirmarão a vitória de Biden. Ele obteve 306 dos 538 votos eleitorais em jogo (são necessários 270 para vencer), em comparação com 232 para Trump. Em 6 de janeiro, o Congresso deve contar esses votos e, no dia 20, Biden toma posse.

Mas Trump não planeja admitir a derrota. Seus seguidores mais leais também não. Neste sábado, eles convocaram novamente uma manifestação em Washington para protestar contra esta suposta fraude e pedir ao seu líder que não ceda.


El País: Saída de Trump prenuncia volta do multilateralismo nos organismos econômicos globais

Substituição na Casa Branca obriga que vários indicados pelo republicano no BID, Banco Mundial e FMI se realinhem com as prioridades de Biden

Ignacio Fariza e Isabella Cota, do El País

As ramificações da troca de guarda na Casa Branca são quase infinitas. Não só em chave interna: o abandono do unilateralismo, marca de Donald Trump, gera a necessidade de uma guinada na retórica imposta pelo republicano em vários organismos internacionais em que manobrou nos últimos anos para colocar nomes de sua confiança. “Quero dizer claramente: a América está de volta, o multilateralismo está de volta, a diplomacia está de volta”, sintetizou na semana passada Linda Thomas-Greenfield, futura embaixadora dos EUA na ONU na era Biden. Trata-se de uma declaração de intenções que deixa a baliza muita alta para os próximos quatro anos.

Desde sua chegada à Casa Branca, em janeiro de 2017, Trump dedicou-se o quanto pôde a colocar três homens de sua confiança na ponte de comando do Banco Mundial (David Malpass, nomeado em 2019), do Fundo Monetário Internacional (Geoffrey Okamoto, primeiro-subdiretor-gerente desde março passado) e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (Mauricio Claver-Carone, empossado em outubro). Nos três casos, a intenção era buscar reformar essas entidades à sua medida —sempre com a mentalidade de “a América [EUA] em primeiro lugar”— e reduzir ao mínimo as chances de colaboração multilateral: este Governo foi, afinal, marcadamente nacionalista, em que a condição para levar outros países em conta era que fosse Washington quem desse as ordens. E estas ordens deviam, acima de tudo, beneficiar os EUA.

“Não terão o mesmo peso que até agora, mas são pessoas não designadas diretamente pelo Governo dos EUA, e sim escolhidas pelos diretórios destas instituições”, recorda Arturo Valenzuela, subsecretário de Assuntos Hemisféricos dos Estados Unidos nos mandatos de Barack Obama, tendo o próprio Biden como vice-presidente. “Cabe perguntar por sua possível substituição, mas não há razão para esperar, de antemão, que não cumpram seus mandatos”, completa Otaviano Canuto, ex-vice-presidente do Banco Mundial e ex-membro do conselho do FMI, que prevê em todo caso um giro radical nos valores e prioridades que terão que representar.

Cada caso, entretanto, é um mundo. Tanto Malpass como Okamoto têm sua continuidade praticamente garantida. O primeiro soube distanciar-se de seu padrinho político quase desde o primeiro dia, adotando uma invejável discrição. Embora crítico no passado quanto ao papel dos organismos multilaterais, como o que hoje comanda, modulou seu discurso e optou mais por reforçar um perfil de “reformista construtivo”, e não um mero espantalho de Trump no Banco. E não se deve esquecer que a nomeação do chefe do Banco Mundial sempre correspondeu aos EUA.

O segundo, Okamoto, embora muito próximo a Trump, também parece ter pista livre para esgotar seu mandato no FMI sem grandes sobressaltos: é o contrapeso norte-americano da búlgara Kristalina Georgieva —a cota europeia de um organismo que sempre esteve encabeçado por alguém com passaporte do Velho Continente. Com mil e uma frentes abertas, não parece que a nova Administração norte-americana vá querer abrir outra no fundo monetário.

O terceiro, Claver-Carone, é outra história, tanto pela poeira que sua nomeação levantou, a primeira de um não latino-americano à frente do BID, como pelo próprio perfil do cubano-americano, um falcão e membro da ala mais dura do Partido Republicano para assuntos do subcontinente. Também porque chegou ao cargo com a corrida eleitoral norte-americana já lançada e com boa parte das pesquisas contra Trump. “Vai ser difícil para ele trabalhar com o Governo Biden”, observa Valenzuela, recordando no entanto que o cubano-americano insistiu recentemente em nomear seus vice-presidentes no banco, que também precisam ser aprovados pelos Governos regionais, e não conseguiu: “Os países da região simplesmente disseram não”.

Seja como for, tanto Claver-Carone como Malpass e Okamoto se verão fadados a se alinharem com um direcionamento político oposto em muitos sentidos à sua própria visão de mundo. Terão, dito de outra forma, que deixar de lado sua própria ideologia e suas pulsões internas para defender princípios muito diferentes dos da Administração que os nomeou. “O presidente-eleito se apoiará no Banco Mundial, no FMI e no BID para enfrentar as dificuldades econômicas e sociais da pandemia, e esperará que estas pessoas respondam à direção da sua política”, esboça, em conversa com o EL PAÍS, Thomas Shannon, antecessor de Valenzuela nos tempos de George W. Bush. Poderão conviver com Biden no poder? “Dependerá de cada um deles: terão que se adaptar a um entorno completamente diferente em Washington”.

Mudança de retórica

Tudo indica que os anos de unilateralismo ficarão para trás a partir do próximo 20 de janeiro, quando Biden já estiver definitivamente instalado no número 1.600 da avenida Pensilvânia, em Washington. A julgar pelo discurso dele e da sua equipe, o democrata tratará de recolocar os EUA no centro da política econômica global, procurará tecer laços e cumplicidades com outros países em vez da política do “comigo ou contra mim”, defendida por seu antecessor e reforçará a capacidade de ação dos organismos internacionais quando o mundo mais precisa deles, em plena saída da crise do coronavírus. As indicações de Janet Yellen, ex-presidenta do Fed, como chefa do Tesouro e de Anthony Blinken como secretário de Estado são uma clara amostra dos rumos a partir de agora.

“Biden retornará à abordagem multilateral de Obama. Entre outras coisas, porque ficou demonstrado o fracasso das guerras comerciais unilaterais de Trump”, projeta Canuto. “O presidente-eleito utilizará o multilateralismo para demonstrar que os EUA voltam a se comprometer com o mundo, promovendo a cooperação e a colaboração”, salienta Shannon. “Se algo Biden fará é justamente recuperar o multilateralismo e fortalecer as instituições internacionais que ficaram à margem neste Governo”, conclui Valenzuela. À margem do FMI, do Banco Mundial e do BID, o caso da Organização Mundial do Comércio (OMC) brilha com luz própria: acéfala há meses e esmigalhada pelo impulso da retórica protecionista de Trump, deveria ser uma das entidades onde mais a substituição em Washington seria sentida. Sopram ventos de mudança na Casa Branca e nos principais organismos econômicos internacionais.


El País: Ofensiva judicial de Trump para reverter as eleições desmorona na Suprema Corte

A principal instância do Judiciário dos EUA rejeita o pedido de anulação dos resultados da Pensilvânia feito pelos advogados do presidente

A Suprema Corte dos Estados Unidos rejeitou na terça-feira uma solicitação apresentada por membros do Partido Republicano para que os resultados eleitorais da Pensilvânia ― já certificados em favor de Joe Biden ― sejam anulados. Desde a noite eleitoral de 3 de novembro, Donald Trump depositava suas esperanças em impugnar o resultado na principal instância judicial norte-americana, de maioria conservadora. Mas a primeira decisão do tribunal não foi favorável ao republicano, que insiste em apontar fraude nas eleições.

Os juízes da Suprema Corte votaram a favor de manter a sentença de um tribunal da Pensilvânia que havia rejeitado a ação dos republicanos relativa aos votos pelo correio. Os autores da ação, encabeçados pelo congressista republicano Mike Kelly, pediram à corte estadual que anulasse os 2,5 milhões de cédulas enviadas por via postal, por considerarem que são irregulares, ou então que ordenasse aos deputados estaduais que escolham eles próprios, independentemente do voto popular, os delegados que representarão o Estado na reunião do Colégio Eleitoral, em 14 de dezembro, que elegerá formalmente o próximo presidente do país. Esse cenário configurava uma tentativa de subverter o processo democrático, segundo argumentaram os advogados que representavam o Estado da Pensilvânia, pois seria ignorar o sentido do voto dos cidadãos locais.

A decisão da Suprema Corte publicada na tarde de terça-feira consistiu em uma só frase, aprovada de maneira unânime (não houve dissidências por escrito): “A solicitação de uma medida cautelar apresentada ao juiz [Samuel] Alito e por ele remetida ao Tribunal foi rejeitada”. Os autores da ação solicitavam que os magistrados obrigassem os funcionários do Governo estadual da Pensilvânia a deterem o processo de certificação dos votos ou “anular qualquer ação já adotada” enquanto os republicanos continuam apresentando novas ações e recorrendo das já rejeitadas nos tribunais de recursos estaduais. O governador democrata do Estado, Tom Wolf, já certificou a vitória de Biden, e os seus 20 eleitores se reunirão em 14 de dezembro para votar a favor do democrata.

A Suprema Corte da Pensilvânia rejeitou a ação republicana por entender que ela viola uma lei estadual de 2019 que permite votar por correio sem necessidade de dar explicações. “No momento em que se apresentou esta ação, em 21 de novembro de 2020, milhões de eleitores da Pensilvânia já haviam manifestado sua vontade tanto nas eleições primárias de junho de 2020 como nas eleições gerais de novembro de 2020”, observou o tribunal.

Os advogados do Estado acusaram os autores da ação de tentarem criar uma das disputas mais “dramáticas e perturbadoras do Poder Judiciário na história da República”. “Nenhum tribunal jamais emitiu uma ordem que anulasse a certificação dos resultados de eleições presidenciais por parte de um governador”, escreveram os juízes na sua sentença no final de novembro. A Suprema Corte dos EUA não costuma questionar sentenças dos órgãos estaduais em matéria eleitoral.

Biden teve 50% dos votos na Pensilvânia, contra 48,8% de Trump. O presidente-eleito somou 306 votos no Colégio Eleitoral, superando comodamente os 270 necessários para chegar à Casa Branca. Mesmo se o republicano tivesse conseguido reverter o resultado da Pensilvânia, com 20 votos eleitorais, o democrata continuaria como vencedor do Colégio Eleitoral.

Mais de um mês depois das eleições, Trump continua sem admitir sua derrota, e a ofensiva judicial por ele iniciada até agora só acumula derrotas, chegando a ser ridicularizada em alguns despachos. Antes da divulgação da sentença da Suprema Corte, Trump, em um ato na Casa Branca relacionado às vacinas contra o coronavírus, estimulou seus partidários a “terem a coragem” de reverter os resultados. “Vejamos se alguém tem a coragem, um parlamentar ou os Legislativos estaduais, um juiz da Suprema Corte ou vários juízes da Suprema Corte. Vejamos se terão a coragem de fazer o que todo mundo neste país sabe que é o certo”, disse.

Na tarde de terça-feira, o procurador-geral do Texas, Ken Paxton, moveu uma ação junto à Suprema Corte para impugnar os resultados das eleições na Geórgia, Michigan, Pensilvânia e Wisconsin, por supostamente descumprirem a legislação eleitoral e aprovar mudanças de última hora relativas ao voto postal ― as quais foram adotadas para facilitar a participação em meio à pandemia de coronavírus sem pôr o eleitorado em risco. Paxton, um grande defensor de Trump, acusou os quatro territórios que deram o triunfo a Biden de terem “inundado seus cidadãos com solicitações e cédulas ilegais”. A ação busca impedir que os eleitores dos Estados votem em 14 de dezembro seguindo o resultado de cédulas “ilegais e constitucionalmente contaminadas”. Não há nenhum indício que sustente essas acusações.