Trump
“Trump venceu as eleições porque soube captar a insatisfação social”
Marco Aurélio Nogueira cita cenário que pode fazer EUA ficar mais sombrio com Trump
O autor de A Democracia Desafiada, Marco Aurélio Nogueira, aborda as dificuldades enfrentadas pelos sistemas democráticos atuais, a insatisfação com a democracia, do que a democracia precisa para poder funcionar bem e como educar politicamente os cidadãos, em entrevista à revista da Fundação Conrado Wessel. Explica também os motivos que levaram Donald Trump novamente à Casa Branca
Marco Aurélio Nogueira é professor titular aposentado da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Foi docente do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (FCL-Araraquara) e do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unesp, PUC-SP e Unicamp). É colunista do jornal “O Estado de S. Paulo”, tradutor e ensaísta.
Bacharel em Ciências Políticas e Sociais pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo (1972) e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (1983), com pós-doutorado na Universidade de Roma (1984-1985). De 1987 a 1991, foi diretor de publicações da Fundação para o Desenvolvimento da Unesp, cargo a partir do qual organizou e dirigiu a Editora Unesp. Dirigiu também a Escola de Governo e Administração Pública da Fundap – Fundação para o Desenvolvimento Administrativo (1991-1995) e o Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da Unesp (2011-2016).
Também é autor de "Um Estado para a sociedade civil. Temas éticos e políticos da gestão democrática" (2015), "As ruas e a democracia. Ensaios sobre o Brasil contemporâneo" (2013) e "Potência, limites e seduções do poder" (2008), entre vários outros que escreveu, organizou ou traduziu.
A seguir, confira a entrevista que Marco Aurélio concedeu à revista FCW Cultura Cietnífica:
FCW Cultura Científica – Professor Marco Aurélio, como podemos explicar a nova eleição de Donald Trump, com seu discurso polarizador na campanha, seus processos e após todos os problemas de seu primeiro mandato, incluindo a invasão do Capitólio?
Marco Aurélio Nogueira – É um desafio a mais para a democracia. Os Estados Unidos modelaram a democracia a partir do século 18 e, em boa medida, propiciaram a adoção desse modelo pela maior parte dos países do chamado mundo ocidental. Forjou-se assim um sistema de regras, procedimentos, divisão de poderes, instituições de controle, freios e contrapesos (checks and balances) que garantiram a estabilidade da democracia e até mesmo sua progressiva ampliação. Acontece que o mundo mudou muito nas últimas décadas e o conjunto de mudanças que se sucederam pôs em xeque o modo de governar, a organização da democracia e seu funcionamento. Os governos passaram a ter mais dificuldades para tomar decisões que atendessem às expectativas sociais, as quais se ampliaram e se fragmentaram. Alterações importantes no modo de vida e na cultura dos cidadãos — transformações no trabalho, no estilo de vida, nos valores, tudo alavancado pela velocidade das novas tecnologias de informação e comunicação — fizeram com que a democracia reduzisse sua capacidade de cumprir suas "promessas" e dialogar com a população. As pessoas começaram a criticar a política tal como vinha sendo praticada, e, a partir daí, cresceu um sentimento de "antipolítica", que atingiu em cheio os agentes democráticos, suas elites e instituições.
Em boa medida, essa situação tem impulsionado a derivação de muitas sociedades para formas extremas de autoritarismo e populismo, com certo desinteresse em reproduzir e sustentar a democracia. Trump, nos Estados Unidos, é fruto dessa nova realidade, aqui mencionada de forma simplificada. Venceu as eleições porque soube captar a insatisfação social contra o establishment, representado pela candidata democrata Kamala Harris, que carregou o ônus de ser vice-presidente do desgastado Joe Biden. Trump venceu também porque os democratas não souberam compreender os apoios que a população vinha dando a ele, explicando-os como "passageiros", como manifestação de "racismo" e misoginia, ou como resultado de uma exposição excessiva às fake news despejadas pelas mídias sociais. A insistência democrata em valorizar pautas identitárias (gênero, raça, etnia, orientação sexual) não ajudou a construir uma narrativa suficientemente articulada para atrair a população e assimilar suas críticas.
O mais curioso – e assustador – é que boa parte do eleitorado que votou em Trump o fez por acreditar que era preciso defender a democracia, e isso em todos os recortes possíveis (homens brancos e negros, mulheres brancas e negras, latinos e hispânicos). O mais trágico é que a principal potência mundial será agora governada por um negacionista assumido, o que certamente dificultará ainda mais o alcance de algum consenso sobre a emergência climática e ambiental. Tudo isso mostra que há uma disputa aberta sobre o significado de democracia e sobre o imaginário norte-americano. Os democratas (e sobretudo os progressistas) terão de correr atrás do prejuízo e rever muitas de suas posições. É algo que vale para os Estados Unidos e para todas as sociedades contemporâneas.
FCW Cultura Científica – Como essa nova vitória de Trump poderá impactar a democracia nos Estados Unidos e no mundo, inclusive nas próximas eleições no Brasil?
Marco Aurélio Nogueira – O impacto principal será sobre o sistema democrático nos Estados Unidos: será ele capaz de resistir às investidas autoritárias de Trump, conter suas propostas mais agressivas, como a de expulsar imigrantes não regularizados, turbinar o uso de petróleo e considerar que as preocupações climáticas e ambientais são perda de tempo e desperdício de recursos? Se Trump conseguir aprovar tais propostas, o cenário ficará mais sombrio, com repercussões que tendem a embaralhar muitas peças no tabuleiro mundial. É evidente que impactos também ocorrerão no plano das relações internacionais, no modo como as principais potências (EUA, União Europeia, Rússia, China) interagem e disputam espaços entre si. O populismo autoritário poderá se beneficiar e crescer.
Quanto ao Brasil, é difícil imaginar que a vitória de Trump dê novo fôlego à extrema direita brasileira, a ponto de aumentar sua potência eleitoral em 2026. Algo assim pode ocorrer, claro. Mas não me parece o mais provável, especialmente se considerarmos que o eleitorado brasileiro manifestou-se expressivamente em favor de posições políticas mais moderadas e “centristas”, como ocorreu nas eleições municipais de outubro de 2024. Mesmo que as correntes progressistas não tenham se projetado, é fato que a extrema direita se dividiu e não mostrou tanta capilaridade quanto se imaginava. No entanto, tudo dependerá de como as correntes democráticas e as esquerdas irão se comportar daqui para frente.
FCW Cultura Científica – Em seu novo livro, A Democracia Desafiada, o senhor explora dificuldades enfrentadas pelos sistemas democráticos atuais. A democracia está em crise?
Marco Aurélio Nogueira – Esse é um tema que sempre provoca controvérsia e, para abordá-lo, sugiro partir de uma ideia de democracia. Do que estamos falando quando mencionamos democracia? Podemos adotar uma perspectiva mais ampla e ir da democracia política para a social ou econômica, considerando estas últimas sob a ótica de uma igualdade substantiva. Contudo, podemos nos ater – e o meu livro tenta ficar nesse terreno – a uma concepção de democracia política entendida como um sistema. Ou seja, a democracia não é uma ideia abstrata que paira no ar; ela se concretiza em sistemas estruturados, que podem ser mais ou menos bem organizados. No primeiro caso, teríamos uma democracia que, em tese, funcionaria melhor e produziria melhores resultados. Já em sistemas menos estruturados, a democracia opera de forma instável, com dificuldades para produzir resultados e enfrentando muitas crises. A própria ideia de crise da democracia não é tão geral quanto se costuma afirmar, pois não é verdade que a democracia deixou de funcionar. É certo que, nas últimas décadas, ela sofreu abalos que fizeram com que a ideia de crise emergisse com mais força, mas, se olharmos, por exemplo, para a experiência dos Estados de bem-estar na Europa Ocidental, a democracia ali nunca foi vista como um sistema em crise. Mesmo na França, antes da ascensão de Marine Le Pen, a democracia não era considerada um sistema em crise. Portanto, precisamos ter certo cuidado para não generalizar demais a ideia de crise ou de desafio à democracia. A construção democrática é, afinal, um exercício permanente.
FCW Cultura Científica – Do que a democracia precisa para poder funcionar bem?
Marco Aurélio Nogueira – Vista como um sistema, em primeiro lugar, ela precisa de instituições estáveis e bem desenhadas em relação às sociedades existentes. Por exemplo, o sistema democrático institucional brasileiro, para ser bem desenhado, deve corresponder à situação brasileira. Não há uma institucionalidade democrática única e comum a todas as sociedades, e muito menos uma institucionalidade perfeita, porque as instituições são dinâmicas e sofrem abalos. Se pegarmos uma instituição como uma grande empresa, por exemplo, veremos que ela pode assumir diferentes formatos, adaptando a distintas circunstâncias e a diferentes planos de expansão. Ela se modifica, se reestrutura, adota novos métodos de organização de trabalho e assim por diante. Dá-se mesmo com os partidos e as instituições políticas. Em segundo lugar, o sistema democrático precisa de organizações, das quais a mais importante, pensando no sistema democrático como um sistema político, são os partidos políticos. Os partidos políticos são organizações que criam uma espécie de elo entre o sistema democrático e a população. O sistema democrático também necessita de cidadãos bem-educados politicamente; não se pode ter democracia em uma sociedade composta por um bando de loucos. A democracia precisa de cidadãos bem-educados política e civicamente. Esse é um recurso precioso para as democracias, porque são os cidadãos que, em última instância, vão decidir, nas eleições, a qualidade da democracia. São os cidadãos que vão impulsionar a democracia para padrões mais elevados ou menos elevados. Isso significa, explorando a ideia de organizações, que o sistema democrático precisa também, de modo estratégico, de um parlamento ativo e representativo, que seja expressão da vida social e comunitária dos cidadãos. Porque, se o parlamento se descolar da sociedade, ele vai girar em falso e deixar de ser um elemento representativo. O sistema democrático precisa também de um Executivo criterioso. Se o Executivo for tresloucado, a democracia não aguenta; ela passa a ser cancelada, como ocorre em sistemas com presidentes autoritários. Se você tem um Nicolás Maduro no poder, por exemplo, fazendo as coisas que ele e o grupo dele fazem, não há democracia que suporte. E o Judiciário, que é o terceiro grande poder, tem de ser sereno, defender a constituição e não postular um lugar no jogo político propriamente dito. As supremas cortes no mundo todo fazem esse papel. Podem fazer sempre esse papel ou podem dar umas derrapadas e entrar na briga política, tomando posição, o que é um grande complicador para o sistema democrático.
FCW Cultura Científica – Como explicar a insatisfação com a democracia?
Marco Aurélio Nogueira – A democracia continua sendo proclamada aos quatro ventos, mas é questionada o tempo todo, e a insatisfação se alastra. A democracia atual está sob ataque tanto por não conseguir se atualizar com rapidez quanto por sentir o impacto das transformações culturais em curso. A democracia foi vista como trazendo em seu ventre a solução para o problema da violência e da autocracia, como 'o enigma resolvido de todas as constituições' (Marx), como um sistema em que a representação restringe a participação, como uma ficção formalista destinada a encobrir a exploração de classes, como veículo de uma 'tirania da maioria' (Tocqueville), como regime caótico das multidões, como um sistema que somente se realiza sob a forma de uma democracia direta, sem intermediários. Foi ainda pensada como um corpo vivo, destinado a ter um fim, a se esgotar ao longo de sua evolução. Mas as mudanças socioeconômicas e culturais se chocam com déficits de legitimação, governança e representação que comprometem a capacidade de resposta dos sistemas democráticos. As mudanças exigem mais mudanças e clamam por adaptações sistêmicas, que não conseguem ser alcançadas. A sociedade, fragmentada e individualizada, não avança rumo à formação de um "nós coletivo", que apazigue os excessos das postulações parciais (identitárias, ideológicas, econômico-sociais) e forneça um eixo organizacional minimamente consensual. Como disse Habermas, “a razão instrumental típica da modernidade não foi suficiente para instalar formas mais dignas de vida nas sociedades humanas”. Nas sociedades democráticas modernas, não existe mais o povo como unidade ideal, mas apenas o povo dividido em grupos contrapostos e concorrentes.
FCW Cultura Científica – Como a democracia tem sido desafiada?
Marco Aurélio Nogueira – Quanto mais complexas são as sociedades, maior é a pressão sobre a democracia. O sistema democrático corresponde a um padrão de vida. Pode não corresponder perfeitamente, mas está enraizado em um determinado padrão. Quando esse padrão muda, e muda de forma muito acelerada, como está ocorrendo hoje, o sistema democrático sofre. Ele é desafiado basicamente pela mudança rápida e fora de controle do padrão de vida, seja pela nova vida digital e tecnológica, pelas novas formas de trabalho ou pela hipermodernidade. Essas mudanças na estrutura da vida impactam a estrutura da democracia. Em A Democracia Desafiada, usei a metáfora do vulcão que entra em ebulição e desorganiza tudo, espalhando poeira e destroços, matando a terra. O Brasil hoje parece um vulcão, sobretudo se olharmos, por exemplo, para as queimadas, o clima, o problema ambiental e as ameaças à biodiversidade. É claro que isso é uma metáfora, até porque esse vulcão no Brasil, esperamos, será controlado, mas ele está produzindo muitos estragos. Não é que a deterioração ambiental seja o único fator a desafiar a democracia, mas ela desafia no sentido de que obriga os governantes e gestores a chegarem a um acordo a respeito do que deve ser feito para conter a deterioração ambiental ou a emergência climática. E aí esbarramos em um grande problema, porque os acordos hoje estão difíceis, o diálogo entre as partes da sociedade é muito pobre: briga-se muito e dialoga-se pouco. O ideal seria ter um equilíbrio entre a contestação e o consenso, mas isso não está ocorrendo. No Brasil, estamos com uma carência muito grande de acordos desde o impeachment da presidente Dilma Rousseff, em 2016, ou mesmo antes, nas manifestações de 2013, quando se abriu um buraco de desentendimento na sociedade. Hoje, ninguém mais parece se entender. Posso estar exagerando, mas esse é um grande problema, porque a democracia, para funcionar bem, depende de cidadãos, de valores, de instituições, de organizações e depende de que tudo isso entre em sintonia. Se cada um atirar para um lado, não é só a democracia que será desafiada, será a própria vida. Na questão ambiental, se não houver uma convergência e um consenso, a Terra acaba. Não podemos desenhar políticas climáticas ou ambientais sem um entendimento básico na sociedade. Se o agronegócio for em uma direção, a indústria em outra, ou se ninguém se importar com a quantidade de água que usa, a situação ficará insustentável. Acho que o grande problema, e foi nesse sentido que escrevi A Democracia Desafiada, é entender o desafio à democracia que vem do modo de vida. Ou seja, não é principalmente uma falha do sistema democrático, não é uma falha da democracia em si, até porque, quando a democracia funciona, ela funciona movida por pessoas, líderes, organizações e cidadãos. E, hoje, onde estão os grandes líderes políticos e os grandes estadistas? Eles não aparecem na quantidade que, em tese, seria necessária. O tempo exige uma espécie de reinvenção da política, cujos caminhos não estão claros.
FCW Cultura Científica – O vazio de líderes políticos se soma à própria perda do interesse pela política por boa parte da população?
Marco Aurélio Nogueira – Hoje, os políticos podem viver sem maiores relações com a sociedade e com a vida porque as pessoas se afastaram do sistema democrático. Por que isso aconteceu? Para tentar entender, precisamos olhar para as duas dimensões da equação: as pessoas e a democracia. É provável que a resposta para o problema seja que os cidadãos passaram a não ter suas expectativas acolhidas, e a democracia se fechou em si mesma, perdendo o contato e o diálogo com a sociedade. O resultado foi o crescimento do desinteresse pela política. As pessoas passaram a achar que todo o sistema político precisa ser destruído e perderam a confiança em seus líderes e representantes. Então, viraram as costas; quando protestam, o fazem com desânimo, achando que nada será resolvido, porque, no fundo, acreditam que os políticos não prestam. Cada um tem sua fórmula para atacar a política e o sistema democrático. A raiva e o ressentimento cresceram bastante. O sistema não funciona bem, não dá respostas satisfatórias, porque perdeu o contato com a vida. Ele ficou anacrônico, permaneceu analógico em uma vida que se tornou digital. E, assim, temos o ruído. Antes, no Brasil, tínhamos eleições de outra qualidade, com programas, ideias ou uma construção a respeito do futuro. Já faz algum tempo que não temos mais isso.
FCW Cultura Científica – O candidato não precisa mais ter um projeto político, só precisa da internet e das redes sociais?
Marco Aurélio Nogueira – Em boa medida, é assim mesmo. Candidatos e eleitores valem-se das redes para obter informações, produzir informações e desinformação, explorando as diversas faces da luta entre o bem e o mal. Ah, este aqui é anticomunista, então ele é bom. Aquele outro é autoritário, o outro é não sei o quê, este tem uma suspeita de corrupção, aquele votou de forma direitista e se apresenta como esquerdista. E, com isso, surge uma dicotomia completa, que não acrescenta nada e não dá bons resultados na escolha dos governantes. Sobretudo não ajuda a que se governe bem, pois não favorece a formação de consensos. Numa forma de vida “digitalizada”, como é a nossa, na qual as as condições existenciais estão sob o domínio informático e as redes sociais estão nos conectando em tempo integral, tudo fica fora de lugar. Os sistemas políticos, a democracia, a ideia mesma de partido político, o modo como se faz uma campanha eleitoral, sofrem impactos que exigem uma forte reformulação de ideias e procedimentos.
FCW Cultura Científica – Como fazer para que as novas gerações voltem a se interessar por política a ponto de participarem, atuarem e se tornarem os líderes do futuro?
Marco Aurélio Nogueira – A vida fez com que surgissem obstáculos imprevistos que impediram a democracia de cumprir suas grandes promessas. Assim falou Norberto Bobbio há 40 anos. A democracia não conseguiu criar condições para que os cidadãos se tornassem politicamente educados. Cresceram a apatia política e o desinteresse. No Brasil, por exemplo, durante muitos anos, tivemos no ensino fundamental e médio as disciplinas de Educação Moral e Cívica e Estudos de Problemas Brasileiros. Essas disciplinas poderiam ter funcionado como educação cívica, mas foram instrumentalizadas pela ditadura militar. Por conta disso, hoje não pensamos mais nesses termos. No entanto, acredito que deveria haver um esforço para que o sistema escolar transmitisse aos estudantes alguns elementos de política. Por exemplo, discutindo o que é o Estado, a democracia, a representação, como se governa. A grande maioria dos brasileiros não sabe como se organizam os modelos de governo, o que fazem os poderes e os ministros, ou quais são os valores que constituem a sociedade brasileira. Isso deve ser abordado na escola. Em uma democracia, os cidadãos devem ser capazes de compreender as regras democráticas e se dispor a participar de acordo com elas.
FCW Cultura Científica – Como fazer para educar politicamente os cidadãos?
Marco Aurélio Nogueira – O melhor caminho passa pela educação, pelo sistema escolar. E também por uma melhoria nos sistemas de regulação, especialmente na internet. Acredito que o empobrecimento cívico do cidadão acompanhou a mudança estrutural no modo de vida. No caso das redes sociais, estamos lidando com uma espécie de "bomba de efeito tóxico" que desorganiza a mente da população. As redes sociais funcionam por meio de estímulos imediatos. Alguém escreve algo, e, automaticamente, milhões de pessoas podem ler. Esse é um recurso valioso de comunicação, mas também pode se transformar em um grande problema. As pessoas são constantemente bombardeadas por marketing, merchandising e desinformação, a todo momento, a cada segundo. As redes sociais têm virtudes, como a possibilidade de interagir com outros à distância, o que é ótimo e favorece a socialização. No entanto, elas também nos conectam a uma corrente de alta velocidade, repleta de superinformação e exageros, que se misturam com a desinformação. Parte dos usuários acredita em tudo o que recebe por meio dos aplicativos de comunicação. A educação política terá de se projetar nesses ambientes.
FCW Cultura Científica – O que se pode fazer para reduzir a desinformação? Precisamos de mecanismos de controle mais eficientes para as redes sociais ou de legislação para isso?
Marco Aurélio Nogueira – O padrão de vida que está se estruturando é muito difícil de ser controlado, principalmente porque ele está rompendo com as hierarquias. Uma parte do controle que existia anteriormente era fornecida pelas burocracias. Havia o chefe, o auxiliar, e as pessoas seguiam padrões obrigatórios de rotina e disciplina. Não estou dizendo que isso era bom ou ruim, mas servia para manter certa ordem. O que aconteceu? A burocracia entrou em colapso no mundo. Hoje, é muito difícil manter um sistema burocrático em funcionamento e, no lugar da burocracia, não surgiu outro sistema de controle eficaz. Acho que é possível ter um controle democrático, embora seja algo extremamente complexo. E que pode colidir com a liberdade. Em uma sociedade com muita aceleração, que muda rapidamente, onde há uma quantidade imensa de informação misturada com desinformação, ciência e senso comum, é impossível dizer o que os indivíduos devem ou não consumir. Se pensarmos politicamente, antes quem controlava os cidadãos eram os partidos, por piores que fossem. Os principais deles tinham uma capilaridade que ajudava a manter as pessoas dentro de uma certa ordem. Havia um modelo de conduta na política. Mas, quando os partidos começam a falhar – e hoje vemos falhas gritantes no mundo partidário, tanto no Brasil quanto em outros lugares –, esses espaços de ordem desaparecem. Desaparecem os espaços de educação política e de formação de consensos. Abrem-se vazios que são ocupados pelos mais espertos, pelos mais ágeis ou por aqueles que dominam melhor a tecnologia e as redes sociais. Nesse cenário, a extrema direita tem se mostrado mais astuta do que os democratas e a esquerda. Tem sabido ocupar os espaços e ganhar adesões. Isso não é algo exclusivo do Brasil, mas um fenômeno global, como vemos com o caso de Donald Trump ou com os líderes de direita na Europa. Eles exploram, por exemplo, o problema da imigração, que causa insatisfação e medo nas comunidades, e usam isso para prometer um ataque frontal aos imigrantes. Isso é uma loucura, é como propor uma guerra civil permanente, mas, ainda assim, acaba capturando a atenção, com as pessoas dizendo: "Eu não quero um marroquino, um vietnamita ou um venezuelano na porta da minha casa". O Brasil não enfrenta esse problema, mas se o mundo continuar nesse caminho, isso também poderá acontecer por aqui.
FCW Cultura Científica – Apesar dos muitos e permanentes desafios, a democracia permanecerá?
Marco Aurélio Nogueira – A democracia é um sistema vivo, dinâmico, que interage permanentemente com os demais sistemas sociais. Como qualquer sistema, conhece desajustes e disfunções, que revelam fraquezas e pedem correção. Mas a democracia não entra em crise sozinha, exclusivamente por defeitos intrínsecos ou falhas institucionais. Suas crises sempre exprimem um quadro mais geral de “desarranjo", de mudança estrutural e insatisfação social. A democracia nem sempre produz resultados satisfatórios. Alguns de seus pedaços podem perder funcionalidade e não serem ajustados com rapidez. O sistema não é infalível e não existe para agradar a todos. Sua capacidade de reprodução está apoiada na capacidade de não perder contato com a vida social e os humores cívicos. Enquanto for possível que os cidadãos pelo menos mudem seus governantes por meio de eleições, a democracia estará respirando. A democracia é sempre experimental e dinâmica, o que faz com que seja traduzida de diferentes maneiras. As noções que lhe são mais inerentes (liberdade, poder, povo, representação, participação, soberania) permaneceram abertas a múltiplas interpretações. O que há de crise nas democracias atuais está diretamente associado à representação: a desconfiança e a insatisfação dos cidadãos estão pondo em xeque os mecanismos de escolha dos governantes e legisladores. Uma democracia entra em crise quando perde capacidade de processar os conflitos sociais e os abismos da desigualdade. Em suma, a democracia permanece a desfraldar suas bandeiras mundo afora. Não dá mostras de estar em estado de sofrimento ou crise terminal. Como sempre, porém, mantém-se pedindo cuidados, valorização e proteção.
Trump anuncia pré-candidatura à Presidência dos EUA em 2024
Made for minds*
O ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump anunciou nesta terça-feira (16/11) que vai se candidatar mais uma vez à Casa Branca em 2024, abrindo a corrida pela nomeação republicana.
"A fim de tornar a América grande e gloriosa novamente, anuncio nesta noite a minha candidatura à Presidência dos Estados Unidos", disse o bilionário de 76 anos, aplaudido por uma multidão na sua mansão em Mar-a-Lago, na Flórida.
Diante de centenas de apoiadores e rodeado de bandeiras americanas e faixas com o seu icônico slogan de campanha Make America Great Again (Tornar a América Grande Novamente, em português), o magnata recordou o primeiro mandato de forma idílica, descrevendo esse período como um país em paz, próspero e respeitado no cenário internacional, e exagerando na descrição das suas conquistas enquanto presidente.
"Vou concorrer porque acredito que o mundo ainda não viu a verdadeira glória que esta nação pode ter. Vamos novamente colocar a América em primeiro lugar", disse.
Ao mesmo tempo que falou em unidade, Trump indicou que derrotará "os democratas radicais de esquerda que estão tentando destruir o país por dentro", criticando o atual presidente. "Joe Biden personifica os fracassos da esquerda e a corrupção de Washington", acusou.
"Eu não precisava disto, tenho uma vida boa e tranquila, mas amamos o nosso país e temos de salvá-lo", afirmou, referindo-se à sua candidatura.
O magnata pediu a eliminação de todas as votações antecipadas, votações à distância e o uso de urnas eletrônicas. "Apenas cédulas de papel", defendeu.
Em seu discurso de mais de uma hora, transmitido ao vivo pela televisão, também não faltaram ataques à imprensa.
Trump aproveitou ainda para acenar ao "fantástico" povo latino e hispânico, de quem disse esperar conseguir mais votos, apesar da polêmica construção de um muro na fronteira com o México.
Relutância republicana
Momentos antes do anúncio público, Trump já havia formalizado sua pré-candidatura à Presidência por meio de um documento enviado à Comissão Eleitoral Federal americana. Ele é o primeiro político a oficializar a pré-candidatura às eleições presidenciais de 2024.
O anúncio de Trump ocorreu num momento em que crescem sinais de relutância dentro do Partido Republicano em vê-lo regressar a uma corrida presidencial, já que muitos candidatos que o magnata apoiou nas eleições de meio mandato (midterms) saíram derrotados das disputas com os democratas.
Os republicanos esperavam uma "onda vermelha" (referência à cor do partido), com grandes vitórias nas corridas para governadores e para o Congresso. Em vez disso, perderam a oportunidade de conquistar a maioria no Senado. Ainda não está claro quem terá o controle sobre a Câmara, mas os republicanos estão a caminho de conquistar uma maioria por margem apertada.
Em seu discurso, Trump afirmou que, de todos os candidatos que ele apoiou, "somente 22" não foram eleitos.
Ainda há um longo caminho pela frente antes que o pré-candidato republicano possa eventualmente ser nomeado candidato do partido em meados de 2024. Outros possíveis postulantes republicanos à Presidência já surgem no horizonte, como o governador reeleito da Flórida, Ron DeSantis, e o ex-vice-presidente americano Mike Pence, ambos ex-aliados de Trump.
Pesquisas de intenção de voto indicam que DeSantis, que ainda não revelou se se candidatará, teria uma vantagem significativa frente a Trump se houvesse um duelo entre eles nas primárias republicanas.
"Donald Trump decepcionou os EUA"
Do lado democrata, Biden, que derrotou Trump em 2020, afirmou que pretende se recandidatar em 2024, mas que isso depende de uma "decisão familiar" que deverá ser tomada no início do próximo ano.
Em reação ao anúncio da pré-candidatura de Trump, Biden divulgou no Twitter um vídeo crítico ao republicano e seu governo, acompanhado da frase: "Donald Trump decepcionou os EUA."
Trump já sofreu dois impeachments na Câmara e continua envolvido em múltiplas investigações políticas e criminais, relacionadas a finanças de sua empresa familiar, documentos confidenciais que mantinha na sua mansão em Mar-a-Lago e à invasão do Capitólio por uma turba de apoiadores dele após o republicano contestar a vitória eleitoral de Biden.
lf (Reuters, Efe, Lusa)
Texto publicado originalmente em Made for minds.
Trump divulga mensagem de apoio a Bolsonaro
Ex-presidente americano tece elogios a seu "grande amigo" e diz que Brasil tem sorte de ter Bolsonaro
DW Brasil
O ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump divulgou uma mensagem de apoio ao presidente brasileiro Jair Bolsonaro, a quem tece vários elogios e chama de "grande amigo".
O comunicado de apenas cinco frases, intitulado "Endosso ao presidente Jair Bolsonaro", não deixa claro o motivo de ser divulgado agora, mas veio no mesmo dia em que senadores votavam o relatório final da CPI da Pandemia, que tem Bolsonaro como um dos alvos.
Também na terça-feira (26/10), o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) iniciou um julgamento que pode levar à cassação da chapa presidencial de Bolsonaro e do vice Hamilton Mourão.
"O presidente Jair Bolsonaro e eu nos tornamos grandes amigos ao longo dos últimos anos", inicia a mensagem de Trump, de quem Bolsonaro sempre foi um fã declarado. "Ele luta muito por, e ama, o povo do Brasil – como eu faço pelo povo dos Estados Unidos", continua.
"O Brasil tem sorte de ter um homem como Jair Bolsonaro trabalhando por ele. Ele é um grande presidente e nunca vai decepcionar o povo de seu grande país!", conclui o ex-presidente.
O comunicado não menciona a CPI da Pandemia, tampouco o julgamento no TSE. O tribunal avalia se Bolsonaro e Mourão cometeram os crimes de abuso de poder e uso indevido dos meios de comunicação social para a realização de disparos em massa de mensagens durante a campanha eleitoral de 2018. Três ministros já votaram, todos contra a cassação da chapa.
Por sua vez, o relatório final da CPI foi aprovado na noite de terça-feira, por sete votos a quatro, e pede o indiciamento do presidente por sete crimes comuns, além de crimes de responsabilidade e contra a humanidade por sua gestão da pandemia.
O relatório pede ainda o banimento de Bolsonaro das redes sociais, após ele usar uma live para fazer declarações que associaram falsamente as vacinas contra covid-19 ao risco de desenvolver aids.
A live repleta de mentiras acabou sendo excluída pelo Facebook, Instagram e YouTube. A última plataforma também suspendeu a conta do presidente por sete dias. Não é a primeira vez que o presidente tem conteúdo apagado pelas redes ao longo da pandemia. No ano passado, ele teve publicações com conteúdo falso suprimidas pelo Twitter e Facebook.
Alinhamento com Trump
Assim como Bolsonaro, Trump também usava as redes sistematicamente para espalhar mentiras e ataques enquanto presidente americano. No início do ano, Twitter, Facebook e YouTube acabaram banindo o republicano após ele estimular a invasão do Capitólio, a sede do Congresso do país, uma ação que resultou na morte de cinco pessoas. Ele segue banido.
Quando Trump estava no poder, Bolsonaro implementou um alinhamento sem ressalvas com o governo do republicano e demorou a admitir a derrota dele nas eleições americanas de 2020, afirmando – sem provas – que o atual presidente, Joe Biden, só ganhou o pleito por causa de fraudes.
O líder brasileiro foi o último chefe de Estado do G20 a reconhecer a vitória eleitoral de Biden, depois de até mesmo adversários dos EUA, como o russo Vladimir Putin.
Fonte: DW Brasil
https://www.dw.com/pt-br/trump-divulga-mensagem-de-apoio-a-bolsonaro/a-59637030
Senadores dos EUA alertam para ameaças à democracia no Brasil
Departamento de Estado deve condicionar apoio ao país à preservação da democracia, defendem parlamentares
DW Brasil
Membros da Comissão de Relações Exteriores do Senado americano alertaram nesta terça-feira (29/09) que o relacionamento dos Estados Unidos com o Brasil estará em risco, caso o presidente Jair Bolsonaro desrespeite as regras democráticas nas eleições de 2022.
Eles temem que alegações infundadas de fraude eleitoral por parte de Bolsonaro possam gerar atos de violência semelhantes à invasão à sede do Congresso americano, no dia 6 de janeiro, quando centenas de apoiadores do ex-presidente Donald Trump tentaram impedir a formalização da vitória democrata nas eleições americanas.
Na carta, endereçada ao secretário de Estado, Antony Blinken, senadores do Partido Democrata afirmam que perturbação da ordem democrática no Brasil poderia colocar em risco a fundação das relações entre as duas nações mais populosas do Hemisfério Ocidental.
"Pedimos que o senhor deixe claro que os Estados Unidos apoiam as instituições democráticas do Brasil e que um rompimento antidemocrático da atual ordem constitucional terá graves consequências”, afirma o documento assinado pelo presidente do Comitê de Relações Exteriores do Senado, Bob Menendez, juntamente com os senadores Dick Durbin, Ben Cardin e Sherrod Brown.
A preocupação dos senadores diz respeito aos questionamentos feitos pelo presidente brasileiro ao sistema de votação do país, que resultaram na tentativa frustrada de impor uma reforma eleitoral, barrada no Congresso.
Bolsonaro sinalizou em várias ocasiões que poderá, inclusive, não aceitar uma virtual derrota nas urnas no ano que vem, o que também seria uma espécie de manobra para insuflar sua base de apoio.
"Linguagem irresponsável"
"Esse tipo de linguagem irresponsável é perigosa para qualquer democracia, mas é especialmente imerecida em uma democracia de um calibre como a do Brasil, que por décadas se demostrou capaz de viabilizar transições pacíficas de poder”, afirmam os senadores. "A deterioração da democracia brasileira teria implicações no hemisfério e além.”
As preocupações dos senadores se justificam, uma vez que Bolsonaro vem se envolvendo em constantes atritos com as instituições democráticas brasileiras. Além da controvérsia envolvendo o sistema eleitoral, o presidente costuma lançar fortes ataques ao Supremo Tribunal Federal, além de ter criticado diversas vezes a atuação do Congresso.
Os senadores pediram ao secretário de Estado para tornar o apoio à democracia brasileira "uma prioridade diplomática, inclusive em discussões bilaterais relacionadas à participação do Brasil em organizações como a OCDE e a Otan".
Sem o apoio americano, o Brasil não teria chances de atingir sua ambição de se tornar membro da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, chamada de o "clube dos países ricos”.
O governo do presidente Joe Biden adota uma postura cautelosa e evita entrar em confronto direto com Bolsonaro. Na ocasião da Assembleia-Geral da ONU, na semana passada, Blinken se reuniu com o ministro brasileiro do Exterior, Carlos França.
Uma fonte do Departamento de Estado disse que o objetivo principal do encontro era tentar encorajar o governo brasileiro a aumentar suas ambições climáticas, antes da Conferência do Clima da ONU em novembro, em Glasgow. O Brasil é considerado um ator fundamental na defesa do meio ambiente, em meio à crescente preocupação internacional com a preservação a Amazônia e outros biomas.
A passagem de Bolsonaro por Nova York, durante a Assembleia-Geral, atraiu bastante atenção nos EUA, mas não do modo como desejavam os aliados do governo. Ele reforçou a imagem de negacionista, por ser o único líder dos países do G20 a não estar vacinado contra a covid-19, e por não utilizar máscaras em várias ocasiões.
Em seu discurso na ONU, ele criticou medidas preventivas adotadas por vários países para conter as transmissões do coronavírus, e ainda defendeu o tratamento precoce, que se baseia em medicamentos comprovadamente ineficazes contra a doença.
Fonte: DW Brasil
https://www.dw.com/pt-br/senadores-dos-eua-alertam-para-amea%C3%A7as-%C3%A0-democracia-no-brasil/a-59345917
Luciano Hang presta depoimento à CPI da Pandemia
Investigações apontam que o bolsonarista foi membro atuante do grupo de aconselhamento a Bolsonaro durante a pandemia
Victor Fuzeira e Marcelo Montanini / Metrópoles
Com foco na ação do “gabinete paralelo”, a CPI da Covid-19 ouve, na manhã desta quarta-feira (29/9), o empresário Luciano Hang. As investigações apontam que o bolsonarista foi membro atuante do grupo de aconselhamento ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido) durante a pandemia da Covid-19.
A ida de Hang ao colegiado também faz parte do esforço concentrado dos senadores para apurar irregularidades que envolvem a operadora de saúde Prevent Senior.
Hang chegou ao Senado pouco depois das 10h e falou com a imprensa. Ele afirmou que, ao contrário de outros depoentes, chega ao colegiado sem um habeas corpus que lhe concede o direito de não responder perguntas durante a oitiva.
“Hoje aqui estou sozinho, como um brasileiro normal, um comerciante. Tenho a certeza que estou com Deus e com milhões de brasileiros que querem um Brasil melhor e é por isso que eu luto”, disse.
Aliado de Bolsonaro, o empresário, que assumiu a alcunha de Veio da Havan dada por críticos, é suspeito de ter financiado a disseminação de fake news em blogs bolsonaristas e o grupo de consultores informais do presidente Jair Bolsonaro.
Outra situação que envolve Hang e a operadora de saúde é o caso da possível alteração na certidão de óbito da mãe dele, Regina Hang, supostamente a pedido do próprio empresário. A advogada Bruna Morato, que representa ex-médicos da Prevent Senior, confirmou, nessa terça-feira (28/9), em depoimento à CPI, que a mãe do empresário usou medicamentos sem comprovação de eficácia para a Covid-19 e teve a certidão de óbito alterada.
Profissionais de saúde da Prevent Senior, representados por Bruna Morato, elaboraram um dossiê entregue à comissão com denúncias de uso indiscriminado, nos hospitais da empresa, de medicamentos sem comprovação de eficácia para o tratamento da Covid-19 e coação de médicos para adotarem esse protocolo.
Outra acusação que pesa sobre a empresa é a de alterar atestados de óbitos para ocultar morte de pacientes por Covid-19, com orientação para os médicos mudarem os prontuários.
Às vésperas do depoimento, o empresário divulgou vídeo, nas redes sociais, algemado, provocando a comissão. Hang disse que vai depor com “o coração aberto”. “Se não aceitarem o que vou falar, já comprei uma algema para não gastarem dinheiro. Vou entregar uma chave para cada senador. E que me prendam”, ironizou.
Há uma expectativa de depoimento tenso. Contudo, o vice-presidente da comissão, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), contemporizou: “Ele é um depoente como qualquer outro e nós já tivemos um triste espetáculo de depoente que se utilizou das prerrogativas de parlamentar, que é o caso do deputado Ricardo Barros [líder do governo Bolsonaro na Câmara], para tentar tumultuar, [mas] o senhor Hang não tem imunidade parlamentar. Então, eu espero que ele se comporte conforme reza o Código de Processo Penal”, afirmou o parlamentar.
“As algemas, a mim não me incomodaram. Se ele está tão obcecado pelo uso assim, é uma escolha dele”, alfinetou.
Fake news
Além do “gabinete paralelo” e da Prevent Senior, outro assunto que os senadores querem apurar é a disseminação de fake news relativas à pandemia, e Hang é um dos alvos. Documentos obtidos pela CPI, e divulgados pela TV Globo na semana passada, relevam que o empresário teria financiado o blogueiro Allan dos Santos por intermédio do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente Jair Bolsonaro.
Allan dos Santos é investigado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) nos inquéritos que apuram disseminação de fake news e atos antidemocráticos.
Seguindo a linha de investigação sobre a disseminação de fake news e a ligação com o governo federal, a comissão ouvirá outro empresário bolsonarista, Otávio Fakhoury, que é vice-presidente do Instituto Força Brasil. Ele também é investigado pelo STF no inquérito das fake news.
Assista:
Fonte: Metrópoles / Agência Senado
https://www.metropoles.com/brasil/politica-brasil/cpi-da-covid-luciano-hang-depoimento
EUA: Militares não participariam de golpe, mas democracia no país preocupa
No governo americano, tanto no Executivo quanto no Congresso, percepção é de que Bolsonaro segue estritamente a cartilha de Trump
Mariana Sanches / BBC News Brasil em Washington
Quando o Conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos, Jake Sullivan, e o Assessor Especial do presidente americano Joe Biden, Juan González, entraram no gabinete de Jair Bolsonaro, no Palácio do Planalto, no último dia 5, não esperavam uma conversa de melhores amigos. Mas o que encontraram foi descrito à BBC News Brasil como "nonsense" e "tenso" por oficiais americanos.
Do encontro sobraram não só uma foto de um aperto de mão de Sullivan, de máscara, e Bolsonaro, sem máscara e oficialmente não vacinado, mas também uma preocupação dos americanos com a saúde da democracia brasileira, diante das alegações sem provas do presidente brasileiro de fraude eleitoral nas urnas eletrônicas.
Originalmente, a agenda dos enviados de Biden ao Brasil não teria a democracia brasileira como destaque principal.
A pauta deles incluía oferecer ao país o status de parceiro global da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), condição que dará acesso ao Brasil à compra de equipamentos de guerra de última linha, além de sessões de treinamento militares com os americanos em bases nos EUA.
Por outro lado, a missão americana pretendia pressionar o Brasil a estabelecer — e cumprir — metas de redução de desmatamento ambiciosas e dissuadir o Brasil de usar equipamentos da gigante chinesa de telecomunicações Huawei em sua rede 5G — um dos argumentos dos americanos foi, inclusive, o de que a empresa poderia não entregar os materiais contratados pelo governo Bolsonaro por crise de matérias-primas.
A conversa, no entanto, saiu do script normal com insinuações de Bolsonaro de que o pleito americano de 2020 havia sido roubado — o que faria de Joe Biden um presidente ilegítimo.
A administração Biden sempre esteve ciente de que Bolsonaro defendia publicamente as falsas alegações de Trump sobre as eleições. O republicano fazia múltiplas acusações ao sistema eleitoral dos EUA, questionando tanto aos votos de papel quanto àqueles depositados em urna eletrônica, mesmo antes do dia da votação. Bolsonaro foi o último líder do G-20 a reconhecer a vitória de Biden.
O que os americanos não esperavam é que Bolsonaro dissesse tais coisas diante de Sullivan e Gonzalez, ambos altos representantes do governo a serviços dos democratas há anos.
Segundo autoridades com conhecimento dos fatos, ambos ouviram o suficiente para deixar o encontro preocupados com a democracia no Brasil. Sullivan foi às redes sociais enunciar que a "gestão Biden defende um hemisfério seguro e democrático".
Já Juan Gonzalez fez uma coletiva de imprensa sobre a viagem para Brasil e Argentina na qual falou, na maior parte do tempo, da democracia brasileira. "Fomos muito diretos em expressar nossa confiança na capacidade de as instituições brasileiras conduzirem uma eleição livre e limpa e enfatizamos a importância de não ser minada a confiança no processo de eleições, especialmente porque não há indício de fraude nas eleições passadas", disse Gonzalez, sobre o teor da conversa com Bolsonaro.
A Cartilha Trump
Dentro do governo americano, tanto no Executivo quanto no Congresso, tem ganhado força a percepção de que Bolsonaro segue estritamente a cartilha que Trump adotou ao tentar se perpetuar no poder: denunciar fraudes sem prova, antes mesmo do pleito ocorrer, e criar descrença em parte do eleitorado sobre o processo eleitoral, a ponto de levar a cenas como a invasão do Capitólio por apoiadores, em 6 de janeiro.
A diplomacia de Biden não deixou de notar, por exemplo, o interesse do ex-estrategista de Trump, Steve Bannon, nas eleições de 2022, no Brasil.
O próprio Gonzalez foi explícito sobre o assunto. "Fomos sinceros sobre nossa posição, especialmente em vista dos paralelos em relação à tentativa de invalidar as eleições antes do tempo, algo que, é óbvio, tem um paralelo com o que aconteceu nos Estados Unidos."
Em Washington, a percepção é de que a imagem de Bolsonaro sofreu um abalo significativo como um possível interlocutor após a visita.
"Acho que o governo Biden, especialmente depois dessa reunião em Brasília, vê Bolsonaro como uma figura errática, ou pelo menos como alguém que age de uma forma muito excêntrica e difícil de prever. Ele diz coisas que parecem ir contra seu próprio interesse nacional. Por que ele iria querer brigar com o novo governo dos EUA dizendo que a eleição (americana) foi fraudada? Dá pra entender o porquê Trump faz isso, já que ele quer disputar a presidência de novo e fazer disso um tema, mas para um líder estrangeiro dizer esse tipo de coisa é, no mínimo, estranho", afirma Melvyn Levitsky, ex-secretário executivo do Departamento de Estado e embaixador no Brasil entre 1994-1998.
Militares longe do golpe
Levitsky, que hoje é professor de políticas internacionais da Universidade de Michigan, afirma que nessa situação, os americanos vão jogar (quase) parados, sem qualquer ação que possa soar como interferência nas eleições brasileiras.
E isso também porque a diplomacia americana não vê como provável a possibilidade de que as Forças Armadas embarquem em uma eventual aventura golpista de Bolsonaro. Reservadamente, autoridades dos EUA citaram as ações recentes do ex-comandante do Exército, o general Edson Pujol, e de seu atual líder, o general Paulo Sérgio de Oliveira, como sinais de anteparos ao presidente no uso político das forças armadas. Em discurso no dia do soldado, Oliveira afirmou que o Exército quer ser respeitado "nacional e internacionalmente" e tem "compromisso com os valores mais nobres da Pátria e com a sociedade brasileira em seus anseios de tranquilidade, estabilidade e desenvolvimento".
"Eu conhecia muito bem os militares brasileiros. E embora faça algum tempo que não fale com eles, meu senso é de que os militares estavam muito subordinados ao governo civil e eu não acho que isso mudou. Não acho que os militares queiram entrar de vez na política. Seria devastador para eles fazer isso. E se isso acontecesse, seria devastador para as relações entre Brasil e Estados Unidos também", afirma Levitsky.
É essa percepção que explica, em parte, porque os americanos não viram problemas em oferecer ao Brasil uma posição como parceiro global na Otan que fortalece diretamente o Exército brasileiro. Se avaliasse haver tendência golpista nas forças, esse não teria sido um caminho para Biden, asseguram os diplomatas. Além disso, nem todos os parceiros globais da Otan são países de democracia perfeita — a Turquia, por exemplo, é tido como um deles.
Por fim, para os militares brasileiros a possibilidade de acessar contratos de vendas de armamento de ponta e participar em treinamentos com os americanos é algo de que eles provavelmente não estariam dispostos a abrir mão em troca da tentativa de um golpe ao lado de Bolsonaro. É o que argumenta Ryan Berg, cientista-político especialista em regimes autoritários na América Latina do Centro de Estratégias e Estudos Internacionais (CSIS, na sigla em inglês).
"A visão do governo dos EUA é que, embora os movimentos de Bolsonaro sejam muito preocupantes, com desfile de tanques pelas ruas de Brasília e atos para desacreditar as eleições, ainda assim o Congresso rejeitou o voto impresso e isso, para o governo dos Estados Unidos, indica que as instituições do Brasil são mais fortes do que algumas pessoas gostam de dizer. O governo dos EUA tem muita confiança que os militares brasileiros não ficariam do lado do Bolsonaro se ele tentasse cometer algum tipo de autogolpe, como vimos com Trump, na invasão do Capitólio em 6 de janeiro", afirma Ryan Berg.
O futuro das relações EUA-Brasil
É consenso entre diplomatas e especialistas internacionais americanos que os EUA não podem e nem querem virar as costas para o Brasil. Primeiro porque o país, com suas florestas tropicais, é visto como chave para avançar no combate ao aquecimento global, pauta prioritária do governo Biden.
Segundo, porque a China tenta ganhar espaço na América Latina a passos largos, e os americanos não estão dispostos a ceder, ao principal rival, espaço de influência na segunda maior democracia do continente — ainda mais com a disputa do 5G a pleno vapor.
E terceiro, porque, em que pesem as ações de Bolsonaro sobre a democracia brasileira ou sobre o meio ambiente, seu governo promoveu um alinhamento ideológico com os Estados Unidos no continente, adotando tom duro contra Venezuela e Cuba, algo bastante valorizado no Departamento de Estado.
No entanto, dada a percepção de que "Bolsonaro não é um líder plenamente confiável", como afirma Levitsky, os próximos movimentos na relação dependerão de seu governo. E a diplomacia americana diz que não vai se furtar da possibilidade de se engajar com outros atores políticos, em diferentes níveis de poder e sem a intermediação do Executivo federal, para fazer avançar sua agenda.
Foi exatamente o que fez, há um mês, o Enviado Climático de Biden, John Kerry. Diante de promessas não cumpridas e do mal-estar que representava a presença do então ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, que os americanos veem como envolvido em um possível esquema de tráfico ilegal de madeira amazônica para os EUA, Kerry driblou Brasília e se reuniu por uma hora e meia com os governadores do Fórum de Governadores, que inclui quase todos os Estados.
Na semana seguinte, Jake Sullivan não esteve apenas no Palácio do Planalto, mas fez também uma reunião com governadores do Consórcio da Amazônia Legal.
"Há uma percepção dos EUA de que o governo federal infelizmente não vai avançar muito na questão do desmatamento. Então falar com os governadores não chega a ser uma exclusão do governo federal, mas uma forma de jogar nas duas vias", afirmou à BBC News Brasil o governador do Maranhão, Flávio Dino (PSB), que esteve no encontro com Kerry.
Depois de três meses sem encontros com a equipe de Kerry, na última semana, técnicos do Ministério do Meio Ambiente e representantes do Itamaraty retomaram conversas com os americanos. Isso acontece a menos de três meses da Conferência do Clima, em Glasgow, na Escócia, encarada pelos americanos como a última grande oportunidade para que o governo Bolsonaro mostre algum avanço na agenda ambiental.
Consultado pela BBC News Brasil, o Departamento de Estado afirmou, por meio de um porta-voz, que "esperamos ver progressos adicionais à medida que o Brasil avança para combater o desmatamento ilegal e reduzir suas emissões de gases do efeito estufa, em linha com os compromissos assumidos pelo presidente Bolsonaro na Cúpula dos Líderes sobre o Clima realizada em abril".
O Itamaraty defende que as metas de redução de desmatamento (que deve ser zerado até 2030) e de emissões (zero até 2050) são as mais ambiciosas entre os países em desenvolvimento. Reservadamente, no entanto, diplomatas envolvidos nas negociações com os americanos reconhecem "dificuldades internas do governo" para entregar reduções expressivas no desmatamento ainda em 2021. Dados do INPE mostram que o acumulado de desmatamento entre janeiro e julho deste ano é o maior desde 2016.
Para o embaixador Levitsky, até a eleição do próximo ano, EUA e Brasil devem levar uma relação "em banho-maria". De um lado, os americanos não demonstram grandes expectativas de novos compromissos de Bolsonaro, a quem veem majoritariamente voltado à agenda eleitoral doméstica.
Por outro, preferem ver quem assumirá o país pelos quatro anos seguintes para tentar implementar qualquer ação fora das relações rotineiras. E já avisaram a Bolsonaro que reconhecerão como presidente quem quer que a Justiça Eleitoral aponte como vencedor do pleito em outubro de 2022.
Fonte: BBC Brasil
Luiz Carlos Azedo: O braço armado de Bolsonaro
“No establishment econômico, institucional e militar, a interrogação é se chegaremos em 2022 com Bolsonaro no poder”
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
O imponderável da democracia brasileira, com eleições limpas e apuração instantânea, é o voto popular. Vem daí o medo que Jair Bolsonaro sente das urnas eletrônicas, porque sua reeleição subiu no telhado, em razão de o país estar à matroca — com inflação em alta, desemprego em massa, crise sanitária e risco de apagão. Por isso, ameaça tumultuar as eleições de 2022. O presidente da República teme não se reeleger, desde que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva despontou como favorito nas pesquisas de opinião, mesmo sabendo que ninguém ganha eleição de véspera. Outros postulantes querem romper essa polarização: João Doria (PSDB), Ciro Gomes (PDT), Henrique Mandetta (DEM), quiçá Rodrigo Pacheco (DEM-MG), presidente do Senado, e Sérgio Moro, o ex-juiz que não se assume como candidato e continua pontuando nas pesquisas. Nas simulações de segundo turno, Bolsonaro perderia para todos. Obviamente, esse cenário ameaça até sua presença no segundo turno.
Pressionado psicologicamente, diante do próprio fracasso político-administrativo, a 14 meses das eleições, Bolsonaro aposta na polarização ideológica e na radicalização política extrema. Busca um atalho para se manter no poder. Apoiado por partidários fanatizados, escala um confronto com o Supremo Tribunal Federal (STF) e trabalha para melar as eleições, ao levantar suspeitas sobre a integridade do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) na condução do pleito. Tenta intimidar a oposição, a imprensa e os ministros do Supremo, e arrastar as Forças Armadas para uma aventura golpista. Não obteve sucesso até agora. Quer transformar o Sete de Setembro, no qual pretende realizar duas grandes manifestações, uma em Brasília e outra em São Paulo, numa demonstração de que pode resolver no braço o que não consegue pelo convencimento, como fazem os valentões.
Os próximos meses serão complicados. Bolsonaro tem um pacto com os violentos. Primeiro, com as milícias do Rio de Janeiro, cujo modelo de atuação naturalizou e traduziu para a política. Aproveitando-se dos interesses corporativos de categoriais profissionais embrutecidas pelos riscos da própria atividade, mobiliza atiradores e indivíduos que cultuam a violência por temperamento ou ideologia, fundamentais para a formação de falanges políticas armadas, para as quais conta com a expertise de militares reformados e agentes de segurança pública. A violência sempre presente nos territórios dominados por atividades transgressoras ou na fronteira da economia informal, onde não existe título em cartório e as dívidas são cobradas sob ameaças, é o caldo de cultura de que se aproveita.
Establishment
Na Itália do jurista, político e ex-primeiro-ministro Aldo Moro, assassinado em 1978 pelas Brigadas Vermelhas, os terroristas escreveram nos muros da sede da Democracia Cristã: “Transformar a fraude eleitoral em guerra de classes”. Com sinal trocado, quando fala que o povo deveria comprar fuzil e não feijão, Bolsonaro sinaliza na direção de que pretende transformar as eleições numa guerra. Está armando os militantes que pretende mobilizar para tumultuar o pleito, como tentou Donald Trump nas eleições americanas, diante da impossibilidade de mobilizar as Forças Armadas para dar um golpe de Estado.
No establishment econômico, institucional e até mesmo militar do país, porém, a grande interrogação é se chegaremos às eleições de 2022 com Bolsonaro no poder. Sua escalada contra as regras do jogo democrático e contra o Supremo não tem como dar certo. No limite, propõe a discussão sobre a eventualidade de interdição por insanidade mental ou inelegibilidade por atentar contra a democracia. Talvez seja essa a aposta do presidente da República, para provocar uma crise institucional de desfecho violento.
A democracia é uma conquista civil da qual não se pode abrir mão precisamente porque, onde ela foi instaurada, substituiu a violenta luta pela conquista do poder por uma disputa partidária com base na livre discussão de ideias. Condenar as eleições, esse ato fundamental do sistema democrático, em nome da guerra ideológica, nos ensina o mestre Norberto Bobbio, significa “atingir a essência não do Estado, mas da única forma de convivência possível na liberdade e através da liberdade que os homens até agora conseguiram realizar, na longa história de prepotência, violência e cruel dominação”. Deixemos o povo resolver as disputas pelo voto, em clima de eleições pacíficas e ordeiras.
Rubens Barbosa: Cá e lá, más fadas há
Nos EUA e no Brasil, populismo autoritário e tentativa de deslegitimar eleições
Rubens Barbosa / O Estado de S. Paulo
De retorno dos EUA, não resisto a comentar o cenário doméstico norte-americano no início do governo Biden, em meio à crise da pandemia, e compará-lo com o que se passa no Brasil. Se, no caso do Brasil, uma análise objetiva da situação atual aponta para uma forte preocupação com a evolução dos acontecimentos políticos, econômicos e sociais nos próximos meses e anos, nos EUA a crise apresenta-se mais grave e profunda. Dada sua posição de liderança no mundo, o desdobramento do que acontece nos EUA poderá afetar outros países e mesmo tendências globais.
A divisão da sociedade norte-americana – acentuada nos últimos anos, em especial na campanha política que precedeu a eleição presidencial – está presente nos principais temas em discussão diária nos jornais e na TV. A forma como os EUA saíram do Afeganistão fez aumentar a divisão, com Donald Trump pedindo a renúncia de Joe Biden.
A ameaça à democracia norte-americana é vista como a mais séria desde a guerra civil, em 1861. Sua exteriorização foi concretizada nos acontecimentos de 6 de janeiro, quando o Congresso, em Washington, foi invadido por uma multidão de fanáticos seguidores de Trump, o que começa a ser examinado por uma CPI no Senado. A polarização está presente desde a indicação dos membros republicanos pela presidente do Senado, sob a alegação de que iriam obstruir a busca da verdade sobre o que realmente aconteceu. Trump deu voz à classe média e aos mais pobres das áreas rurais, sobretudo nos Estados do sul, mais conservadores, e ampliou a retórica negacionista que hoje contamina o Partido Republicano. A atitude de negação da ciência e as evidências se estendem desde a recusa à vacinação e ao uso de máscaras, passando pela modificação da legislação eleitoral em 18 Estados para restringir o direito do voto das minorias, sobretudo a negra, até a modificação da regulamentação nas escolas para eliminar as discussões sobre costumes e raça.
A radicalização no Congresso dificulta o avanço da legislação prevendo reformas econômicas para estimular a renda e reduzir o desemprego. O impasse está presente num dos aspectos mais importantes, que são as dotações para obras de infraestrutura em todo o País. Aprovada por um voto no Senado, corre o risco de ser rejeitada na Câmara.
A questão do aumento da compra de armas e a explosão da violência durante a pandemia é outro item controvertido da agenda doméstica. Os números de mortes são os maiores registrados nos últimos anos e a compra ilegal de armas tem facilitado o crime organizado e a luta de gangues nas ruas das principais cidades, além dos atentados em escolas e lugares públicos. O tema está sendo tratado diretamente pelo presidente Biden, dada a gravidade da situação, que se mistura com as novas regras para tentar reduzir a violência das polícias estaduais, impregnadas de preconceito racial. O movimento nacional contra o racismo, que ganhou grande repercussão com a morte de dois negros por policiais, continua a ter papel importante, com a inevitável polarização.
Recentemente, diversos livros foram publicados com relatos das últimas semanas do governo Trump, depois do resultado das eleições. Os relatos mostram o caos reinante na Casa Branca em função da instabilidade emocional de Trump. A desastrosa ação presidencial nesse período foi além de sua denúncia, sem provas, de fraude nas eleições e da tentativa de reverter, com manobras no Judiciário e nos Estados, os resultados das eleições, que até hoje seus seguidores repetem ter sido ganha e que Biden roubou a eleição. As instituições prevaleceram. Integrantes das Forças Armadas saíram em defesa da democracia e as alegações de fraude foram derrotadas na Suprema Corte. Surgiram relatos de que o Alto Comando das Forças Armadas temia que Trump estivesse preparando um golpe de Estado e, como comandante supremo, iria convocá-las para dar-lhe o necessário respaldo. Nas conversas entre os militares, saiu a decisão de um pronunciamento público do chefe do Estado-Maior das Forças Armadas reafirmando a posição de instituição com um órgão de Estado, e não de governo. No âmbito da Defesa havia também o receio de que Trump, num arroubo insano, determinasse um ataque militar ao Irã, o que poderia desencadear grave crise no Oriente Médio. Precaução também foi tomada quanto ao acesso do presidente ao equipamento para uma ação nuclear.
Como se vê, o cenário doméstico nos EUA apresenta grande semelhança, em muitos aspectos, com o brasileiro. A preocupação com o funcionamento das instituições e da democracia não chega ao grau de risco que se percebe hoje no Brasil, por circunstâncias específicas do nosso país. O populismo com características autoritárias e a tentativa de deslegitimar as eleições estão presentes nos dois países. A grande diferença até aqui é a atitude pública de afastamento dos militares norte-americanos da política, enquanto recentemente ocorreu exatamente o contrário no Brasil. Militares da ativa e da reserva, em clara interferência política, fizeram declarações que foram interpretadas como de apoio às ameaças de realização das eleições em 2022 se o Congresso não aprovasse o voto impresso.
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,ca-e-la-mas-fadas-ha,70003819216
Luiz Carlos Azedo: O naufrágio de Bolsonaro
Reacionários são obcecados pelo medo das mudanças e se comportam de maneira nostálgica, sonhando com um passado idealizado, que não é o que a História registra
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
O analista político e ensaísta Mark Lilla, professor de História das Ideias na Universidade de Columbia, em Nova York, ganhou muita notoriedade após a eleição de Donald Trump, ao publicar um artigo no The New York Times no qual pedia que a esquerda norte-americana abandonasse a “era do liberalismo identitário” e buscasse a unidade diante da especificidade das minorias. É autor de O progressista de ontem e o do amanhã: desafios da democracia liberal no mundo pós-políticas identitárias (no original, The Once and Future Liberal: After Identity Politics) e A Mente Naufragada, publicados pela Editora Schwarcz e Cia. das Letras, respectivamente.
Voltou a gerar polêmicas em meados do ano passado, ao articular uma carta-manifesto assinada por 150 intelectuais, entre os quais Noam Chomsky, Gloria Steinem, Martin Amis e Margaret Atwood, no qual reivindicavam o direito de discordar, sem que isso colocasse em risco o emprego de ninguém, uma reação à patrulha ideológica dos setores progressistas dos Estados Unidos contra intelectuais conservadores. Esse posicionamento foi importante para a unidade dos democratas, fundamental para a vitória de Joe Biden nas eleições presidenciais do ano passado e o racha dos republicanos, ao isolar a extrema-direita na tentativa de golpe de Estado de Trump.
Lilla é um estudioso dos dramas ideológicos do século XX. No livro A Mente Naufragada, faz uma clara distinção entre o reacionarismo e o pensamento conservador. Segundo ele, “os reacionários da nossa época descobriram que a nostalgia pode ser uma forte motivação política, talvez mais poderosa até do que a esperança. As esperanças podem ser desiludidas. A nostalgia é irrefutável”. Isso tem tudo a ver com o presidente Jair Bolsonaro, o grupo de militares saudosistas do regime militar que o cerca e os grupos de extrema-direita que organizou por meio das redes sociais, que, agora, estão armados até os dentes.
Enquanto velhos revolucionários da geração 1968 ainda alimentam expectativas de uma nova ordem social redentora, os reacionários são obcecados pelo medo das mudanças em curso no mundo e se comportam de maneira nostálgica, sonhando com a volta a um passado idealizado, que não é o que a História registra. “A nostalgia baixou como uma nuvem sobre o pensamento europeu depois da Revolução Francesa e nunca mais se afastou totalmente”, lembra Lilla, propósito dos pensadores que, há um século, serviram de caldo de cultura para o nazismo e o fascismo.
Nostalgia da ditadura
Quando o ministro da defesa, o general Braga Netto, por exemplo, comparece à Câmara para prestar esclarecimentos e nega que houve uma ditadura no Brasil, revela uma mente naufragada no passado, quando Tancredo Neves foi eleito no colégio eleitoral e o regime militar caiu sem um tiro, em 1985. O regime militar foi, sim, uma ditadura, que durou 20 anos, suprimiu as liberdades, prendeu, sequestrou e matou oposicionistas. Essa era a narrativa dos generais que se revezaram na Presidência e impuseram um artificial sistema bipartidário, para disfarçar o regime autoritário, sob o argumento de que se tratava de uma “democracia relativa”.
A outra face dessa narrativa é a recorrente interpretação de Bolsonaro sobre o artigo 142 da Constituição, ao atribuir às Forças Armadas o papel de “poder moderador” nas relações entre o presidente da República, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF). Busca-se, como em 1937, no golpe do Estado Novo, e em 1964, na deposição de João Goulart, uma suposta ameaça comunista, no caso representada pelo favoritismo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva nas pesquisas eleitorais sobre o pleito de 2022.
Constrói-se uma tese de afronta à legalidade para justificar uma “intervenção militar”, com base em suposta insegurança da urna eletrônica e nas medidas tomadas pelo Supremo Tribunal Federal contra a rede montada para disseminar mentiras e apregoar um golpe de Estado. “Onde os outros veem o rio do tempo fluindo como sempre fluiu, o reacionário enxerga os destroços do paraíso passando à deriva”, explica Lilla. É mais ou menos o que distingue o presidente Jair Bolsonaro dos setores conservadores que participam e ainda apoiam o seu governo, mas não sua loucura golpista.
A voz de Trump vem ao Brasil
Entre ex-presidente americano e Bolsonaro a diferença são os militares
Elio Gaspari / O Globo
A repórter Beatriz Bulla revelou que deve chegar ao Brasil no próximo domingo Jason Miller, ex-porta-voz de Donald Trump. Vem divulgar sua rede social, Gettr, criada para contornar a expulsão de Trump das grandes plataformas americanas. A Gettr tem 250 mil brasileiros listados. Entre eles estão Jair Bolsonaro e dois de seus filhos.
Miller foi uma testemunha privilegiada da ruinosa insurreição de 6 de janeiro, quando Trump tentou melar o resultado da eleição americana. Para quem viu o desfile do pelotão da fumaça em frente ao Palácio do Planalto na semana passada, o golpe de Trump era muito mais delirante.
À tarde, o vice-presidente Mike Pence presidiria a reunião do Senado que sacramentaria a eleição de Joe Biden.
Às oito da manhã, Trump sabia que tinha milhares de seguidores em Washington e falou com Jason Miller. Esperava que Pence aceitasse as objeções dos republicanos e revertesse o resultado: “Faça isso, Mike. Esta é a hora da coragem”, tuitou.
Pouco depois, Trump ligou para Pence, mas o vice disse que não tinha poderes para tanto. Seu papel seria apenas cerimonial. “Você não tem coragem”, respondeu Trump. Ele tinha um plano e foi para um comício perto da Casa Branca.
Por volta de meio-dia e meia, enquanto Trump discursava incitando a multidão, Pence soltou uma nota oficial informando que não reverteria o resultado da eleição. Às 12h58m começava a invasão da área do Capitólio.
Às 14h12m, a multidão estava nos corredores. Alguns gritavam “enforquem Pence”. O vice-presidente e os senadores foram retirados do plenário, e o vice foi levado para um lugar seguro. Trump tuitava: “Mike Pence não teve a coragem de fazer o que devia ser feito.”
Estava enganado. Agentes de segurança queriam levar Pence para uma base aérea, mas ele decidiu ficar no prédio. Às 16h, o vice-presidente telefonou para o secretário de Defesa informando que pretendia retomar os trabalhos e queria que o Capitólio estivesse livre dos invasores: “Mande a tropa, mande logo.”
Entre o instante em que Pence deixou o plenário do Senado e as 20h, quando voltou para sua cadeira, a insurreição estava contida. Passaram-se seis horas, durante as quais as instituições democráticas americanas foram postas à prova.
Donald Trump passou a maior parte do tempo grudado nas televisões. Com o tempo, vai-se saber quem ligou para quem, dizendo o quê.
Às 21h, quando Pence já havia recomeçado a sessão que confirmaria a vitória de Joe Biden, Jason Miller começou a redigir uma nota na qual Donald Trump aceitava que se procedesse a uma “transição ordeira”. Reconhecia a necessidade da transição, o que não significava que reconhecesse o resultado da eleição. Fosse qual fosse o plano que Donald Trump tinha na cabeça, estava acabado.
Trump e Bolsonaro
Durante as seis horas de caos em Washington, Bolsonaro pôs suas fichas no cavalo errado.
Ele disse o seguinte:
“Eu acompanhei tudo hoje. Você sabe que sou ligado ao Trump. Então, você sabe qual a minha resposta aqui. Agora, muita denúncia de fraude, muita denúncia de fraude. Eu falei isso um tempo atrás, e a imprensa falou: ‘Sem provas, presidente Bolsonaro falou que foi fraudada a eleição americana’”
Poucas vezes, houve tamanha afinidade entre um presidente brasileiro e seu colega americano. Quando Bolsonaro disse “sou ligado ao Trump”, apontava para uma conexão que vai além da simpatia.
Trump contestava a eleição de Joe Biden. Bolsonaro contestava não só a eleição americana, como também a brasileira do ano que vem.
Trump acreditou na cloroquina e na imunidade de rebanho. Bolsonaro também.
Trump recusou-se a usar máscaras e duvidou da utilidade do distanciamento social. Bolsonaro também.
Trump disse que o vírus foi uma criação chinesa. Bolsonaro também. (Fazendo-se justiça a Trump, ele só saiu com essa patranha depois que os chineses disseram que o vírus havia sido espalhado pelos americanos.)
Por mais delirante que Trump tenha sido na sua conduta durante a pandemia, não há vestígio de picaretas agindo com relativo sucesso na burocracia da saúde pública americana.
Trump encrencou com seu vice. Bolsonaro também.
Trump quis militarizar o feriado de 4 de julho nos Estados Unidos botando tanques nos jardins da Casa Branca. Bolsonaro desfilou blindados fumacentos diante do Planalto.
Trump e os militares
É no capítulo das relações com os militares que salta aos olhos uma diferença entre o que aconteceu nos Estados Unidos e o que acontece no Brasil.
Lá, como cá, apareceram militares da reserva propondo excentricidades. Um general trumpista da reserva queria colocar o país sob lei marcial. Ficou no palavrório.
O general Mark Miley, chefe do Estado Maior Conjunto dos EUA, sentiu cheiro de queimado na movimentação dos trumpistas antes do 6 de janeiro.
Vendo uma manifestação em Washington no dia 2, ele cravou: “Esse é um momento do Reichstag. O Evangelho do Führer”.
Era uma comparação com os assaltos de Hitler ao regime democrático da Alemanha.
Não há prova de que Trump tenha tentado mover tropas do Exército, Marinha ou Aeronáutica no seu pastelão.
Pelo contrário. Na tarde do dia 6, quem pediu tropas foram os democratas Nancy Pelosi e Charles Schumer.
No dia 8, quando Trump já estava no chão, Pelosi, presidente da Câmara, telefonou para o general Miley, argumentando que o presidente estava fora de si e poderia fazer outras maluquices. Ela especulava a possibilidade de declará-lo incapaz.
Quanto às maluquices (o uso de armas nucleares para criar um caso), Miley tranquilizou-a. Quanto à declaração da incapacidade de Trump, ele cortou:
“Eu não vou caracterizar o presidente. Não é meu papel.”
Serviço
Estão na rede três reconstituições das maluquices de Donald Trump, publicadas nos Estados Unidos.
Diante da pandemia:
“Nightmare Scenario“ (Cenário de Pesadelo), de Yasmeen Abutaleb e Damian Paletta.
Sobre o 6 de janeiro:
“Landslide” (Expressão em inglês para designar uma vitória folgada numa eleição), de Michael Wolff
“I Alone Can Fix It” (Eu Consigo Consertar Isso), de Carol Leonnig e Philip Rucker
Madame Natasha
Madame Natasha acompanha as sessões da CPI da Covid mascando cloroquina e decepcionou-se com a intenção dos senadores de acusar Bolsonaro por “charlatanismo e curandeirismo” durante a pandemia.
Charlatanismo, vá lá, mas falar em curandeirismo é uma ofensa aos muitos pajés do círculo de amizades da senhora.
O charlatão sabe que o óleo de peixe não cura reumatismo. Já o curandeiro acredita nas virtudes de suas poções.
Zé Arigó (1921-1971) foi um homem honesto. João de Deus, antes de ser apanhado em seus delitos sexuais, fez fama atendendo muita gente boa. Isso para não mencionar os milhares de pajés que cuidaram de indígenas. O cacique Takumã Kamayura (1932-2014) é hoje uma lenda para os povos do Xingu.
Natasha acredita que essa confusão é crendice de homem branco.
Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/politica/a-voz-de-trump-vem-ao-brasil-25155834
Alon Feuerwerker: O atraente bidenismo
A política econômica do governo Joe Biden vem atraindo certo entusiasmo nas correntes políticas da oposição, pela esquerda, ao governo Jair Bolsonaro. É compreensível. Após muitos anos de difusão do chamado Consenso de Washington, eis que na capital do mesmo nome surge uma administração a propor, entre outras coisas, emitir moeda, reforçar o papel do investimento estatal e taxar quem tem mais, para distribuir a quem tem menos.
A mudança ali, com as ondas de influência irradiadas mundo afora, soma-se vetorialmente por aqui a uma certa frustração com a colheita das políticas aplicadas desde pelo menos a Ponte para o Futuro de Michel Temer. Na sequência veio a dupla Bolsonaro-Paulo Guedes. É razoável admitir que existe alguma continuidade nas orientações definidas para a economia pelos governos que mandam no Planalto desde a ruptura de 2016.
Claro que a análise objetiva exige levar em conta as circunstâncias. Cada um de nós é ele mesmo e suas circunstâncias. Uma foi o governo Temer ter entrado em modo de sobrevivência por razões da área policial, e depois a pandemia da Covid-19 pegou pela proa a administração Bolsonaro. Mas aí enveredamos pelo terreno das explicações e justificativas. E na política, a exemplo de outras esferas da vida, quem começa a se explicar e justificar já está perdendo.
Os ventos bidenistas e a crônica pasmaceira econômica acenderam no Brasil o desejo de uma guinada. Mas qual a viabilidade dela? Que candidato com chances vai pegar a estrada em 2022 dizendo que irá fazer dívida pública pesada para ampliar o investimento estatal e prometendo tomar o dinheiro dos “ricos” (que no Brasil, na prática, incluem uma gorda fatia da classe média) para redistribuir renda pela mão do Estado?
Políticas econômicas precisam ter, antes de tudo, viabilidade política. Há sim teóricos respeitáveis que garantem: fazer dívida em moeda nacional não produz inflação. Mas qual presidente vai arriscar, no sempre instável cenário institucional brasileiro, colocar todas as fichas numa teoria contraintuitiva? Se der errado, seus autores no máximo farão autocrítica. Já o político provavelmente terá ido para o cadafalso, talvez metafórico.
Há uma diferença importante entre o Brasil e os Estados Unidos. Eles podem legalmente imprimir dólares sem lastro e nós podemos imprimir reais sem lastro, mas não parece que as consequências venham a ser as mesmas. Isso e outros fatores devem impelir os candidatos competitivos a buscar soluções mais convencionais. Uma em especial: a atração maciça de capitais externos para fazer subir a taxa de investimento privado.
Eis por que no próximo governo, pois entramos na etapa conclusiva deste, talvez um ministério de importância renovada será o das Relações Exteriores. E quem sabe não deveríamos voltar nossos olhos também para o Oriente, em vez de apenas para o Norte? É pouco razoável imaginar que a economia brasileira vai se erguer puxando os próprios cabelos para cima. Ou colocando todas as fichas de política exterior numa única casa.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
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Publicado na revista Veja de 28 de abril de 2021, edição nº 2.737
Fonte:
Análise Política
http://www.alon.jor.br/2021/05/o-atraente-bidenismo.html
Veja
https://veja.abril.com.br/blog/alon-feuerwerker/o-atraente-bidenismo/
Roberto DaMatta: Somos todos pacientes
Para José Paulo Cavalcanti, Merval Pereira, Carlos Alberto Sardenberg e Joaquim Falcão
O dicionário “Aurélio” revela o amplo significado da palavra “paciente”. Uma palavra fundamental por sua capacidade de desmontar bate-bocas, inibir impaciências em filas, adiar vinganças e apaziguar minha angústia diante deste claro endoidecimento do Brasil.
Somos todos pacientes porque haja paciência para suportar o hospício desta psicose jurídico-política. De um lado, um enorme ressentimento porque o “povo”, que já foi puro e sagrado, teve motivos para eleger um presidente querelante, sabotador e autoritário; do outro, um surto suicida incapaz de apaziguar um sistema obsessivamente legalista em que a forma pode valer mais que o “objeto” ou substância (falando francamente: que o crime).
A palavra paciente é parte do linguajar jurídico, mas creio que seria absurdo ou despropositado chamar assassinos, genocidas e ladrões — gente como Capone, Eichmann, Goebbels, Stálin, os torturadores do regime militar, os assassinos do menino Henry, os larápios confessos da Operação Lava-Jato e Derek Chauvin, o policial que matou com óbvio viés racista George Floyd — de “pacientes”.
Uma palavra que invoca neutralidade não deveria ser usada como sinônimo de quadrilheiros. Sobretudo de gente que traiu o seu voto. Mas cabe perguntar: quando um réu vira paciente? A resposta é clara: quando ele é importante!
Aliás, se ele é o dono da grande fazenda, nem poderia ser julgado. Chamá-lo, pois, de paciente fatalmente revela a parcialidade e a lealdade do tribunal às convenções estruturais do “sistema brasileiro”, ancoradas na cautela dos compadrios, dos favores e do “você sabe com quem está falando?”, ou julgando... Essa “medida cautelar da paciência” explicita como o que conta não é o crime, mas quem o cometeu.
Trata-se de mais uma jabuticaba expressiva do jeitinho brasileiro.
Uma amiga americana compara com brilho Trump e Bolsonaro. Mas é provável que Donald seja mais facilmente explicável que Jair.
A palavra-chave nessa comparação é o compromisso e a lealdade a uma tradição democrática e republicana. É a fidelidade com a liberdade e com a igualdade como valores. Biden e Harris fazem parte dessa lista, que tem desacordos, mas não tem dúvida relativamente às complexas e duras exigências deste regime inacabado por definição chamado democracia.
Aqui no Brasil, ainda não concordamos se não seria melhor continuar mais ou menos numa realeza ibérica (franquista ou salazarista), mais ou menos populista-socialista e mais ou menos liberal-aristocrática, mas sempre autoritária, ou se vamos continuar como frustrados republicanos, arcando com o difícil compromisso de fazer valer a lei para todos — sobretudo, para nós mesmos!
E, por último, mas não por fim: se vamos cobrar coerência da instituição guardiã da Constituição, o STF.
As diferenças culturais entre Brasil e Estados Unidos são grandes, mas nada no campo do humano é impossível. Os americanos têm uma Constituição pioneira, pequena e inteligível; aqui, um oceano de leis complementares e de privilégios impede a clareza. Eles começaram republicanos, e nós fomos um pouco de tudo. Lá, trata-se de manter continuidade; aqui, de liquidar antigos privilégios; lá, quanto mais privilegiado, mais se é responsável perante a lei; aqui, o justo oposto. Lá, um federalismo localista obriga a julgamentos com início, meio e fim; aqui, há o recurso que engaveta os processos, tirando a confiança na maior das igualdades: a equidade perante a lei.
A melhor prova é o caso Floyd. Lá, está resolvido! Aqui, o STF anula sentenças e suspeita de um movimento anticrime fundamental para corrigir as trapaças do populismo, as sobrevivências do fidalguismo e o retorno do filhotismo. Lá, o trabalho é um chamado; aqui, foi e ainda é estigma e cicatriz da escravaria.
Aqui, o ministro Gilmar Mendes afirma, com maestria sociológica, que o governo do PT engendrou um “plano perfeito” de poder. Num texto magistral, esse paladino da coerência continua: “Na verdade, o que se instalou no país nesses últimos anos, e está sendo revelado na Lava-Jato, é um modelo de governança corrupta. Algo que merece o nome, claro, de Cleptocracia”. Onde foi parar esse juiz? Será que ele foi canibalizado por sua imparcialidade?
Para concluir, lembro uma outra pérola do mesmo magistrado em sua resposta a um colega: “O moralismo é a pátria da imoralidade”.
Como um velho acadêmico metido a cronista em pleno processo de cancelamento, digo apenas que a incoerência como um valor é, sejamos modestos, a terra da injustiça.