tributos
Fabio Graner: Reforma tributária exige debate, não tumulto
Ofuscado pelo tumulto gerado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira, o relatório do deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB) sobre a reforma tributária merece ser amplamente discutido pelo Congresso e pela sociedade. O texto mostra uma evolução importante em relação às PECs originais (45 e 110), porém, nasce com algumas lacunas que também precisam ser debatidas, entre elas não atacar a questão da baixa tributação sobre renda e patrimônio.
O substitutivo apenas tangencia o assunto ao reforçar na Constituição o princípio da progressividade fiscal, garantindo sua aplicação no imposto sobre heranças e doações (ITCMD) e no IPVA.
Ao Valor Ribeiro diz que não se trata de omissão. Como as duas PECs originais são centradas na tributação de consumo, seu relatório teve foco nisso, justifica. “Até porque muita coisa de renda pode ser por lei, infraconstitucional. Eu me referi à renda e patrimônio, reforcei o caráter de progressividade. Nós registramos isso e deixamos aberto para os parlamentares fazerem essa contribuição e, se todos entenderem que é devido, não serei eu que vou dizer que não é. Pelo contrário.”
O relator vai receber nos próximos dias sugestões para seu texto, que, pelo calendário da comissão, pode ter uma nova versão contemplando as contribuições no próximo dia 11.
A despeito de Lira ter anunciado a extinção das comissões, o relator mantém o tom diplomático e diz acreditar que seu texto conseguirá ser bem-sucedido no Congresso. “Eu vejo possibilidade de avançar. Os presidentes das duas casas, Rodrigo Pacheco [Senado] e Arthur Lira, disseram que a reforma tributária era prioridade. Reforma tributária é o que eu defendo. Ajustes tributários são outra coisa, não se tem impacto na economia como na reforma”, disse, em crítica indireta à tese de fatiamento do governo. “Eu defendo reforma ampla e confio na liderança dos presidentes para que esse tema possa avançar.”
Ribeiro destaca no relatório a criação do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) em duas fases, iniciando-se com a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) do governo federal por dois anos e no terceiro ano incorporando o ICMS e o ISS. Esse desenho, admite, foi feito para atender a equipe econômica.
Ele disse ter recebido muitos retornos positivos. “Acho que é importante a mudança estrutural na tributação do consumo. Isso vai de fato transformar o país. Hoje acho que temos um texto para ser debatido. Temos uma legislação única que tributa o consumo e não mais bens e serviços de forma diferenciada”, afirmou.
Ex-secretário da Receita Federal, o professor da FGV Marcos Cintra elogiou o relatório, mesmo não sendo simpático à tese de um IVA nacional. Para ele, o texto corrigiu problemas de “falta de realismo” na PEC 45. “Ele manteve o que tinha de bom na PEC 45, crédito financeiro, tributação no destino, unificação administrativa, e tirou o que era irrealista, como a universalidade, ao abrir exceções para o Simples, Zona Franca de Manaus, autorizar regimes especiais e permitir alíquotas menores para setores como saúde e educação.”
Cintra, porém, elogia a decisão de Lira e avalia que, com extinção das comissões, a PEC 45 está morta e abriu-se espaço para a CBS e o Imposto de Renda avançarem na Câmara, pois não há necessidade de quórum constitucional. Além disso, avalia, o relatório de Ribeiro pode tramitar sem problemas no Senado e avançar no Congresso, se conseguir apoio.
Para o advogado Luiz Gustavo Bichara, sócio de escritório do mesmo nome, o substitutivo, “embora bem feito, parece ter acolhido pouquíssimas manifestações dos setores empresariais”. Ele cita que não foram acatadas algumas sugestões relativas à compensação de créditos tributários acumulados no passado e critica regra de que os novos créditos do IBS só existirão após a comprovação do pagamento do tributo na etapa anterior (fornecedor). “Eu diria que aqueles que pagam a conta não foram muito ouvidos. E isso é particularmente grave num momento em que a recuperação econômica nem começou ainda.”
Há muitos aspectos de mérito ainda a se analisar do texto. Porém, não podemos escapar da tentativa de entender o embate político que Lira trouxe para a luz do dia. O chefe da Câmara anunciou que a comissão mista estava extinta ainda durante a leitura do texto. Para além da descortesia política, o mais grave foi que ele adicionou incerteza sobre o destino de uma reforma absolutamente necessária e sobre a qual já repousa justificado ceticismo, diante de décadas de fracassos.
Seus aliados apontam que a intenção de Lira seria acelerar o processo reformista. Isso porque o tema agora foi para o plenário, o que daria a ele maior controle sobre seus próximos passos. Se isso for verdade, ganha força a tese de reforma fatiada sem mudanças imediatas na Constituição e que priorize a CBS e as mudanças no Imposto de Renda, como ainda defendem o governo e o próprio Lira.
Uma das questões importantes é saber se as ações mais recentes do parlamentar não deixam rastro de mágoa e contrariedade que inviabilizaria essa alternativa. Na terça mesmo ficou claro que sua decisão não foi bem recebida por boa parte dos seus pares.
O presidente do Senado se posicionou pela continuidade da comissão e parlamentares dela também reagiram, lembrando que a discussão no colegiado era parte de um acordo. Ontem, os secretários estaduais de Fazenda emitiram nota contra a extinção da comissão mista e defenderam a continuidade dos trabalhos. A decisão de Lira, segundo a nota, foi desrespeitosa.
Cientista político e sócio da Hold Assessoria Legislativa, André Cesar avalia que o presidente da Câmara agiu movido por interesse em retomar o protagonismo perdido com a CPI da Pandemia, por rivalidade política com o grupo do seu antecessor, o deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), e pelo sonho de aparecer para o mercado financeiro como grande artífice da reforma. Para ele, a atitude deixa sequelas que dificultam o avanço dessa reforma. “Ele não combinou com os russos e a coisa ficou mal construída”, disse, apontando risco de o Senado engavetar a reforma fatiada.
A dúvida que persiste é se a série histórica de fracassos da reforma tributária prevalecerá ou se, como na Previdência, a inércia será quebrada. Nessa disputa, construir pontes ajuda muito mais do que movimentos bruscos e imprevisíveis.
Fonte:
Valor Econômico
https://valor.globo.com/brasil/coluna/reforma-tributaria-exige-debate-nao-tumulto.ghtml
Everardo Maciel: Reforma tributária – Propostas subestimam impactos da tributação sobre preços
Não há nenhuma dúvida quanto à necessidade de reforma tributária, no Brasil, por várias razões, como a natureza intrinsecamente imperfeita de todos os sistemas tributários, as mudanças, cada vez mais rápidas e relevantes, nas circunstâncias econômicas e sociais, as controvérsias conceituais em razão de instabilidades na interpretação administrativa e na jurisprudência, a voracidade da burocracia tributária, etc.
Essa necessidade, todavia, não é exclusiva do Brasil. Alcança todos os países, não necessariamente ao mesmo tempo, nem com a mesma agenda de questões a solucionar.
Propostas de reforma tributária devem, precipuamente, delimitar seu objeto e eleger a forma de execução, dispensando chavões, dogmatismos, ilações insubsistentes, pretensões de recepcionar acriticamente experiências estrangeiras, estudos e pareceres encomendados por interesses privados. Além disso, devem ser precedidas de estudos, que exponham de forma clara os problemas que pretende enfrentar, as possíveis soluções e suas repercussões, a serem submetidas a debate aberto e transparente.
É como se fez no Brasil, em 1953, quando da elaboração do anteprojeto do Código Tributário Nacional.
Instituiu-se então uma comissão presidida pelo próprio ministro da Fazenda, Osvaldo Aranha, e integrada por qualificados tributaristas e servidores públicos, tendo como relator Rubens Gomes de Souza.
Durante nove meses, a Comissão fez inúmeras reuniões, produziu relatórios levados ao conhecimento público, examinou mais de mil sugestões, daí resultando um projeto de lei encaminhado para apreciação e aprovação pelo Congresso Nacional.
De igual modo, em 1965, foi constituída uma comissão para elaborar o anteprojeto de reforma da discriminação constitucional de rendas, presidida por Simões Lopes, presidente da Fundação Getúlio Vargas, e integrada por Rubens Gomes de Sousa, na condição de relator, e, entre outros, por Gerson Augusto da Silva, Gilberto de Ulhôa Canto e Mário Henrique Simonsen.
Essa Comissão, tomando por base estudos que remontam a 1963, elaborou o anteprojeto da Emenda Constitucional n.º 18, de 1965, que foi certamente a melhor reforma da tributação do consumo no Brasil.
Fica patente, em ambos os casos, que os projetos foram concebidos por especialistas, porém com efetiva participação do Estado, em nome da preservação do interesse público e da imparcialidade.
A Espanha, em abril passado, adotou providência análoga, ao instituir comissão, integrada por tributaristas, economistas e servidores da Fazenda Pública, para analisar o sistema tributário espanhol e, até fevereiro de 2022, propor medidas visando a torná-lo mais eficiente no plano arrecadatório e mais eficaz no combate à pobreza, e, por fim, ajustá-lo ao contexto do século 21, especialmente no que concerne à atenção com a sustentabilidade e a economia digital.
Fatos recentes atestam que iniciativas tributárias movidas por mero voluntarismo, mesmo que lastreadas em teses razoáveis, podem resultar em custosas frustrações, em virtude da reação dos contribuintes.
Na França, em 2018, a elevação dos tributos incidentes sobre os combustíveis de origem fóssil gerou o movimento dos coletes amarelos (gilets jaunes, em francês), que promoveu uma trágica rebelião popular, com pessoas mortas, feridas e detidas, além de barricadas, saques e danos à propriedade pública.
No início desta semana, o governo colombiano se viu obrigado a retirar proposta de reforma tributária que, entre outras medidas, previa tributar, com uma alíquota uniforme de 19%, bens e serviços consumidos pela classe média e pelos pobres. A proposta provocou uma revolta, com 19 mortos e 700 feridos.
Esses fatos constituem um alerta para propostas de reforma tributária, no Brasil, que subestimam reações aos impactos da tributação sobre os preços, especialmente em tempos de pandemia.
Os contribuintes, dizia Maurício de Nassau em seu testamento político, são como carneiros, que se, entretanto, tosquiados até a dor se convertem em terríveis alimárias.
*Consultor Tributário, foi Secretário da Receita Federal (1995-2002)
Fonte:
O Estado de S. Paulo
Everardo Maciel: Narrativas tributárias
No Brasil, o debate tributário tem conferido muita atenção às denominadas renúncias fiscais
Desde os primórdios, a humanidade se valeu de narrativas como forma de disseminação do conhecimento e preservação das tradições e valores. Nem sempre, entretanto, elas traduziam a verdade, por ato consciente ou não do narrador.
Como ensina o jurista Ives Gandra, tributo é norma de rejeição social, o que, combinado com a exigência de conhecimentos especializados sobre a matéria, converte a tributação num território pródigo para construção de narrativas, que podem tão somente traduzir vieses ideológicos ou interesses específicos, legítimos ou não, subsistentes ou não.
No Brasil, o debate tributário contemporâneo tem conferido muita atenção às denominadas renúncias fiscais.
Renúncia, no campo jurídico, corresponde ao “abandono ou desistência voluntária de um direito pelo seu não exercício, pelo não cumprimento de exigências para sua conservação ou por declaração expressa” (Dicionário da Língua Portuguesa, Academia de Ciências de Lisboa). Não há, pois, renúncia diante de uma obrigação.
Renúncias fiscais se inscrevem no âmbito da extrafiscalidade, que é tão universal e atemporal quanto a própria história dos tributos. O propósito é utilizar tributos para estimular iniciativas ou robustecer condutas, coexistindo com a função arrecadatória. Esse exercício demanda parcimônia, sujeição ao interesse público e aferição de resultados.
No domínio das desonerações tributárias, o direito pátrio reserva a denominação de imunidade para as desonerações que se deduzem do texto constitucional. Imunidades, pois, encerram a ideia de obrigatoriedade, o que afasta de pronto a possibilidade de renúncia.
Há imunidades que são irrestritas, como a desoneração do ICMS e do IPI nas exportações para o exterior; outras podem ser disciplinadas por legislação infraconstitucional, como o limite de faturamento para a concessão de tratamento privilegiado e simplificado para as micro e pequenas empresas, o universo dos produtos desonerados na Zona Franca de Manaus, os requisitos para fruição da imunidade das entidades de assistência social.
Em ambos os casos, todavia, inexiste a possibilidade de deixar de dar curso ao mandamento constitucional. Caso o legislador não positivasse as imunidades sujeitas a restrições por lei complementar, daria pretexto ao ingresso de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por omissão.
Jamais se aventou a possibilidade de apurar a desoneração, nas exportações, do ICMS e do IPI como renúncia, mas, não raro, se pretende qualificar como renúncias as imunidades sujeitas a disciplinamento por legislação infraconstitucional, o que constitui erro palmar.
Pode-se, por exemplo, discutir o limite de faturamento do Simples, mas jamais dispensar tratamento privilegiado e simplificado para as micro e pequenas empresas. Em outra perspectiva, é bom lembrar que a inexistência do Simples é a certeza de uma colossal informalidade, que pode recepcionar práticas perigosas, porquanto se converteria em atividade à margem da sociedade.
É certo que renúncias fiscais – não imunidades – devem ser submetidas a avaliações. Quando ineficazes, devem ser revistas por lei, conforme prescrição constitucional, observada a limitação imposta pelo art. 178 do Código Tributário Nacional, quanto às isenções concedidas por prazo certo e sob condições.
Eliminar uma renúncia fiscal não implica a constituição de equivalente montante de receitas. Pode, simplesmente, eliminar a atividade. Assim, alcança-se o pior dos mundos: não há renúncia nem receita. Cada situação, portanto, deve ser submetida à avaliação específica, sem a pretensão de generalizar.
Renúncia fiscal pode, também, estar associada a políticas sociais, a exemplo da isenção de produtos da cesta básica. A supressão dessa desoneração, mediante adoção de alíquota única na tributação do consumo, como tem sido aventado, é uma hipótese extrema de regressividade, afrontando, como observou o tributarista Edvaldo Brito, o celebrado princípio constitucional da capacidade contributiva.
*CONSULTOR TRIBUTÁRIO, FOI SECRETÁRIO DA RECEITA FEDERAL (1995-2002)
Armando Castelar Pinheiro: Xadrez tributário
Há quem tema que os novos tributos irão abrir espaço para novos tipos de conflitos e processos na Justiça
Sexta-feira me pediram para ensinar a jogar xadrez. Tenho um tabuleiro e peças grandes, da época em que jogava regularmente, e fomos em frente. É um jogo complicado, com peças que se movimentam de formas variadas e que se joga pensando no agora e em vários lances à frente. Depois fiquei pensando como seria absorver e processar tanta informação.
Não muito diferente, conclui, do que ocorre comigo em relação à reforma tributária. Depois de seis reuniões que tivemos no Ibre sobre o tema, com alguns dos maiores especialistas no assunto, das áreas de direito, economia e ciência política, todos querendo o melhor para o Brasil, ainda não consegui formar uma opinião, ou entender tudo o que está em jogo.
Eis o que captei. Todo tributo incide sobre uma base: por exemplo, patrimônio, renda, movimentação financeira, folha salarial ou receita ou valor adicionado com a produção de um bem ou serviço. Esta última categoria, a tributação sobre bens e serviços, é o foco das propostas em discussão no Congresso: o PL 3887/2020, enviado pelo governo; a PEC 45/2019, de iniciativa da Câmara; e a PEC 110/2019, em tramitação no Senado. A proposta é cuidar desses tributos separadamente dos incidentes sobre as demais bases.
Tributos reduzem a eficiência econômica, alguns mais que outros. Quem defende a reforma argumenta que, na tributação de bens e serviços, aplicar alíquota única, uniforme em todo território nacional, incidente sobre o valor adicionado, cobrada no local de domicílio de quem compra, penalizaria menos a eficiência. Há, porém, dois problemas com isso.
Um, que a eficiência não é o único objetivo. Assim, há quem defenda uma tributação progressiva, com alíquotas mais baixas para itens que pesam mais na cesta de consumo dos mais pobres, como alimentos, e mais altas para os usados pelos mais ricos, como carros ou barcos de luxo. Há também quem defenda diferenciar alíquotas por preocupação com saúde (fumo e bebidas alcoólicas, por exemplo), educação (livros, escolas, cursinhos), meio ambiente (carros a álcool vs gasolina), ou política industrial. E há quem defenda a liberdade das unidades da federação fixarem alíquotas distintas para atrair investimentos.
Obviamente, levar tudo isso em conta é reproduzir o que temos hoje, com a briga das empresas por classificações favoráveis de seus produtos e a guerra fiscal. E esses outros objetivos podem e devem ser atingidos via outros instrumentos. Só que aí a coisa fica mais complexa e entra em cena a desconfiança quanto ao cumprimento de promessas.
Dois, que a capacidade do fisco arrecadar os tributos devidos não é a mesma em todos os setores e em todo o país. Em princípio, isso pode ser atenuado via a substituição tributária, como ocorre hoje em dia com combustíveis, em que o recolhimento se dá na refinaria, não no posto de gasolina. Mas desde os trabalhos de Frank Ramsey se sabe que é mais fácil e eficiente tributar bens e serviços cuja demanda é pouco sensível ao preço, o que explica porque eletricidade e telecomunicações são tão taxados. Em especial, um aumento da tributação em setores com muitas empresas e consumidores sensíveis a preço pode levar a um aumento da informalidade, frustando as projeções de receita e de aumento da eficiência. A manutenção do Simples mitiga esse problema, mas não se sabe em que escala.
Há um certo consenso de que pagar imposto no Brasil é complicado, dá muito trabalho e dá margem a disputas judiciais trilionárias, o que joga contra a eficiência e a capacidade do país atrair investimentos. Também há convergência de que muito disso se deve às chamadas obrigações acessórias, que dizem respeito à miríade de documentos que precisam ser apresentados ao fisco, e às regras que regem os conflitos entre o fisco, em busca de arrecadar mais, e os contribuintes, dedicados ao planejamento e à elisão tributária.
Mas há forte divergência sobre como resolver esses problemas, se é possível fazê-lo sem mudar a estrutura tributária, com medidas infra-legais, ou não. Também há quem tema que os novos tributos irão abrir espaço para novos tipos de conflitos e processos na Justiça. A coisa se complica pela necessidade, em caso de reforma, de um período de transição, que pode ser longo, para calibrar a alíquota a cobrar e permitir a amortização de investimentos realizados com a atual estrutura tributária.
Uma das reuniões foi sobre como avançar politicamente com a reforma. A experiência sugere que a forma como ela é apresentada ao eleitor faz bastante diferença, mas que o debate atual está centrado apenas em quem perde ou ganha com ela. Em paralelo, me parece, há um debate entre nossos enxadristas tributários, em que o público torce, mas não entende. Não soa como um caminho promissor para resolver nossos problemas nessa área, que não são pequenos.
Pode até ser que algum grupo dê um xeque mate nos outros, ou que uma torcida prevaleça sobre as demais, mas acho difícil. Mais seguro seria destrinchar esse debate para o grande público, mostrando as vantagens de cada alternativa em itens como produtividade, custo de cumprir as regras, litigiosidade etc.
*Armando Castelar Pinheiro é Coordenador de Economia Aplicada do Ibre/FGV, professor da Direito-Rio/FGV e do IE/UFRJ
Míriam Leitão: A velha CPMF de roupa nova
O governo tem fantasiado o novo imposto que pretende propor com roupas modernas. Segundo dizem os economistas da equipe econômica, seria o mesmo que está sendo pensado na Europa para as transações digitais. Na verdade, o que está em debate em várias partes do mundo é totalmente diferente de um imposto sobre as movimentações financeiras — eletrônicas ou não — dos consumidores. Tenta-se saber como taxar as grandes empresas da tecnologia, as mesmas que dias atrás foram interrogadas na Câmara dos Deputados dos Estados Unidos para se defender da acusação de poder excessivo.
Quem explica a diferença entre uma nova versão da CPMF e o que se tenta na Europa é o economista Pedro Henrique Albuquerque, da Kedge Business School, em Marselha, na França. Ele trabalhou no Banco Central, esteve na equipe que implantou as metas de inflação e é autor de um estudo de referência sobre a CPMF e seus impactos na economia brasileira:
— O objetivo na Europa não é tributar transação financeira ou a compra e venda por cartão de crédito. É fazer as grandes corporações americanas pagarem mais impostos. Apple, Google, Facebook, Microsoft, Amazon, ir atrás das receitas dessas empresas. Uma das ideias seria um imposto eletrônico, mas se for feito, vai ter que ser de uma forma que a Amazon pague mais, mas o pequeno comerciante que vende produtos eletrônicos, não. Do contrário, seria injusto. O problema é o poder de monopólio dessas companhias, esse é o centro da discussão.
Pedro Albuquerque fez mestrado e doutorado nos Estados Unidos e há 10 anos é professor na França. No seu estudo sobre a CPMF, publicado em 2001, ainda no Brasil, ele mostrou várias das distorções provocadas pelo tributo: aumento do spread bancário, estímulo à informalidade, custo maior para os mais pobres e peso excessivo sobre as empresas menores.
— O primeiro problema desse imposto é que a base de arrecadação não é estável, pelo contrário, é altamente reativa. Quanto maior a alíquota, mais a base encolhe. É como se o Imposto de Renda tivesse como efeito diminuir a massa salarial. Não é isso que se espera de um bom imposto — disse.
Um dos argumentos que a equipe econômica tem dito, agora com a permissão presidencial para defender o imposto, é que a base de tributação é ampla. Assim paga-se pouco porque todos pagam.
Não foi o que aconteceu no Brasil com a CPMF. Ela era cumulativa, virava uma grande taxação sem transparência, e dava aos maiores a chance de escapar. Grandes empresas levaram vantagem porque usavam a sua capacidade de verticalização. Ou seja, uma grande companhia podia aumentar o número de processos produtivos internamente, para evitar a compra e venda de produtos de terceiros.
Com isso, os pequenos negócios acabavam sendo sobretaxados. Além disso, criou-se um estímulo à informalidade. Albuquerque lembra que no Brasil começou a haver muitas trocas de cheques, que passaram a exercer função de moeda:
— As grandes empresas estavam criando quase que bancos internos com sistemas de compensação. Tentaram proibir isso, mas as pessoas são criativas, e quanto maior a alíquota maior o incentivo. É um imposto regressivo.
As propostas de taxação sobre movimentação financeira vêm da esquerda europeia, explica o economista, mas como forma de impostos regulatórios, como por exemplo sobre o mercado especulativo de ações. Ou inspiradas na Taxa Tobin, do economista James Tobin, que propunha tributar grandes movimentações financeiras internacionais:
— Há várias propostas de impostos eletrônicos na Europa, mas não são impostos que vão fazer o professor pagar mais. Não é para incidir sobre aluguel, sobre compras em geral, o objetivo não é esse.
Ele explica que o que se tenta é um tributo que incida sobre uma empresa grande como a Amazon, mas não sobre uma pequena. Não é para tributar cada transação eletrônica, é para tentar de alguma forma pegar a receita de grandes empresas de tecnologia.
— Com o Google a coisa complica ainda mais. Seria ir atrás da renda de propaganda, da publicidade, que é a fonte da receita da empresa. Não é para taxar a compra do cafezinho na esquina. Seria muito difícil politicamente na União Europeia se alguém tentasse colocar um imposto na conta-corrente do europeu. Seria um escândalo — afirmou.
A expectativa é que o ministro Paulo Guedes explique nos próximos dias e semanas o que pretende, afinal.
Julianna Sofia: Guedes adere ao vale-tudo para recriar CPMF
Por inabilidade ou dissimulação, a equipe econômica insiste não se tratar de reempacotamento da CPMF
No vale-tudo de Paulo Guedes (Economia) para desinterditar o debate sobre a recriação da CPMF, o ministro usa técnicas de um diversionismo pouco sofisticado para sugestionar a opinião pública, majoritariamente contrária ao novo (antigo) tributo.
Nas investidas mais recentes, o economista de Jair Bolsonaro vincula a instituição do imposto, a um só tempo, à desoneração de 25% da folha de salários das empresas, à ampliação da faixa de isenção do Imposto de Renda e ao financiamento de parte do novo Bolsa Família (Renda Brasil).
Com as finanças públicas exauridas, Guedes não abre mão do dinheiro grosso que poderia amealhar com uma alíquota mínima de 0,2%: R$ 120 bilhões. Há planos por uma taxação de até 0,4%. Joga iscas ao empresariado, à classe média e à população de baixa renda para capturar o mundo político —atmosfera na qual nunca orbitou.
Por inabilidade ou dissimulação, a equipe econômica insiste não se tratar de reempacotamento da CPMF, pois o novo tributo incidiria sobre pagamentos, sobretudo compras no e-commerce. Das falas desencontradas e dos vazamentos seletivos de informações, conclui-se, porém, que a intenção vai além de criar um “imposto do Rappi”, restrito ao ambiente digital, de cunho moderno e elitizado.
Pagamentos de qualquer tipo, compras inclusive em dinheiro, estariam sujeitos à tributação devido ao registro digital —hoje válido até para o pãozinho na padaria. Impostos sobre transações vigoram atualmente apenas em uma dúzia de países, como Paquistão, Venezuela, Argentina e Sri Lanka.
A aversão do Congresso é liderada por Rodrigo Maia, para quem a contribuição trava a economia: "Minha crítica não é se é CPMF, se é microimposto digital, se é um nome inglês para o imposto para ficar bonito, para tentar enrolar a sociedade”. A despeito das reações, com o centrão a tiracolo e sem mover um músculo, Bolsonaro autoriza Guedes a se aventurar mais uma vez na busca por apoio.
Everardo Maciel: Insegurança tributária
Temos um excesso de normas constitucionais e carência de normas infraconstitucionais
Um traço dominante da cena atual brasileira é, sem dúvida, a insegurança, que se revela de inúmeras formas, desde o desrespeito à propriedade e aos contratos até a dramática violência urbana, promovida pelo crime organizado e pelas milícias.
Nesse contexto, desponta a insegurança jurídica, com grande potencial para minar os valores básicos que regem a vida em sociedade.
No âmbito tributário, segurança jurídica é fator crucial para os investimentos.
Processos morosos e com elevado grau de imprevisibilidade, conceitos excessivamente indeterminados e interpretações ciclotímicas afugentam investidores e criam um clima hostil aos negócios.
As decisões judiciais sobre a natureza da substituição tributária constituem um bom exemplo de ciclotimia interpretativa.
Utilizada desde os anos 1970, ainda que de início restrita a um pequeno número de produtos e com nítido propósito de combater a evasão fiscal, a substituição tributária foi incluída na Constituição pela Emenda n.º 3, de 1993.
A inclusão justamente no âmbito das limitações do poder de tributar, tratadas no artigo 150 da Constituição, revela claramente uma pretensão de restringir o uso do instituto. Não foi, entretanto, o que ocorreu.
Logo após a promulgação daquela emenda, houve um aumento exponencial de uso da substituição tributária. Não raro foi utilizada com flagrantes extravagâncias, especialmente no que concerne à fixação das margens de valor agregado e abrangência dos produtos.
Instado a examinar a matéria, o STF adotou, por incrível que pareça, entendimentos completamente antagônicos.
A balbúrdia interpretativa torna, inclusive, duvidosa a jurisprudência prevalecente, que pode, a qualquer tempo, ser revertida, em virtude, por exemplo, de uma nova composição da Corte.
Esse fato, em boa medida, se explica pela descomunal extensão da matéria tributária constitucional, que gera espaço para uma miríade de questionamentos, sobretudo quando se considera a nossa irresistível vocação para litigar, traduzida nos 80 milhões de processos em curso no Judiciário brasileiro.
No caso específico da substituição tributária, mais adequado teria sido discipliná-la no Código Tributário Nacional (CTN).
Vivemos, assim, um paradoxo: excesso de normas constitucionais e carência de normas infraconstitucionais.
Em recente colóquio em Lisboa, Humberto Ávila, titular de direito tributário na USP, assinalou sua perplexidade com a crise das regras: “O julgador não gosta da regra? Azar da regra! Sabe-se lá com que critério. Se não reabilitarmos as regras para limitar a participação do intérprete e para controlar o poder, vamos eliminar o caráter normativo do direito”.
Se a substituição tributária é capaz de produzir tamanho imbróglio, o que não dizer do planejamento tributário, com sua desproporcional capacidade de gerar grandes litígios?
O enfrentamento do planejamento tributário abusivo é tema extremamente relevante para as administrações tributárias de todo o mundo, conquanto encerre muitas controvérsias.
No Brasil, efetivamente somente mereceu atenção após a introdução do parágrafo único do artigo 116 do CTN, por meio da Lei Complementar n.º 104, de 2001. O enunciado da norma esclarecia que ela só lograria eficácia plena com o estabelecimento de procedimentos especiais definidos em lei ordinária.
A Medida Provisória n.º 66, de 2002, nos artigos 13 a 19, preenchia o requisito do CTN: distinguia dissimulação de simulação, definia as hipóteses de aplicabilidade do instituto da desconsideração administrativa (falta de propósito negocial e abuso de forma) e estabelecia os procedimentos especiais aplicáveis à hipótese.
Infelizmente, o Congresso Nacional não converteu em lei aqueles dispositivos.
A mora legislativa de 16 anos não impediu, contudo, o Fisco de proceder a questionáveis e exorbitantes lançamentos, visando a coibir planejamento tributário abusivo. A matéria, algum dia, terá imprevisível desfecho no STF. Por que não estabelecer, logo, a regra demandada pelo CTN, eliminando esse foco de insegurança jurídica?
* Everardo Maciel é consultor tributário. Foi secretário da Receita Federal (1995-2002