trajetória

Por que Anielle Franco foi escolhida como ministra da Igualdade Racial no governo de Lula

Com larga experiência e trajetória como ativista das questões de raça e gênero no Brasil e os desdobramentos desses termos na violência política do país, a jornalista Anielle Franco, de 37 anos, assumiu na última quarta-feira (11) o cargo de ministra da Igualdade Racial.

Irmã da vereadora Marielle Franco, assassinada em 2018, Anielle é nascida na Maré, na zona norte do Rio, é formada em Jornalismo pela Universidade Central da Carolina do Norte, nos Estados Unidos, em Inglês pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e é mestre em Relações Étnico-Raciais pelo Cefet/RJ.

ministra do governo Lula é fundadora do Instituto Marielle Franco, que desenvolve projetos com meninas e mulheres negras, periféricas e LGBTQIA+. Além de defender a memória da vereadora assassinada no Rio tanto de fake news de movimentos autoritários e cobrar do poder público as respostas sobre os mandantes do crime, o instituto tem a proposta de fazer com que Marielle seja um espelho. 

"Vamos atuar na multiplicação do legado deixado por Marielle, para que o trabalho construído por ela e pela sua equipe seja espalhado e concretizado em todos os cantos", diz o instituto.

Em sua posse, Anielle reforçou a necessidade de intensificação de políticas públicas voltadas à questão racial, como as cotas que permitem o acesso às universidades públicas do país. "O Ministério da Igualdade Racial será um ministério que abrirá os portões para essa nova história. Uma história do futuro da vida no planeta passa pela preservação, solução e respostas das pessoas negras".

Anielle agradeceu à sua família pelo suporte, carinho e cumplicidade após a nomeação para o cargo de Ministra de Estado. "Aos meus pais Marinete e Toinho, ao meu esposo Fred, às minhas filhas, a minha sobrinha Luyara e também a minha irmã Marielle Franco, em nome de quem eu aceitei este desafio".

Novas leis

Durante a cerimônia, Lula sancionou a lei que equipara o crime de injúria racial ao de racismo, que é inafiançável e imprescritível.

Aprovado pelo Congresso em dezembro do ano passado, o texto inscreve a injúria, hoje contida no Código Penal, na Lei do Racismo e cria o crime de injúria racial coletiva.

Até agora, a pena para injúria racial era de reclusão de um a três anos e multa. A nova lei prevê punição de prisão de dois a cinco anos. A pena será dobrada se o crime for cometido por duas ou mais pessoas.

Discurso

Veja trecho de falas da ministra Anielle Franco, após ser nomeada para o cargo:

Um novo país começa hoje e o Brasil do futuro precisa responder às dívidas do passado.

Após um período de profundos ataques aos nossos direitos e humanidade, por meio do esgarçamento das leis, ataques às instituições e fragilização das próprias noções de solidariedade, podemos voltar a sorrir. Não porque as desigualdades raciais, sociais e de gênero estejam resolvidas, mas porque a partir de hoje elas voltam a fazer parte oficialmente do principal compromisso do Estado Brasileiro com seu povo: enfrentar as desigualdades para superá-las!

Ter sido submetidos ao maior genocídio do planeta, dentro dos tumbeiros (comumente chamados de navios negreiros), nos impôs a busca pelo resgate e reinvenção das nossas práticas coletivas de sobrevivência e reescrita dessa história de sangue, agora através da chave da liberdade, autonomia, dignidade, respeito, comunidade, amor, família (aquela ampliada, no plural).

Nada mais sobre nós (povo negro), sem a nossa participação. E tudo nos interessa e, com estratégia e muito trabalho, sobre tudo aquilo que se faz necessário para uma existência que tenha por base o bem-viver, nós estaremos de pé e em marcha, como mulheres e homens negros que lutaram para um Brasil de todos nos ensinaram.

Obrigada por serem minha base e sustentação. Obrigada por toda paciência e cuidado. Obrigada por me fazerem ser a minha melhor versão a cada dia.


Ivan Alves Filho: Relembrando Astrojildo Pereira

O que mais impressiona na trajetória de Astrojildo Pereira, a meu juízo, é a união que ele soube cimentar entre o homem de pensamento e o homem de ação. Uma combinação rara. Talvez por isso, o escritor e homem público Afonso Arinos de Mello Franco tenha se referido a ele como “a maior aventura intelectual” do Brasil em seu tempo.

Vamos tentar entender melhor o motivo disso. Nascido em 1890, em Rio dos Índios, localidade de Rio Bonito, na velha província fluminense, Astrojildo Pereira vivenciou, em 1908, um episódio que o marcaria para o resto da vida. Foi assim. Ao ler nos jornais que o romancista Machado de Assis agonizava, ele pega imediatamente uma barca em Niterói, atravessa a Baía de Guanabara e desce na Praça Quinze, no centro do Rio de Janeiro. Lá chegando, se enfia em um bonde e vai bater com os costados no Cosme Velho, aprazível bairro onde vivia o autor de Memórias póstumas de Brás Cubas.

Profundo admirador da obra machadiana, o rapaz, de apenas 17 anos, queria se despedir do velho mestre. Expõe sua intenção às pessoas que se encontravam na casa e é autorizado a entrar no quarto do escritor. Ajoelha-se, beija-lhe então as mãos e logo depois se retira. Na belíssima crônica A última visita, Euclides da Cunha, que presenciara a cena, escreveu: “Naquele momento, o seu coração bateu sozinho pela alma de uma nacionalidade. Naquele meio segundo em que ele estreitou o peito moribundo de Machado de Assis, aquele menino foi o maior homem de sua terra”.

Dois anos após esse acontecimento, civilista convicto e já começando a se impregnar de ideias anarquistas, Astrojildo Pereira desembarca no cais da Praça Mauá, no Rio, e vai conhecer algumas das principais capitais europeias. Perambula seis meses pelo Velho Continente e retorna ao Brasil. No ano de 1911, Astrojildo já colaborava com o órgão anarquista Guerra Social, trabalhava como gráfico e linotipista e militava no movimento anarquista. Em 1913, ele integra, com um grupo de aguerridos companheiros, a primeira central operária brasileira, a COB, da qual se tornaria o secretário-geral. Em 1917 e 1918, lidera uma série de greves operárias que abalam o Rio de Janeiro. É preso e barbaramente espancado pela polícia no final de 1917 e novamente preso no ano seguinte. Não esmorece. Em 1922, sob inspiração direta da revolução bolchevique na Rússia, faz a opção definitiva pelo marxismo e ajuda a formar o Partido Comunista no Brasil. Em 1924, viaja para Moscou, já investido na condição de secretário geral do PCB. Nesse mesmo ano, assiste, na Praça Vermelha, aos funerais de Vladimir I. Lênin – o arquiteto da revolução bolchevique e também do Estado soviético. Ainda em Moscou, por essa época, divide um alojamento com um líder comunista que seria considerado um dos grandes estadistas do século XX: Ho Chi Minh.

De volta ao Brasil, vive como um revolucionário profissional. Com efeito, Astrojildo não para. Dedica-se a organizar o PCB clandestino e se interna em seguida na Bolívia, em 1927. Sua missão? Contactar Luiz Carlos Prestes, o chefe da Coluna Invicta, em nome do Partido. Entrega a Prestes uma mala com livros marxistas e tenta convencê-lo da necessidade de revolucionar as estruturas da sociedade – e não apenas derrubar este ou aquele governo. Consegue atrair Luiz Carlos Prestes para as fileiras do PCB.

Uma vez acertado o ingresso do Partido na Internacional Comunista, Astrojildo Pereira passaria a compor sua Comissão Executiva, a instância máxima da organização, em 1929, quando parte novamente para a capital soviética. Com menos de 40 anos de idade, ele já se apresentava como um dos líderes da revolução mundial.

Mas não tardaria muito e Astrojildo Pereira teria sérias divergências políticas com o Partido no Brasil. Assim, é afastado da organização em 1932, sob a acusação de tentar barrar a linha dita de “proletarização” de sua política e de simpatizar, ainda, com as ideias de Nikolai Bukharin, opositor de Josef Stalin na direção do Partido Comunista da União Soviética.

Reintegrado ao PCB no bojo da redemocratização do país em 1945, Astrojildo Pereira colabora, nesse meio tempo, com o jornal carioca Diário de Notícias e escreve ensaios primorosos sobre Machado de Assis. Sua reputação como crítico se consolida. Tampouco abandona a reflexão política, debruçando-se sobre a análise do fascismo e sua influência no Brasil. Mais: é o primeiro a pontar para a grandeza épica dos Quilombos dos Palmares, chamando Zumbi de “o nosso Spartacus negro”. Começa publicar então seus vários livros de ensaios. E ainda se dedica de corpo e alma à organização do I Congresso Brasileiro de Escritores, realizado em 1945. O Congresso lançaria, praticamente, a pá de cal sobre o Estado Novo de Vargas. Dele participam Jorge Amado, Caio Prado Júnior, Graciliano Ramos, Aníbal Machado e outros nomes de primeiríssima linha da literatura, da historiografia e da ensaística brasileira.

Durante o Estado Novo, Astrojildo Pereira sobrevive vendendo frutas em um depósito em Niterói, o que motivou Manoel Bandeira a escrever um poema sobre ele. E de 1945 até o dia do Golpe de 1964, realiza pesquisas sobre a obra de Machado de Assis e a trajetória do PCB. Ao lado de sua companheira Inez, essas são as grandes paixões de sua vida, desde a juventude. Daí ter escrito certa vez que seu ideal de vida encorporava “um doce amor de mulher em meio a uma bravia luta política”. Seja como for, Astrojildo edita, nessas duas décadas, publicações da importância de Literatura e Estudos Sociais. Trabalha na célebre Editorial Vitória, do PCB, e passa a ditar, na prática, a política cultural do Partido. Intelectual refinado, ele contribui para revelar alguns valores que brilhariam na cultura e na política, como Armênio Guedes e Leandro Konder.

Astrojildo conviveu com figuras altamente representativas da cultura brasileira, como Oscar Niemeyer, Di Cavalcanti, Monteiro Lobato, Alberto Passos Guimarães e Nelson Werneck Sodré – pelo lado comunista – e Otto Maria Carpeaux e Hélio Silva, intelectuais católicos. Hélio Silva, inclusive, era um querido companheiro desde os tempos do anarquismo. Mais de uma vez, eu o ouvi – fascinado – discorrendo sobre isso, em meados da década de 80, quando tive oportunidade de trabalhar com ele, no Rio de Janeiro.

A explicação para esse trânsito junto a personalidades dos mais diferentes horizontes políticos e filosóficos reside no fato de que Astrojildo Pereira defendia seus pontos de vista sem qualquer traço de sectarismo. É bem verdade que nos momentos mais duros dos embates ideológicos travados pelo PCB, o velho revolucionário se alinhou, daqui e dali, com posições que, a rigor, contrariavam sua própria visão de mundo. É que, por formação, jamais iria contra uma diretriz do Partido. Mesmo assim, era, basicamente, um homem avançado em relação à sua época. Escrevendo de Moscou, em 1925, por exemplo, reconheceu que “a democracia, ainda que burguesa, é vista como um bem pelas massas”.

Era, de fato, um homem raro, desses que aparecem a cada meio século. Sua primeira prisão política, que eu saiba, se deu em 1917; a última, em 1964. Em 1965, devido aos rigores da prisão, onde sofreu um infarto, morreu Astrojildo Pereira. Foi perseguido durante a vida inteira, mas nunca perseguiu ninguém. Lutou todos os combates possíveis pela liberdade. Afonso Arinos tinha razão: Astrojildo Pereira levou uma existência que honra a inteligência brasileira. Sua vida é um desafio permanente lançado à imaginação dos melhores romancistas.

Eu o conheci em nossa casa, no Rio de Janeiro, quando estava para fazer 13 anos. Foi logo após sua saída da prisão. Meu pai, militante do PCB, tinha por ele um grande respeito. Guardo até hoje na memória sua semelhança física com meu avô paterno. Em ambos, eu percebia a mesma candura nos gestos, a mesma doçura no olhar, a mesma calma ao lidar com as pessoas. Como Astrojildo, vovô era um admirador do camarada Prestes, o Cavaleiro da Esperança. Como ele, vovô nascera na velha província. Ao conhecer Astrojildo Pereira, foi como se eu passasse a ter mais um avô só para mim.

Pouco depois, soube de sua morte. Seu enterro foi uma corajosa manifestação pública de repúdio à ditadura militar então instalada no Brasil. Inez Dias, desafiando os esbirros do regime, gritou, à beira do seu túmulo: Viva Astrojildo Pereira! Naturalmente, fiquei abalado com tudo que estava acontecendo. No país do final da minha infância, prendiam e maltratavam homens com mais de 70 anos de idade. Seu pecado? Ter permanecido fiel às suas ideias de juventude. Era mesmo assustador.

O velho Astrojildo Pereira foi o primeiro herói da minha vida.

Ivan Alves Filho é jornalista, historiador e autor de mais de uma dezena de livros, entre eles Memorial de Palmares