tragédias
Nas entrelinhas: A tragédia de São Sebastião e a sagração de Lampião
Luiz Carlos Azedo/Entrelinhas/Correio Braziliense*
A tragédia causada pelas chuvas torrenciais em São Sebastião e adjacências, no litoral norte de São Paulo — provocada pela degradação ambiental nas encostas da Serra do Mar e pelas mudanças climáticas decorrentes do aquecimento global, para o qual contribui fortemente o desmatamento da Amazônia —, foi como uma ducha de água fria em pleno carnaval. Não desanimou os foliões de raça, principalmente nos grandes centros carnavalescos, mas mexeu com quase todos, pelo drama humano que estamos vivendo e a certeza de que o planeta realmente está passando por eventos climáticos desastrosos, que aumentam de escala a cada ano.
O episódio serviu para nos mostrar a grande diferença entre os governos atual e anterior, negacionista do aquecimento global. Ao contrário do comportamento do ex-presidente Jair Bolsonaro durante a tragédia ocorrida em Santa Catarina, em dezembro passado, na segunda-feira de carnaval, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva deixou a base naval de Aratu, na Bahia, onde passava os dias de carnaval, para vistoriar os estragos, confortar a população e coordenar a ação de seu governo junto ao governo paulista e à prefeitura da cidade. Além da empatia com os flagelados, Lula demonstrou disposição de trabalhar com um adversário político, o governador Tarcísio de Freitas (PR), para tratar do que é mais importante: o socorro às vítimas e a recuperação da infraestrutura da região, principalmente a Rio-Santos, cujo tráfego foi interrompido.
Vendo as cenas pela tevê, lembrei-me do último filme de Akira Kurosawa, Depois da chuva, concluído postumamente. Todo o roteiro, a escalação do elenco e pré-produção foram realizados com o diretor em vida. Ao falecer, em setembro de 1998, aos 88 anos, seu filho ofereceria a direção para seu assistente, Takashi Koizumi, que a agarrou com as duas mãos. Ilhei Misawa (Akira Terao) é um ronin em busca de emprego, que vive o dilema de lutar ou não por dinheiro. Ao lado de sua mulher, Tayo Misawa (Yoshiko Miyazaki), é obrigado a parar em uma pequena hospedaria, porque o rio que deveria atravessar transbordou.
A chuva impede que as pessoas saiam para trabalhar, sobretudo carregadores e artistas errantes. Demorará dias até que o leito do rio volte ao normal e seja possível atravessá-lo novamente, o que gera uma crise social, devido à falta de alimentos e aos desentendimentos que surgem quando o egoísmo e o altruísmo estão em confronto aberto diante da escassez. O humanismo de Kurosawa transborda na tela, ao final do filme: quando a chuva passa, o ronin vai às compras e volta com os mantimentos para alimentar os demais abrigados. A comida farta muda da água para o vinho o comportamento das pessoas, que celebram a vida.
A analogia surge por causa das notícias de que, ao lado da grande mobilização dos órgãos públicos e dos voluntários da Defesa Civil, há uma grande demonstração de solidariedade entre os moradores e da população paulista, por meio de doações de água potável, alimentos, roupas, colchões e cobertores para os desabrigados. Infelizmente, também foram registrados saques aos caminhões que transportavam essas doações, talvez por necessidade, muito provavelmente por banditismo mesmo. Vimos também um governo federal preocupado com os mais necessitados, trabalhando de forma coordenada. Ontem mesmo, o presidente Lula já estava em Brasília, liderando seus ministros.
Carnaval da Imperatriz
Mas vamos falar de carnaval. A Imperatriz Leopoldinense venceu o desfile de escolas de samba do Rio de Janeiro pela 10ª vez, depois de um jejum de 22 anos, com o enredo “O Aperreio do Cabra que o Excomungado Tratou com Má-querença e o Santíssimo não Deu Guarida”. Fez um desfile praticamente perfeito, que contou a saga de Lampião no contexto do Nordeste da década de 1920. A Imperatriz trouxe Matheus Nachtergaele e Regina Casé como Lampião e Maria Bonita, respectivamente, mas o grande destaque foi a filha do casal, Expedita Ferreira da Silva, na última alegoria, que celebrava a herança cultural de Lampião. Com 90 anos, também desfilou na Mancha Verde, no domingo, em São Paulo.
Com três mil componentes divididos em 24 alas, com cinco carros alegóricos, a Imperatriz resgatou a vida de Lampião e seu bando no imaginário popular nordestino, com seus beatos, repentistas, cordelistas, carpideiras e mamulengos. O carnavalesco Leandro Vieira desenvolveu um enredo inspirado nas histórias delirantes de cordéis nordestinos, nosso realismo fantástico, que falam da chegada do cangaceiro Lampião ao céu e ao inferno: A Chegada de Lampião no Inferno, O Grande Debate que Teve Lampião com São Pedro e A Chegada de Lampião no Céu.
Lampião é um mítico anti-herói do nosso cangaço. Na década de 1960, o historiador inglês Eric Hobsbawn incluiu Lampião entre um grupo de criminosos “sociais”, porém se baseou mais nas lendas do que nos fatos, como ele próprio admitiu. Para Alberto Passos Guimarães, foi um fenômeno do banditismo das “classes perigosas”. O cangaço serviu de inspiração para obras como Grande sertão: Veredas, de Guimarães Rosa; o Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna; e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, de Glauber Rocha. Produto da miséria, das injustiças sociais e da violência nos sertões nordestinos, Lampião foi glamorizado pela cultura popular, assim como o ronin de Kurosawa.
Mário Sérgio Conti: Descida na decadência
Tagarela e entorpecido, o Brasil se dedica à produção contínua de ruínas
Foi João Carlos Saad quem melhor expressou o sentimento pesado, misto de iniquidade e torpor, provocado pelas catástrofes deste início do ano. Na segunda-feira, o presidente do Grupo Bandeirantes disse: "Quando terminarmos de investigar este caso, vamos encontrar um fio condutor entre essas tragédias".
Saad se referia à ruptura da barragem da Vale, ao incêndio no alojamento do Flamengo e à morte, horas antes, na queda de um helicóptero, do jornalista Ricardo Boechat.
Melancólica, a assertiva dispensou os consolos do acaso, que produz crendices do tipo "o Brasil precisa se benzer!". Para Saad, as mortes em Minas, no Rio de Janeiro e em São Paulo, os estados mais ricos da federação, foram produto "de coisas inadequadas que vêm acontecendo".
A inadequação não começou ontem nem veio do além. O Brasil real está em descompasso com autoimagens idílicas, difundidas durante décadas. Temos empresas de ponta, dizia-se, tão admiráveis quanto as melhores do mundo: a livre iniciativa forjará o progresso e o futuro.
Ei-las, as ilhas de excelência. A Petrobras desviou porrilhões de dólares. Viva o pré-sal. A Odebrecht comprou políticos urbi et orbi. Viva a engenharia nacional. A JBS privatizou a política. Viva o agronegócio. A Vale intoxicou o rio Doce. Viva a preservação do meio ambiente.
Há mais. Firmas lideradas por seres iluminados, como a Abril, a Cultura e a Saraiva, empulharam funcionários e fornecedores. Seus donos deram golpes na praça, mas não se diz mais "falência fraudulenta" —o chique é "recuperação judicial". Resolve-se tudo com tagarelice e tribunais.
Mais, ainda. O futebol, circo eletrônico que compensa o pouco pão, e mofo, é arena de cartolas como os do Flamengo, cujo domador-mor se faz chamar de CEO, Chief Executive Officer. Escolas de samba e igrejas, hoje empreendimentos de arte & religião, são ingênuos, pios?
Resta o consolo dúbio que corrupa, desleixo e má-fé não são apanágio verde-amarelo. Samurai da Renault-Mitsubishi-Nissan, Carlos Ghosn está preso há três meses. Google e Facebook, Big Brothers do mercado online, são alvo de protestos e processos. A Fifa é a CBF globalizada.
Com a queda da taxa de lucro, e as sequelas sociais de uma crise que vai e volta há uma década, tornou-se regra a concorrência desonesta e selvagem. Desde há 30 anos, quando caiu o Muro, a economia não tem alternativa à vista ou em potencial. Contudo a história não chegou ao fim.
Aumentaram as calamidades ambientais, os surtos climáticos extremos, a imundície urbana e industrial, a esterilização da natureza e o aquecimento planetário. Mas cresceu a consciência de que a Terra se esgota de modo convulsivo —a humanidade pode provocar o apocalipse.
Incêndios e inundações, porém, não originaram uma utopia. Como disse o crítico Fredric Jameson: é mais fácil imaginar o fim do mundo que o fim do capitalismo. Sem expetativas, não há esperança. Como a experiência histórica coletiva conta pouco, somos condenados ao presente.
Um presente de "coisas inadequadas", de decadência, de produção não do futuro, mas de ruínas. Não que o passado fosse bom —longe disso— ou que o presente lhe seja superior. No sentido etimológico, a decadência se explica pela raiz da palavra latina que lhe deu origem: "cadere", cair.
No sentido jurídico, decadência significa perda de direitos. Se o sujeito é levado pela inércia, pela repetição automática do estado em que se encontra, seja ele parado ou em movimento, seus direitos prescrevem. A inércia comanda nossa queda livre no presente vazio.
Acelerando sem parar num túnel vertical infindável, os brasileiros são despidos de seus direitos —no vento vão retalhos velhos. Seus líderes lhes garantem que, se continuarem a cair, se trabalharem por anos e anos sem descanso, se estatelarão de felicidade no fundo do poço.
No sentido estético, estudado por Nietzsche e Lukács, decadência quer dizer desintegração do sentido e atomização da sociedade. Ou seja, a incompreensão provocada pela perda do sentido comunitário —em favor de um individualismo impiedoso, de uma solidão sem misericórdia.
No sentido teológico, a decadência é atributo de um dos sete pecados capitais do catolicismo, a acídia. Arma do Anticristo, a acídia corrói a vontade, gera indolência, indiferença, impotência e, uma vez mais, inércia.
O Anticristo só pode ser vencido pelo Messias. Ele é o único capaz de pôr fim a séculos de letargia, à estagnação. Mas não há mais redentores.
*Mario Sergio Conti é jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".