tragédia ambiental

STJ anula denúncia sobre tragédia de Brumadinho e federaliza o caso

Ministério Público informou que irá recorrer da decisão

Léo Rodrigues / Agência Brasil

Tramitando há um ano e oito meses, o processo criminal que julga responsabilidades da tragédia de Brumadinho (MG) perdeu validade. A decisão é do Superior Tribunal de Justiça (STJ): os cinco integrantes da sexta turma entenderam, de forma unânime, que a Justiça estadual não tem competência para analisar o caso. O Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) já informou que irá recorrer.

O relator do julgamento foi o desembargador Olindo Menezes, convocado do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1). Ele considera que o caso deve ser federalizado por envolver acusação de declarações falsas prestadas à órgão federal, descumprimento da Política Nacional de Barragens e por possíveis danos a sítios arqueológicos, que são patrimônios da União. Seu voto foi acompanhado pelos ministros Laurita Vaz, Sebastião Reis Júnior, Rogerio Schietti Cruz e Antonio Saldanha Palheiro.

Com a decisão, os 16 denunciados na Justiça estadual não são mais considerados réus. O caso será enviado à 9ª Vara Federal de Minas Gerais, que precisará reavaliá-lo. O Ministério Público Federal (MPF) poderá reapresentar a denúncia do MPMG ou formular uma nova denúncia.

A tragédia de Brumadinho ocorreu em janeiro de 2019, quando a ruptura de uma barragem da mineradora Vale se rompeu, deixou 270 mortos e provocou degradação ambiental em diversos municípios mineiros. O processo criminal tramitava desde fevereiro de 2020, quando a Justiça mineira aceitou denúncia do MPMG e transformou em réus 11 funcionários da Vale e cinco da Tüv Süd, consultoria alemã que assinou o laudo de estabilidade da estrutura que se rompeu. Eles respondiam por homicídio doloso e diferentes crimes ambientais.

As duas empresas também eram julgadas. Investigando o caso em parceria com a Polícia Civil, o MPMG ofereceu a denúncia quando considerou que já existia farto material probatório, que comprovaria os riscos assumidos deliberadamente pela Vale, pela Tüv Süd e por seus funcionários.

Diante da complexidade do caso, a tramitação do processo seguia um ritmo lento. Ainda havia um funcionário da Tüv Süd que sequer tinha sido citado, pois não foi localizado nos endereços informados pelo MPMG. A própria consultoria alemã também não estava funcionando nos locais apontados. E apenas no mês passado havia sido finalmente aberto prazo para que os réus apresentassem suas defesas. Como a denúncia é extensa, a juíza Renata Nascimento Borges deu a eles 90 dias. Ela também havia concordado que os espólios de 36 vítimas atuassem como assistentes da acusação do MPMG.

O julgamento no STJ se deu a partir de um habeas corpus apresentado pela defesa do ex-presidente da Vale, Fábio Schvartsman, que era um dos réus. Seus advogados questionaram a competência da Justiça estadual. A tese foi aceita, sob discordância do MPF, que se alinhou ao entendimento do MPMG. “Não há descrição de crime federal, não há crime federal, não há bem jurídico da União atingido aqui na denúncia”, disse no julgamento a subprocuradora-geral da República, Luiza Frischeisen.

O mesmo STJ já havia, em junho do ano passado, julgado um conflito de competência e mantido o processo na esfera estadual. Na época, os integrantes da terceira sessão negaram, por sete votos a um, outro pedido que havia sido formulado pela defesa de Fábio Schvartsman. Entre os ministros que participaram de ambos os julgamentos, dois mudaram de opinião: Laurita Vaz e Rogerio Schietti Cruz que, no ano passado, votaram por manter o caso na Justiça estadual e concordaram agora em remetê-lo à Justiça federal.

Federalização

As causas da tragédia de Brumadinho suscitaram apurações em diferentes frentes. Além dos trabalhos do MPMG e da Polícia Civil, o caso mobilizou Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), na Câmara dos Deputados e no Senado.

Um inquérito também foi aberto pela Polícia Federal (PF) e ainda não foi concluído. Ele foi desmembrado em duas partes e, em setembro de 2019, sete funcionários da Vale e seis da Tüv Süd foram indiciados por falsidade ideológica e uso de documentos falsos. Eles teriam forjado relatórios de revisão periódica e de inspeção de segurança e a declaração de estabilidade da barragem, ignorando parâmetros técnicos.

A segunda parte do inquérito, que continua em andamento, envolve a apuração de crimes ambientais e contra a vida. Segundo a PF, para definir se alguém deve ser indiciado por homicídio, seria necessário identificar qual foi o gatilho da liquefação, ou seja, o que fez com que sedimentos sólidos passassem a se comportar como fluídos e sobrecarregassem a estrutura. Em fevereiro de 2021, foram divulgadas informações preliminares da investigação: uma perfuração em um ponto crítico da barragem teria desencadeado a tragédia. O procedimento, que estava sendo realizado no momento da ruptura, tinha como objetivo instalar instrumentos para medir a pressão da água no solo.

A mesma conclusão apareceu no relatório final de um estudo conduzido pela Universidade Politécnica da Catalunha e divulgado há duas semanas. Trata-se de um trabalho de modelagem e simulação por computador contratado por meio de um acordo firmado entre o MPF e a Vale. “Sob condições de tensão e hidráulicas semelhantes às do fundo do furo B1-SM-13 durante a perfuração, as análises numéricas mostram que, usando o modelo constitutivo e os parâmetros adotados para os rejeitos, pode ocorrer a liquefação local devido à sobrepressão de água e sua propagação pela barragem”, diz o relatório.

O inquérito da PF está sob sigilo. Segundo os policiais, a conclusão da investigação sobre o gatilho da liquefação subsidiará a decisão sobre a realização de novos indiciamentos, os quais poderão ser levados em conta pelo MPF em uma eventual denúncia criminal a ser apresentada na Justiça federal.

Fonte: Agência Brasil
https://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2021-10/stj-anula-denuncia-sobre-tragedia-de-brumadinho-e-federaliza-o-caso


Fogo matou 17 milhões de vertebrados no Pantanal em 2020

Trinta cientistas de diversas instituições aplicaram modelos matemáticos para estimar mortalidade

WWF-Brasil

Pelo menos 17 milhões de animais vertebrados foram mortos diretamente pelo fogo durante as queimadas que, ao longo de 2020, devastaram 27% da cobertura vegetal do Pantanal brasileiro. A estimativa foi feita por um grupo de 30 cientistas de diferentes instituições, em um estudo inédito coordenado pelo pesquisador Walfrido Moraes Tomas, da Embrapa Pantanal. 

A metodologia utilizada na pesquisa incluiu a contagem, em campo, das carcaças de animais mortos em áreas de queimadas, em um período de 24 a 48 horas após a passagem do fogo. O trabalho foi realizado ainda durante a ocorrência das queimadas históricas de 2020.  

Os dados obtidos a partir do levantamento em campo foram submetidos a métodos estatísticos e modelagem matemática para estimar quantos animais - e de quais grupos - foram mortos pelo fogo em todo o bioma, de acordo com Tomas. Um trabalho em uma área tão extensa, em período tão curto, em áreas de difícil acesso, sob pressão de grandes incêndios, representou um desafio logístico e científico considerável, segundo o pesquisador.  

Para contar as carcaças de animais, aplicando um protocolo rigoroso, os pesquisadores se engajaram em uma extensa força-tarefa que percorreu áreas atingidas pelo fogo em 126 trechos lineares - ou transectos - distribuídos de norte a sul do Pantanal, em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. O trabalho foi realizado entre agosto e meados de novembro de 2020. 

Ao avistar as carcaças, os pesquisadores registravam uma a uma, com datas e coordenadas geográficas, além do posicionamento e distância de cada uma delas em relação à linha de referência. Quanto mais longe da linha, menor a chance de enxergar as carcaças de animais, quando presentes. Calculando essa probabilidade de detectar uma carcaça, os cientistas elaboraram um modelo matemático capaz de corrigir o erro de detectabilidade e estimar o número de carcaças presentes em toda a área. 

Segundo Tomas, esse tipo de técnica, conhecida como "amostra de distâncias em linhas", é amplamente empregada pelos biólogos na contagem de populações de animais, mas nunca havia sido utilizada para a contagem de animais mortos por incêndios. 

"Foi um trabalho pioneiro no mundo com o uso dessa técnica para esse tipo de estudo e conseguimos resultados bastante robustos. O que importa nesse tipo de levantamento é o número de registro de carcaças e nós conseguimos quase 400. Isso permitiu a elaboração de uma estimativa com uma margem de erro bastante pequena e os números são muito confiáveis", explica Tomas. 

Como o Pantanal é um bioma variado e estava queimando de norte a sul, a força-tarefa precisou se distribuir em dezenas de transectos. Segundo o protocolo, a contagem deveria ser feita até 48 horas após a passagem do fogo. Para isso, os cientistas monitoravam as novas queimadas por imagens de satélites e enviavam uma equipe para o levantamento. 

"Com todo esse esforço conseguimos fazer 126 linhas de contagem, em algumas áreas de acesso dificílimo. Se tivéssemos mais recursos, teríamos incluído um número ainda maior de transectos", diz Tomas. Segundo ele, o levantamento tinha custo elevado, com aluguéis de carros, combustível e alimentação para os participantes. 

O estudo teve participação de pesquisadores da Embrapa Pantanal, ICMBio, Ibama, das universidades federais de Mato Grosso, Rio de Janeiro, Mato Grosso do Sul, do Instituto Smithsonian de Biologia da Conservação, do Instituto de Pesquisa do Pantanal, do Instituto do Homem Pantaneiro (IHP) e de diversas outras instituições de pesquisa.  

Na região sul do Pantanal, a maior parte dos recursos foi fornecida pelo Programa Biota-MS, da Secretaria de Meio Ambiente, Desenvolvimento Econômico, Produção e Agricultura Familiar (Semagro) de Mato Grosso do Sul. O WWF-Brasil colaborou com parte dos recursos para a pesquisa em Mato Grosso. Houve também apoio financeiro e logístico de instituições como o Museu Paraense Emílio Goeldi, Embrapa, SESC-Pantanal, ECOA, IHP e Panthera Foundation. 

"Foi um trabalho pioneiro no mundo com o uso dessa técnica para esse tipo de estudo e conseguimos resultados bastante robustos. O que importa nesse tipo de levantamento é o número de registro de carcaças e nós conseguimos quase 400. Isso permitiu a elaboração de uma estimativa com uma margem de erro bastante pequena e os números são muito confiáveis", explica Tomas. Foto: Juliana Arini/ WWF-Brasil

"Várias das instituições disponibilizaram recursos próprios, como o IHP e o ICMBio, que também disponibilizou um pessoal muito experiente em campo e foram parceiros muito importantes", diz Tomas. 

A ideia de realizar o levantamento surgiu ainda durante as queimadas de 2019, segundo o pesquisador, mas naquela época o projeto foi abandonado por questões de segurança. "Quando os incêndios de 2020 começaram ainda mais fortes, decidimos que era preciso cobrir essa lacuna no conhecimento e medir com mais precisão o impacto do fogo sobre a fauna", declara. 

"Os números que trouxemos não dão a dimensão exata, mas mostram a magnitude do que deve ter acontecido no Pantanal em 2020. Isso nos dá um termo de comparação para avaliar futuros incêndios como esses, caso eles se repitam ao longo dos anos", diz Tomas. 

Impactos desiguais 

Segundo Chirstine Strüssmann, professora de Ecologia e Conservação da Biodiversidade na UFMT, que coordenou uma das equipes em campo, o trabalho fornece uma base para novas pesquisas que possam revelar a dimensão do impacto global do fogo no ecossistema. "Nunca havia sido realizado um estudo dessa magnitude, com uma metodologia única, em uma área tão grande do Pantanal", diz ela. 

Embora a falta de dados prévios impeça uma análise precisa dos impactos sofridos pela fauna em 2020, os pesquisadores verificaram que algumas populações foram mais atingidas. "O número de serpentes que conseguimos ver foi maior que dos outros grupos. Não temos uma base prévia para comparação - e as populações de serpentes podem ser muito maiores que as de outros grupos. Porém, mesmo entre as serpentes, o impacto foi desigual. As aquáticas foram especialmente atingidas", afirma. 

De acordo com o estudo, a taxa de mortalidade foi alta principalmente entre os répteis, concentrando mais de 79% do total de animais mortos. Destes, mais de 95% eram serpentes, sendo que 97% delas eram aquáticas. Os mamíferos foram pouco mais de 15% do total e os anfíbios, 4%. O número de aves mortas encontradas foi relativamente mais baixo. 

Christine salienta que o fogo provocado pela estiagem faz parte da dinâmica natural do bioma, cujo equilíbrio depende da alternância entre períodos de alagamento e de seca. As espécies que prosperam na temporada úmida têm estratégias que lhes permitem sobreviver à estação seca, recuperando rapidamente o espaço perdido quando cessam as queimadas e voltam as chuvas.  

Esse ciclo de regeneração natural, porém, pode ser comprometido caso queimadas tão intensas quanto as de 2020 ocorram por vários anos consecutivos - um risco bastante real, considerando as mudanças climáticas. 

"Muitos animais têm estratégias para escapar, mesmo onde há o chamado 'fogo subterrâneo', que arde sob a cobertura de turfa quando as chamas já parecem ter cessado. O problema é que o tempo de duração do fogo foi muito grande em algumas áreas e, nesses casos, tanto a fauna quanto a flora têm mais dificuldades de recuperação. Em cada área do bioma a resposta é diferente", afirma a professora. 

Tomas, o coordenador da pesquisa, afirma que o impacto desigual em diferentes populações de animais pode ter impacto imprevisível nas complexas relações ecológicas entre eles.  

"Todos os animais têm funções nos ecossistemas. Os roedores, por exemplo, são presas de carnívoros e dispersam sementes. Quando perdemos as serpentes que se alimentam deles, por exemplo, a população de roedores pode explodir. Isso leva ao fenômeno conhecido como 'ratada', que já está acontecendo em algumas áreas do Pantanal", explica Tomas. 

De acordo com ele, porém, é difícil rastrear todos os impactos ecológicos, especialmente porque a densidade de cada população animal antes dos incêndios era desconhecida. "Estimamos que morreram quase 170 mil primatas, 220 mil aves de médio e grande porte e 85 mil jacarés. Mas a densidade desses animais no bioma é variável e muitos, como serpentes e roedores, morreram embaixo da terra e não puderam ser registrados nos levantamentos. Isso indica que, para animais assim, os números foram ainda maiores do que o calculado", diz. 

Destruição de refúgios

Para o biólogo Danilo Bandini Ribeiro, professor da UFMS que não participou do estudo, uma das consequências mais dramáticas das intensas queimadas de 2020 no Pantanal é que elas atingiram áreas de formação florestal que normalmente não queimam - e isso reduziu drasticamente a disponibilidade de refúgios para os animais, limitando suas estratégias de sobrevivência. 

"Embora o fogo faça parte da dinâmica do Pantanal, a extensão das queimadas em 2020 foi anormal. Quase 30% do bioma foi atingido pelas chamas. Isso não seria tão grave se uma área tão extensa queimasse pouco a pouco. Mas tivemos mega incêndios com frente de fogo de até 20 quilômetros. Nessas condições, o fogo se espalha rápido demais, impedindo que se formem refúgios para os animais", explica Ribeiro. 

Ribeiro é coordenador do Projeto Noleedi (fogo, no idioma Kadiwéu), que estudo o efeito do fogo na biota do Pantanal Sul-mato-grossense e sua interação com os diferentes regimes de inundação. O projeto, que é uma parceria da UFMS com o Prevfogo-Ibama, teve apoio do WWF-Brasil.  

"Estamos estudando o efeito do fogo na biota, a fim de estabelecer, entre outras coisas, qual é a melhor época do ano para fazer o manejo do fogo, qual o efeito disso em alguns grupos da biodiversidade que estamos monitorando e qual o efeito histórico do fogo em uma perspectiva de longo prazo", conta Ribeiro.

Manejo do fogo

Ele explica que o Pantanal tem ciclos plurianuais de seca e cheia - e por isso é importante estudar os impactos a partir de uma perspectiva de longo prazo. Segundo Ribeiro, não se sabe ainda se essa sequência de anos secos no Pantanal é resultado de mais um ciclo plurianual, ou se é reflexo das mudanças climáticas. 

"Podemos estar entrando em um ciclo de vários anos de seca, como ocorreu na década de 1970. Mas não temos certeza, porque além das variações anuais e dos grandes ciclos plurianuais, temos a influência das mudanças climáticas, que estão contribuindo para tornar os ambientes mais secos e quentes, com extremos mais pronunciados", diz Ribeiro. 

Para ele, enquanto não há uma conclusão sobre a origem das secas, o melhor caminho a seguir é o aprimoramento do manejo do fogo controlado. "De todos os recursos de que dispomos, em termos de políticas públicas, o manejo do fogo é o que reúne mais evidências científicas de sua eficiência. Acredito que é necessário também aumentar o investimento na prevenção - não apenas montando brigadas para o combate de incêndios, mas termos brigadas o ano inteiro realizando o manejo do fogo", frisa. 

O biólogo afirma que banir o uso do fogo é uma estratégia contraproducente, já que faz parte da dinâmica do bioma. Se não houver fogo controlado, a biomassa seca se acumula e, quando ele ocorre, fica completamente fora de controle. "As queimadas prescritas são a maneira mais eficiente de impedir grandes incêndios descontrolados. Com o manejo da quantidade de biomassa seca, a tendência é que essas áreas manejadas não queimem, ou queimem menos, reduzindo a cicatriz do fogo", diz o pesquisador. 

Fonte: WWF Brasil
https://www.wwf.org.br/informacoes/noticias_meio_ambiente_e_natureza/?80028/Fogo-matou-17-milhoes-de-vertebrados-no-Pantanal-em-2020


Revista Política Democrática || Anivaldo Miranda: As lições que nos chegam do mar

Das praias do Maranhão às do Espírito Santo, a tragédia causada pelas manchas de petróleo assusta pela quantidade de óleo vazado, os impactos à vida marinha e os prejuízos que afetarão a saúde humana, os produtos do mar e a economia do país 

Alguns dizem que é o maior crime ambiental já ocorrido no Brasil. Mas como se trata de evento que ainda está em andamento, e como estamos assistindo nos últimos 4 anos à uma sucessão assombrosa de graves ocorrências similares, envolvendo rompimentos de grandes barragens de rejeitos de minério, comprometimento de rios de grande porte e, ultimamente, incêndios florestais em grande escala, fica difícil, nesse ranking deprimente, qualificar qual dessas tragédias é a pior em termos de efeitos destrutivos e sequelas a encarar.

Não há dúvida, porém, que o impacto causado pelas manchas de petróleo que chegaram ao litoral brasileiro – das praias do Maranhão às do Espírito Santo – é algo assustador por várias razões: a quantidade de óleo vazado, a dispersão e fragmentação das plumas resultantes, os impactos agressivos e de grande monta em relação à vida marinha e à saúde dos seus ecossistemas, os prejuízos que afetarão a saúde humana, os produtos do mar e a economia do país.

Das muitas lições que se pode tirar desse evento, destaca-se a recorrência não só da demora da resposta, mas também da incapacidade de sincronia de esforços diante das ocorrências catastróficas que se estão multiplicando no Brasil, resultantes tanto de fenômenos naturais, como da ação ou inação humanas.

O poder público tardou em perceber a gravidade e a abrangência do evento, e as providências deram-se de forma tardia, apesar dos instrumentos legais e operacionais que já estão disponíveis para enfrentar contextos de tal criticidade. E tal atraso é sempre nocivo, tendo em vista que a larga experiência internacional ensina que tempo e agilidade podem minimizar significativamente os danos relativos a quaisquer acidentes.

Fontes do governo federal insistem em dizer que, desde a primeira notícia do aparecimento do óleo nas praias da Paraíba, em 30 de agosto último, teve início a mobilização oficial para avaliar e enfrentar o problema. Mas essa não é a versão do Ministério Público Federal no Nordeste, que acionou a União e acusou o Ministério do Meio Ambiente por não ter reconhecido formalmente a “significância nacional do desastre ambiental” e, como tal, não ter acionado em sua integridade o Plano Nacional de Contingência (PNC), omissão que gerou luta de liminares bastante ilustrativa das complicações de ordem burocrática que atravancam a operacionalidade da ação estatal, até mesmo em situações de emergência.

Verdade seja dita, mesmo que tivesse sido ativado a tempo, o PNC, nas condições da cultura centralizadora e prepotente do Estado brasileiro que rejeita o compartilhamento de processos decisórios com a sociedade, dificilmente teria possibilitado em toda sua amplitude, as ações voluntárias e tempestivas de muitos escalões intermediários do poder público – da União, Estados ou municípios, bem como de universidades e escolas, populações ribeirinhas ou costeiras, pescadores, marisqueiros, trabalhadores e empresários do turismo – para fazer frente ao desafio do óleo espalhado no mar.

Uma análise mais detida da estrutura funcional e administrativa do PNC identificará não só o fardo burocrático de sua concepção, mas também sua frágil legitimidade, em razão da ausência de representações dos governos estaduais e municipais e dos segmentos da iniciativa privada e da sociedade civil. Não obstante essa verificação, o acionamento pleno do PNC sempre se justificará, por conta do grau de incertezas quanto à origem do vazamento, a estimativa aproximada da quantidade de óleo vazado e os danos causados ao ambiente, sobretudo ecossistemas marinhos e costeiros de grande valor para a biodiversidade.

Em seu momento, investigações da Polícia Federal apontaram o navio tanque de origem grega – o Boubolina – como suspeito do vazamento. No entanto, análises do mar, via satélites de origem diversa, descartaram recentemente essa hipótese, a exemplo da respeitada organização Skytruth, que atua nos Estados Unidos, e do Laboratório de Análises e Pesquisas Espaciais (LAPIS) da Universidade Federal de Alagoas, que atribui maior probabilidade a um navio fantasma que não pôde ser detectado pelo sistema de localização, quando da presumível data em que o óleo vazou. Seja como for, o “dossiê” continua em aberto, e certas declarações oficiosas dão a entender que nem a hipótese de vazamento de um poço sem controle foi descartada.

Deve ser registrada a mobilização – tardia ou não – de um grande número de servidores públicos, incluindo contingentes e equipamentos militares, pesquisadores e voluntários civis, providência que não deve ser desativada, porque ainda há muito trabalho e esforço para detectar, contabilizar, diagnosticar e reparar, até onde for possível, os impactos causados aos ecossistemas marinhos e costeiros pelo vazamento do petróleo. E para que tais tarefas sejam desempenhadas, é preciso estar alerta e impedir que razões de ordem fiscal e orçamentária sejam mais uma vez acionadas para frustrar ou limitar as atividades imprescindíveis à minoração dos danos causados à biodiversidade.

Convém lembrar que o Brasil não vem passando nos últimos testes a que foi submetido pelas catástrofes agora mais frequentes. Nesse sentido e mantendo o foco apenas nessa questão do vazamento do óleo, é importante destacar a enorme faixa costeira atlântica do Brasil e as águas oceânicas que com ela interagem. A multiplicação do tráfego marítimo em toda essa área, a perfuração e a exploração exponencial de poços de petróleo em águas brasileiras e fora delas, como é o caso do Golfo da Guiné, na África, onde vazamentos de petróleo também poderão atingir nosso litoral, configuram cenário que bem dimensiona a grandeza do desafio que o país tem pela frente.

É urgente, portanto, que se reserve atenção especial à preparação do país para continuar desenvolvendo as melhores e mais seguras tecnologias possíveis para extração de petróleo e gás em ambientes aquáticos, transporte de poluentes em águas oceânicas ou interiores e observação, fiscalização e monitoramento do tráfego marítimo, complementando essas políticas com intensa cooperação internacional.

É vital que não se restrinjam às nossas limitações tecnológicas e científicas os fatores que conspiram contra a capacidade satisfatória do Brasil de prevenir e responder a eventos catastróficos. Por trás dos nossos dilemas, avulta-se também a gestão pública de baixa qualidade, um fantasma complexo que nos assombra desde tempos imemoriais, além de uma cultura negligente em face dos riscos inerentes à vida, desde os mais cotidianos, no plano  doméstico, até os riscos de grande escala que deixamos de gerenciar adequadamente em nome, muitas vezes, da internalização de lucros abusivos conseguidos às expensas da externalização criminosa dos custos humanos, sociais e econômicos de atividades sujeitas a perigos inaceitáveis..

A sucessão de eventos catastróficos que o Brasil vivenciou nos últimos tempos decorre, dentre outras causas, da baixa de qualidade da gestão pública, processo que vem se agravando há mais de uma década. Agora, sob a égide de uma ideologia ultraliberal agressiva e conservadora, esse processo tem-se acentuado, o que eleva os riscos das atividades econômicas a novos patamares no rastro do desmonte das políticas públicas de meio ambiente e de recursos hídricos por conta, também, de uma retórica eivada de conteúdo ideológico rasteiro que nada em comum tem com as práticas e metodologias científicas próprias da boa gestão do meio ambiente.

Não estão alheios a tal processo os grandes setores da economia monopolista que, confrontados entre os cânones da modernidade gerencial do desenvolvimento sustentável, de um lado e, do outro lado, as vantagens oportunistas que podem obter no contexto de sociedades fragilizadas que flexibilizam irresponsavelmente os marcos legais do controle ambiental, optam pelo segundo caminho para assegurar taxas de lucros impublicáveis.

O Brasil do pós-Mariana, Barcarena (Pará), Brumadinho, dos mega incêndios florestais e atualmente do óleo no mar precisa refletir de maneira abrangente sobre isso e fazer conexões mentais importantes no contexto de sua inteligência coletiva, para enfrentar os dilemas do século atual com boas possibilidades de acerto que, ao final, conduza seu povo a um nível razoável de bem-estar e mantenha seu território e biodiversidade num plano seguro de preservação e capacidade de reprodução.

No século do aquecimento global, em que se terá, por bem ou por mal, de trabalhar a capacidade nacional de resiliência às novas condições climáticas, as catástrofes recomendam cada vez mais mudanças de comportamento, tais como adotar a cultura do planejamento, da gestão de qualidade tanto privada como pública e, no caso desta última, uma gestão cada vez mais transparente, participativa, compartilhada e descentralizada como pilar essencial para que se possam impulsionar ciclos de crescimento saudáveis que aliem a ciência e a tecnologia a uma cultura cidadã mais consistente e consciente que capacite os brasileiros e as brasileiras ao enfrentamento de seus grandes desafios.

* Jornalista e mestre em meio ambiente e desenvolvimento sustentável pela Universidade Federal de Alagoas – UFAL.


El País: A tensa contagem regressiva das cidades à espera da lama da Vale

Expectativa é que a água turva pelos rejeitos chegue à última fronteira para o rio São Francisco após 10 de fevereiro. Chuva pode mudar cálculos. “O cenário é menos para o rio, mas, em termos de biodiversidade, as perdas são incalculáveis”

Quando a barragem da mineradora Vale estourou na sexta-feira, a cidade de Juatuba, às margens do rio Paraopeba, entrou em estado de alerta. Localizada a apenas 36 km de Brumadinho, o município fez o melhor que pode para se preparar para a chegada da pluma, a forma palatável com que algumas autoridades e técnicos chamam a lama de rejeitos e água que avança sobre o rio. “Orientamos as pessoas para retirarem barcos da água e destinamos uma escola para receber ribeirinhos, caso tivéssemos elevação do rio”, afirmou Wagner Majesty, secretário de Governo e do Meio Ambiente da cidade.

A concessionária Águas de Pará de Minas divulgou que já no domingo, 27, foram identificadas alterações nos padrões de qualidade da água bruta do Paraopeba em Juatuba. A lama chegou mudando a turbidez da água, mas os peixes, por enquanto, continuam por lá. “Não vimos em nossa região mortandade de peixes, os que encontramos mortos vieram de Brumadinho”, afirma um tanto aliviado o secretário. Majesty afirma que as primeiras análises feitas mostram que imediatamente após a passagem da lama o nível de turbidez da água subiu de uma média de 80 e 90 NTU (unidade nefelométrica de turbidez, quanto maior, maior turbidez) para 130 NTU. “Após o desastre em Mariana, por exemplo, a turbidez do rio Doce chegou a 5.000 NTU, o que mostra que nossa situação não é alarmante”, explica.

De acordo com o Serviço Geológico do Brasil, a turbidez acima de 2.500 NTU dificulta o tratamento em estações de tratamento de água convencionais. “Estamos monitorando. Sabemos que diminuiu o nível de oxigênio da água caiu, mas ainda não sabemos o nível de metais pesados”, afirma. Apesar de Juatuba não depender do Paraopeba para o abastecimento de água potável, outras atividades estão sendo sendo comprometidas. A cidade orientou que a água do rio não seja utilizada para consumo nem irrigação. “É um efeito cascata. O problema da irrigação afeta principalmente a agricultura familiar, que são os principais fornecedores de alimento para a merenda escolar”, diz.

A tensa contagem regressiva das cidades à espera da lama da Vale

Com 22 mil habitantes, Juatuba está fazendo um cadastro dos pescadores que vivem do rio Paraopeba para poder calcular o impacto ambiental e econômico e cobrar da Vale. A mineradora informou que está instalando membranas e cortinas de contenção de rejeitos próximo à cidade de Pará de Minas, que fica à frente de Juatuba no curso do rio. “A lama está avançando muito lentamente dentro da calha do rio. Ela está a cerca de 40 km de Pará de Minas. Existe a expectativa de que em 48 horas a lama chegue à cidade, mas essas cortinas são de instalação muito rápida e nossa expectativa é que elas serão suficientes para conter esse rejeito e assim não permitir nenhum problema para a captação de água do rio”, afirmou Luciano Siani Pires, direito executivo de finanças e relações com investidores, em uma coletiva de imprensa.

Majesty garante que os municípios entendem que a Vale deve priorizar o resgate das vítimas. Mas a lentidão da companhia em compartilhar seu plano de contingência para desastres ambientais preocupa. “A Vale se comprometeu, tardiamente, em colocar as cortinas de contenção em Pará de Minas, por que não fez isso antes, logo na saída de Brumadinho, se é uma ação rápida, como eles mesmo disseram?”. Nesta quarta-feira, a companhia apresentou ao Ministério Público e aos órgãos ambientais seu plano para conter os rejeitos no Rio Paraopeba, que contempla um trecho total de 210 quilômetros. Barreiras de retenção serão instaladas ao longo de um trecho de 170 quilômetros do rio.

Imagem do Paraopeba, antes e depois da lama, em Juatuba.
Imagem do Paraopeba, antes e depois da lama, em Juatuba. ARQUIVO PESSOAL

Também no caminho da lama, São José da Varginha, com 5 mil habitantes, se organiza sozinha para tentar mitigar os danos. Localizada a pouco mais de 90 km do local da tragédia, a cidade deve receber a lama nesta quinta-feira. “Organizamos um comitê com técnicos, veterinários e especialistas em meio ambiente”, afirma o Vandeir Paulino da Silva. A maior preocupação é mapear o impacto ambiental e econômico para os produtores que utilizam a água para irrigação, já que a água de consumo não vem do Paraopeba. “Por enquanto, não veio ninguém da Vale aqui”, diz o prefeito.

Os comitês brasileiros de bacia hidrográfica acompanham de perto o avanço da lama pelas cidades. Anivaldo Miranda, presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco, afirma que há uma perspectiva que quando a água contaminada pelos rejeitos da barragem chegar ao lago do Sobradinho, já na Bahia, ela estará diluída e não deva afetar os usos do rio. “Este é o melhor cenário, que aponta impacto praticamente aceitáveis. Mas é muito cedo para fazer previsões. Se chover muito, tudo pode mudar”, diz Miranda. As características do rio Paraobepas, mais plano do que o rio Doce, por exemplo, e as características da lama de rejeitos, são alguns dos fatores que podem ser considerados positivos para que o estrago não seja tão grande quando no desastre da Samarco, em Mariana.

A previsão do Serviço Geológico do Brasil é que a pluma comece a chegar à Usina Três Marias, a fronteira para entrar no rio São Francisco, localizada a cerca de 300km de Brumadinho, entre os dias 5 e 10 de fevereiro. A expectativa é que a própria contenção da represa ajude a mitigar os danos. “A velocidade da água está diminuindo. Estávamos em 1 km por hora, e hoje não passamos de 0,8 km”, afirma Miranda. Ele acredita que existe a possibilidade de a lama ficar pelo caminho. “O cenário para o São Francisco é bem menos ameaçador do que se imaginava, mas, em termos de biodiversidade, as perdas são incalculáveis.”


Vinicius Torres Freire: Brasil na lama e em ruínas

Além do vômito letal da represa de lixo da Vale, obras públicas caem aos pedaços

Faz mais de cinco anos, a gente tem a impressão de que o Brasil está em ruína progressiva. O sabor político do sentimento depende do gosto ideológico do freguês. Quanto ao sentido literal da expressão “ruína”, há sinais e sintomas evidentes de que o país está caindo aos pedaços.

Por exemplo, qualquer pessoa sensata vai se perguntar como é possível que se repita em três anos um horror como esse das barragens de Minas Gerais, essa desgraça revoltante na represa de lixo da Vale. Mas a coisa já ia longe.

A gente está com a pulga atrás da orelha de uma cabeça com cabelos em pé, aqui em São Paulo. Há notícias em série sobre o mau estado das pontes e dos viadutos da capital do estado mais rico e mais cheio de universidades de ponta do país.

No final do ano passado, um viaduto da marginal do Pinheiros cedeu e foi interditado. Na semana que passou, foi a vez de um viaduto que liga a marginal do Tietê à Via Dutra.

Oito pontes e viadutos vão passar por vistoria de emergência, entre eles duas pontes sobre a marginal do Tietê.

As marginais são uma das duas grandes vias de circulação expressa e de saída da cidade. Se param, a cidade não consegue chegar nem na breca.

Problema local? Hum.

O investimento do setor público, a despesa em “obras”, afunda mais que viaduto paulistano. Na soma dos gastos dos governos federal, estaduais e municipais, o investimento médio de 2015 a 2017 baixou 36,6% em relação à média dos anos “bons” de 2004 a 2013.

Baixou em termos relativos, em proporção do PIB, um desastre (estas contas são baseadas nas séries de investimento calculadas pelos economistas Rodrigo Orair e Sérgio Gobetti, do Ipea).

O investimento é insuficiente para manter e reparar a infraestrutura, segundo os especialistas (é menor que a depreciação). A baixa é brutal nos governos estaduais, o dobro da queda relativa do investimento feito pelo governo federal e pelos municípios.

Em português claro, isso quer dizer que não há dinheiro suficiente para manter, que dirá melhorar, estradas, pontes, viadutos, açudes, barragens etc. O país está apodrecendo fisicamente.

Para piorar, sem obras novas ou consertos, a economia demora a se recuperar. A construção civil foi o grande setor mais desgraçado da economia durante a recessão. Parou de piorar, mal e mal, apenas no ano passado.

Além da falta de dinheiro, escassearam vergonha na cara e competências. Convém lembrar que as maiores empreiteiras eram comandadas por gângsteres, máfias que compravam governos, leis etc. Sabe-se lá mais o que aprontaram.

Desconhece-se o motivo da nova desgraça mineira, mas sabemos de algumas coisas:

1) leis ambientais rigorosas não faltam; há baderna ou coisa pior na fiscalização;

2) muita gente e negócios estão no rastro possível do vômito letal dessas barragens que se esboroam;

3) não há meios de avisar essa gente que fica no caminho do mar de lama tóxica ou modo de tirá-las de lá a tempo. Quando acontece um desastre, por acidente ou incompetência criminosa (a ver), as pessoas morrem como vítimas de bala perdida nos tiroteios das metrópoles brasileiras. Isso é descaso.

Incúria, corrupções, burrices e ignorâncias brasileiras básicas e, ainda pior agora, a falta de dinheiro devem nos deixar mais alertas. Alguém ainda se lembra da desgraça, da tristeza infinita, do Museu Nacional? A queima da memória brasileira, a ponte que caiu ou a lama da mineração podem ser sintomas de coisa pior.