teto de gastos
Cristiano Romero: Quem fala pela maioria silenciosa?
É antiético alegar problema fiscal para suspender auxílio
Todos os grupos de interesse específico tem representantes em Brasília, dentro e fora do Congresso Nacional, alguns com mais e outros com menos força para fazer valer sua participação no orçamento público. É disso que se trata a disputa pelo poder na capital de qualquer República, sob a vigência do Estado democrático de Direito.
O que torna o Brasil um país particularmente injusto é que os pobres, a maioria silenciosa deste imenso território, não têm representação no centro do poder nem quem os defenda por dever de consciência. Isso pode parecer um exagero, mas não o é, afinal, quando olhamos mais de perto iniciativas de políticos e partidos que se jactam por defender os pobres em Brasília, contradições pululam.
Um exemplo: sindicatos de trabalhadores da região do ABC, onde se concentra no Estado de São Paulo a maioria das empresas do setor automotivo, se unem para pressionar o governo, todo ano, a conceder incentivo fiscal às multinacionais. Não se passa um ano, na Ilha de Vera Cruz, desde a década de 1950 sem que essas companhias, originárias das nações mais ricas dom planeta, recebam dinheiro público subsidiado para… permanecerem aqui, onde está o sexto maior mercado (atrás apenas de China, Estados Unidos, Japão, Índia e Alemanha) de automóveis _ este país é também o oitavo maior fabricante.
O último incentivo aprovado para as múltis de carros prevê a liberação de R$ 8 bilhões em dinheiro da Viúva em quatro anos. Provavelmente, esse montante é, em termos relativos, muito menor em relação ao que se dava no passado e deve ser uma mixaria face ao faturamento e ao lucro do setor no país, sejam quais forem esses valores _ sim, leitores, mesmo beneficiário de dinheiro público, as montadoras nunca divulgaram seus números ao povo que as subsidia.
É curioso que ninguém, o parlamento ou mesmo as instituições "democráticas" criadas pelo distinto público para representá-lo e defendê-lo. O dinheiro que essas multinacionais embolsam a título de incentivo não é nada para elas, mas é algo para Ilha de Vera Cruz, onde vivem 50 milhões de miseráveis e, pelo menos, mais cem milhões de pobres.
Ora, como alguém pode achar que a manutenção desse subsídio de alguma forma ajuda pobres e miseráveis deste imenso país? Conceder incentivos ao setor automotivo, a esta altura do jogo, apenas contribui para concentrar ainda mais a renda, tirar de pobres para dar a ricos. Pense duas vezes antes de elogiar o político que defende o "cluster" da indústria automotiva brasileira. Ademais, convenhamos, por que dar incentivo a um setor protegido, contra concorrentes estrangeiros, por barreiras tarifárias (impostos e outros tributos) e não tarifárias (por exemplo, proibição de importação de carros usados)?
Outro exemplo das contradições expostas por grupos políticos que dizem estar em Brasília com a única "missão" de defender os desvalidos vem dos partidos de esquerda, que, por definição, são os mais propensos à formular políticas de combate à pobreza e emancipação das classes menos favorecidas em regimes democráticos. Por aqui, partidos de esquerda estão sempre a postos para proteger privilégios _ e não direitos _ adquiridos pelo funcionalismo público e os servidores de estatais. Não adianta lutar por um salário mínimo mais digno, por mais e melhores escolas, por um atendimento saúde público universal e digno e, ao mesmo tempo, lutar pela manutenção de um Estado caro, ineficiente e injusto, portanto, incompatível com implantação do projeto de nação previsto na Carta Magna de 1988.
É a falta de representação em Brasília que faz com que, nos momentos de dificuldade fiscal, governantes, parlamentares e membros "ilustres" do Poder Judiciário proponham "soluções" que, ao fim e ao cabo, tirem dinheiro de quem já tem pouco (os pobres) e dos que não têm nada (os miseráveis). Por isso, falar de problema fiscal "grave" no momento em que, todos sabemos, milhões de brasileiros (estima-se como algo em torno de 23 milhões de pessoas e suas famílias) ficarão sem renda em meio à maior crise sanitária da história, é terrivelmente doloroso, inclusive, por sabermos que nenhum grupo de interesse específico terá seus direitos suprimidos em nome da emergência que o país e o mundo enfrentam.
Em janeiro, não haverá mais auxílio emergencial. O economista Manuel Pires, do Ibre-FGV, esmiuçou as possibilidades para que Brasília encontre uma solução em relação ao auxílio que não jogue o país numa crise severa em poucas semanas. As conclusões não são animadoras.
- A forma talvez mais direta seria passar uma PEC que determinasse que o novo programa, temporário ou permanente, estaria fora do teto de gastos, assim como já ocorre com itens como créditos extraordinários, Fundeb e a capitalização de estatais.
PECs têm muitas etapas de tramitação nas duas Casas, mas suponhamos que, com um hipotético consenso entre Executivo e Congresso, se tentasse fazer tudo em tempo recorde a ponto de 2021 começar já com algum substituto do auxílio.
Há obstáculos muito sérios nesse caminho. Já foram emitidos sinais do Tribunal de Contas da União de contrariedade em relação a excluir novas despesas do teto de gastos, por causa dos riscos fiscais. Adicionalmente, uma forma tão acintosa de driblar o teto de gastos, mesmo que bem recebida inicialmente pelo Congresso, provavelmente causaria grande estrago nos mercados, com possibilidade de disparada do dólar e queda acentuada das bolsas - o que costuma soar o alarme dos políticos e levar ao recuo.
- Uma segunda via para excluir um novo programa do teto seria prorrogar o estado de emergência e recriar o orçamento de guerra. Isso exigiria a tramitação de PEC, o que esbarra, como já notado, no pouco tempo de funcionamento do Congresso até o recesso.
Com a recriação do orçamento de guerra, seria possível não só criar um Renda Cidadã, mas também incorrer em qualquer despesa acima do teto, sem nenhuma amarra. Certamente seria medida também de grande impacto negativo nos mercados, a menos que uma segunda onda de Covid-19 muito forte a justificasse.
- Finalmente, existe a possibilidade de fazer um programa temporário ou estender o auxílio emergencial - possivelmente com redução de valores e público-alvo - por meio de crédito extraordinário, que não está submetido ao teto. das de lockdown etc. - pode ser caracterizada como algo impossível de prever.
Rogério F. Werneck: Entalo fiscal
Governo finge que quer preservar o teto de gastos
Neste final de ano, a política fiscal do governo está fadada a ter um encontro marcado com a verdade. Já não há mais espaço para autoengano sobre suas reais possibilidades. Ao cabo de meses e meses de ilusionismo, falta de foco e escancarada procrastinação do anúncio das medidas de ajuste nas contas públicas que se fazem necessárias, o Planalto se descobre, agora, com não mais que três semanas e meia para escapar do entalo fiscal em que se meteu.
O governo nem mesmo conseguiu que o Congresso aprovasse a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). E a apreciação do Orçamento ainda inspira cuidados. Vem sendo tumultuada pela disputa precoce pelo controle das mesas do Congresso, instigada pelo próprio Planalto. Vai-se entrar em dezembro sem que Comissão Mista de Orçamento tenha sido sequer instaurada. É espantoso.
Salta aos olhos que, prestes a completar a primeira metade de seu mandato, Bolsonaro já não tem mais qualquer intenção de levar adiante um esforço sério de ajuste fiscal no que lhe resta de mandato. Não é isso que preconiza a ala desenvolvimentista do governo, nem o que acalenta a bancada que lhe dá apoio no Centrão nem, tampouco, o que defende o círculo mais próximo de conselheiros do presidente.
O que se viu até aqui foi um jogo de aparências, em que o governo finge que quer preservar o teto de gastos. De um lado, porque continua a temer que qualquer discurso mais ostensivo contra o teto possa desencadear reações implacáveis dos mercados. E, de outro, porque continua assombrado pelo temor de dar margem a um processo de impeachment, caso se disponha a violar abertamente uma regra fiscal claramente inscrita na Constituição.
Sobram razões para a preservação do teto de gastos, especialmente num governo que já não esconde sua falta de compromisso com o ajuste fiscal. E é improvável que as forças do Congresso que já se articulam em torno de projetos políticos de enfrentamento do bolsonarismo, em 2022, estejam dispostas a ajudar o governo a se desvencilhar da camisa de força constitucional que vem tolhendo, com eficácia, seus excessos fiscais.
É bem sabido que, encantado com o ganho de popularidade que lhe trouxe o auxílio emergencial, Bolsonaro continua fixado na ideia de poder implantar um programa similar no início do ano que vem, quando o pagamento do auxílio tiver sido suspenso, ao fim do período de vigência do estado de calamidade.
Dada a dificuldade de acomodar um programa dessas dimensões sob o teto de gastos, a “solução” fácil que, agora, vem sendo contemplada é a simples prorrogação do estado de calamidade que, supostamente (há quem discorde), permitiria estender o pagamento do auxílio por alguns meses mais.
Como tal “solução” só seria minimamente defensável se de fato estivesse havendo claro recrudescimento da pandemia no país, não falta agora, no governo, quem esteja pronto a interpretar qualquer oscilação para cima nos números nacionais de casos ou mortes como evidência inequívoca do avanço de uma “segunda onda” pandêmica no Brasil. Quem te viu, quem te vê. O negacionismo que pautou a postura do governo na primeira onda da pandemia cedeu lugar, agora, a um alarmismo oportunista acerca da suposta segunda onda. “Não tem como não prorrogar” (o auxílio emergencial) é a palavra de ordem que ganha força no Centrão.
Quanto a medidas de ajuste fiscal de mais fôlego, é difícil discernir, em meio ao discurso caótico do governo — seja no Planalto, seja no Ministério da Economia —, algo que se assemelhe, ainda que remotamente, a um plano claro de jogo.
Findo o segundo turno das eleições municipais, a ser disputado em 57 cidades no domingo, o país testemunhará o despreparo com que o governo se verá obrigado a enfrentar, afinal, no apagar das luzes do ano legislativo, as alarmantes indefinições fiscais que, há meses, vem se permitindo manter.
Fernando Henrique Cardoso: Tempestade e bonança
Do ponto de vista da economia, o que mais me preocupa é a relativa omissão do governo
A crer no que se sente e se lê nos jornais, pouco a pouco, a situação econômica do país está piorando. Será? Não tenho certeza, mas assim parece. Os sinais pipocam por todos os lados. Quase no final da semana passada os índices da Bolsa, para usar o jargão, “desabaram”, e o dólar foi a quase R$ 6.
No geral os críticos se queixam da morosidade das reformas no Congresso — a administrativa e, principalmente, a tributária — e da falta de compromissos do governo com a lei do “teto dos gastos”. Faltaria um claro compromisso com a austeridade.
De tanto baterem na mesma tecla os críticos que assim procedem, em geral jornalistas, empresários ou os que os seguem, parecem ser pessimistas. Mas é certo: sem compromissos claros do Executivo com o frear gastos e sem ação congressual mirando o futuro, a marcha da economia desanda. E isso parece estar acontecendo: a queda do valor do real e dos índices das Bolsas são indícios de que algo vai mal no reino da Dinamarca…
Além do mais, o Banco Central mantém os juros baixos. A taxa Selic foi definida pelo Copom em 2% para o ano, enquanto as próprias previsões “do mercado” (que nem sempre acerta…) para a inflação já passam de 3%.
É certo que em parte é graças aos juros baixos que muita gente se dispõe a comprar casas e apartamentos ou a fazer reformas. Assim, o mercado imobiliário e o de materiais de construção se mantêm ativos. E estes não são os únicos setores que prosperam: basta olhar as exportações para ver que os produtores agrícolas vão bem, obrigado.
Mas cuidado. Tal bonança provém, sobretudo, do mercado chinês, que compra sem parar nossos produtos do campo. E, ainda assim, há quem tema ver a pandemia nos levar a tratativas para importar e usar vacinas chinesas…. Tomara que os chineses (e não só eles) continuem consumindo nossos produtos e que produzam boas matérias-primas para as nossas vacinas.
Não escrevo isso para diminuir as preocupações com os sinais negativos que a economia apresenta, mas para, ao matizá-los com perspectivas menos sombrias, tentar entender o que ocorre.
Cabe repetir que estamos vivendo um mau momento: além dos sinais não alvissareiros emitidos por alguns setores da economia, existe um clima de pessimismo que deriva de preocupações com a saúde das pessoas. Desde a epidemia da “gripe espanhola”, que assustou a geração de meus pais logo depois da Primeira Grande Guerra, não se via uma crise sanitária de proporções tão amplas como a criada pela periculosidade do coronavírus: ele parece ser mais contagioso do que letal. Mesmo assim, barbas de molho: principalmente, mas sem exclusividade, os velhos (como eu) que se cuidem. As moléstias de que algumas pessoas são portadoras se agravam com o coronavírus e as pode levar à morte. Além do mais, parece que o vírus pode deixar sequelas em quem sobrevive.
As notícias que nos chegam da Europa e dos Estados Unidos sobre o crescimento da doença são alarmantes. Os próximos meses se afiguram sombrios. Quanto mais inerte o governo, mais necessária é a responsabilidade de cada um pelos gestos que nos protegem e protegem os outros. Ninguém pode fazer isso em nosso lugar. Seguir a orientação dos médicos, conversar com as pessoas em quem confiamos, manter a distância, usar as máscaras e lavar as mãos estão a alcance de todos. Não menos imperativo será assegurar o acesso de toda a população a vacinas seguras e eficientes, sem politizações mesquinhas. Se Trump perder a eleição como apontam as pesquisas, o fator determinante terá sido sua gestão desastrosa da pandemia.
Também do ponto de vista da economia, o que mais me preocupa é a relativa omissão do governo. Juros muito baixos e descontrole fiscal podem levar rapidamente à inflação. Só quem cuidou dela no passado sabe o quanto tal “vírus” é danoso: arrasa tudo e liquida em pouco tempo o salário dos pobres, mais do que a capacidade ou o “apetite” para investir, dos mais afortunados.
E é isso o que mais me preocupa. De intriga em intriga, o governo parece ser displicente diante de sinais que não deixam dormir os mais obcecados. Os responsáveis no governo pela economia não entendem o Congresso. Este funciona no ritmo das eleições que se aproximam. E governar implica em apontar caminhos que muitos se obstinam em não aceitar.
É difícil conciliar popularidade com sucesso econômico; a conciliação dos dois fatores nem sempre está nas mãos de quem governa. Mas a História cobrará dos governos o terem sido cúmplices se houver desvios de rumo. É por isso que governar não é fácil e depende tanto da sorte quanto da competência.
No fundo, vivemos e, pior, mansamente, o início de uma crise política. Com o que se preocupa quem tem nas mãos as rédeas do poder? Ao que parece, mais com o que lhe toca diretamente, como a reeleição, ou com os familiares, do que com os sinais de alarme que já estão soando fortes… Deus queira que as minhas sejam preocupações vãs.
*Fernando Henrique Cardoso, sociólogo, ex-presidente da República
Maria Cristina Fernandes: Faísca, o SUS e o Rubicão dos liberais
Teto de gastos pode se mostrar curto demais para abrigar vacinas e empregos
Na segunda-feira, o governador de Minas Gerais, Romeu Zema, terminou, pelo Palácio do Planalto, uma agenda de visitas a autoridades em Brasília. Tratou de privatizações no BNDES e do socorro fiscal a seu Estado na Câmara dos Deputados. Com o presidente Jair Bolsonaro, resolveu acrescentar mais um tema, a vacina contra a covid-19.
Na entrevista que se seguiu, o governador conseguiu subir ao pódio do campeonato de disparates da atual temporada: “Sou de um partido liberal. Sou da opinião que quem quiser, deve se vacinar. Mas sou da opinião também que uma empresa que empregue mil funcionários exija, de alguém que trabalhe lá, que seja vacinado porque, caso contrário, ele pode representar risco para os outros. Então sou sempre favorável à liberdade do ser humano.”
Pela declaração do governador conclui-se que o dono da empresa que a comanda pelo zoom tem o direito de não se vacinar, mas ao funcionário do chão de fábrica resta apenas o dever de fazê-lo. Único governador eleito pelo Novo, Zema sugere um velho dilema: a liberdade do ser humano termina onde começa a necessidade de manter as empresas em funcionamento.
O ex-prefeito de Belo Horizonte, ex-ministro e hoje deputado federal Patrus Ananias (PT-MG), viu na declaração do governador a “privatização do ordenamento jurídico”. O governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), foi além e identificou resquícios da “mentalidade escravocrata”. No dia seguinte, o governador voltaria a se pronunciar sobre a vacina num tom dois degraus abaixo dizendo que se tratava de um tema mais de “consciência do que de obrigatoriedade”.
A declaração de Zema foi a cereja de um falso debate. Desde o estabelecimento do Plano Nacional de Imunização, em 1973, as leis sobre o tema preveem algum grau de compulsoriedade - vide o Estatuto da Criança e do Adolescente, a lei que criou o Bolsa Família ou até mesmo a primeira lei de enfrentamento da pandemia (13.379) em fevereiro deste ano.
Foi assim que o SUS, com um portfólio de 19 vacinas, uma das maiores ofertas públicas do mundo, chegou a erradicar doenças como poliomielite e varíola. Hoje enfrenta as notícias falsas, a fronteira com a Venezuela, o desaparelhamento de postos de saúde e o sucateamento da produção nacional para evitar que doenças como sarampo, já detectado em 21 Estados, voltem a se disseminar.
Nas pesquisas de opinião sobre a vacina da covid-19, a adesão supera 70%. Por isso, sanitaristas respeitados têm dito que não precisa obrigar a vacina, basta torná-la disponível e garantir que a população tenha acesso. Era assim que acontecia quando o tema era tratado acima das disputas políticas. O ex-ministro da Saúde e ex-governador José Serra (PSDB) posava vacinando o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), por quem havia sido derrotado.
Hoje o presidente da República sugere que só leva Faísca, seu cachorro, para se vacinar e diz que a cloroquina é mais importante que a vacina. Por outro lado, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), que exibe a parceria da Sinovac com o Butantã como vitrine de sua guerra pela ciência, não desistiu de garfar a Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (Fapesp). Depois de recuo na Assembleia Legislativa, apresentou novo projeto (PL 627) para congelar 30% de seus recursos.
A guerra da vacina contaminou outros governadores, como Ratinho Jr (PSD), do Paraná, e Rui Costa (PT), da Bahia, que firmaram acordos com o instituto Gamaleya, para que as fábricas de seus Estados (Tecpar e Bahiafarma) produzam a vacina russa. O recuo federal na compra da Coronavac pelo SUS levou governadores a imaginar que poderiam repetir, com a vacina, os consórcios formados para a compra de ventiladores.
O alvoroço levou à precipitação do presidente do Supremo, Luiz Fux. Depois de ter provocado um surto da covid-19 na Corte com sua posse, o ministro resolveu que chegara a hora de convocar as partes a entrar na justiça. Se inexiste vacina, não dá para dizer que há direito sendo negado.
No afogadilho, a primeira vítima é a obviedade. Primeiro vem o estabelecimento dos critérios de eficácia e segurança testados pela Anvisa, depois a possibilidade de produção e fornecimento. Se ainda houver algo a ser definido que não conste da legislação, ou garantias que precisem ser reforçadas dada a presença do rei do agito no Palácio do Planalto, parece ser atribuição do Congresso e não do Supremo.
O alvoroço levou muitos a imaginar que poderiam replicar o atropelo dos ventiladores, quando a falta de coordenação nacional do Ministério da Saúde levou governadores a formar consórcios e outros, quadrilhas. Com vacina é diferente. Um Estado pode colocar uma equipe de médicos e fisioterapeutas para testar respiradores, mas não há como contornar o papel da Anvisa e do SUS na certificação e na distribuição da vacina.
Outra dificuldade é que não estão assegurados os recursos estaduais para um programa de imunização. Este sempre foi um gasto federal. Se os Estados tiverem que bancá-lo vai ficar difícil arrumar dinheiro para manter as Unidades Básicas de Saúde (UBS).
É este o pano de fundo da trapalhada desta quarta-feira em torno do decreto para estudar a viabilidade de parcerias público-privadas (PPIs) para a construção e gestão das UBS. O financiamento da saúde é um dos buracos negros do orçamento de 2021. Se o SUS não cabe no teto de gastos, não está claro como a terceirização de seus serviços pode vir a caber. Alguém vai ter que pagar a conta. O mais provável é que sejam aqueles que ganharão uma vacina do governador de Minas e perderão o emprego.
Do jeito que foi apresentado, o tema pareceu nascido de um governo que não sabe como enfrentará o ano que vem, quando se aproximará do que o ex-porta-voz da Presidência chamou de Rubicão. Pra quem achou que já tinha visto tudo, o general Otávio do Rêgo Barros, avisou que, para atravessá-lo, aquele a quem chamou de ‘governante piromaníaco’, ainda tem um arsenal de “atos indecorosos, desalinhados dos interesses da sociedade”.
Adriana Fernandes: Ouvidos moucos
A economia brasileira vive um dos momentos mais delicados dos últimos anos
Em entrevista ao Estadão, o ex-presidente do Banco Central Affonso Celso Pastore não poderia ter definido melhor o quadro da política em Brasília nos dias atuais. Para ele, o presidente Jair Bolsonaro e os congressistas teimam em não entender a situação da economia e da escalada acelerada de deterioração da percepção de risco do País. Fazem ouvidos moucos.
O resultado é que o Brasil poderia estar agora aproveitando uma onda mais positiva após as medidas de mitigação dos efeitos da pandemia da covid-19, que impediram um tombo maior da economia, e vêm sustentando o processo de recuperação neste segundo semestre.
Ao contrário, o Brasil vive um dos momentos mais delicados dos últimos anos e isso pode se agravar se governo e Congresso continuarem errando a mão. Qualquer que seja a solução, será preciso encontrá-la urgentemente. Até agora, porém, está todo mundo perdido em Brasília e atirando cada qual para um lado: não faltam propostas e sobra inação.
A mais recente ideia é a de criação de um fundo para receber receitas de renúncias tributárias e desonerações para deixar as despesas com o novo programa social fora do teto de gastos. Variações do mesmo tema.
Querem tirar um pedaço do Estado do Orçamento. Mas de que adianta ter uma PEC no Senado para extinguir fundos públicos? Proposta com credibilidade zero. Tal qual a do adiamento do pagamento das despesas com precatórios para financiar o Renda Cidadã, que não durou mais de três dias depois de anunciada. Não faltaram avisos que ela seria um desastre.
O atual presidente do BC, Roberto Campos Neto, foi direto ao ponto: o choque fiscal explica parte da depreciação cambial dos emergentes. Após a fase mais aguda da pandemia, a volta do apetite de risco dos investidores já acontece para um grupo de países emergentes, como Malásia, Indonésia, Polônia, Chile e Rússia.
Num segundo grupo de países, onde está o Brasil, África do Sul, Turquia, Colômbia, México e Índia, as condições financeiras continuam ainda restritivas em razão de fundamentos econômicos desfavoráveis. O maior diferencial entre esses dois grupos de países é justamente a relação entre dívida e PIB. O Brasil é o pior entre os piores.
O País flerta com essa crise e a desconfiança dificulta o financiamento da dívida pública pelo Tesouro. Até agora, todo mundo falava que o encurtamento dos prazos dos títulos do Tesouro era mais um sinal do aumento do risco, além da maxidesvalorização do real, que já alcança 40% em 2020. Mas quando se mostra os números consolidados das consequências desse processo, a ficha cai ainda mais.
Como revelou o Estadão, os vencimentos de papéis no primeiro quadrimestre já chegam a R$ 643 bilhões, 15% do total da dívida interna.
O BC e Tesouro estão atuando junto para estabilizar o processo de abertura do deságio das LFTs, os títulos atrelados à taxa Selic que sempre foram o porto seguro da dívida. Esse risco estava adormecido e surgiu nos últimos dois meses. O aumento do deságio é um problemão para os fundos de investimentos DI que são lastreados pelas LFTs. Cotas negativas desses fundos, como se viu em setembro, podem alimentar uma crise de liquidez com investidores promovendo saques.
O governo tem em mãos muitos instrumentos que podem ser acionados para reduzir o estresse no mercado de dívida e estabilizar os prêmios que os investidores estão cobrando.
Em última instância, o próprio BC pode agir comprando os títulos do Tesouro. E não precisa do orçamento de guerra para fazer isso. Legislação anterior dá direito ao BC de comprar título público para fazer política monetária. Em outras palavras, se o BC achar que as taxas de juros de prazos mais longos estão distorcendo os prêmios de risco e afetando o câmbio, ele passa a ter uma razão de política monetária para comprar os títulos do Tesouro.
Nesse caso, uma comunicação bem feita terá de ser acionada para não passar a percepção de que o BC está financiando o Tesouro. O elemento surpresa é sempre um fator chave nesses movimentos.
O que os indicadores do mercado estão mostrando é que há pouca margem de manobra e que o País precisa sair logo desse impasse fiscal. 2021 está logo ali.
RPD || Rogério Baptistini Mendes: A negação da política e a degeneração republicana
Bolsonaro explora um republicanismo de aparências, dilacerando os limites entre o público e privado, o conjuntural e o estrutural, o razoável e o absurdo, ampliando ainda mais os desafios que o século apresenta
A ideia de um Estado pervertido por políticos desonestos mobilizou a sociedade civil e iniciou o processo que, paradoxalmente, exacerbou os vícios que depravam o espaço público. A República, em sua moderna concepção, herdada dos norte-americanos, está sob ameaça antes mesmo de se consolidar. Seculares oposições distendidas em uma história de acomodações entre o velho e o novo ganham nova vida e fazem aumentar a insatisfação dos viventes. A democracia representativa, a separação de poderes como prevenção ao autoritarismo e a defesa dos direitos individuais parecem formas vazias. O governo Bolsonaro explora um republicanismo de aparências e amplia os desafios que o século apresenta, dilacerando completamente os limites entre o público e privado, o conjuntural e o estrutural, o razoável e o absurdo.
Seguindo lógica torta, os acontecimentos iniciados com as manifestações populares de 2013-14 transmutaram o que parecia ser a emergência de um protagonismo civil em despotismo fundado na moralidade e na religião, típico das sociedades hierárquicas e iliberais. O novo Brasil, egresso da onda negadora da política e dos políticos, galvanizou situação na qual o expurgo dos viciados – mas não da inclinação para o mal – é tolerado, desde que praticado contra os inimigos. E estes são muitos a povoar o universo da cultura, o sistema de partidos e a vida pública da redemocratização. Pessoas e instituições entram na mira, e os fantasmas de nossa tradição autocrática voltam a incomodar.
É possível observar que a radicalidade da concepção de autoridade que empresta sentido ao bolsonarismo está em harmonia com a visão de mundo de certas elites, organizadas politicamente e ocupadas em difundir uma versão grotesca e ultrapassada de liberalismo econômico. No universo do mercado livre, sem qualquer regulação, coordenação e planejamento, a anarquia e o caos social surgem e reclamam soluções de força. A ausência de solidarismo e o individualismo exacerbado conduzem à desordem, somente atenuada pela obediência ao soberano, homem da família, cuja moralidade é agir contra tudo e todos, para proteger os seus, os escolhidos, na jornada até a suposta terra prometida.
Uma série de equívocos nos trouxe até este momento. A pressuposição de que a justiça se confunde com a democracia, por exemplo, desgraçou o sistema político, a atividade política e, no limite, a cultura pública essencial à construção republicana. O caráter normativo do conceito de justiça dificulta verificações empíricas sobre o que seria uma situação justa, em contraste com o governo democrático que evidencia o que descreve. A primeira, conforme explica o filósofo político Félix E. Oppenheim (1913-2011), reclama o auxílio de definições morais; a segunda, não. E é este o engodo, a verdadeira cilada, que se armou no caminho da cidadania. Na luta contra a corrupção, a conexão entre Direito e Política foi subvertida a ponto de o Direito se confundir com a força coativa do Estado, e a práxis política ser amesquinhada por certa racionalidade econômica para a qual o não-Estado é o objetivo.
Voltando ao passado, a representação idealista da República como uma construção virtuosa, ordenada de cima para baixo, aproxima os que anseiam por justiça dos que exploram seus sentimentos e esvaziam a esfera pública. Num cenário atomizado, sem lugar próprio e seguro, os grupos primários, nos quais vige o contato íntimo e direto entre os membros, substituem a integração na comunidade política e levam à construção de uma identidade distorcida, apoiada no ódio contra o diferente e em contínuo transe. Tudo a ameaça, tudo a aflige. Não há destino comum; apenas inimigos a derrotar. A violência substitui o diálogo; a própria atividade parlamentar perde o sentido, transformando o que deveria ser a ágora moderna numa verdadeira arena, ocupada por tipos aberrantes e incapazes.
É por saber que os homens são o que são que os republicanos modernos criaram o sistema de pesos e contrapesos. Inumano um governo de deuses, falíveis os homens, a República moderna só é possível se operada pela Política ativa e protegida pelo Direito. Este não troca de lugar com aquela, nem pode. É de sua neutralidade e independência que os conteúdos de justiça construídos ao longo da história dependem. O que consideramos avanços civilizatórios não são objeto de negociação. Promotores, magistrados ou mitos não ocupam o proscênio. Entre nós, este pertence à cidadania.
* Sociólogo. Pesquisador do LabPol (Laboratório de Política e Governo da Unesp-FCLCAr).
RPD || Paulo Baía: Os ventos andam favoráveis para Bolsonaro
Apesar do descaso com o meio ambiente, o aumento das queimadas e devastação na Amazônia e no Pantanal, além dos efeitos nocivos da pandemia do novo coronavírus na economia brasileira, Bolsonaro continua com sua popularidade em alta, mostra Paulo Baía em seu artigo
Para Jair Bolsonaro, os ventos andam favoráveis no mesmo ritmo em que o Pantanal arde em chamas. Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), as queimadas aumentaram 210% em 2020, se comparadas ao mesmo período do ano de 2019. Dessa forma, de janeiro a setembro de 2019, foram registrados 4.660 focos de incêndio. Já em 2020, foram 14.489 focos. A fauna e a flora sofrem nas mãos de um governo que tem o meio ambiente como um obstáculo para a ideia de um progresso aos moldes extrativistas – pecuária e minérios.
No entanto, os ventos vindos pelo lado social e político, segundo a última pesquisa do IBOPE de 24 de setembro de 2020, indicam um aumento da popularidade de Bolsonaro para 40% de bom e ótimo e 29% de regular, o melhor índice desde a posse. A ventania a favor de seu governo cresceu ao redor dos 69% dos entrevistados, marcando seu apoio. O levantamento foi feito a pedido da Confederação Nacional da Indústria (CNI). E o aumento da popularidade ocorreu principalmente entre cidadãos que têm renda familiar de até um salário mínimo (R$ 1.045,00).
No novo livro do cientista político Jairo Nicolau, O Brasil dobrou à direita, lançado no dia 5 de outubro pela editora Zahar, o pensador destaca que parte do eleitorado de Bolsonaro é composto por pessoas que o admiram e se identificam com seu jeito. E o compara a Lula, só que à direita. A admiração do eleitor é encontrada nos grandes centros urbanos, não precisando destacar-se no reduto petista do Nordeste. Talvez por isso, os ventos que queimam o Pantanal não sejam capazes de atingir seus eleitores de marca urbana, que se imaginam distantes dos problemas ambientais. Ele conquistou o eleitor das periferias urbanas, onde os partidos de esquerda não ganham e insistem, segundo o cientista político, numa disputa sobre o “fascismo”. Estas pessoas já vivem sob o domínio da violência cotidianamente, pelas mãos do narcotráfico ou das milícias, e agora pelos consórcios das narcomilícias em formação.
Para Nicolau, Jair Bolsonaro representa o primeiro líder de direita popular desde que o Brasil entrou na era da redemocratização. Talvez o fosso educacional esteja apresentando suas contas e desvelando o “Brasil profundo”. Nem mesmo o aumento do desemprego atingindo 13,1 milhões de brasileiros, a maior marca desde 2012, como indica a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do IBGE, de 30 de setembro de 2020, foi capaz de abalar sua popularidade.
O presidente da República permanece seguindo a favor de vetos numa reação recíproca entre identidades que se espelham ao se reconhecerem. A escolha do desembargador Kassio Nunes Marques – presidente do TRF-1 – para a vaga de Celso de Mello é uma sinalização de paz e integração com a magistratura de carreira, uma das pautas da campanha presidencial de Bolsonaro e desejo dos bolsonaristas de raiz. O juiz Kassio Nunes Marques encaixa-se nos critérios políticos e morais que são eixos de seu governo e evita críticas do mundo jurídico em relação ao currículo do novo ministro do STF, além de ser nordestino (do Piauí).
Em relação às eleições municipais no próximo dia 15 de novembro, os movimentos do presidente da República são discretos em apoio às candidaturas a prefeito na maioria dos 5.570 municípios brasileiros. É um comportamento calculado com o intuito de agradar aos aliados dos últimos três meses, na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, após o inquérito das Fake News, que foi capaz de conter seus arroubos autoritários. A presença ativa de Bolsonaro só é vista na cidade do Rio de Janeiro com dois candidatos, Marcelo Crivella e Luiz Lima e, na cidade de São Paulo, com Celso Russomanno.
Outro vento bastante favorável para o eleitor que o vê como mito é o Programa Renda Brasil, que deverá ser pago a partir de janeiro de 2021. Ou seja, Jair Bolsonaro vai constitucionalizar o programa de renda mínima como política de Estado, o que Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma não fizeram, apesar da insistência cidadã de Eduardo Suplicy.
Pelo que tudo indica, os ventos aceleram o ritmo de campanha em que o presidente está mergulhado desde a posse. E, pelo que parece, apesar de as queimadas estarem acelerando no Pantanal, na Amazônia e em outras florestas, não estão sendo capazes de consumir o apoio pró-Bolsonaro nesta primavera/verão de 2020, para perplexidade e inação das muitas esquerdas e oposição.
* Sociólogo e cientista político.
RPD || Editorial: Defesa da democracia e reconstrução nacional
Está em curso a consolidação da aliança entre o presidente da República e o bloco de deputados e senadores que responde pelo nome de “Centrão”. Repudiada, no primeiro momento, pelos núcleos duros do bolsonarismo como capitulação frente à “velha política”, a aliança já rende frutos significativos ao governo e promete colheita ainda melhor de resultados no futuro.
Os arroubos do presidente como revisor e intérprete da Constituição e o consequente confronto com o Legislativo e o Judiciário parecem coisas do passado. Em troca, o governo conseguiu fortalecer sua base de apoio na Câmara e no Senado; está prestes a obter uma composição do Supremo Tribunal Federal mais receptiva para suas demandas e inicia a campanha eleitoral com perspectivas favoráveis para os candidatos do novo e turbinado bloco governista, espalhados entre diversas siglas partidárias.
A oposição, por seu turno, permanece na defensiva, aparentemente atordoada com o crescimento da popularidade do presidente, apesar das crises superpostas, sanitária e econômica, que assolam o país e apontam para um quadro de enorme dificuldade para todos no futuro próximo.
No entanto, é preciso ter claro que a política de confronto aberto com as instituições democráticas não cessou por obra de alguma mudança nas convicções profundas do presidente e de seu círculo mais próximo, mas pela ausência das condições mínimas necessárias para levar essa política às últimas consequências. Houve mudança para ganhar tempo; tempo para fortalecer as posições do governo, com dois objetivos.
Primeiro, possibilitar o aceleramento da política de destruição nacional em andamento. “Passar a boiada”, na expressão do ministro Ricardo Salles, para avançar no rumo da catástrofe ambiental, do isolamento internacional, do desastre sanitário, do retrocesso educacional, bem como da transformação da segurança pública e dos direitos humanos em campos repletos de minas.
Segundo, criar as condições para revisitar a estratégia do confronto, quando as consequências da crise e a responsabilidade do governo sobre o processo aparecerem de forma mais clara para a opinião pública. Cenários de popularidade baixa e dificuldades eleitorais crescentes são propícios para investidas populistas contra a legitimidade do processo eleitoral.
Cabe às oposições não ceder às tentações da divisão, ao conforto ilusório do isolamento. Urge retomar o processo de convergência em torno de objetivos comuns: a defesa da democracia e a construção de uma plataforma mínima de reconstrução nacional.
RPD || Ensaio - João Cezar de Castro Rocha: A desqualificação nulificadora
Ensaio de João Cezar de Castro Rocha analisa a retórica do ódio presente nas pregações do guru do Bolsonarismo, Olavo de Carvalho. Falso silogismo olavista pode - e tem - de ser desmascarado, avalia
Tal como ensinada na pregação de Olavo de Carvalho, a retórica do ódio é uma técnica discursiva que pretende reduzir o outro ao papel de inimigo a ser eliminado.
Trata-se de uma técnica — e esse aspecto deve ser sublinhado. Por isso, pode ser ensinada e transmitida. E como uma técnica, possui elementos próprios. No caso do discurso de Olavo, destacam-se dois procedimentos: a desqualificação nulificadora e a hipérbole descaracterizadora.
A retórica do ódio tem um alvo expresso — a “esquerda”, compreendida como um bloco monolítico, representante da “mentalidade revolucionária” — e um conjunto determinado de recursos — sempre com a finalidade de eliminar o adversário.
Marco zero da retórica do ódio, gênesis e apocalipse da técnica olavista, a desqualificação nulificadora reduz o adversário ideológico num outro tão absoluto que ele passa a se confundir com um puro nada, um ninguém de alguém nenhum. O efeito é assustador porque autoriza a completa desumanização de todo aquele que não seja espelho. E como se trata de uma técnica, a desqualificação nulificadora foi apreendida e multiplicada pela miríade de youtubers de direita, empregada à exaustão nas redes sociais, por meio da orquestração muito bem coordenada de likes e deslikes, e, por fim, traduzida e ampliada nos círculos políticos do fenômeno bolsonarista, por meio do linchamento permanente do inimigo de plantão.
O primeiro nível da técnica da desqualificação nulificadora não passa de um truque infantil. Olavo de Carvalho principiou o joguete: por que não desqualificar um adversário pela corrupção paródica de seu nome próprio? Não vou me estender muito mais nesse primeiro (des)nível. O historiador Marco Antônio Villa, torna-se Marco Antônio Vil; o pensador Mário Sérgio Cortella, Mário Sérgio Costela. Sem comentários...
Venho, pois, ao segundo nível da desqualificação nulificadora. Trata-se da estigmatização que converte o outro numa mera caricatura, estimulando o seu sacrifício simbólico — pelo menos numa fase inicial.
A estigmatização tem um alvo preciso, aliás, ponto de interseção entre olavismo e bolsonarismo:
Cada vez mais me convenço de que o movimento comunista tem sido a ÚNICA força agente no cenário mundial. O resto é apenas “reação”, termo com que os próprios comunistas o descrevem com notável exatidão. (Facebook, 25 de setembro de 2016, grifos meus).
A sequência da postagem é uma peça inadvertidamente dadaísta:
(...) Desde a II Guerra o “establishment” americano, incluindo um exército inteiro de conservadores, tem como uma de suas principais ocupações acobertar — e portanto ajudar — a penetração comunista nos altos círculos do governo, tornando-a tanto mais poderoso e devastadora quanto mais invisível e imencionável. (grifos meus).
E um exército inteiro, não de democratas radicais, porém de conservadores, unidos na improvável missão de propiciar o triunfo do movimento comunista internacional, muito embora a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas tenha sido dissolvida sem honra alguma em dezembro de 1991. Pois é...
Chegamos assim ao terceiro nível da desqualificação nulificadora: eliminação do outro, pois no âmbito da retórica do ódio, o adversário é um inimigo a ser eliminado.
Não exagero: leia esta postagem de 2018:
Quebrada a hegemonia intelectual, a guerra cultural começa com a desocupação de espaços. Botar para fora, da maneira mais humilhante possível, os farsantes e usurpadores. Isso exige militância organizada e PRESENÇA FÍSICA. (Facebook, 20 de março de 2018, grifos meus).
PRESENÇA FÍSICA? Ameaçadoras letras maiúsculas, associadas à ideia belicosa de uma militância organizada? Compreende-se que a noção de guerra cultural pouco tem de metafórica, sendo antes a expressão de um desejo nada obscuro, explicitada por verbos como quebrar, varrer, eliminar, apagar. Mais uma vez, o fantasma da hegemonia intelectual da esquerda é um falso passaporte que pretende legitimar toda forma de violência simbólica, que, agora sabemos, é o prelúdio cinzento da PRESENÇA FÍSICA — violenta, por óbvio.
A desqualificação nulificadora é o meio através do qual a retórica do ódio e a Doutrina de Segurança Nacional vivem em permanente lua de mel, inventando inimigos em série. Esse é o passo mais importante na caracterização da retórica do ódio. Contudo, precisamos ainda descrever um segundo procedimento padrão da mentalidade revolucionária olavista, a hipérbole descaracterizadora. Se entendermos seu alcance, o castelo de cartas marcadas do sistema de crenças Olavo de Carvalho terá os dias contados.
Hipérbole descaracterizadora
A marca d’água da mentalidade olavista é o cacoete da redundância, que pretende, por assim dizer, manipular a consciência do leitor, já que a reiteração sistemática do que se acabou de dizer almeja, conscientemente ou não, paralisar o receptor, que assediado pelo mesmo sentido, confundindo a reflexão filosófica com a experiência iniciática.
Comecemos a descrever a hipérbole descaracterizadora com o vídeo O Olavo tem razão 1: quem sou eu. O próprio fala de si. Um artigo que Ruy Fausto dedicou a sua obra serviu de pretexto.[1] Olavo então esclareceu a razão do impacto que produziu na cena brasileira.
Escutemos:
E o que eu escrevi tem mais efeito do que o que ele escreveu, porque eu escrevo mil vezes melhor do que esses caras, pô! É a coisa mais óbvia do mundo. Eles não sabem nem português, são uns coitados, porra! Então... agora o que eu escrevo é vivo, é engraçado, tem humor, tem sentido, tem conteúdo; então, é claro que acaba tendo muito mais repercussão. É obvio.[2] (grifos meus)
A autoproclamação hiperbólica — eu escrevo mil vezes melhor —econfirmatória— o que eu escrevo é vivo, é engraçado, etc. —tornou-se a máscara sem medo usada por Olavo de Carvalho em sua persona nas redes sociais. O efeito é devastador: seus discípulos adotam o truque, embora em geral não disponham de formação sólida em área alguma do conhecimento. Rapidamente, e com invejável ousadia, ministram cursos online com base em dois ou três livros consultados dogmaticamente acerca de um tema aleatório. O resultado é o caos cognitivo que domina o cenário brasileiro contemporâneo.
Nos textos de Olavo sempre estamos às voltas com o mais vasto empreendimento, envolvendo centenas de militantes-delatores infiltrados nas mais diversas instâncias do estado e na sociedade civil, e, claro, jamais houve na história do Ocidente uma tal empresa; naturalmente, não há nenhum precedente histórico para esse fenômeno, capaz de criar um império universal da impostura, pois, ao fim e ao cabo, um cérebro marxista nunca é normal.
Ora, tomei frases soltas da trilogia de Olavo de Carvalho, e simplesmente alinhavei uma longa frase, tendo como ponto de fuga a “ameaça vermelha”, pânico que, no campo da direita e sobretudo da extrema-direita, confere verossimilhança às associações mais desconexas e às conclusões mais disparatadas. Inventei assim um aplicativo: o gerador automático de frases do sistema de crenças Olavo de Carvalho. É uma espécie de silogismo aristotélico de Napoleão de hospício. Isto é, no silogismo, digamos, com juízo, duas proposições verdadeiras possibilitam a inferência de uma terceira proposição igualmente válida. A primeira premissa é de caráter mais geral, a segunda, mais restrita, e a conclusão é derivada da relação entre as duas proposições anteriores. No exemplo sempre citado:
Todo homem é mortal.
Sócrates é homem.
Sócrates é mortal.
Cristalino, não é mesmo?
Agora, por efeito de contraste, o falso silogismo olavista pode ser desmascarado. Olavo parte sempre da conclusão — “o perigo vermelho” iminente, e, desse modo, pouco importa o conteúdo das proposições, que, logicamente, deveriam anteceder à conclusão. Como ela se encontra determinada à priori e jamais se altera, Olavo inaugurou uma nova modalidade de lógica: trata-se da lógica do vale-tudo. Em 2019, a conclusão pau-para-toda-obra conheceu uma formulação impecável:
Nada no mundo se compara à intensidade do ódio no coração de um esquerdista. É implacável, incessante, sem fim. (Twitter, 4 de novembro de 2019, grifos meus).
A redundância e suas reiterações infinitas: se o ódio é incessante, já se sabe que é sem fim. Se essa é a ilação-matriz, então, literalmente qualquer conteúdo se torna inaceitável; mesmo as afirmações mais absurdas parecem razoáveis.
Acredite!
Vejamos alguns exemplos.
A tal quarentena é A MAIOR FRAUDE DA HISTÓRIA HUMANA. (Twitter, 20 de abril de 2020, grifos meus).
Para o futuro do Brasil, SÓ a luta contra os comunistas é prioritária. O resto é TUDO desconversa, oba-oba e carreirismo. TUDO. (Facebook, 15 de setembro de 2020, grifos meus)
A mentalidade do Messias Bolsonaro ecoa essa lógica do vale-tudo. Recentemente, diante do fracasso óbvio da política econômica de seu governo, o presidente levantou a suspeita da presença de “infiltrados do PT” na equipe econômica.[3]Os ineptos ministros da Educação justificam a inação de suas gestões recorrendo à noção olavista das centenas de militantes infiltrados. O predomínio do silogismo de Napoleão de hospício nas altas esferas da administração pública somente torna ainda mais agudo, quase dramático, o paradoxo: o êxito do bolsonarismo implica o fracasso do governo Bolsonaro.
A hipérbole olavista é descaracterizadora porque ela suprime deliberadamente as mediações entre os pontos tratados num argumento qualquer. Transita-se do alfa ao ômega sem pausa alguma, numa vertigem que impede a reflexão e despreza o conceito. O uso constante de letras maiúsculas apenas dá forma visual ao efeito pretendido, qual seja, a adesão absoluta ao exposto pelo mestre-sabe-TUDO.
O inquietante é a homologia entre o recurso estilístico olavista e a natureza autoritária do projeto político bolsonarista. Em ambos os casos, o propósito último é o de abolir toda forma de mediação, a fim de estabelecer seja o controle da consciência dos discípulos, seja o estabelecimento de uma “democracia” direta por meio da abolição das mediações institucionais entre poder e cidadania.
Caracterizada a retórica do ódio, descritos os seus procedimentos textuais, damos o primeiro passo para sua superação. Isto é, precisamos abraçar a ética do diálogo, na qual o outro é sempre um outro eu, cuja diferença enriquece minha perspectiva porque amplia meus horizontes.
[1] Ruy Fausto. “Única coisa rigorosa no discurso de Olavo de Carvalho são os palavrões”. Folha de S. Paulo, 30 de novembro, 2018: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2018/11/unica-coisa-rigorosa-no-discurso-de-olavo-sao-os-palavroes-diz-ruy-fausto.shtml.
[2] O Olavo tem razão 1: quem sou eu: https://www.youtube.com/watch?v=5q1FhFgjBhY.
[3] Thiago Bronzatto. “Bolsonaro desconfia de ‘infiltrados do PT’ na equipe econômica”. Revista Veja, 27 de setembro de 2020: https://veja.abril.com.br/brasil/bolsonaro-desconfia-de-infiltrados-do-pt-na-equipe-economica/.
RPD || Entrevista especial: O Brasil está menos transparente, diz Gil Castello Branco
Economista fundador da Contas Abertas alerta que corrupção pode levar o país a perder no mínimo cerca de R$ 18 bilhões dos recursos federais usados no combate à pandemia
Por Caetano Araújo e Davi Emerich
Com mais de 150 mil brasileiros mortos em plena pandemia do novo coronavírus, o Brasil está menos transparente no combate contra a corrupção. A avaliação é do economista Gil Castello Branco, 68 anos, fundador e atual diretor executivo da Associação Contas Abertas, entidade que fomenta a transparência, o acesso à informação e o controle social no país.
Entrevistado especial desta 24ª edição da Revista Política Democrática Online, Castello Branco acredita que, em meio à pandemia, a redução da transparência é ainda mais preocupante. “Já foram autorizados para o enfrentamento ao Covid-19, só na área federal, cerca de R$ 600 bilhões; na hipótese (otimista) de que 3% desses recursos venham a ser desviados, R$ 18 bilhões serão abocanhados por criminosos”, avalia.
Gil Castello Branco realiza frequentemente palestras em workshops para empresários, e cursos em instituições acadêmicas e nos principais veículos brasileiros de comunicação (O Estado de S. Paulo, TV Globo, Folha de S. Paulo, Fundação Getúlio Vargas, USP, UnB e O Globo, entre outros). Foi professor visitante da Unicamp e colunista mensal dos jornais O Globo, Correio Braziliense e O Estado de S. Paulo.
Para ele, “é preocupante constatar que, desta vez, as acusações não pairam sobre um, dois, ou três partidos políticos. Não dizem respeito a um governador ou a um secretário”, lamenta. “A corrupção está acontecendo de uma forma horizontal, e merece ampla reflexão. A única arma de que dispomos é a transparência”, completa Castelo Branco.
Atualmente Castello Branco é o professor do curso EaD No rastro digital do dinheiro público: como fiscalizar os gastos da União, Estados e Municípios, organizado pela Knight Center for Journalism in the Americas, da Universidade do Texas, em parceria com a Contas Abertas. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista.
Revista Política Democrática Online (RPD) – Antes das eleições de 2018, o senhor dizia que as propostas dos candidatos estavam ao nível de “lava pé”. Estamos no mesmo nível ou houve alguma variação?
Gil Castello Branco (GCB) – Acho que realmente as propostas tiveram a profundidade de um lava pé. Só que hoje estamos inclusive com dúvidas quanto ao que irá acontecer em relação às propostas. Atualmente estão no ar o Renda Cidadã, o Pró-Brasil e até a intenção de prorrogar o auxílio emergencial. Mas são propostas que esbarram em uma série de dificuldades, a começar pelo teto de gastos. O país está quebrado. Já vinha rachado antes da pandemia, com gastos maiores do que a arrecadação por seis anos seguidos. Já começávamos o ano no vermelho: essa era a realidade reinante de 2014 a 2019. Em 2020 não foi diferente; a meta fiscal antes mesmo da pandemia já era de um déficit de R$ 124,1 bilhões (Tesouro, Previdência e Banco Central). A previsão era um pouco melhor do que no início de 2019, cuja meta era de um déficit de R$ 139 bilhões.
Acontece que a pandemia chegou e nos pegou, eu diria, em uma situação fiscal que já era bastante difícil. A dívida pública, que era de 51,5% do PIB em 2013, passou para 79% do PIB, em setembro de 2019. Em 2020, com a pandemia, poderá chegar a 95% do PIB, ou mesmo ficar acima de 100% do PIB.
O governo tem pouca margem de manobra, diante de outro fator marcante no crescimento de nossa despesa pública. No início da década de 2000, exatamente em 2002, nossa despesa obrigatória correspondia a 76,8% da despesa primária (excluídas as despesas financeiras). Na proposta do orçamento para 2021, as despesas obrigatórias representam 93,7% do PIB. Ou seja, a despesa discricionária para 2021, a que o governo poderá eventualmente mexer, é de apenas 6,3% da despesa primária. Chego a achar curioso que o Congresso Nacional passe quatro meses, desde que o orçamento foi entregue, em 31 de agosto, para discutir o que será feito com aproximadamente 6% da despesa não-obrigatória. Esse engessamento restringe as margens de ajuste do governo. O investimento, que é o gasto nobre – obras, compras de equipamentos para hospitais, escolas etc. – vai ficar cada vez mais tendendo a zero. Em 2020, ele é só 0,4% do PIB.
RPD – Passamos nos últimos anos por vários processos de avanço no combate às práticas de corrupção. Da Lava Jato sobrou algum avanço? Hoje é mais difícil roubar do que era antes ou não? Houve excessos por parte da Lava Jato, no que ficou conhecido como “Vaza Jato”?
GCB – O Brasil é historicamente um país corrupto. Vejam, por exemplo, os indicadores da Transparência Internacional, divulgados todos os anos, apresentando os índices de percepção da corrupção, criados em 1995. Nos primeiros anos da série, quando a escala era de 0 a 10, o Brasil nunca chegou sequer a 5. Costumo dizer que nós nunca passamos de ano no que diz respeito à corrupção, porque não obtínhamos sequer a nota 5. Depois, quando a escala passou a ser de 0 a 100, o Brasil de novo não conseguiu chegar à nota 50. Em 2019, com a nota 35, o Brasil ficou em 106º lugar, em um universo de 180 países. Há 5 anos seguidos estamos caindo nesse ranking, o que reflete a percepção de um país cada vez mais corrupto.
A Lava Jato, a meu ver, estava modificando esse quadro. Antes dela não se viam poderosos indo para a cadeia, fossem eles empresários, políticos, banqueiros etc. Tive a ocasião de visitar a força tarefa da Lava Jato em Curitiba logo no início, e vi o quanto era importante a união de diversas pessoas em diversos segmentos para que a corrupção e o crime organizado pudessem ser combatidos. Integravam a força tarefa profissionais especialistas no sistema financeiro, bancário, pessoas que tinham a possibilidade de fazer conexões com o exterior para a colaboração internacional, e conheciam a fundo a Receita Federal. Com esse apoio, os procuradores conseguiram formatar processos com tal consistência que escritórios famosos de advocacia, desta vez, não conseguiram invalidar provas na origem, o que acontecia até então com frequência. Isso não aconteceu com a Lava Jato. Os escritórios de advocacia, inclusive os grandes escritórios criminalistas, passaram a não conseguir inocentar rapidamente os seus clientes. Quando surgiu o instrumento da delação premiada, alguns escritórios tradicionais foram até substituídos por outros mais especializados nessa linha de defesa.
O excelente trabalho da força-tarefa foi extremamente importante para que tivéssemos a impressão de que a corrupção iria diminuir no país. Pouco depois, surgiram as “10 Medidas Contra a Corrupção” ampliadas posteriormente para as “70 Medidas Contra a Corrupção”, um trabalho coordenado pela Fundação Getúlio Vargas e a Transparência Internacional, que contou com a participação de quase 300 entidades, inclusive a Contas Abertas.
O que está acontecendo com a Lava Jato no Brasil não é muito diferente do que aconteceu com a Operação Mãos Limpas na Itália. Quando a operação começou a atingir poderosos, dos mais diversos naipes, inclusive políticos, a operação começou a ser fragilizada por diversos meios. E, hoje, dizem na Itália, que combater a corrupção depois da Mãos Limpas é mais difícil do que era anteriormente. Por quê? Porque justamente a Legislação foi sendo afrouxada de tal maneira que inviabilizou o combate mais acirrado à corrupção. E receio que isso possa acontecer aqui no Brasil, ou, pior, que já esteja acontecendo.
A meu ver, a “Vaza Jato” não trouxe absolutamente informação alguma que pudesse consignar a parcialidade do juiz, a favor ou contra um determinado réu. Meu pai era promotor de Justiça e um de seus grandes amigos era um juiz. Nossas famílias se relacionavam e jamais essa relação afetou a atividade profissional de ambos. O promotor e o juiz representam o Estado. Não vi nas denúncias da “Vaza Jato” qualquer ato ou informação que pudesse configurar prejuízo aos investigados.
RPD – Haveria, a seu juízo, algum paradoxo entre os resultados políticos colhidos pelo candidato à Presidência em sua campanha em favor do combate à corrupção e a conduta do chefe de Estado, sobre o qual pesam evidências constrangedoras de envolvimento com a baixa corrupção e com o alto crime organizado?
GCB – Sem dúvida, o presidente da República se elegeu em função da promessa de continuar o trabalho anticorrupção. Hoje, entretanto, sinto-me completamente decepcionado com o que vejo no Brasil, uma espécie de pacto em favor da impunidade, que já vinha sendo desenhado há alguns anos. Basta lembrar aquela frase do Romero Jucá: “Nós precisamos estancar essa sangria”. Essa era e é a opinião de vários políticos, e inclusive de alguns ministros do Supremo, que chegavam a dizer que o combate à corrupção estaria prejudicando o crescimento do país. A meu ver, uma falácia.
Atualmente, percebo a existência de um pacto entre os Três Poderes. Foram adotadas medidas no Legislativo e no Judiciário que dificultaram o combate à corrupção. Por exemplo, dentro do próprio Supremo Tribunal Federal, a mudança da interpretação da prisão a partir da condenação em segunda instância. Além disso, o presidente do Tribunal chegou a suspender a troca de informações que existia entre o Coaf, órgãos do Ministério Público e a Polícia Federal, decisão que foi, posteriormente, revista. Foram paralisadas investigações que a Receita Federal vinha fazendo, de forma absolutamente imparcial, em relação a algumas autoridades. No Legislativo, foi aprovado às pressas o projeto de lei de abuso de autoridade e não se tem observado pressa alguma na condução das propostas que podem recompor a prisão a partir de segunda instância. Foram também desidratadas as propostas anticorrupção apresentadas pelo então ministro Sérgio Moro, e engavetadas as 70 Medicas Contra a Corrupção, de iniciativa da sociedade civil.
Nessa mesma linha, o presidente da República, preocupado com a defesa dos seus familiares atingidos por denúncias e por evidências de irregularidades, tomou várias decisões como rasgar a carta branca que ele tinha dado ao então ministro da Justiça Sérgio Moro, contrariando completamente o discurso de campanha, para influir nas decisões da Polícia Federal, o que na minha percepção, ficou absolutamente caracterizado, qualquer que seja a consequência. Além disso, indicou a dedo um Procurador-Geral da República que, muitas vezes, parece mais um advogado criminalista do que propriamente um membro do Ministério Público. Recentemente, o presidente indicou um novo ministro para o STF com base na opinião de políticos investigados e de atuais ministros da Corte que nunca se caracterizaram pelo enfrentamento rigoroso à corrupção.
Em resumo: creio que os instrumentos de combate à corrupção estão sendo enfraquecidos, tal como ocorreu na Itália. Temo que estejamos retrocedendo décadas no que diz respeito efetivamente ao combate à corrupção, com certa conivência da cúpula dos Três Poderes.
RPD – Como você avalia a questão da reforma da Previdência, que também não é um privilégio do governo Bolsonaro, até porque várias medidas para reformá-la foram tomadas em governos anteriores, desde Fernando Henrique, passando por Lula e Dilma?
GCB – A questão da Previdência, de fato, precisava ser novamente enfrentada, o que já vinha sendo discutido há muito tempo, há vários governos. A Previdência é a segunda maior despesa do país, após os juros. Para 2021, mesmo depois da reforma, apenas as despesas com a Previdência e Pessoal corresponderão a mais de R$ 1 trilhão. Dessa forma, de uma despesa primária de aproximadamente R$ 1,5 trilhão, cerca de R$ 1,077 trilhão serão gastos com Pessoal e Previdência. A reforma, porém, manteve privilégios, como por exemplo em relação aos militares que acabaram saindo com vantagens. Em decorrência da pandemia, a economia de R$ 700 bilhões que seria obtida em 10 anos com a reforma foi completamente consumida no combate ao Covid-19. A reforma também não alcançou os Estados e Municípios que continuam em uma situação extremamente difícil.
RPD – E quanto às privatizações e às outras reformas, como a tributária?
GCB – As privatizações, realmente, ainda não saíram do papel. Deve ter sido uma enorme frustração para o ministro Paulo Guedes, um liberal da escola de Chicago, como também para muitos do grupo que ele trouxe para o governo. Quanto à reforma tributária, existem, hoje, três propostas: uma na Câmara, uma no Senado, e outra do governo. Em outras palavras, quem tem três, não tem nenhuma. E não acredito que avancem, não só em função da pandemia, mas, também, das eleições. O governo, cada vez mais, vem adotando linha populista, em que a preocupação central é mais a eleitoral do que com a responsabilidade e a austeridade fiscal, fato que já afeta alguns parâmetros da economia.
O real foi a moeda que mais se desvalorizou nos últimos tempos dentre todos os países emergentes. A taxa de juros futuros está subindo e o governo poderá ter dificuldades para rolar a dívida. Já é perceptível a fuga de capitais, com cerca de R$ 88 bilhões deixando a Bolsa de Valores, o dobro do que aconteceu em todo o ano passado. A bolsa opera abaixo de 100 mil pontos, sintoma de insatisfação do mercado financeiro. A inflação está em processo de aceleração, sobretudo no segmento da alimentação. Trata-se, enfim, de uma série de parâmetros que revelam que os agentes econômicos, de uma maneira geral, não estão mais acreditando que o governo irá seguir com reformas e no caminho da responsabilidade fiscal.
Agora, a cereja desse bolo populista é realmente a situação do Renda Cidadã e do Pró-Brasil. A preocupação maior do governo deixa o mercado de cabelo em pé. Nitidamente, a preocupação do governo não é apenas a de ampliar a base do Bolsa Família e sim fazer com que o valor médio desse novo programa, o Renda Cidadã, chegue o mais perto possível dos R$ 300,00 que está sendo pago como auxílio emergencial e alavancou a popularidade do presidente. Só que sair do atual valor médio de R$ 191,00 do Bolsa Família para valor próximo de R$ 300,00, além do aumento da base, irá significar um aumento relevante da despesa. O orçamento já está combalido e o país quase quebrado.
Neste quadro fiscal extremamente difícil, há hipóteses do endividamento chegar ao final deste ano bem perto de 100% do PIB. A Instituição Fiscal Independente, do Senado Federal, trabalha com três cenários. No otimista, a dívida bruta do governo chegará a 92% do PIB; no cenário base atingiria 96,1% do PIB; no cenário pessimista a dívida alcançaria 101,3% do PIB. Quanto ao déficit primário, segundo estimativa do próprio governo, o Brasil só deverá reequilibrar suas finanças, ou seja, equilibrar receita e despesa, em 2026/2027. Mas, no cenário pessimista da Instituição Fiscal Independente, isso só irá acontecer no início da década de 2030.
RPD – Com a sua autoridade de dirigir “Contas Abertas”, o Brasil de hoje é mais ou menos transparente em relação a governos anteriores?
GCB – O Brasil está menos transparente. Lembro que, logo nos primeiros meses do governo, houve a tentativa de fazer com que os documentos secretos pudessem ser declarados como tal por uma quantidade enorme de pessoas. Ao se aprovar a Lei de Acesso à Informação, a ideia era justamente limitar o número de pessoas com essa capacidade, para que fosse possível manter maior controle sobre os documentos secretos e quem decidiria pelo sigilo maior. O Fórum de Acesso às Informações Públicas tem interpelado a Controladoria Geral da União sobre situações de restrição à transparência. Em meio à pandemia, a redução da transparência é ainda mais preocupante. Já foram autorizados para o enfrentamento ao Covid-19, só na área federal, cerca de R$ 600 bilhões; na hipótese (otimista) de que 3% desses recursos venham a ser desviados, R$ 18 bilhões serão abocanhados por criminosos. A Lava Jato de Curitiba conseguiu recuperar efetivamente pouco mais de R$ 4 bilhões, e tem o objetivo de, no médio/longo prazos, recuperar cerca de R$ 14 bilhões. Estamos, portanto, diante da possibilidade de uma fraude enorme, em volume inédito, em tão pouco espaço de tempo, durante a pandemia. Isso supondo o percentual de 3%. Pelo que já tomamos conhecimento de desvios no pagamento de auxílio emergencial, na compra de respiradores, máscaras, álcool em gel, toucas, na construção de hospitais de campanha etc., serão apenas 3%? O maior antídoto contra a corrupção é a transparência.
Algo preocupante é constatar que, desta vez, as acusações não pairam sobre um, dois, ou três partidos políticos. Não dizem respeito a um governador ou a um secretário. A corrupção está acontecendo de uma forma horizontal, e merece ampla reflexão. A única arma de que dispomos é a transparência, até mesmo porque as medidas de enfrentamento à corrupção tiveram caráter emergencial. Esta emergência, embora indiscutível, pode ter gerado facilidades maiores para os corruptos.
RPD – Ou seja, a tendência é pessimista.
CB – Sim. A emergência não revoga os princípios constitucionais de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. A emergência não dispensa a fiscalização rigorosa por parte do Ministério Público, Tribunais de Contas e da própria sociedade. Tal como já dizia há um século um juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos, “a luz do sol é o melhor dos desinfetantes”. A transparência é essencial para que exista o controle social. Repito, na hipótese de desvio de 3% do montante destinado ao enfrentamento à pandemia, a corrupção atingiria a R$ 18 bilhões. A corrupção no Brasil pode ter-se tornado mais horizontal do que muitos imaginam.
RPD || José Luís Oreiro: Não, Bolsonaro não é desenvolvimentista
José Luís Oreiro questiona, em seu artigo, a análise de que o presidente Jair Bolsonaro se converteu ao desenvolvimentismo: “Trata-se de um governo sem rumo ou norte na política econômica”
Recentemente, devido à polêmica criada pela possibilidade de “flexibilização” do teto de gastos para dar espaço fiscal ao aumento do investimento público, alguns analistas da mídia e do mercado financeiro se apressaram em afirmar que o presidente da República se havia convertido ao (sic) desenvolvimentismo. Na visão desses analistas, o desenvolvimentismo seria sinônimo do velho populismo econômico latino-americano, o qual teve no ex-presidente argentino em Juan Domingo Perón seu maior expoente político. A característica fundamental, assim, do populismo/desenvolvimentismo seria a gastança desenfreada por parte do governo com o objetivo de obter resultados eleitorais de curto prazo, mas com efeitos nocivos sobre o crescimento econômico e a inflação no médio e no longo prazo.
Não tenho procuração ou interesse para defender Perón ou o peronismo de uma comparação estapafúrdia com Bolsonaro; mas, como me incluo entre os economistas desenvolvimentistas brasileiros, tentarei esclarecer, nas linhas abaixo, o que se entende por desenvolvimentismo.
O desenvolvimentismo é um sistema de pensamento econômico surgido na América Latina a partir do famoso Manifesto Latino-Americano, escrito por Raúl Prebisch por ocasião da primeira reunião da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), em 1949, em Havana, Cuba. A ideia fundamental por trás do Manifesto é que a divisão internacional do trabalho entre países exportadores de produtos primários (a periferia) e os países exportadores de produtos manufaturados (o centro) gerava padrão de desenvolvimento desigual entre essas regiões. Isso porque os produtos primários apresentavam tendência secular de queda, revertida apenas temporariamente durante os dois conflitos mundiais, ao passo que os produtos manufaturados mantinham seus preços mais ou menos estáveis ao longo do tempo. Essa deterioração dos termos de troca impunha restrições externas ao desenvolvimento econômico dos países periféricos, os quais incorriam regularmente em elevado endividamento externo e crise do balanço de pagamentos.
A solução para esse problema estrutural seria, portanto, a industrialização dos países periféricos, a qual se daria, numa primeira etapa, pela substituição de importações, a ser seguida, assim que fosse possível, pela promoção de exportações de produtos manufaturados, ou seja, pela inserção competitiva das economias latino-americanas nos mercados internacionais. O Estado teria papel importante no processo de industrialização, pois os países periféricos estão presos em uma armadilha de pobreza, em que o baixo nível de renda per capita gera, devido a uma série de falhas de mercado, uma baixa taxa de retorno para o investimento privado. Prebisch e a Cepal apoiavam, portanto, um Estado ativo que lançasse mão de todos os instrumentos de política econômica utilizados pelos países exportadores, mas dentro de uma economia de mercado, global e competitiva. Em suma, o aspecto essencial do desenvolvimentismo é a realização de uma profunda mudança na estrutura econômica dos países latino-americanos, o que incluía também reformas na estrutura fundiária, no sistema educacional e no sistema tributário com vistas a reduzir a desigualdade na distribuição de renda. Essa sempre foi vista pelos desenvolvimentistas como um obstáculo à necessária transformação estrutural da América Latina.
Como o leitor já deve ter percebido, o governo Bolsonaro não tem semelhança alguma com o pensamento desenvolvimentista. Trata-se de um governo sem rumo ou norte na política econômica cuja agenda de “reformas” tem por objetivo destruir o Estado Brasileiro e sua capacidade de ser agente indutor do processo de desenvolvimento econômico. As obras de infraestrutura que a ala militar do governo deseja realizar, por seu turno, estão centradas na construção de ferrovias para facilitar o escoamento da produção de produtos primários para a exportação; ou seja, irão apenas reforçar o caráter periférico e, portanto, dependente da economia brasileira. Não há nenhum projeto minimamente consistente para a reconstrução da indústria nacional, a qual teve sua participação na geração de empregos e no PIB da economia brasileira prematuramente reduzida nos governos tucanos e petistas. Por fim, mas não menos importante, o tratamento que o atual governo dá à área de ciência e tecnologia mostra de forma didática que o desenvolvimento econômico não é prioridade.
O leitor interessado em saber mais sobre Raúl Prebisch e o pensamento desenvolvimentista pode consultar o livro de Edgar Dosman, Raúl Prebisch (1901-1986): A construção da América Latina e do Terceiro Mundo, publicado em 2011 pela Contraponto.
*Professor do Departamento de Economia da Universidade de Brasília (UnB).