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César Felício: Terceiro setor na mira
ONGs temem monitoramento criado por Bolsonaro
O alerta máximo foi acionado no terceiro setor. Existe apreensão em relação ao governo federal entre organizações não governamentais, desde as mais alinhadas com bandeiras tradicionalmente da esquerda até as bancadas pelo sistema financeiro.
Nos próximos dias caberá ao ministro da secretaria de Governo, Carlos Alberto Santos Cruz, desarmar o confronto que está montado com as entidades da sociedade civil ou levá-las a uma espécie de oposição ao Palácio do Planalto. A polêmica está no inciso II do artigo 5º da Medida Provisória 870, de 1º de janeiro. É a MP inaugural do governo Bolsonaro, que determinou as atribuições dos ministros palacianos. Trata-se de um dispositivo de uma única frase: estabelece que cabe à Secretaria de Governo "supervisionar, coordenar, monitorar e acompanhar as atividades e ações dos organismos internacionais e das organizações não governamentais no território nacional".
Para um grupo de 47 ONGs que solicitou imediatamente uma audiência a Santos Cruz, a MP abre espaço para uma espiral intervencionista. "Para resguardar o espaço cívico brasileiro, o que deveria ser garantido no momento é exatamente o contrário. É assegurar mecanismos para a sociedade civil sem fins lucrativos monitorar e acompanhar as atividades e ações do governo", disse a cientista política Ilona Szabó, do Instituto Igarapé, centro de estudos especializado em políticas de segurança pública e sobre drogas.
O Igarapé recebe recursos dos governos do Canadá, Noruega, Reino Unido e da Fundação Open Society, do investidor de origem húngara George Soros. O magnata ganhou notoriedade por especular contra a libra esterlina, nos anos 90, mas usa boa parte de seu patrimônio para financiar instituições progressistas e liberais. Mais recentemente, foi forçado a encerrar suas atividades na Hungria por se sentir ameaçado por um antigo auxiliar, o atual primeiro-ministro Viktor Órban, uma das referências ideológicas de Bolsonaro e dos primeiros chefes de Estado a cumprimentá-lo após a posse, dia 1º de janeiro.
O modo como Órban encaminhou seu país para uma vertente autoritária já é objeto de uma literatura vasta na ciência política internacional. Um de seus métodos é o de agir contra instituições e entidades que vigiam o Poder. Ele interferiu no Ministério Público, na Corte Constitucional, mudou as regras eleitorais, sufocou as empresas de mídia e, por fim, criou uma norma que permite ao governo banir ONGs que sejam consideradas uma ameaça à segurança nacional.
Ilona, neta de húngaros, ressalta que Santos Cruz, militar com presença destacada em missões internacionais, conhece bem o terceiro setor e tem o perfil de uma pessoa aberta ao diálogo. O temor não é direcionado a ele, mas ao contexto maior que o governo Bolsonaro pode significar. "O populismo em si representa um risco. Na Hungria, Rússia e Polônia houve restrições do espaço da sociedade para divergir", diz a ativista.
No limite, as entidades ameaçam judicializar a questão, caso a supervisão, coordenação, monitoramento e acompanhamento do governo signifique intervenção. "Dentro da Constituição você tem dispositivos que asseguram a manifestação da sociedade de forma autônoma e livre, desde que respeitadas as regras e princípios legais", disse a diretora executiva do Centro de Liderança Pública (CLP), Luana Tavares. O CLP capacita lideranças públicas e recebe apoio do BTG Pactual, B3 e Credit Suisse, entre outros. Luana faz referência claro a três incisos do artigo 5º da Constituição, aquele trata de direitos e garantias individuais e que é cláusula pétrea. São os que permitem a liberdade de associação e que vedam a interferência estatal.
Pode-se argumentar que a medida tomada por Bolsonaro significaria zelo com o uso de recursos públicos, mas o argumento é duvidoso. Atuam no Brasil cerca de 800 mil organizações não governamentais. Destas, cerca de 10 mil recebem recursos do governo federal ou dos estaduais, em sua maioria para programas nas áreas de saúde e educação. Estão sob escrutínio de diversos órgãos de controle. "O que todos devem se perguntar é porque isto aparece agora?", indaga o cientista social Clemente Ganz Lúcio, diretor técnico do Dieese. A entidade mantém contratos e convênios com o poder público, a quem presta serviços.
A pergunta do dirigente do departamento intersindical de estatística é retórica. Todos imaginam o que motiva o cuidado do governo em acompanhar de perto estas entidades. A autopreservação é um instinto natural e a tendência de monitorar quem o monitora sobressai em governos que não primam pela formação de consensos.
Está claro nas últimas duas décadas, pelo menos, que a representatividade social dos partidos está em queda e entidades da sociedade civil ganharam peso no debate político. É um fenômeno que não pode ser superestimado - ONGs não derrubaram governos e nem elegeram presidentes - mas que ajuda a entender por que se abriu espaço para a vitória de um político como Jair Bolsonaro.
A ameaça concreta à base de apoio de um grupo político que concentra o poder não está no meio partidário. Não será o PT, cuja presidente, a senadora Gleisi Hoffmann viaja a Caracas para render homenagens a um ditador como Maduro, que desgastará neste instante a Bolsonaro. E nem Ciro Gomes com suas entrevistas. Antes pelo contrário, antagonizar estas forças tende a vitaminá-lo. Trata-se de um jogo jogado.
Villas Bôas
Passa o comando do Exército hoje o general Eduardo Villas Bôas. Afora o destemor com que enfrentou doença grave, ele ficará marcado por representar um ponto de inflexão. Por 20 anos não se conheceu o som da voz dos comandantes da Força, na algaravia do debate político. Em entrevista há dois meses, ao jornal "Folha de S.Paulo", o general relatou como se esforçou em ter o que chamou de "domínio da narrativa", frente à pressão crescente, muito estimulada por militares da reserva, para que os generais entrassem no jogo político, o que terminou por acontecer. O general alertou: o ativismo dentro dos quartéis é "um risco sério". Saber se o próximo comandante, Edson Pujol, pisará no freio ou no acelerador, ou deixará o carro descer a ladeira no embalo, será essencial para a democracia.