Tecnologia
Elio Gaspari: O mundo inseguro das boquinhas de TI
Às 15h de terça-feira, o sistema de computadores do Superior Tribunal de Justiça (STJ) foi invadido, e os trabalhos da Corte só voltarão ao normal nesta semana
O episódio mostra que os computadores da Viúva continuam sendo administrados de forma leviana. No mundo das altas competências, no século passado o governo brasileiro já pagou o mico de ter um sistema de criptografia das embaixadas protegido por equipamentos de uma fábrica suíça que tinha um sócio oculto, a Central Intelligence Agency americana. No governo Dilma Rousseff, descobriu-se que algumas de suas comunicações também estavam grampeadas.
Não se sabe o propósito dos invasores do STJ, pois achar que o tribunal tem meios ou recursos para pagar um resgate não faz sentido. Sabe-se, contudo, que a rede oficial de informática está contaminada por dois vícios elementares, que nada tem a ver com altas competências. É pura incompetência. Em muitas áreas, quando muda o chefão, ele troca a equipe de tecnologia. Mesmo em áreas onde isso nem sempre acontece, os hierarcas usam seus endereço da rede oficial para tratar de assuntos pessoais. Nos Estados Unidos a secretária de Estado Hillary Clinton pagou caro por isso. Assuntos oficiais e comunicações pessoais são coisas diversas. Se essa banalidade não é respeitada, só se pode esperar que o sistema esteja bichado em outras trilhas.
Essa incompetência não acontece por causa da herança escravocrata. Ela é produto de uma indústria da boquinha em quase tudo que tem a ver com informática. Prova disso é que o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação armou uma licitação viciada de R$ 3 bilhões há mais de um ano, foi apanhado, cancelou a maracutaia, mas até hoje não explicou como o edital foi concebido.
Na compra de equipamentos, pode-se pegar o jabuti quando ele quer mandar 117 laptops para cada um dos 255 alunos de uma escola. Quando as contratações vão para escolha de operadores, manutenção e até mesmo programação entra-se num mundo complexo, atacado por amigos que têm conexões, mas não têm competência.
No caso da invasão das máquinas do STJ, surgiu um perigoso efeito colateral. Com um presidente que não confia nas urnas eletrônicas, mas até hoje não provou que tenha ocorrido fraude na sua eleição, estende-se o tapete vermelho para que terraplanistas comecem a alimentar conspirações em relação ao pleito de 2022. O STJ ainda estava fora do ar quando o capitão Bolsonaro voltou a defender o voto impresso. Logo ele, que tratava assuntos de Estado com o ministro Sergio Moro na sua conta privada.
Trump dividiu os republicanos
O calor que Donald Trump tomou no Arizona mostra que ele dividiu até os republicanos. No estado em que o Homem de Marlboro teve um rancho, os democratas elegeram para o Senado o ex-astronauta Mark Kelly. Ele é o marido de Gabrielle Giffords, a deputada que em 2011 foi baleada na cabeça por um maluco. (A bala atravessou seu crânio, mas ela recuperou parcialmente a fala e anda com bengala.)
Até a noite de sábado, Joe Biden liderava a eleição do Arizona. Fatores demográficos contribuíram para essa mudança no estado que produziu Barry Goldwater, o campeão do conservadorismo republicano nos anos 60 do século passado. Contudo, a grosseria megalômana de Donald Trump contribuiu para isso. Ele ofendeu o senador John McCain (1936-2018), um político respeitado pela biografia e pela decência. Filho de almirante e piloto de bombardeiro, McCain foi abatido no Vietnã, ralou seis anos de prisão e torturas em Hanoi e nunca recuperou completamente os movimentos dos braços. Candidato a presidente em 2008, perdeu para Barack Obama. Tendo contrariado Trump numa votação, tomou um dos insultos típicos do presidente: “Ele não é um herói, foi capturado”. (Trump nunca vestiu um uniforme.)
Quando McCain morreu, Trump ignorou-o e foi jogar golfe. Na campanha, o troco veio de Cindy, a viúva, herdeira da maior distribuidora da cerveja Anheuser-Busch no país. Em setembro ela apoiou Biden: “Somos republicanos, mas, acima de tudo, somos americanos.”
Trump não precisava ter sido grosseiro com McCain, mas sua natureza falou mais alto.
Médici, Geisel e Bolsonaro
Nenhum presidente brasileiro teve uma relação tão próxima com seu colega americano como o general Emílio Médici com Richard Nixon, a quem visitou em 1971. Quando Nixon se atolou no caso Watergate e acabou perdendo o cargo, Médici, fora do governo, não disse uma só palavra.
Nenhum presidente brasileiro detestava seu colega americano como Ernesto Geisel detestava Jimmy Carter. Enquanto esteve na Presidência, nunca disse uma palavra contra ele. Fora dela, recusou-se a encontrá-lo e não atendeu o telefone quando ele ligou para sua casa.
A bomba Wassef
De um advogado que conhece os processos relacionados com o Bolsonaro e suas “rachadinhas”, ao saber que seu colega Frederick Wassef tentou operar o depoimento da ex-assessora Luiza Souza Paes:
“Esse pessoal está chamando urubu de ‘meu louro’.”
Luiza Souza Paes mostrou ao Ministério Público os comprovantes de que, entre 2011 e 2017, o faz-tudo Fabrício Queiroz bicou cerca de R$ 160 mil do salário que recebia no gabinete de Flávio Bolsonaro.
A protelação tem nexo
Por mais que se façam trapalhadas no varejo com o processo das “rachadinhas” dos Bolsonaro, no atacado a manobra da defesa tem nexo e poderá dar certo.
Com 15 denunciados num processo de competência indefinida, é quase certo que não se chegue a uma sentença antes da eleição de 2022.
Tio Sam e Jeca Tatu
Relação especial é assim:
Neste ano, o Brasil importou 30 mil toneladas de soja dos Estados Unidos.
Pindorama é o maior exportador de soja do mundo.
Neste governo, os americanos foram dispensados de pedir visto de entrada no Brasil. Não passa pela cabeça dos Estados Unidos oferecer reciprocidade.
O presidente brasileiro torce pela reeleição de seu colega americano. Mesmo quando despejava dinheiro nas eleições de Pindorama, nenhum presidente americano fez declaração pública de apoio um candidato brasileiro.
Baker saiu de perto
Aos 90 anos, o texano James Baker, articulador da vitória eleitoral de George Bush na Corte Suprema contra Al Gore em 2000, afastou-se da teoria da eleição roubada antes mesmo do patético discurso de Donald Trump na quinta-feira.
Baker coordenou três campanhas presidenciais de republicanos, foi secretário do Tesouro e de Estado.
Trump e Napoleão
Quem viu o discurso de Trump deve se lembrar que em 1840, quando os restos mortais do Imperador saíram da ilha Santa Santa Helena para um mausoléu em Paris, num só hospício da cidade havia 14 pessoas garantindo que eram Napoleão Bonaparte.
BBC Brasil: Como o WhatsApp mobilizou caminhoneiros, driblou governo e pode impactar eleições
Depois dos papéis de peso do Twitter na Primavera Árabe em 2011 e do Facebook nas manifestações brasileiras de junho de 2013, chegou a vez do WhatsApp protagonizar a organização de uma mobilização
Por Amanda Rossi, da BBC Brasil
Depois de uma insurreição popular convocada por SMS em Moçambique, em 2010, da Primavera Árabe difundida pelo Twitter no Oriente Médio, em 2011, e das manifestações brasileiras de junho de 2013 impulsionadas pelo Facebook, chegou a vez do WhatsApp ocupar o protagonismo na organização de uma mobilização.
A greve dos caminhoneiros, que interditou milhares de trechos de rodovias em todo o país ao longo de dez dias, é a maior mobilização mundial já feita pelo WhatsApp, dizem Yasodara Córdova, pesquisadora da Escola de Governo de Harvard, nos Estados Unidos, que estuda como os governos lidam com a Internet, e Fabrício Benevenuto, professor de Ciência da Computação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), pioneiro na pesquisa de conteúdos compartilhados em grupos de WhatsApp. "A mobilização ocorre por motivos sociais. As redes dão uma vazão a esses sentimentos", diz Yasodara.
"Na quarta-feira antes da greve, o (preço do) diesel aumentou. Desci para Santos para levar carga. Quando voltei, o diesel já tinha aumentado. Na sexta, aumentou de novo. A galera se comunicou no WhatsApp e falou: não está dando mais", lembra o caminhoneiro Moisés de Oliveira, que ficou parado na Rodovia Régis Bittencourt, em São Paulo, onde ajudou a organizar um grupo de grevistas, sempre com o celular à mão.
A essência do trabalho do caminhoneiro é circular. Isso facilitou que as mensagens se espalhassem rapidamente por diferentes pontos do Brasil. "A gente viaja o Brasil inteiro e vai conhecendo outros caminhoneiros. Quando chega no posto para dormir, a gente conversa, troca o (número de) WhatsApp. Aí, quando chegou a greve, já havia vários grupos montados e a gente distribuiu a informação", diz Oliveira, de 40 anos, 22 anos deles passados atrás do volante do caminhão.
"O Whatsapp facilitou demais a nossa comunicação. Antes, a gente era desconhecido (um do outro). Agora, o pessoal faz um vídeo e, em dois minutos, já espalhou pelo Brasil", completa. "A gente não é envolvido com partido político nenhum. Mas a gente tem a nossa logística".
Na última quinta-feira, apesar de já não haver mais pontos de interdição nas estradas, segundo a Polícia Rodoviária Federal, os apelos pela continuidade da greve não haviam parado de circular pelo WhatsApp. Eram desde pedidos para caminhoneiros irem até Brasília, para que ficassem parados em casa, até convocações de protestos nas cidades.
Conversas fechadas, criptografadas, sem rastro e em pirâmide
A comunicação por WhatsApp tem características diferentes das feitas por Twitter e Facebook. Os dois últimos "são como uma via pública, uma praça, onde você abre uma banquinha e as pessoas podem te ver e interagir com você. Já o grupo de WhatsApp é como a sala de jantar da sua casa, não entra todo mundo", exemplifica a pesquisadora brasileira Yasodara Córdova.
Na prática, enquanto postagens públicas no Twitter ou Facebook podem ser vistas por qualquer um e chegar de uma vez só a milhares de usuários, as mensagens de WhatsApp atingem apenas um indivíduo ou os participantes do grupo, limitados a um número máximo de 256 pessoas. Dali, podem ser levadas para outras pessoas ou outros grupos, em uma distribuição em pirâmide.
Além disso, todo diálogo é criptografado - é como se a sala de jantar estivesse bem trancada e só pudesse entrar quem fosse convidado ou tivesse a chave.
Isso faz com que a conversa fique fechada - para acessá-la, só infiltrado. "A comunicação no Whatsapp acontece de maneira mais velada, mais escondida. São grupos relativamente pequenos. E não há registro público, um rastro, porque há essa encriptação", diz Benevenuto.
Além disso, a comunicação é mais difusa. A conversa vai se propagando pelos celulares, sem registro de quem foi a fonte original da informação - seja mensagem em texto, imagem, áudio ou vídeo. Assim, fica mais difícil identificar quem são as vozes mais difundidas e que estão se transformando em lideranças.
Essas características fazem com que a mobilização pelo WhatsApp represente um novo desafio para governos, acostumados a negociar com lideranças de organizações definidas, com logotipo e CNPJ.
"O sindicato é um modelo que está em declínio no mundo todo. Não só em termos de representatividade, mas também em metodologia. No caso da greve dos caminhoneiros, há um pioneirismo da organização do trabalho baseado na internet. É uma espécie de sindicato digital. É possível que no futuro a gente tenha novas formas de mobilização da força de trabalho como essa", fala Yasodara.
Governo foi driblado pela organização dos caminhoneiros
No quarto dia de greve, uma quinta-feira, o governo do presidente Michel Temer fechou um acordo com parte dos representantes de associações e sindicatos de caminhoneiros, se comprometendo a baixar o preço do combustível em 10% por 30 dias. Com isso, anunciou que a greve iria ter uma trégua. Naquele momento, os postos já começavam a ficar sem combustível.
Mas os caminhoneiros organizados pelo WhatsApp não concordaram com a negociação. No aplicativo, seguiram-se mensagens de repúdio às lideranças que negociaram com o governo Temer, além de aúdios e vídeos notificando sobre pontos de paralização que se mantinham ativos. Nada de acordo, a greve continuava.
"Se não tivesse o WhatsApp, eu creio que o governo já tinha enganado a gente há dias. O governo ia na televisão dizer que a greve acabou. Até um caminhoneiro conseguir se comunicar com outro, já tinha tudo mundo ido embora, tinha acabado a greve. Agora, a gente assistiu a nota do presidente e já passou informação para os grupos de WhatsApp: não acabou não", explica o caminhoneiro Moisés Oliveira.
São Paulo usou o WhatsApp nas negociações
No Estado de São Paulo, foi traçada uma estratégia diferente para negociar com os grevistas. O presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de São Paulo, Marcos da Costa, irmão de um caminhoneiro hoje afastado da profissão, resolveu entrar nas negociações.
"Não era um movimento institucionalizado, respondendo a sindicatos e associações. Eram caminhoneiros que se esgotaram com o aumento do preço dos combustíveis e começaram a parar (de rodar). A comunicação deles por WhatsApp permitiu que se formasse uma onda muito rápida no Brasil inteiro", diz Costa.
Depois da negociação fracassada do governo federal na quinta-feira, Costa pediu que colegas advogados do setor de transportes procurassem identificar quem eram as lideranças dos caminhoneiros parados em São Paulo. Em seguida, no sábado de manhã, mais de 10 delas se reuniram na sede da OAB.
"No começo da reunião, os caminhoneiros pediram para tirar foto e fazer vídeo para compartilhar nos grupos de WhatsApp. Isso viralizou. E serviu para que a gente pudesse ter segurança da capacidade de mobilização daquelas pessoas", fala o presidente da OAB.
Em seguida, foi montado um novo grupo de WhatsApp entre esses caminhoneiros e a OAB. "Esse grupo serviu de preparação das pautas de negociação. Ele canalizava as demandas dos caminhoneiros, porque cada pessoa dessas tinha interlocução com outros grupos de WhatsApp. Era uma rede gigantesca", fala Costa. "Eu não tenho dúvida de que isso fez a diferença. Foi fundamental para abrir a possibilidade de diálogo com aqueles que estavam realmente à frente do movimento".
No sábado à tarde, o grupo de WhatsApp criado pela OAB se reuniu com o governo de São Paulo para negociar a desobstrução das estradas do Estado.
"Ainda durante a reunião, eles (os representantes dos caminhoneiros) mandaram mensagens de WhatsApp para a base pedindo para liberar (as estradas). Cerca de uma hora depois, vimos pela cobertura da mídia que a liberação estava começando. Foi o diálogo por WhatsApp que permitiu a primeira liberação de rodovia", comenta o advogado. O movimento dos caminhoneiros em São Paulo não acabou ali, mas de fato começou a diminuir.
Ainda no sábado, o ministro-chefe da Secretaria de Governo, Carlos Marun, esteve em São Paulo para participar das conversas com o grupo paulista, tomar conhecimento das pautas e tentar tirar as negociações de Brasília do limbo.
"A greve mostrou que vamos ter que criar mecanismos para dar conta de demandas apresentadas de forma completamente diferentes. Tradicionalmente, eram instituições que iam ao governo apresentar suas pautas. Hoje, vemos movimentos líquidos, absolutamente horizontalizados. A partir de agora, os governos vão ter que aprender a lidar com essa nova realidade e aprender a identificar canais que possam servir para diálogo", conclui Costa.
WhatsApp foi a principal forma de contato com a mobilização
A primeira medição da importância do WhatsApp na greve dos caminhoneiros foi feita pelo Ipsos. Na última terça-feira, o instituto de pesquisa entrevistou cerca de 1,2 mil caminhoneiros que usam um aplicativo de cargas. Dentre os entrevistados, quase metade (46%) soube da paralisação via WhatsApp.
É mais que o dobro de importância da própria estrada - 18% souberam do movimento sendo parados por colegas enquanto rodavam com o caminhão. O Facebook veio em seguida, informando 8,5% dos entrevistados. Um número ínfimo de 1% foi convocado por sindicato ou associação. Entre os entrevistados, estão tanto caminhoneiros que estavam protestando, como quem ficou em casa ou estava rodando normalmente.
Por outro lado, nem tudo é digital. Entre o grupo mais ativo de caminhoneiros, que continuava parado nas estradas na última terça-feira, o corpo a corpo foi tão importante quanto a mobilização nas redes - 39% tomaram conhecimento da greve na estrada, enquanto outros 39% souberam por WhatsApp e Facebook.
A importância do WhatsApp na greve também fica evidente em um boato que circulou no próprio app, alertando usuários para não atualizarem o aplicativo. Segundo a mensagem, a atualização do WhatsApp teria sido determinada pelo governo federal para inviabilizar a comunicação de participantes da greve. O WhatsApp informou que essa informação não procede.
O dia a dia dos grupos de WhatsApp
Uma vez que a mobilização tinha começado, o WhatsApp foi fundamental para propagar informações, passar mensagens de motivação, angariar apoio e bater de frente com o governo do presidente Michel Temer.
É possível ter um retrato de como isso aconteceu pelo monitor do WhatsApp desenvolvido pelo projeto "Eleições Sem Fake", coordenado por Benevenuto, da UFMG. O sistema acompanha 182 grupos públicos com temática política e seleciona quais são as imagens mais compartilhadas diariamente. É a única ferramenta brasileira que acompanha o que ocorre dentro do WhatsApp - seu uso é restrito a pesquisadores.
Segundo o monitor, um dia antes da greve começar, uma imagem de caminhões parados em uma estrada já estava entre as dez mais compartilhadas do dia: "greve geral pela baixa dos combustíveis, você apoia?". Era o movimento se organizando.
Já na segunda-feira, quando os caminhoneiros começaram a parar as rodovias, a greve foi a temática das cinco imagens mais compartilhadas do dia. Na terça-feira, idem - sendo que uma das imagens fazia um chamado: "caminhoneiros convocam população, sozinho (sic) não conseguiremos".
Na quinta-feira, quando o governo de Michel Temer buscou negociar com lideranças de organizações de caminhoneiros, o topo de compartilhamentos foi uma imagem com a hashtag "SomosTodosCaminhoneiros" e outra com a frase "A greve continua". Também circularam memes culpando o PT pela crise e, no sentido oposto, dizendo que a crise começou porque o PT saiu do governo.
Em seguida, pedidos de intervenção militar passaram a despontar. Já na última terça-feira, quando o protesto dos caminhoneiros já estava perdendo força, os grupos de WhatsApp foram tomados por críticas à baixa adesão da população ao protesto: "Povo tem o governo que merece: reclama ficar 3h na fila do hospital, mas fica 8h na fila do posto de combustível".
Informações reais duelam com fake news
Nesse meio tempo, foram surgindo grupos de WhastsApp de apoiadores dos caminhoneiros, para troca de informações sobre a greve. A BBC Brasil acompanhou seis deles. Em meio a mensagens verdadeiras, circulavam muitas notícias falsas e desatualizadas. Entre elas, vídeos dizendo que manifestantes tinham ocupado Brasília e imagens informando que militares estariam prestes a tomar o poder.
No começo desta semana, foi feito um apelo nos grupos: que os caminhoneiros passassem a informar data, hora e local da mensagem de áudio ou vídeo, já que tudo estava mudando muito rapidamente e era preciso identificar se se tratava de algo novo ou não. Em um dos grupos, criado no dia seguinte à greve, o administrador deletou mais de 200 participantes acusados de promover "fake news".
"A ideia do WhatsApp é a comunicação ponta a ponta. Não tem impulsionamento de mensagens, como no Facebook. Então, a empresa não tem influência no diálogo. São grupos se auto-organizando e repassando essas mensagens", afirma Benevenuto.
É uma via aberta, por onde trafegam os diferentes ideiais de uma sociedade. "Eu me lembro de ver a primavera árabe, em 2011, e pensar: 'as redes sociais vão virar movimento político, vão alavancar a democracia, vão abrir a cabeça das pessoas, não tem como governos autoritários controlarem uma coisa dessas'. E hoje vemos que pode ser usada para qualquer dos lados. Tem pedido de intervenção militar, notícia falsa...", completa o pesquisador da UFMG.
WhatsApp vai ser importante nas eleições de 2018
O WhatsApp, usado por 60% da população do Brasil, já é uma das principais fontes de informação no país. Segundo o Digital News Report de 2017, um estudo sobre o consumo de notícias produzido em conjunto pela Reuters Institute e pela Universidade de Oxford em 36 países, 46% dos brasileiros usam WhatsApp para encontrar notícias.
O número é muito maior do que a média mundial, de 15%, e chamou a atenção dos pesquisadores. No estudo, eles destacaram que o WhatsApp cresceu tanto no Brasil que já está rivalizando com o Facebook - usado por 57% dos brasileiros para encontrar notícias.
"A greve de caminhoneiros aponta totalmente como pode ser o uso do WhatsApp nas eleições de 2018", diz Maurício Moura, pesquisador da George Washington University, nos Estados Unidos, que analisou o uso do aplicativo nas eleições de 2014. Segundo o pesquisador, a tendência é que o debate eleitoral deste ano ocorra muito dentro do app de conversas.
"A rede social das eleições de 2018 vai ser o WhatsApp. Hoje, muito mais pessoas têm smarthphones no Brasil do que em 2014", avalia Moura, que também já trabalhou com campanhas políticas e é fundador da Ideia Big Data, que realiza pesquisas de opinião. "Agora, não tem como fazer campanha no WhatsApp sem números de telefone. Por isso, a primeira estratégia dos candidatos e partidos é coletar números de celular, em eventos, fan pages...".
Mesmo antes da campanha, já há diversos grupos de apoiadores de candidatos, como Jair Bolsonaro. "A tendência é as pessoas se organizarem nos grupos de WhatsApp em torno de candidatos e pautas. Por outro lado, pessoas que querem desestabilizar as campanhas umas das outras também estarão operando nos grupos de WhatsApp com bastante intensidade", acrescenta Yasodara.
O combate às notícias falsas, que se tornou uma grande preocupação desde a eleição de Donald Trump, em 2016, promete ser muito mais difícil no WhatsApp. O Facebook, por exemplo, se comprometeu a não impulsionar páginas que promovam notícias falsas. A rede social pode fazer isso porque funciona como uma mediadora das publicações. Já no WhatsApp, onde não há nenhuma forma de controle externo, isso é impossível.
"Enquanto Facebook e Twitter estiveram sob forte escrutínio nos últimos tempos, o WhatsApp passou um pouco batido. Porém, o app é extremamente utilizado dentro do Brasil. Com toda essa atenção que se deu às outras redes, muito do esforço de campanha política migra para o WhatsApp, onde não há quase nenhum monitoramento", diz Benevenuto, da UFMG.
No WhatsApp, combater notícias falsas e discursos de ódio "é um desafio tão complexo quanto regular o discurso dentro das casas das pessoas", compara Yasodara. "Como a sociedade faz para que os pais não ensinem aos filhos que o nazismo é uma coisa legal? Primeiro, criminaliza o que é ilegal. Segundo, traz cada vez mais informações verdadeiras para o debate público ", opina a pesquisadora de Harvard.
* Colaboraram Juliana Gragnani, André Shalders e Felipe Souza
Joseph Pistrui: O futuro do trabalho humano é a imaginação, a criatividade e a estratégia
Aparentemente, há um consenso absoluto de que a tecnologia vai substituir o emprego ou, mais precisamente, as pessoas que ocupam esses empregos. Poucos setores não serão afetados – talvez nenhum.
Os trabalhadores do conhecimento não escaparão. Recentemente, o CEO do Deutsche Bank previu que metade dos seus 97 mil funcionários poderia ser substituída por robôs. Uma pesquisa revelou que “39% dos empregos no setor jurídico poderão ser automatizados nos próximos 10 anos. Uma pesquisa independente concluiu que, no futuro, os contadores têm 95% de probabilidade de perder seus empregos para a automação”.
E para aqueles em empresas de produção ou manufatura, o futuro pode chegar até mais cedo. Esse mesmo relatório menciona o advento dos “pedreiros robotizados”. E também prevê que os algoritmos de aprendizado de máquina substituirão as pessoas responsáveis pela “classificação óptica de peças, o controle de qualidade automatizado, a detecção de falhas, e as melhorias na produtividade e eficiência”. Resumindo, as máquinas trabalham melhor. O National Institute of Standards prevê que “o aprendizado de máquina poderá melhorar a capacidade de produção em até 20%” e reduzir o desperdício de matérias-primas em 4%.
Muitas previsões afirmam que entre 5 e 10 milhões de postos de trabalho serão perdidos até 2020. Recentemente, Elon Musk, o titã espacial e automotivo, disse que as máquinas são a “maior ameaça existencial” da humanidade. Talvez seja uma visão muito lúgubre do futuro, mas, agora, o mais importante para os líderes corporativos é evitar o erro catastrófico de ignorar como as pessoas serão afetadas. Seguem quatro maneiras de pensar sobre as pessoas que serão deixadas para atrás quando as novas tecnologias chegarem.
O Mágico de Oz é o modelo errado
No filme O Mágico de Oz, o mágico comanda o reino por meio de uma máquina complexa escondida atrás de uma cortina. Muitos executivos acham que podem fazer algo parecido: fascinados com a ideia de que a IA permitirá que eles se livrem de milhões de dólares em custos de mão de obra, talvez acreditem que a melhor empresa é aquela com o menor número de pessoas além do CEO.
No entanto, Melonee Wise, CEO e fundadora da Fetch Robotics, alerta contra essa forma de pensar: “Cada robô colocado no mundo precisa de alguém para cuidar dele, fazer sua manutenção, e assistência técnica”. Para ela, o objetivo da tecnologia é aumentar a produtividade, não reduzir a força de trabalho.
Os seres humanos são estratégicos. As máquinas são táticas
A McKinsey pesquisa os tipos de trabalho que se adaptam melhor à automação. Até agora, suas descobertas indicam que quanto mais técnico é o trabalho, melhor a tecnologia pode realizá-lo. Em outras palavras, as máquinas têm uma predisposição para aplicações táticas.
Por outro lado, o trabalho que requer um alto grau de imaginação, análise criativa e pensamento estratégico é mais difícil de automatizar. Como a McKinsey colocou em um relatório recente: “As atividades mais difíceis de se automatizar com as tecnologias disponíveis atualmente são aquelas que envolvem o gerenciamento e o desenvolvimento de pessoas (9% de potencial de automação) ou que aplicam conhecimentos especializados em tomada de decisão, planejamento, ou trabalho criativo (18 %)”. Computadores são ótimos na otimização, mas não são tão bons na definição de metas — e tampouco na aplicação do senso comum.
Adotar novas tecnologias é um processo emocional
Quando a tecnologia entra, e alguns trabalhadores desaparecem, há um medo residual entre os que ficam. É natural que eles perguntem: “Serei o próximo? Por quanto tempo ficarei empregado? ” Segundo o capitalista de risco Bruce Gibney, “o emprego pode não parecer algo ‘existencial’, mas é. Quando as pessoas não conseguem se sustentar com o trabalho — ainda menos com trabalho que achem significativo — clamam por grandes mudanças. Nem toda revolução é uma boa revolução, como a Europa descobriu várias vezes. O emprego fornece conforto material e gratificação psicológica, e quando esses benefícios desaparecem, as pessoas ficam muito aborrecidas”.
O executivo sábio percebe que os traumas das novas tecnologias têm origem em duas questões: (1) como integrar a nova tecnologia no fluxo de trabalho e (2) como lidar com os sentimentos de que a nova tecnologia é de alguma forma o “inimigo”. Sem lidar com ambas, mesmo o local de trabalho mais automatizado pode facilmente ser tomado por tendências de ansiedade, ou mesmo de raiva.
Repense o que sua força de trabalho pode fazer
A tecnologia substituirá parte do trabalho, mas não necessariamente as pessoas que faziam esse trabalho. Para o economista James Bessen, “o problema é que as pessoas estão perdendo empregos e não estamos colaborando para que elas desenvolvam as habilidades e os conhecimentos necessários para trabalhar em seus novos empregos”.
Por exemplo, um estudo na Austrália encontrou um lado positivo na automação dos caixas bancários: “Embora os caixas eletrônicos tenham assumido muitas tarefas, isso permitiu aos funcionários a oportunidade de ampliar sua atuação e vender uma variedade mais ampla de serviços financeiros. ”
Além disso, o relatório revelou que existe uma gama crescente de novas oportunidades de trabalho para analistas de big data, analistas de suporte à tomada de decisão, operadores de veículos de controle remoto, especialistas em experiência do cliente, ajudantes de saúde preventiva personalizada e acompanhantes online (gestão de riscos online como roubo de identidade, danos à reputação, bullyinge assédio nas redes sociais e fraude na internet). Esses empregos talvez não existam no seu setor. Mas talvez, por outros motivos, este seja o momento perfeito para você repensar a forma e o caráter de sua força de trabalho. Esse novo pensamento pode gerar uma nova agenda de desenvolvimento de recursos humanos, enfatizando as capacidades humanas inatas que podem fornecer uma estratégia renovada de sucesso tecnológico e humano.
Como dizia Wise, a criadora de robôs, a tecnologia em si é apenas uma ferramenta que os líderes usam da forma que lhes parece mais apropriada. Podemos escolher usar a IA e outras tecnologias emergentes para substituir o trabalho humano, ou podemos optar por usá-las para ampliá-lo. “Seu computador não causa sua demissão, seu robô não causa sua demissão”, disse ela. “As empresas que possuem essas tecnologias fazem e definem as políticas sociais que mudam a força de trabalho”.
* Joseph Pistrui é professor de gestão empresarial da IE Business School, em Madri. Ele também lidera o projeto global Nextsensing.
Cristovam Buarque: É a educação, gente!
A educação de um indivíduo não o faz mais honesto, mas a educação de todos os indivíduos faz um povo mais preparado para eleger pessoas decentes e sem demagogias, e com melhores e mais sérias promessas para o futuro
Quase sempre a permanência de um problema está no entendimento equivocado de suas causas. A pobreza e a concentração da renda continuam, apesar do crescimento econômico, porque é um erro entendê-las como problemas da economia, que seriam superadas pelo aumento da produção e do rendimento.
Ao longo do século 20, o Brasil foi um dos países que mais se desenvolveram, mas a renda se manteve concentrada e o país continua campeão em desigualdade social. Erramos no enfrentamento da questão, ao esperarmos que esse problema seria resolvido pelos economistas e empresários.
Essa não seria uma realidade hoje se antes ela tivesse sida enfrentada pelos educadores e políticos, usando a escola, não as fábricas, como vetor da distribuição de renda. Ela não decorre de seu aumento, mas da distribuição da educação entre todos; para que todos tenham acesso aos empregos e às atividades que propiciam a renda.
Sem distribuição de educação, não há distribuição de renda, porque sem educação o trabalho livre é uma ilusão, mantendo-se, portanto, a estrutura distributiva característica de sistemas servis. Por mais que o crescimento econômico levasse ao aumento da renda social, ela não seria distribuída para os escravos. O trabalhador pobre, mesmo livre da escravidão, continua incapaz de se inserir no mercado de trabalho porque, para isso, ele depende da educação a que não teve acesso.
Entretanto, se a educação fosse bem distribuída, como em Cuba, Coreia do Norte, Alemanha Oriental, o problema da concentração se resolveria, mas todos ficariam condenados à pobreza. A frase “é preciso fazer o bolo antes de distribuí-lo” não funciona no Brasil; assim como também não funciona a frase “a distribuição antecipada faz o bolo”.
Erramos ao acreditarmos que a economia colocaria um fim à pobreza social. Ao longo do século 20, conseguimos crescer ao ponto de nos tornarmos o sexto maior PIB do mundo, mas continuamos pobres, na 98ª posição mundial em renda per capita, porque nossa produtividade está em 78º lugar no ranking.
A renda social cresceu com a população, não com a capacidade de cada brasileiro de produzir. Enfrentamos o fim da pobreza pela economia e não pela formação de mão de obra qualificada. Com isso, a pobreza se manteve. Ao lado da baixa produtividade, não crescemos mais por causa da enorme preferência nacional pelo consumo imediato e pela baixa propensão nacional à poupança, o que impede investimentos que dinamizariam a produção.
Nós, economistas, fracassamos por não levarmos em conta que o problema não decorre da economia, mas da mentalidade nacional, da consciência, da educação que forma o individualismo, o consumismo, o corporativismo.
A pobreza, a concentração de renda, as visões imediatistas, consumistas e individualistas, sem um sentimento coletivo de nação, levariam quase que fatalmente ao maior de nossos problemas: a brutal violência que caracteriza a sociedade atual. Mais uma vez, por erro de foco, enfrentamos a violência como uma questão de polícia, não de escola.
Décadas atrás, nossos educacionistas, especialmente Darcy Ribeiro, alertaram para o fato de que o problema da violência não seria enfrentado corretamente enquanto fosse tratado apenas como uma questão de polícia. A violência, assim como a pobreza e a concentração de renda, é uma questão de impunidade, mas é, sobretudo, a educação que reduz a desigualdade e forma uma sociedade civilizada e pacífica.
A corrupção está, finalmente, sendo enfrentada por juízes, policiais, promotores e procuradores, mas não será vencida enquanto não for enfrentada pelos eleitores. O juiz consegue prender político corrupto, mas não elege político honesto. Isso só vai acontecer quando o eleitor for educado: primeiro, para não precisar sobreviver das promessas dos candidatos e dos favores de eleitos; segundo, para discernir as diferenças entre os candidatos.
A educação de um indivíduo não o faz mais honesto, mas a educação de todos os indivíduos faz um povo mais preparado para eleger pessoas decentes e sem demagogias, e com melhores e mais sérias promessas para o futuro. Há décadas tentamos garantir competitividade sem produtividade, usando subsídios, isenções fiscais e protecionismos. Na economia moderna, a competitividade só vem da produtividade e da inovação, que dependem da ciência e da tecnologia. Essas, por sua vez, dependem diretamente da educação de base.
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Uma megacidade na qual nasceram gigantes como Huawei e Tencent. Jovem, super-rápida e competitiva
1. A eficiência é vida
"Shenzhen está muito bem", diz Eric Hu. “Se você consegue sobreviver a ela”. Fala rápido. Pensa rápido. Tem o cabelo esvoaçante, camiseta surrada, tênis. Olha seu celular com frequência, um Huawei, marca chinesa, e com orgulho: “O iPhone”, diz, “é um lixo”. É noite neste lado do mundo e ele dirige seu Audi Q5, em cujo retrovisor dançam dois bichinhos de pelúcia Hello Kitty. Quer mostrar algo no centro desta cidade enorme, símbolo do capitalismo asiático, uma espécie de Eldorado tecnológico onde os recém-chegados buscam imitar os fundadores das grandes empresas do país. Aqui nasceram gigantes como Huawei, segunda produtora mundial de telefones inteligentes e líder em redes de telecomunicações, e Tencent, uma das maiores empresas de Internet do planeta, criadora do WeChat, o WhatsApp chinês, com 1 bilhão de usuários. Mas há outras 8.000 empresas de alta tecnologia. O setor contribui com 40% da economia da cidade. E esse PIB é monstruoso: o de Shenzhen disputa com o da Irlanda; o da região, conhecida como o Delta do Rio da Pérola, que inclui outros oito centros urbanos da China e as regiões especiais de Hong Kong e Macau, é equiparável ao de toda a Rússia.
Entre guinadas no volante, Hu vai enviando mensagens de voz através do WeChat (o “WhatsApp é outro lixo”). Fundou há três anos uma start-up de drones resistentes à água chamada Swellpro. Criações de engenharia com oito patentes próprias e uma câmera 4K para gravar cenas marítimas. São vendidas pelo equivalente a 6.140 reais. A maioria acaba no Ocidente. Muitas, em mãos de pessoas endinheiradas com barcos ou iates. Mas nascem em uma zona poeirenta, nos arredores, onde passam caminhões, os operários muito jovens dormem em apartamentos ao lado das fábricas e encontramos, ao caminhar por suas ruelas, todo tipo de negócios de manufaturas tecnológicas. Shenzhen, conta, é o melhor lugar para a inovação. Com uma rede de fornecedores de componentes eletrônicos inigualável. “Atrai pessoas jovens, educadas, enérgicas”, diz Hu. “Vai a toda a velocidade. A concorrência é altíssima.” Os arranha-céus brilham através da janela. “Este foi erguido há dois anos”, aponta. Atravessa uma área de livre comércio recém-aberta pelo Governo. Vias engarrafadas. Carros caros. E, no fim, para. Desce e aponta a inscrição em algumas pedras. Em caracteres chineses se lê a filosofia que define a cidade: “Tempo é dinheiro. A eficiência é a vida”.
O óculos emite uma vibração que, em contato com um
osso de seu crânio, faz com que a escute dentro da cabeça JAMES RAJOTTE
Hu nasceu em 1980, ano em que Deng Xiaoping transformou Shenzhen na primeira zona econômica especial do país. Uma porta aberta ao liberalismo, à iniciativa privada. Um experimento da China do futuro. A cidade era uma vila de pescadores com 30.000 habitantes. Hoje, no censo oficial beira os 12 milhões; no extraoficial alcança 20. Uma locomotiva à qual chegam centenas de milhares de trabalhadores arrojados todo o ano. Engenheiros altamente qualificados, legiões de operários. Não se vê um rosto velho na rua. A idade média ronda os 28. Em Shenzhen quase ninguém é de Shenzhen. Ele cresceu em uma zona rural da província, entre galinhas e plantações de arroz. Estudou engenharia, trabalhou em uma fábrica de celulares da Samsung (na região estão muitas das megafábricas do mundo) e em 2005 se mudou para a cidade para tentar a sorte. Lapidou o inglês vendendo USB e câmeras. Depois passou a trabalhar por conta própria. Seu negócio, explica, consiste em “desenvolver produtos: não algo barato, mas inovador, alta tecnologia”. Esboça ideias: seus engenheiros projetam e montam até chegar a um protótipo. Seu último invento é um projetor portátil do tamanho de um punho. Shenzhen, explica, é o paraíso do hardware. O físico, o artefato. Com um ecossistema superveloz onde a passagem da ideia à produção em série ocorre em um suspiro e quase na mesma quadra. E enquanto sonha em dar a grande tacada, lembra com nostalgia de seu primeiro apartamento dividido, em um bairro do qual hoje não resta senão o templo budista. Ali agora se erguem os arranha-céus do parque tecnológico, com cerca de 1.300 empresas; uma centena delas cotada em Bolsa.
2. O gigante tecnológico
Yu Chengdond entra na sala de reuniões sem gravata e seguido por uma secretária com saltos altos e brinquedos de pelúcia pendurados do celular. Cumprimenta em espanhol. Fala um inglês duro. É o executivo-chefe de uma das três ramificações da Huawei, a divisão de telefones e outros produtos de consumo. Representa um terço da receita da multinacional, cujo faturamento beira os 250 bilhões de reais, conta com 180.000 funcionários em 170 países e lidera o mercado de celulares na China. Na Espanha disputa ferrenhamente com a Samsung o primeiro lugar. No mundo, o ombro a ombro é contra a Apple, ambas atrás da Samsung. O CEO afirma que a empresa não teria existido se não tivesse nascido em Shenzhen: “Há 30 anos, quando a China não era tão aberta, se transformou em uma cidade de acolhida. Capitalista no econômico, não no político. De estilo ocidental. Onde se podia desenvolver uma gestão moderna”. Ele, engenheiro da Universidade de TsingHua, “o MIT chinês”, se uniu à empresa em 1993, quando começava a desenvolver infraestrutura telefônica. A Huawei foi fundada em 1987 pelo ex-militar Ren Zhengfei com apenas 19.000 reais. Uma empresa privada cuja primeira sede ficava entre plantações. Hoje se transferiram para um campus tecnológico de 200 hectares nos arredores da cidade, com universidade própria, apartamentos para trabalhadores, jardins zen e vans que transportam os funcionários de um edifício a outro com o ar condicionado no máximo. Mas não estão satisfeitos. “Podemos fazer melhor”, disse Yu. E para mostrar que se empenham nisso convidaram à sua sede cinquenta instagramers, youtubers e jornalistas ocidentais (entre os quais o EL PAÍS). Segundo o CEO, “nosso problema não é a inovação. Nisso somos fortes. O grande desafio é que não somos uma marca conhecida. Ninguém a conhece”. O marketing, a grande tragédia chinesa. Uma luta contra si mesmos para passar de sinônimo de produto barato ao de artigo de alta qualidade.
Os europeus Kristina Cahojova e Hynek Jemelik, inventores
de um medidor de fertilidade feminina, criaram seus produtos na
aceleradora de ‘start-ups’ HAX, Shenzhen JAMES RAJOTTE
Durante dois dias de conferências e powerpoints no interior de um moderno bloco envidraçado que, visto em panorâmica, tem a forma de uma chave, diretores desfiam detalhes de seu próximo lançamento, o celular Mate 10, cujo chip Kirin 970, afirmam, imita o cérebro humano: “Unidade de processamento neuronal”, o chamam. O telefone, prestes a ser lançado (foi colocado à venda em outubro), está trancado em uma maleta com três fechaduras (numérica, de chave e bluetooth), colocam luvas brancas para tocar nele, pedem a assinatura de contratos de confidencialidade antes que se possa dar uma olhada. E em cada pausa projetam anúncios nos quais uma voz sensual de mulher sussurra sonhos eletrônicos.
Também decidiram abrir suas portas para mostrar uma face transparente, dinâmica, que lembre as concorrentes norte-americanas. Percorremos laboratórios onde engenheiros com avental de trabalho trituram equipamentos e terminais para medir sua resistência. Nas instalações há cartazes que avisam: “Prestem atenção às informações sobre segurança para proteger nossas patentes”. Uma visita rápida atravessando corredores intermináveis e desertos de mármore. Nunca oficinas com trabalhadores. É proibido tirar fotos na maioria das salas. E, ao contrário do mundo que se imagina, digamos, no Google, veem-se mesas de pingue-pongue, mas sem rede. Piscinas paradisíacas com horários estritos. Mesas de bilhar cobertas. Para quem é de fora não é permitido conversar com funcionários de forma espontânea. E o engenheiro autorizado a falar, sob o olhar de seus chefes, responde assim sobre suas aspirações pessoais: “São parecidas com o slogan da empresa: construir um mundo mais conectado”. O controle é férreo. “É uma empresa militar”, ironiza um financista que conhece o setor, referindo-se aos anos de juventude de seu fundador no Exército Popular.
Se não quer falar sem barreiras com um funcionário da Huawei, melhor ir a uma Pizza Hut mais próxima do campus. Em uma mesa há quatro profissionais de telecomunicações estrangeiros. “Somos a ONU”, brincam. Vêm de Brunei, Sri Lanka, Egito e Costa do Marfim. Especialistas em redes, vieram passar por um treinamento na sede. Suspiram porque desde que aterrissaram não puderam olhar o Facebook, e o WhatsApp funciona só por breves momentos: esqueceram-se de instalar no celular, antes de viajar, uma VPN (rede privada virtual), com a qual os usuários contornam diariamente a grande muralha chinesa da Internet e têm acesso ao outro lado da censura. Não se deve esquecer onde estamos. Nem a proximidade nesses dias do XIX Congresso Nacional do Partido Comunista da China: a imprensa regional fala na necessidade de “erradicar rumores políticos online”. Durante a refeição, quando por fim conseguem se conectar com o outro lado, o egípcio exclama: “Sou livre!”. O grito soa estranho na boca dos criadores do sistema. Mas esta é uma cidade de contradições, onde convivem as multinacionais de fast food e as bandeiras comunistas em cada avenida.
Uma funcionária da Tencent, criadora do WeChat e uma das maiores
empresas de Internet do mundo, fundada em ShenzhenJAMES RAJOTTE
3. Os inventores
Se no Vale do Silício se sonha nas garagens, muitos dos recém-chegados a Shenzhen com pretensões digitais se acomodam em apartamentos de Baishizhou, um bairro labiríntico, de estrutura medieval e com algazarra da rua, e com velhos edifícios de pouca altura de cujas janelas se pode dar a mão ao vizinho do bloco ao lado. Conta com cerca de 150.000 habitantes, 20 vezes a densidade da população do resto da cidade. E em seus meandros se misturam jogadores de mahjong, vendedores de lichia e de peixes vivos, depenadores de patos, emaranhado de cabos que pendem até o chão como trepadeiras e jovens hipsters que voltam da prática de esportes no meio da tarde. A área ficou cercada por arranha-céus. E já existe um plano para derrubá-la e erguer sobre seus escombros torres de vidro e aço.
Shenzhen é o centro urbano que mais depressa se transformou em uma megalópole na história, segundo Juan Du, professora de arquitetura na Universidade de Hong Kong. Em 1979 nem sequer contava com o status de cidade. Hoje possui 49 edifícios que superam os 200 metros de altura, incluindo o segundo mais alto do país, de quase 600 metros. E há outros 48 a caminho. O fervor imobiliário a transformou na bolha mais cara da China: o metro quadrado custa 21.000 reais em média. E as chengzhongcun (“aldeias no meio da cidade”) ficaram como testemunhas anãs da era em que tudo começou. Nelas, os aluguéis ainda são aceitáveis e atraem pessoas como Eli MacKinnon, de 28 anos, um nova-iorquino que trabalha na Insta360, uma start-up local que fabrica câmeras de realidade virtual.
MacKinnon fala chinês com fluência, se arranja com seu porte atlético, mas ficou velho: o fundador da empresa, JK Liu, tem 26 anos. E a idade média entre seus 250 funcionários é de 24. O ambiente de trabalho na sede impressiona: jovens, quase adolescentes, teclam concentrados, sentados em fileiras em uma sala com enormes janelas através das quais se veem edifícios no meio da obra. Muitos têm grandes objetos de pelúcia ao lado do teclado: Explica-se: são almofadas. Na hora da refeição, as luzes são apagadas, colocam a almofada sobre a mesa de trabalho e tiram uma soneca. Depois continuam trabalhando.
A inscrição define a filosofia da cidade: “Tempo é dinheiro. A eficiência é a vida” JAMES RAJOTTE
A empresa nasceu em 2014 e a história de seu fundador já apareceu na Forbes: JK Liu se mudou para Shenzhen com colegas da Universidade de Nanjing, convenceram uma empresa de capital de risco a investir neles e acabaram criando câmeras portáteis, acessíveis, que se acoplam ao celular e captam o mundo em 360 graus. Depois de um período em sua sede, entre óculos de realidade virtual e bolas futuristas com visão de peixe, dá a sensação de que as imagens governarão o planeta em breve. MacKinnon nos guia através de um terraço, na unidade 29, para mostrar as maravilhas que podem ser feitas com os inventos: registrar cenas tipo Matrix, mas quais o retratado fica congelado. Selfies em que a pessoa parece contida em uma esfera. Do alto se escutam as perfurações incessantes das obras. Um som envolvente, também em 360 graus. Quando se fecha os olhos, parece que o chão treme sob os pés. A cidade em estado febril, grunhindo como uma criança em pico de crescimento. Talvez seja o som do capitalismo, o dos impérios em seu apogeu. “Quem chega a Shenzhen vem com a ideia de que pode criar algo por si mesmo”, diz MasKinnon. “De que não há barreiras que não possa saltar. Representa uma verdadeira mudança na mentalidade chinesa.”
Jason Gui representa essa nova China. Tem 26 anos e usa uns óculos que de longe parecem de desenho. Imprimiu-os com uma máquina 3D. Toca com o dedo uma haste e começam a emitir a música de seu celular, ou isso ele diz, porque não se ouve nada: só vibra uma protuberância nas varetas, e essa vibração, em contato com um osso de seu crânio, faz com que a escute dentro da cabeça. Batizou-as à francesa, Vue, mas ele nasceu em Shenzhen. Sua família se mudou do interior da China. Deram-se bem, aproveitaram anos de boom imobiliário e ele estudou na Austrália, Nova Zelândia e Estados Unidos. Passa metade do ano em San Francisco, onde se encontra o ramo de marketing e design de sua empresa, e a outra em Shenzhen, onde tem a parte de P+D neste espaço chamado Hax, uma aceleradora de start-ups com capital norte-americano, para cuja sede acorrem empreendedores de meio mundo para aperfeiçoar protótipos em suas oficinas repletas de cabos. Entre telas, levanta o rosto uma dupla de taiwaneses, magrinhos e de aparência infantil, inventores de uma máquina para se jogar pingue-pongue sozinho; ou o grego George Kalligeros, engenheiro de 24 anos, com experiência na Tesla e Bentley, criador de um dispositivo que converte “em minutos” qualquer bicicleta em uma elétrica. Aqui não vale o etéreo. A tônica é o hardware, produtos físicos que são melhorados até se encontrar o design perfeito. Os criadores mostram seus inventos recém-saídos do forno, como esta espécie de fruto da cor do céu, “pequeno e sexy”, diz sua autora, a checa Kristina Cahojova, de 28 anos, que chegou há um mês, e em 10 dias tinha pronto seu medidor da fertilidade feminina. Dá muito que pensar o potencial de um aparelho semelhante conectado ao celular, à Internet: “Que tipo de compras o Google vai te sugerir em dias férteis? Que música? Que restaurantes? No fundo, é disso que trata o negócio. De milhões de dispositivos conectados, gerando informação sobre padrões de vida. Os especialistas chamam de IoT, a Internet das coisas, na sigla em inglês.
Bay McLaughlin, cofundador da BRINC, uma aceleradora de 'start-ups'
tecnológicas com sede em Hong Kong. Trabalhou 10 anos no Vale do Silício até que
percebeu que a revolução seguinte, a do hardware, aconteceria no sul da China JAMES RAJOTTE
4. Hong Kong
De Iot entende bastante Bay McLaughlin, norte-americano de 34 anos, boné de sufista e olhar messiânico, que trabalhou 10 anos no Vale do Silício, 6 deles na Apple, até que se deu conta de que vivia no dia da marmota: “Deixou de haver inovação. Repetiam-se os mesmos pitches, as mesmas ideias, modelos, investidores. Então surgiu uma nova tendência: o hardware. E vi claramente. Se quisesse participar da revolução seguinte, precisava vir ao sul da China. Porque não vai acontecer no Vale do Silício. Tudo o que tiver impacto virá da Ásia. E a China vai ser a locomotiva”. Mas não se instalou em Shenzhen, e sim na cidade vizinha, já quase a mesma, a 30 quilômetros em linha reta, e separada por uma fronteira que 80 milhões de pessoas cruzam por ano: Hong Kong, “a face ocidental da China”, assim a chama, uma das praças financeiras mais poderosas, em cujas ruas se misturam as raças, os dialetos, os investimentos; a região administrativa especial, democrática, futurista, onde se dirige pela mão esquerda, vigora uma lei baseada na common law e se completam 20 anos desde que foi devolvida pelo Reino Unido. Hoje faz parte do plano mestre de Pequim para o Delta do Rio da Pérola, esse conglomerado de cidades que desembocam no Mar do Sul, ao qual também pertence Shenzhen. Juntas somam 66 milhões de habitantes e pouco a pouco vão se unindo com trens de alta velocidade, pontes quilométricas e acordos de livre comércio, formando a maior megacidade do planeta.
McLaughlin é cofundador de uma aceleradora de start-ups no estilo da HAX. A sua se chama BRINC e tem a vantagem, diz, de estar deste lado da censura chinesa, com a propriedade intelectual bem protegida, e a um passinho de Shezhen, o paraíso de componentes eletrônicos ao qual os recém-chegados acodem para montar seus protótipos. É o que conta Florian Simmendinger, alemão de 28 anos, cofundador da Soundbrenner, uma empresa que desenvolveu metrônomos digitais em forma de relógio de pulso. O artefato vibra e marca o ritmo no pulso, um engenho interessante para grupos de música: seu tam-tam sincroniza todos os membros. A ideia começou em Berlim; desenvolveram protótipos de forma precária. O primeiro, que abre em uma mesa, é grande e feio. Parece um aparelho para medir a pressão sanguínea. Para aperfeiçoá-lo, precisavam de melhores motores de vibração. “Na maior loja de eletrônicos de Berlim encontramos apenas um modelo. Começamos a encomendá-los no eBay, mas chegavam três semanas depois”.
O BRINC os selecionou para seu programa, o que envolve um investimento e uma transferência para Hong Kong, onde fazem cursos, recebem ajuda e um espaço para desenvolver o negócio. Assim que aterrissaram, atravessaram Shenzhen e entraram no epicentro do ecossistema de componentes eletrônicos, o mercado Huaqiangbei. O lugar lembra um formigueiro, do qual entram e saem vendedores e clientes vão e vem empurrando carrinhos com sacos de chips, placas, interruptores. Tem um aspecto que está entre uma loja de departamentos e um mercado atacadista de verduras, mas com andares dedicados a áudio, leds, telefonia, informática. Dentro, se ouve constantemente o ruído da fita adesiva fechando embalagens, porque tudo parece ser vendido em caixas, a granel; é possível fazer uma réplica quase exata do iPhone procurando peças nas bancas. O alemão ficou impressionado: “Uma velhinha me ofereceu 300 motores de vibração diferentes em um carrinho. Pensei: “Viemos ao lugar certo”. Na semana, visitaram o fabricante dos motores e pediram um sob medida. “E em dois meses nós o transformamos nisso”. Deixa sobre a mesa essa espécie de relógio de pulso que vibra e acompanha com seu tam-tam as bandas ao redor do mundo: venderam cerca de 40.000 unidades.
Yu Chengdong, CEO da Huawei JAMES RAJOTTE
O ritmo. Sobre isso também gosta de falar o surfista McLaughlin, cujo discurso augura um futuro estilo Blade Runner, em que o tempo, claro, é dinheiro e a eficiência é a vida: “O Ocidente não percebe isso. As pessoas aqui estão trabalhando muito duro. Bem-vindos à nova norma. Você acha que a Suécia é o mundo real? Estão fodidos. Não é que os europeus não gostem de trabalhar. Lá foi doutrinado que o equilíbrio é mais importante do que a produtividade. E é muito bom se o mundo vai nesse ritmo. Mas, adivinhe, ele mudou. Agora é global. E a Europa nem aparece no gráfico”. Nesse mundo que vislumbra, cujo magma está sob seus pés, marcado por horários diferentes, cruzamentos de idiomas e o encontro entre Leste e Oeste, o hardware, diz ele, é a chave. A Internet das coisas. E os dados que geram essas coisas. No momento, existe cerca de 1 bilhão de objetos conectados à Internet. Os cálculos mais exagerados apontam que haverá 100 bilhões em 2020. Um “superorganismo” diz um relatório da OCDE, que formará um “sistema nervoso digital global”. Com impulsos de informação individual atualizados a cada segundo. “A maior revolução desde a Internet”, segundo McLaughlin. Na opinião dele, “o software nos torna leves. Porque significa que você pode criar o Instagram enquanto está sentado em um porão. Mas tampouco é o mundo real. O mundo real é físico. Todos falam de big data e inteligência artificial. Bem, como coletamos os dados dos objetos físicos? É por isso que no BRINC começamos onde começa o valor. Com o hardware. Precisamos introduzir mais wearables, mais sensores, mais produtos domésticos inteligentes. Para extrair os dados e entregá-los aos especialistas em algoritmos para que possam explorá-los”.
5. O novo ouro
Os dados, hoje, são mais valiosos do que o ouro”, sorri David Chang, diretor da MindWorks, empresa de capital de risco com sede em Hong Kong e focada nas start-ups da China. Chang também migrou de Silicon Valley para esta terra. Sua família era dona do banco Kwong on em Hong Kong (eles o venderam para a DBS). Seu pai foi um investidor destacado nos Estados Unidos, discípulo de Arthur Rock, a quem se atribui ter cunhado o termo venture capital e apostado em uma das primeiras empresas de semicondutores de silício na Califórnia nos anos cinquenta, aquelas que moldaram o nome Silicon Valley. Chang, de 34 anos, nasceu em Mountain View. Frequentou a mesma escola que Steve Jobs. Voltou para casa porque daqui, garante, em um raio de três horas de avião, se tem acesso a 2,2 bilhões de pessoas. “É 30% da humanidade. Deixo vocês por um momento para que meditem sobre isso”.
Mercado de eletrônicos no bairro de Huaqiangbei, em Shenzhen JAMES RAJOTTE
Depois da pausa dramática, acrescenta que 70% dessa população ainda não possui Internet. E que na próxima década, 1,3 bilhão de pessoas se conectará à Rede. “Uma loucura, como se toda a China se conectasse de repente”. Ele chama isso de “a próxima grande onda”. E quer surfá-la. Gerencia um fundo de 70 milhões de euros. Investiu em diferentes start-ups, como LaLa Move, um serviço de compartilhamento de carros tipo Uber, mas para mercadorias. Passar uma tarde com ele é como abrir um zíper e enfiar o nariz numa dimensão futura em que o eixo do mundo gravita em direção à Ásia. Fala sobre o guanxi, as relações de confiança necessárias para entrar nos investimentos chineses (e que ele conquistou nas filiais locais do Morgan Stanley e do Credit Suisse). Sobre a maneira como se deve lidar com o Governo. Sobre a diferença entre investir em software e em hardware (prefere o soft: custos fixos, maior retorno e em menos tempo). E por que muitos serviços de Internet não custam um tostão: “Se te oferecem algo de graça é porque você é o produto. Se você usa o Facebook ou o WeChat, você é o produto”.
Então ele nos convida para ir ao China Club, na cobertura da antiga sede do Banco da China. Pede um dedo de whisky e, entre pequenos goles, instalado em uma poltrona de brocado e cercado por uma decoração tipo Shanghai anos quarenta, se define como um “glocal”, fala do preço estratosférico do mercado imobiliário e de arrisca que, no caso de um apocalipse nuclear estilo Kim Jong-un, apenas as bitcoins sobreviverão. Aconselha a comprar. Define essa região como “o centro do comércio mundial” e Shenzhen como uma cidade “crua, o wild wild West”. E a cobertura parece estar a anos-luz das fábricas empoeiradas de Shenzhen, onde tudo começa e faz girar a roda. Na saída, um cartaz de propaganda comunista, que o dono do lugar coleciona e hoje custa uma fortuna, lembra essa origem. No desenho, um homem chinês com um chapéu de palha diante de uma fábrica. E um lema: “Rompamos com as convenções estrangeiras. Tracemos o nosso próprio caminho para o desenvolvimento industrial”.
Ivan dos Santos Oliveira: Computador quântico já está chegando e vai levar tecnologia a uma nova era
Os computadores quânticos, ao que tudo indica, serão capazes de resolver em segundos problemas que levariam até bilhões de anos para o mais potente dos supercomputadores atuais. Os novos processadores permitirão uma revolução tecnológica e científica difícil de conceber. Mas quão perto estamos dessa fronteira?
Há 70 anos, cientistas da empresa Bell Telephone inventaram o dispositivo que iria revolucionar para sempre a informática, os meios de comunicação e a forma como a informação é processada e transmitida: o transistor, talvez o componente eletrônico mais conhecido da história.
O transistor substituiu as volumosas válvulas nos então recém-criados computadores, iniciando assim o processo de miniaturização da eletrônica.
O desenvolvimento desse pequeno dispositivo rendeu o Prêmio Nobel de Física de 1956 aos americanos Walter Brattain (1902-1987), William Shockley (1910-1989) e John Bardeen (1908-1991) –este último, em parceria com os também americanos Leon Cooper (1930-) e John Schrieffer (1931-), ainda ganharia o Nobel de Física (1972) pela teoria sobre supercondutores, materiais que conduzem eletricidade sem dissipar calor.
Curiosamente, os materiais supercondutores despontam como uma das tecnologias mais promissoras em uma das áreas mais quentes na pesquisa científica: a construção dos chamados chips quânticos. Eles são o cérebro de um novo tipo de computador que, tudo indica, será capaz de resolver em segundos problemas que levariam até bilhões de anos (sim, bilhões!) para o mais potente dos supercomputadores atuais.
Essas duas contribuições fundamentais fazem de Bardeen um protagonista da história que nos leva ao desenvolvimento vertiginoso da computação e da comunicação.
LEI DE MOORE
O ano agora é 1985. O americano Richard Feynman (1918-1988) —também Nobel de Física (1965)— afirma num artigo que "as leis da física não impedem que o tamanho dos bits dos computadores chegue a dimensões atômicas, região em que a mecânica quântica detém o controle".
Tradução: bit é a chamada unidade mínima de informação, expressa na forma de "0" e "1" nos computadores atuais, e a mecânica quântica é a teoria –considerada a mais precisa da história– que lida com os fenômenos nas dimensões moleculares, atômicas e subatômicas.
Feynman, que na década de 1950 foi professor visitante do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio, estava muito interessado no que se passou a chamar "computação quântica". A observação no artigo de 1985 fazia referência a uma lei empírica descoberta em 1965 pelo engenheiro americano Gordon Moore (1929-).
A lei de Moore, como ficou conhecida, estabelece que, pelo mesmo custo de fabricação, a capacidade de processamento dos computadores aproximadamente dobra a cada ano e meio.
Isso ocorre pois os transistores —componentes eletrônicos que representam os bits nos computadores— têm sua dimensão reduzida à metade a cada ano e meio.
Em termos práticos, a lei de Moore explica por que os microprocessadores, ao longo das últimas quatro décadas, têm aumentado tanto sua capacidade de analisar informação. Um computador da década de 1960 tinha algo como 10 mil transistores (ou bits). Hoje, esse número bate na casa dos bilhões.
Infere-se dessa evolução acelerada a implicação mais impressionante da lei de Moore: por volta de 2020, cada bit terá a dimensão de um único átomo! O ponto de exclamação é quase irresistível: em meados da década de 1960, um bit tinha o tamanho de 10 quintilhões de átomos (isto é, 10.000.000.000.000.000.000).
Essa lei tecnológica tem outra consequência de extrema importância. A física que usamos no cotidiano e que serve para estudar objetos com tamanhos de bolas de futebol, carros e aviões deve obrigatoriamente sair de cena. Na dimensão atômica, é preciso recorrer à mecânica quântica —será este o caso do transistor formado por um único átomo. Decorrem daí os termos bit quântico e computador quântico.
Essa mudança implicará tremendo salto para a humanidade. Um bit de informação que, até este momento, era representado por um objeto contendo bilhões de átomos ligados quimicamente uns aos outros passará ao domínio nanoscópico, ou seja, atômico. E nada impede que um bit futuro tenha a representação de ordem subatômica.
A CAMINHO
Agora, nosso diário de bordo marca o ano de 2016. Um grupo de cientistas do Laboratório Nacional Lawrence em Berkeley (EUA) reporta, na revista "Science", a construção de um transistor medindo menos que 7 bilionésimos de metro (7 nanômetros) —para comparação, um fio de cabelo tem diâmetro cerca de 10 mil vezes maior.
Mas o que chama a atenção vem agora: uma das partes desse transistor é feita por um nanotubo de carbono com apenas 1 nanômetro de diâmetro —dimensão típica de espaços atômicos. Esse nanodispositivo eletrônico é construído com dissulfeto de molibdênio, em substituição aos tradicionais semicondutores da indústria de informática.
Possível conclusão: tudo indica que a lei de Moore irá cumprir sua promessa.
Voltemos alguns meses em relação à data que consta nesta edição da "Ilustríssima". A IBM anuncia que está disponibilizando "na nuvem" um protótipo de computador quântico baseado em tecnologia de supercondutores e que pode ser acessado por usuários do mundo todo.
Google e Microsoft anunciam investimentos volumosos em computação quântica. Na Europa, um megaprojeto com investimentos de 1 bilhão de euros também é anunciado nessa área.
Empresas de tecnologia quântica pipocam em toda parte.
A americana Magic-Q comercializa sistemas de criptografia quântica desde 2002, competindo com a suíça ID Quantique, que faz a mesma coisa desde 2001. Em 1999, a canadense D-Wave anunciou o primeiro modelo de computador que usa tecnologia quântica em sua forma de processamento.
A americana Ion-Q, fundada em 2015, explora tecnologia de aprisionamento de átomos para a computação quântica. A China e a Austrália são outros dois países que estão investindo pesado no setor.
Estima-se que até 2024 o mercado mundial para a computação quântica ultrapasse os US$ 10 bilhões.
Como se vê, a computação e a comunicação quânticas não são mais promessas vagas nem cálculos matemáticos abstratos feitos por físicos teóricos, mas realidades tecnológicas e comerciais que em breve irão interferir diretamente nos nossos costumes e em todos os ramos da atividade humana, da mesma forma que o fizeram os computadores que passamos a conhecer a partir de 1947.
REVOLUÇÃO
A esta altura, cabe perguntar: o que os computadores quânticos podem fazer de diferente? Resposta: tudo.
Computadores são ferramentas essenciais para o avanço científico e tecnológico, com aplicações praticamente ilimitadas. De fato, é impossível imaginar a sociedade hoje em dia sem essa máquina maravilhosa.
Para ficar em apenas um caso, computadores controlam o espaço aéreo e o fluxo de aviões nos aeroportos, ajudam nos projetos para a construção de novas aeronaves e até na arquitetura das novas gerações de computadores que irão realizar essas mesmas tarefas com mais rapidez e eficiência. Mais: fazem previsões das condições meteorológicas ao longo das rotas e monitoram inúmeros sensores que dão segurança ao voo.
Quanto mais os computadores evoluem, mais se tornam indispensáveis. Seu telefone celular, por exemplo, provavelmente faz um computador da década de 1990 parecer uma carroça velha. A velocidade de um processador de 25 anos atrás era de 25 MHz; a de um celular fica em torno de 2 GHz, cem vezes maior.
Ainda assim, existe um tipo de tarefa que é extremamente difícil —na verdade, impossível— para os computadores com a tecnologia atual: simular a própria natureza.
Os cientistas estão muito interessados em simular o comportamento de sistemas naturais, como uma reação química de uma molécula em um fármaco ou as possíveis mudanças no movimento das correntes marítimas e atmosféricas causadas pelo aquecimento global.
Nesse contexto, "simular" significa reproduzir no computador exatamente o comportamento natural do fenômeno, com o maior número possível de detalhes. Isso é importante porque permite aos cientistas fazer previsões acuradas, projetar novos medicamentos etc.
O problema é que, se todos os detalhes forem levados em conta, a simulação se torna tão complexa que ultrapassa a capacidade de processamento e armazenamento dos computadores existentes —mesmo a dos supercomputadores.
A saída usada pelos cientistas e engenheiros é simplificar o problema ou, como se diz no jargão da ciência, fazer aproximações. E, com aproximações, parte importante da informação se perde.
Um computador quântico, contudo, é capaz de fazer simulações de sistemas naturais sem aproximações. Feynman (de novo) considerava que a própria natureza é um computador quântico simulando os fenômenos que observamos –para dar toques filosóficos à discussão, inclusive nós, seres humanos.
PARECE MÁGICA
Em geral, fenômenos quânticos são associados apenas ao mundo microscópico, de átomos, moléculas e partículas elementares. Isso é um erro. Eles estão por toda parte; a própria estrutura da matéria, como a vemos e sentimos no cotidiano, é resultado direto das leis que regem o mundo quântico.
Sem usar a física quântica, é impossível explicar por que o cobre conduz eletricidade, e o diamante não. Sem lançar mão de suas leis, é impossível explicar a estrutura das ligações químicas que dão origem às moléculas –e, em última análise, a tudo que existe no mundo físico.
Porém, para fins de computação e comunicação, é preciso controlar alguns fenômenos quânticos que mais parecem truques de mágica —e aqui as coisas começam a ficar ainda mais interessantes (e estranhas).
De onde vem a mágica? O conceito mais importante para entendermos como os computadores quânticos funcionam é o de correlação, muito usado por estatísticos em problemas envolvendo probabilidades.
Quando dois objetos estão correlacionados, a observação de uma propriedade de um deles fornece informação sobre uma propriedade do outro —pouco importa a distância entre ambos.
Suponha, por exemplo, que tenhamos uma bola de bilhar branca em uma caixa opaca fechada e uma bola preta em outra caixa idêntica, também fechada. Não se sabe em qual caixa está a bola branca ou a preta. Uma das caixas é entregue ao sujeito A, e a outra, ao sujeito B.
Agora, eles se afastam um do outro, de tal modo que não haja contato entre eles. O sujeito A recebe a instrução de abrir sua caixa e verificar a cor da bola. Antes dessa operação, ele só sabe que há 50% de chance de a bola ser preta e o mesmo percentual de ela ser branca. Ele abre a caixa e verifica que a bola é branca.
No mesmo momento, ele ganha informação sobre a bola que está com B, que, com sua caixa ainda fechada, não sabe a cor de sua bola. Não há interação entre A e B, mas a correlação entre as cores das bolas permitiu que A obtivesse informação sobre a bola de B.
Façamos uma pequena variação desse experimento. Agora, cada caixa tem duas bolas, uma branca e uma preta. Novamente, A se afasta de B e recebe a instrução de, sem olhar para dentro da caixa, pegar uma das bolas.
Como antes, ele tem 50% de chance de pegar a preta e 50% de chance de pegar a branca. Ele pega uma delas e verifica que é preta. Dessa vez, porém, ele não pode concluir nada sobre que bola B pegará em sua caixa. Dizemos que a correlação estatística que existia antes se perdeu.
EMARANHAMENTO
Se as bolas fossem objetos quânticos (como átomos), seria possível criar uma situação especial na qual todas as vezes em que A retirasse o "átomo preto" de sua caixa, B retiraria o "átomo branco", não importando quantos átomos estivessem nas caixas nem a distância entre elas.
É como se o resultado da ação de A definisse o resultado daquela a ser feita por B, que poderia estar a milhares de quilômetros de distância. Esse tipo de correlação estatística só existe em sistemas quânticos e se chama emaranhamento.
Não raro, o emaranhamento é classificado como o fenômeno mais estranho da natureza. Afinal, como um objeto que está aqui pode interferir instantaneamente no estado de outro objeto localizado a, digamos, bilhões de quilômetros? Não surpreende que o físico de origem alemã Albert Einstein (1879-1955) tenha apelidado esse fenômeno de fantasmagórico.
Em uma interpretação apressada (e errônea), diz-se que o emaranhamento viola o principal resultado da teoria da relatividade: informação não pode ser transmitida com velocidade maior do que a da luz no vácuo (300 mil km/s).
No emaranhamento, contudo, não há transferência de informação clássica, como ocorre com os dados da internet, por exemplo. O que se transmite é o que os físicos denominam informação quântica, algo impalpável, que não carrega matéria nem energia.
Apesar de sua esquisitice, o emaranhamento é o ingrediente mais importante para a computação e a comunicação quânticas. E já foi demonstrado inúmeras vezes em laboratórios pelo mundo todo, inclusive no Brasil.
Neste ano, os chineses fizeram experimentos que demonstram as correlações quânticas (ou seja, o emaranhamento) entre fótons (partículas de luz) separados por 1.200 quilômetros de altura usando um satélite. É a esquisitice do mundo quântico posta em prática.
TELEPORTE
O emaranhamento é o fenômeno responsável pelo processamento paralelo colossal de um computador quântico. Enquanto o bit (unidade de informação clássica) pode ter os valores "0" ou "1", que são mutuamente excludentes, o q-bit processa todas as combinações possíveis de "0" e "1" simultaneamente. É como dizer que uma lâmpada pode estar acesa e apagada ao mesmo tempo.
Não se trata de mero aumento de velocidade em comparação com dispositivos usuais, mas de um novo paradigma de computação.
Esse novo paradigma, além de permitir que problemas complexos sejam resolvidos em segundos, é o responsável pelo fenômeno conhecido como teleporte, no qual a informação quântica desaparece de um lugar e reaparece instantaneamente em outro, sem atravessar o espaço que os separa.
Do emaranhamento também vem a capacidade de estabelecer comunicações absolutamente seguras, à prova de hackers, pois qualquer tentativa de invadir a rede interferiria nesse fenômeno e seria detectada de forma instantânea. O atual sistema de criptografia, por outro lado, será destroçado por um computador quântico de mil q-bits, dada sua enorme capacidade de processamento.
Há ainda um rol de aplicações que estão apenas começando a ser exploradas, como a dos chamados sensores quânticos, capazes de realizar medidas de quantidades físicas com precisão inalcançável para os melhores métodos clássicos.
O funcionamento pleno de um computador quântico também irá revelar soluções até aqui desconhecidas pelos cientistas de problemas de matemática, física, química, biologia e engenharia, com potencial de produzir uma revolução científica e tecnológica ainda maior do que aquela que ocorreu no início do século passado, com a descoberta da teoria da relatividade e da mecânica quântica.
PAÍS SEM FUTURO
Saltemos para 2027. No mundo desenvolvido, computadores quânticos são usados para encontrar poços de petróleo, projetar fármacos, criar materiais, resolver problemas muito complexos de engenharia e matemática, manter a internet à prova de hackers, desenvolver a defesa nacional etc.
O Brasil, porém, mais uma vez ficou de fora de um novo cenário científico-tecnológico (e geopolítico): não tem uma marca de computador quântico, e os poucos que existem no país foram comprados dos EUA, da China, da Inglaterra ou da Austrália a preços exorbitantes. Continuamos dependentes da tecnologia produzida nas nações que compreenderam que ciência deve ser projeto de Estado.
Mantidos os famigerados contingenciamentos para a ciência e a tecnologia no Brasil, naquele 2027, nossos cientistas —trabalhando nos sucateados institutos de pesquisa que ainda restaram— certamente estão implorando por verbas para pagar a conta da energia elétrica usada para manter ligados seus velhos computadores.
Mais uma revolução tecnológica terá passado longe daqui.
* IVAN DOS SANTOS OLIVEIRA JÚNIOR, 56, é doutor em física pela Universidade de Oxford (Reino Unido) e pesquisador titular do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, no Rio de Janeiro.
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/11/1932324-computadores-quanticos-resolverao-em-segundos-problemas-de-anos.shtml
Revista Veja: O Estado inteligente, entrevista com Adrian Wooldridge
Jornalista Adrian Wooldridge afirma que modelo de governo burocrático e inchado precisa ser repensado. A saída, diz ele, virá do uso intenso da tecnologia. Wooldridge foi um dos palestrantes do seminário internacional Desafios Políticos de um Mundo em Intensa Transformação, realizado pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP) em parceira com o Instituto Teotônio Vilela nos dias 14 e 15 de setembro, em São Paulo.
Por Marcelo Sakate
A crise de credibilidade enfrentada por diferentes governos pelo mundo afora é resultado do esgotamento do modelo de Estado consolidado nas últimas décadas. O setor público não consegue corresponder plenamente a todas as suas atribuições, premido pelo excesso de gastos e pela necessidade de sustentar o bem-estar de uma população cada vez mais velha. A sobrevivência das democracias requer uma reformulação dos governos, levando em conta as possibilidades oferecidas pelas novas tecnologias — entre elas, a inteligência artificial. É disso que trata A Quarta Revolução — A Corrida Global para Reinventar o Estado, escrito pelo jornalista e historiador inglês Adrian Wooldridge, em parceria com o jornalista John Micklethwait. Wooldridge foi um dos palestrantes do seminário internacional Desafios Políticos de um Mundo em Intensa Transformação, realizado pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP) em parceira com o Instituto Teotônio Vilela (ITV) nos dias 14 e 15 de setembro, em São Paulo. O livro foi publicado originalmente em 2014, antes, portanto, da vitória de Donald Trump e da decisão britânica de sair da União Europeia. Wooldridge, que é editor da revista The Economist e doutor em filosofia por Oxford, disse que está mais pessimista e que os acontecimentos recentes mostram que a quarta revolução do Estado é necessária para revigorar o apelo e a força da democracia. Ele falou a VEJA por telefone, de Londres.
O que é a quarta revolução?
É uma forma de usar o poder da tecnologia e do pensamento político moderno para disciplinar o Estado. Houve anteriormente três revoluções. Thomas Hobbes argumentou que o papel do Estado era proteger as pessoas da morte, da destruição ou da violência. Em meados do século XIX, os liberais diziam que o Estado tinha de garantir a liberdade das pessoas. Beatrice e Sidney Webb, no fim do século XIX, afirmaram que o Estado deveria providenciar o bem-estar das pessoas. Era uma resposta socialista. Houve mais tarde uma reação parcial com Margaret Thatcher e Ronald Reagan, para os quais o Estado havia ficado grande demais, mas não foi propriamente uma revolução. Chegou a hora de uma quarta revolução. As atribuições do Estado precisam ser avaliadas. Parte da transformação reside no uso da tecnologia para aprimorar a qualidade da prestação de serviços de saúde e educação.
Qual deve ser o papel do Estado no mundo de hoje?
Precisamos de um Estado poderoso para fornecer serviços públicos, para evitar que as pessoas matem as outras, para preservar a ordem pública. O problema é que o Estado tende a se autoalimentar. Quanto maior o seu tamanho, mais indisciplinado ele fica. Presta serviços cada vez piores à população, até colapsar sob o próprio peso. É preciso usar a tecnologia moderna para aperfeiçoá-lo. Pode parecer banal dizer isso, mas, se voltarmos ao século XIX, houve um salto de produtividade graças ao uso de máquinas que substituíram trabalhos feitos a mão, com a Revolução Industrial e a Revolução Agrícola. Agora temos as bases de uma nova revolução com as máquinas inteligentes. Os computadores tendem a ser intensivos no uso de informações e de mão de obra. A produtividade na prestação de serviços pode crescer muito.
É possível dar exemplos do impacto da tecnologia nos serviços?
A saúde é um serviço muito caro. Mas máquinas, com sua inteligência artificial, poderão fazer esse serviço a distância, com o monitoramento de idosos em casa por meio de câmeras e do controle remoto de procedimentos. Será possível assistir a representações em 3D de palestras em universidades. Professores serão capazes de ensinar através de hologramas. Alunos de medicina começam a usar hologramas e outras tecnologias para aprender técnicas cirúrgicas. É apenas o começo. Em cinco anos, dado o ritmo de avanço de inteligência artificial, todas as áreas vão mudar radicalmente.
Em que países a quarta revolução já se tornou realidade?
Singapura é um exemplo poderoso. Era um país que veio do nada nos anos 1950. Um pântano, pobre, parte do império britânico. Tornou-se um dos Estados mais ricos do mundo. Isso por ser aberto para o comércio global, mas também por ter um governo extremamente eficiente. É um governo que vem sendo muito bom em atrair negócios, prover serviços e educar a população. O segundo exemplo são os países da Escandinávia, em particular a Suécia. Por um momento, pareceu que o Estado estava se tornando grande demais e muito ineficiente. Mas, a partir de meados da década de 90, os suecos souberam fazer reformas sérias que cortaram o tamanho do governo e injetaram princípios de mercado, de competição e autonomia. A China é outro exemplo. Era um país muito malgovernado, mas agora tem avançado. Vem fazendo reformas interessantes. O país está preparando as bases de um Estado poderoso. Há um núcleo do Partido Comunista cujas habilidades de gestão são impressionantes.
O seu livro foi lançado originalmente em 2014, mas já antecipava algumas questões que depois ficaram evidentes. O que mudou desde então?
O livro foi escrito em um momento de otimismo razoável. Um exemplo de país que ia muito bem em termos de governo e de reformas era o Reino Unido. Mas o Brexit, a saída britânica da União Europeia, tirou o apetite do governo por reformas. No livro, nós falamos que uma de nossas preocupações era que houvesse uma crise da democracia. Era uma referência a uma crise derivada de promessas exageradas, que criam na população expectativas que não podem ser atendidas. Nos anos 2000, a democracia parecia ser a onda do futuro. Todo mundo falava disso. Mas agora vemos que a democracia não está avançando como se esperava. A democracia está paralisada no Oriente Médio e enfrenta grandes desafios na Europa e nos Estados Unidos. A quarta revolução deveria consolidar o apelo e a força da democracia mundialmente, mas estou mais pessimista atualmente.
Por que países que historicamente lideraram o avanço do Estado agora estão enfrentando mais dificuldades?
Uma das coisas que chamam atenção nas democracias avançadas é a atuação dos grupos de interesse. Eles estão se tornando muito poderosos. Quanto mais avançado o país, mais poderosos são os grupos, porque são ainda mais profissionais. Veja o caso de Washington. Donald Trump é um presidente terrível. A Inglaterra também está assim. Foi um país pioneiro em reformas, mas está retrocedendo. Os britânicos testemunharam uma melhora dramática no desempenho dos alunos de Londres, que são em boa parte representantes de minorias. Isso tornou a sociedade menos desigual. Mas, infelizmente, por causa do Brexit, muita energia direcionada para reformas desapareceu. Trump e o Brexit estão fazendo muito estrago à ideia da nova revolução do Estado.
As pessoas pedem menos impostos e cobram mais serviços do Estado. Não são reivindicações incompatíveis?
O ex-presidente americano John Adams disse que todas as democracias acabam por cometer suicídio, porque as expectativas da população são muitas vezes incompatíveis com o que o Estado pode oferecer. Temos visto que governos estão ficando cada vez maiores e que os déficits fiscais também estão crescendo. Alguns Estados estão gastando recursos de que não dispõem. Outros estão com déficits estruturais. Uma das razões por trás da crise financeira de 2008 foram os gastos públicos desenfreados. Há duas coisas que precisam ser feitas. Uma delas é dispor de organizações tecnocratas que determinem regras em assuntos como as aposentadorias: o valor dos benefícios, a idade mínima, quem tem direito, quase tudo relacionado a esse assunto. Por um lado, o governo não poupa o suficiente; por outro, gasta demais com as aposentadorias. Isso pressiona o déficit cada vez mais. Em última instância, o país irá à bancarrota. A outra medida importante é devolver o poder de fazer escolhas de outra natureza a autoridades locais, como prefeitos e conselhos municipais. Isso terá o efeito de engajar as pessoas e ampliar a sua participação na política.
O senhor acredita que essas mudanças ocorrerão de forma gradual e negociada ou haverá uma ruptura?
Na maior parte dos casos, será necessária uma ação mais radical. As mudanças passadas foram introduzidas como resultado de crises, e o maior exemplo é, novamente, a Suécia do início da década de 90. O país estava em crise. Alguns bancos estavam colapsando. A inflação era elevada. Empreendedores abandonavam o país. A Suécia estava ficando sem recursos. Havia uma crise do setor público, e daí ocorreu uma ruptura. De modo geral, países que estão em boa situação não fazem as reformas de maneira tranquila, infelizmente. As pessoas esperam que a tempestade comece para providenciar o conserto.
Países como o Brasil nem chegaram a atingir na plenitude o estágio do Estado de bem-estar social. Eles estão condenados ao atraso?
A América Latina pode tirar proveito de tecnologias mais modernas. Os países da região também podem se beneficiar de todos os tipos de reforma que estão acontecendo ao redor do mundo. Antigamente, havia a noção de que as melhores ideias vinham essencialmente da Europa e dos Estados Unidos. Muitas das melhores ideias na área de saúde vêm da Índia, particularmente em termos de design e produção de equipamentos médicos. É uma inovação que se torna realidade por uma fração do custo que teria em países desenvolvidos. Há melhores condições para criar um Estado de bem-estar social hoje em dia do que no passado. Basta refletir sobre o modelo da Grã-Bretanha no início do século XX e que se expandiu fortemente depois da II Guerra. O governo ideal deveria ser dirigido por grandes estruturas burocráticas, parecidas com fábricas. Esse tipo de estrutura não é hoje o mais eficiente em prover serviços à população. Prestar serviços em níveis locais funciona melhor. Essa tarefa hoje é facilitada por celulares e computadores.
O senhor diz que ficou mais pessimista. O que podemos esperar para os próximos anos?
A democracia é a melhor entre todas as formas possíveis de governo, ainda que seja capaz de apresentar problemas de toda espécie, como promessas demais, muitas das quais descumpridas. Existe a corrupção. Mas a democracia é muito valiosa e precisamos reformá-la e protegê-la dela própria. Trump representa todos os medos que nós tivemos enquanto escrevíamos o livro, de uma forma maximizada. O populismo que ele incorpora está substituindo seu julgamento individual sobre a Constituição e o governo. É muito ruim que a maior economia do mundo, que é também a mais antiga democracia moderna, esteja nas mãos de um populista. Na Europa, a direita também está em ascensão. Por trás disso tudo está, infelizmente, a estagnação econômica. As pessoas ficam furiosas. Nesse estado, elas se tornam demagogas. E uma razão pela qual os países se encontram estagnados economicamente é que eles estão dispendendo demais com os gastos obrigatórios, sem investir o suficiente na economia produtiva. Tudo isso mostra que é preciso um novo rumo.
Publicado em VEJA de 18 de outubro de 2017, edição nº 2552
Roberto Freire: Preocupação na comunidade científica
Uma das áreas mais importantes e estratégicas para o desenvolvimento do Brasil está em estado de alerta. O recente corte de 44% no orçamento destinado ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicações (MCTIC), anunciado em março deste ano pelo governo federal como uma das medidas emergenciais em meio a uma das mais profundas crises econômicas da história do país, repercutiu de forma negativa na comunidade científica. A necessidade de redução dos investimentos da máquina federal por meio do ajuste fiscal, que atingiu praticamente todos os ministérios, e o cumprimento da lei do teto dos gastos públicos, promulgada no fim do ano passado, são dados inexoráveis da realidade, mas é evidente que uma redução significativa em um setor crucial para o futuro do Brasil causa enorme preocupação.
O corte no orçamento do MCTIC para 2017 é de nada menos que 44%, reduzindo o investimento de R$ 5,8 bilhões para R$ 3,2 bilhões. Para que se tenha uma ideia da magnitude dessa redução orçamentária, trata-se do menor valor disponibilizado para a área científica e tecnológica nos últimos 12 anos (desde 2005). O impacto de tamanha diminuição de verba para a pasta foi tão expressivo que uma das mais prestigiadas revistas sobre ciência do mundo, a “Nature”, publicou recentemente uma reportagem em que detalha a precária situação do setor no Brasil e a repercussão do corte orçamentário junto aos profissionais da área.
Nesse diapasão, vale destacar o manifesto publicado por representantes de alguns dos mais importantes centros de pesquisa do Brasil no qual há duras críticas à diminuição do orçamento do MCTIC. Segundo o documento assinado pelos especialistas, a medida “causará danos irrecuperáveis a instituições estratégicas, alijando o Estado brasileiro de instrumentos essenciais para qualquer movimento de recuperação de nossa economia”. O texto ainda chama a atenção para as dificuldades enfrentadas pelos institutos federais de ciência e tecnologia, cuja existência estaria ameaçada. Assinam a nota 19 instituições, entre as quais o Observatório Nacional (ON), o Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (Impa) e o Laboratório Nacional de Astrofísica (LNA).
Uma das maiores autoridades na área, Mayana Zatz, professora titular do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP), lembrou em entrevista recente que o Brasil já tinha, antes mesmo dos cortes anunciados pelo governo, “um orçamento muito inferior aos países do primeiro mundo para a pesquisa científica e tecnológica” (cerca de 1% do PIB, ante mais de 4% de Israel e Coreia do Sul e quase 3% da União Europeia). Em sua avaliação, diante desse novo cenário, “torna-se cada vez mais difícil fazer uma pesquisa competitiva no Brasil”.
Por um lado, é evidente que compreendemos a necessidade de se reduzir gastos em um momento de grave crise por que passa o Brasil. O governo federal deve cortar na própria carne até para dar exemplo e sinalizar claramente aos brasileiros que todos nós devemos somar esforços e ter responsabilidade para a superação de um momento tão difícil. Entretanto, não se pode perder de vista que a área científica é determinante para a construção do futuro. Cortar investimentos de forma abrupta em um setor estratégico significa usar o remédio para matar o próprio paciente.
Como os resultados em ciência, tecnologia e inovação são obtidos somente no médio ou no longo prazo, é inequívoco que, se os cortes não forem revertidos tão logo haja um reaquecimento da economia, serão necessários muitos anos para recuperarmos o tempo perdido. E o mais grave: além de não conseguirmos atrair pesquisadores do exterior, perderemos inúmeros jovens cientistas que se verão sem quaisquer perspectivas de crescimento profissional – a dramática “fuga de cérebros”, cujos prejuízos são irreparáveis ao Brasil.
Nós, do PPS, e eu pessoalmente, sempre tivemos uma preocupação especial com a área científica brasileira. Não foram poucos os momentos em que nos posicionamos no lado oposto ao de setores mais atrasados e obscurantistas da esquerda, inclusive durante os debates a respeito do desenvolvimento da indústria biotecnológica no Brasil – cujo avanço alguns tentavam impedir, especialmente em relação às pesquisas sobre o uso de alimentos geneticamente modificados. Defendemos alterações em alguns artigos da Lei de Biossegurança que criminalizavam a pesquisa e proibiam a utilização, a comercialização, o registro e o licenciamento das chamadas tecnologias genéticas de restrição de uso, por meio das quais há intervenção humana na geração ou multiplicação dos organismos geneticamente modificados. Entendemos que o futuro do país e a melhoria das condições de vida da população não podem ficar à mercê das forças que combatem a pesquisa científica e os avanços tecnológicos.
Nosso compromisso com a ciência brasileira, portanto, vem de longa data. Não se trata aqui de qualquer tipo de oportunismo, muito menos de uma crítica vazia ao atual governo. De forma construtiva, compartilhamos do alerta feito pela comunidade científica e reforçamos a preocupação com o corte orçamentário no setor. A ciência e a tecnologia não representam um entrave para a recuperação da nossa economia, muito pelo contrário. São essenciais para o desenvolvimento do país e a superação da crise. Não podemos comprometer o nosso futuro.
* Roberto Freire é deputado federal por São Paulo e presidente nacional do PPS
Mayana Zatz: Em time que está ganhando não se mexe
Com o corte de 120 milhões de reais do orçamento da Fapesp, perde a ciência básica brasileira, capaz de promover revolucionários avanços tecnológicos
A FAPESP – FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO – É UM ORGULHO NACIONAL E EXEMPLO A SER SEGUIDO NO MUNDO INTEIRO, contribuindo marcadamente, há várias décadas, para o avanço do conhecimento no Estado de São Paulo e no país. Com a concessão de bolsas e auxílios para a execução de pesquisas científicas e tecnológicas em todas as áreas do conhecimento, a instituição vem apoiando estudos e a divulgação da ciência desde 1962, quando começou a funcionar. Assim, é incompreensível a decisão da Assembleia Legislativa de São Paulo que aprovou uma lei orçamentária desviando 120 milhões de reais da dotação assegurada pela Constituição do estado à instituição, nos últimos dias de 2016 – em outras palavras, um grande corte. Essa decisão não apenas contraria a Constituição estadual, que determina o repasse de 1% da receita tributária para a Fapesp, como causará um prejuízo irreversível à ciência paulista e brasileira. O valor, segundo a decisão, irá para o fortalecimento de institutos de pesquisas estaduais (como o Butantan ou o Biológico), que estariam em penúria. Entretanto a Fapesp sempre apoiou bons projetos independentemente de estarem nas universidades ou nos institutos. O erro abre um precedente perigoso – além de ser o único órgão científico do estado com tradição de independência em relação ao Executivo, tirar recursos de um lado (que funciona) para cobrir outro não pode ser um argumento defensável.
Defensores dessa decisão catastrófica alegam que é preciso investir mais em pesquisas aplicadas. Ledo engano! Os maiores e mais revolucionários avanços tecnológicos foram gerados pelas pesquisas básicas. A eletricidade, por exemplo. Inicialmente, ninguém sabia sua utilidade. Foi a pesquisa básica que desvendou suas características e, assim, possibilitou seu uso. Tente imaginar viver numa sociedade sem eletricidade... Quem poderia acreditar que a teoria da relatividade, proposta por Einstein no início do século XX, seria responsável pelo desenvolvimento de satélites e GPS, viagens espaciais, lasers, impressoras e outras invenções que correspondem a um terço da economia mundial na atualidade?
Descobertas recentes de laboratórios de pesquisa básica em biologia e genética revolucionarão a medicina. Por exemplo, Shinya Yamanaka, pesquisador japonês ganhador do Prêmio Nobel de Medicina de 2012, mostrou que é possível reprogramar células já diferenciadas tornando-as pluripotentes, portanto, capazes de gerar qualquer tipo de célula. Esse conhecimento básico possibilitará um salto gigantesco na medicina regenerativa. Jennifer Doudna e Emanuelle Charpentier descobriram que é possível “editar” genes em bactérias, ou seja, modificá-los, por meio de uma técnica revolucionária chamada CRISPR/Cas9. O conhecimento gerado por esses estudos, realizados em laboratórios de pesquisa básica, já vem sendo utilizado para tratar alguns tipos de câncer. E o prosseguimento dessas pesquisas possibilitará a correção de mutações e o tratamento de inúmeras doenças, inclusive transplante de órgãos. Essa tecnologia, cujo impacto na agricultura, pecuária e medicina serão gigantescos, foi rapidamente incorporada aos nossos laboratórios graças à Fapesp.
"O sucesso do projeto de pesquisa básica apoiado pela Fapesp foi tamanho que ganhou a capa da prestigiosa revista Nature, colocando o Brasil no mesmo patamar dos países desenvolvidos"
No fim da década de 90, a Fapesp financiou um projeto que envolveu trinta laboratórios, o sequenciamento da bactéria Xylella fastidiosa, praga da laranja. O objetivo primário era capacitar um número expressivo de cientistas nessa nova tecnologia de sequenciamento genômico. O sucesso do projeto foi tal que ganhou a capa da prestigiosa revista Nature, colocando o Brasil no mesmo patamar dos países desenvolvidos. Graças a esses avanços, hoje essa tecnologia tem uma aplicação gigantesca na agricultura, pecuária e na medicina.
Em 2004, pesquisadores do Instituto de Biociências da USP, apoiados pela Fapesp, descobriram em famílias brasileiras um gene responsável por uma forma hereditária de esclerose lateral amiotrófica (ELA - a doença do famoso cientista britânico Stephen Hawking). Posteriormente, descobriu-se que esse gene estaria envolvido em outras formas de ELA, o que abriu um novo leque de pesquisas no mundo inteiro na busca por um tratamento. Mais recentemente, também com apoio da Fapesp, foram sequenciados os genomas de cerca de 1 400 pessoas com mais de 60 anos, constituindo o primeiro e maior banco genômico da população idosa brasileira, que contribuirá para a identificação dos fatores genéticos e ambientais responsáveis por um envelhecimento saudável. A Fapesp também apoia e financia projetos importantes relativos ao zika, vírus associado a um número assombroso de casos de microcefalia em bebês no país.
Resultados expressivos em ciência envolvem investimentos contínuos e atualizados, pois a construção do conhecimento depende de estudos e experimentos, infraestrutura adequada e da formação de recursos humanos qualificados para sua realização. Essa concepção norteou a criação da Fapesp, em 1960, levando ao estabelecimento de um porcentual da arrecadação do ICMS do estado para garantir a continuidade do financiamento das pesquisas em São Paulo. Nessa ocasião, o governador Carvalho Pinto declarou: “Se me fosse dado destacar alguma das realizações da minha despretensiosa vida pública, não hesitaria em eleger a Fapesp como uma das mais significativas para o desenvolvimento econômico, social e cultural do país”. A Fapesp tem hoje 57 anos de inquestionáveis contribuições ao desenvolvimento de São Paulo e do Brasil. O corte de 120 milhões no orçamento da Fapesp, associado à redução dos recursos decorrente da própria queda na arrecadação do ICMS, ferirá irreparavelmente esse patrimônio histórico. O investimento no desenvolvimento científico e tecnológico, por meio desse órgão fundamental, é a melhor garantia de desenvolvimento crescimento econômico, social e cultural do país.
*Mayana Zatz é geneticista e diretora do Centro de Pesquisas do Genoma Humano e Células-Tronco da Universidade de São Paulo (USP)
Carlos Henrique de Brito Cruz: Investimento empresarial em P&D no Brasil
Para haver impacto econômico da pesquisa são imprescindíveis empresas inovadoras
Muitas nações conseguem obter substancial impacto econômico com atividades de pesquisa e desenvolvimento (P&D) em ciência e tecnologia (C&T). No Brasil há muitos casos reconhecidos e claramente a economia brasileira sem P&D seria muito mais atrasada e frágil. Exemplos: produção de energia, extração de petróleo, o maior caso mundial de uso extensivo de bioetanol para transporte, equipamentos e sistemas para telecomunicações, aviões, serviços de software e informática, a agricultura e a pecuária, que fazem do País o celeiro do mundo, todos criados por gente que estudou em nossas melhores universidades, trabalhando em empresas inovadoras. Esses sucessos mostram que vale a pena buscar continuamente os caminhos que façam a economia cada vez mais competitiva, pois vários países parecem obter mais impacto econômico de P&D que nós.
Nos países que têm conseguido os maiores efeitos da pesquisa em sua economia há intensa atividade de P&D realizada por empresas. Essa característica é frequentemente esquecida no debate brasileiro, no qual se consideram universidades como o único lugar da pesquisa. Esse engano prejudica as estratégias nacionais, pois desvia o foco do real problema: a debilidade das atividades de P&D em empresas no País.
Nos EUA, dos US$ 456 bilhões aplicados em P&D em 2013, 71% (US$ 323 bilhões) foram executados por empresas. Desse total o governo federal entrou com apenas 9%, o restante foram recursos das próprias empresas. Na Coreia do Sul, dos US$ 68 bilhões (PPP) aplicados em P&D, a fatia empresarial foi 78% (US$ 53 bilhões – PPP). Na Alemanha o porcentual empresarial representou, no mesmo ano, 68% do total; no Reino Unido, 64%; e na China, 77%.
No Brasil, em 2013, a participação de empresas no dispêndio em P&D foi apenas 40% do total nacional, de US$ 40 bilhões PPP (indicadores do MCTI em https://goo.gl/cRveWf). Pior, o porcentual empresarial vem caindo: em 2000 foram 47%. Indicadores de C&T do MCTI mostram que em 2000 havia 44.183 pesquisadores trabalhando para empresas. Em 2010, após uma década de esforços de apoio e incentivos, esse número caiu a 41.317, parecendo refletir a queda precoce da participação da indústria no PIB nacional.
Enquanto cada vez mais lideranças empresariais defendem a necessidade de mais P&D e inovação, as regras da economia brasileira criam um ambiente hostil para tal. Não são só crises ética, fiscal, política e econômica instaladas nos últimos anos. Trata-se, além e antes disso, de protecionismo em excesso, do fechamento da economia, da autoexclusão do Brasil dos grandes acordos comerciais mundiais, dos altos custos trabalhistas, da complexidade tributária, que beira a irracionalidade. O baixo esforço privado em P&D no Brasil não é resultado – como é comum ouvir no meio acadêmico – de certo desvio de conduta das lideranças empresariais; é a resposta lógica a uma economia em que a tecnologia raramente é determinante para a posição da empresa no mercado.
Ao lado do tímido esforço de P&D empresarial, um óbice adicional à realização de mais impacto econômico é a falta de ousadia das empresas, que, em geral, se concentram em atividades adaptativas locais. Veja-se o número de patentes internacionais que as empresas no Brasil obtêm. A revista Pesquisa Fapesp(https://goo.gl/jmkUE7), tratando exclusivamente de patentes obtidas por empresas (não universidades ou institutos), mostra que, de 2011 a 2015, para cada 10 mil pesquisadores empregados as empresas do Brasil obtiveram 32 patentes no Escritório de Patentes dos EUA (USPTO). Para as empresas da China, os mesmos 10 mil pesquisadores criaram 47 patentes; na Coreia do Sul, 519; na Alemanha, 648; e nos EUA, 1.082. No Brasil, entre os 10 maiores solicitantes de patentes há apenas 3 empresas (sendo a primeira uma multinacional), os outros 7 são universidades e institutos de pesquisa. Nos EUA, entre os 10 maiores solicitantes, 10 são empresas; na Alemanha, 9.
Outro equívoco comum no debate brasileiro sobre impacto da pesquisa é supor que a pesquisa colaborativa com universidades será uma peça essencial para superar esse quadro. A colaboração com universidades e laboratórios públicos é importante e tem sido muito estimulada, mas vai bem além da pesquisa colaborativa, seja na formação de pessoal, seja no acesso ao conhecimento público produzido pela pesquisa acadêmica. Nos EUA, dos US$ 270 bilhões gastos por empresas (de seus próprios recursos) para P&D, apenas 1,3% foi dirigido a contratar P&D em universidades. Não é a colaboração com universidades, sozinha, que faz a empresa dos EUA ser inovadora, é o esforço próprio das empresas em seus laboratórios e centros de P&D, onde empregam gente educada nas universidades.
Universidades podem ser determinantes para criar impacto econômico na sociedade e para isso é preciso uma instância mediadora ligada ao mercado, a empresa. Podem ser empresas já bem estabelecidas com vigorosos esforços próprios de P&D ou empresas iniciadas por estudantes ou professores universitários, também com esforços próprios de P&D. Para criar prosperidade empresas precisam de pessoas capazes de ter ideias e de desenvolvê-las – pessoas educadas em universidades com referenciais acadêmicos elevados e atividades intensas de pesquisa, onde desenvolvem sua capacidade intelectual e aprendem a enfrentar problemas usando o método da ciência.
Sem empresas com expressiva atividade própria de P&D o Brasil não conseguirá ser competitivo e criar riqueza com base em conhecimento. Para que as empresas no País possam dedicar-se à inovação é necessário um ambiente econômico que favoreça a competição. Não se trata apenas de haver incentivos explícitos, subvenções e financiamentos, trata-se de algo bem mais sofisticado e complexo: criar no País, para o bem do interesse público, um ambiente estimulante à inovação empresarial.
* Carlos Henrique de Brito Cruz - Diretor Científico da Fapesp
Fonte: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,investimento-empresarial-em-ped-no-brasil,10000090668