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Merval Pereira: Falta de gestão
O caso dos 6,86 milhões de testes para o diagnóstico da COVID-19 comprados pelo Ministério da Saúde que perderão a validade entre dezembro deste ano e janeiro de 2021, estocados num armazém do governo federal em Guarulhos e não distribuídos para a rede pública, é exemplar da falta de planejamento e desorganização da política de saúde pública, situação que agrava ainda mais a pandemia no país.
Comprados por gestões anteriores do atual ministro Eduardo Pazzuelo, os testes armazenados representam mais do que os já aplicados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) nos seis meses anteriores. Uma explicação para essa desídia pode ser a opinião do próprio ministro, um General da ativa que foi indicado para o ministério da Saúde por ser um especialista em logística, que considera que a testagem massiva não é a melhor maneira de atuar contra a pandemia.
Outra, a disputa entre presidente Bolsonaro e os governadores estaduais. O próprio presidente disse ontem que a culpa é dos governos, que sua responsabilidade é comprar os testes, caberia aos governos estaduais os requisitar. Uma postura passiva que não leva em conta a necessidade da testagem, mas apenas a burocracia estatal. Os governos estaduais dizem que os testes, quando solicitados, chegam incompletos e o ministerio da Saúde não tem condições de solucionar.
Esse é um exemplo atual de uma crise de gestão permanente do governo Bolsonaro, um dos aspectos que estão sendo analisados por diversos especialistas no livro “Bolsonarismo: teoria e prática”. (Rio de Janeiro: Gramma, 2020, 346 páginas), a ser lançado em dezembro. Os especialistas identificaram “a total falta de critério de planejamento, racionalidade, eficiência na gestão pública”.
O estudo é fruto de uma ação conjunta entre o Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas sobre a Democracia (Cebrad) , da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), fundado pelo cientista político Geraldo Tadeu Monteiro, e o Laboratório de Alternativas Institucionais (LAI) da Universidade Federal Fluminense (UFF), dirigido pelo cientista Político Carlos Sávio Teixeira. O livro, composto por 24 pesquisadores, é dedicado à análise do bolsonarismo como ideologia e movimento político, uma ampla radiografia deste neopopulismo de direita e seu impacto nas práticas políticas e nas políticas públicas, como define Tadeu Monteiro.
Bolsonaro encontra na pauta conservadora dos líderes das igrejas seu nicho eleitoral, mas o livro analisa outras vertentes do movimento bolsonarista, entre elas a guerra cultural, patrocinada pelos movimentos direitistas de ativistas digitais, lançando mão de vários tipos de fake news. Esse “lado obscuro do bolsonarismo”, como define o livro, esteve recentemente em evidência com os ataques cibernéticos contra o sistema de apuração eleitoral do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Seu presidente, ministro Luis Roberto Barroso, voltou ontem a insistir em que eles representaram “um esforço de desacreditar o processo eleitoral”.
Este movimento, define Tadeu Monteiro, é, na verdade, uma nebulosa, que se compõe de “ativistas digitais, olavistas, terraplanistas, lideranças religiosas, parcelas do alto empresariado, políticos de direita, lavajatistas e militares (forças armadas, policias militares e civis, bombeiros)”. O que os mantém unidos é a pessoa de Jair Bolsonaro. Os bolsonaristas seguem a liderança de Bolsonaro, esteja ele radicalizando ou sendo moderado em suas posições. “Trata-se de um clássico tipo de movimento político atrelado a uma liderança carismática, esta mesma liderança que convoca militantes para manifestações de rua, que faz "lives" frequentemente para mantê-los municiados de argumentos e mobilizados”.
Foram analisados ainda sua prática política no relacionamento com os demais poderes, suas políticas públicas e, em especial a política de saúde em relação à Covid. “O bolsonarismo, fundando-se num processo permanente de mobilização social e política, caminha para um plebiscitarismo permanente”, analisa Geraldo Tadeu Monteiro.
Vinicius Torres Freire: 'Segunda onda' ainda não está nos números, mas onda de relaxamento está na cara
Pela estatística, é difícil afirmar que há repique, mas é fácil saber o que fazer para evitá-lo
Depois de semanas de despreocupação e, em muitos casos, de negligência com as medidas de segurança sanitária, subitamente o país volta a se ocupar da epidemia. A onda é falar de “segunda onda”, repique de infecções e mortes que estaria ocorrendo no Brasil.
Segundo alguns, seria algo parecido com os Estados Unidos, onde jamais houve controle do espalhamento da infecção, mas apenas uma redução do ritmo do número de mortes, que, no entanto, voltou a acelerar já por duas vezes.
Já se pode dizer que há “segunda onda” no Brasil? O que isso significa? Os dados são suficientes e persistentes para dizer que há um aumento do crescimento do número de internações, casos e mortes?
Francamente, a estatística não diz muito. Entre epidemiologistas com os quais este jornalista costuma conversar, uma meia dúzia, quase todos dizem que não é possível afirmar grande coisa, mas “evidências anedóticas” (histórias, relatos parciais) “preocupam”, tais como alertas de médicos e de administradores de grandes hospitais.
Seja como for: 1) todas as medidas de precaução continuam valendo; o relaxamento era um perigo terrível, com ou sem “segunda onda”; devem ser levadas a sério; 2) não parece haver dados suficientes para que se tome medida mais drástica alguma, o que, de resto, poderia ser contraproducente.
Hospitais particulares dizem faz mais de semana que internaram mais doentes. Alguns poucos especialistas afirmam peremptoriamente que há “segunda onda”, sem especificar bem do que se trata, porém.
As estatísticas de casos suspeitos, internações, doentes na UTI ou sob ventilação mecânica de fato apontam alguma alta na cidade de São Paulo. A média móvel de sete dias de internações no estado de São Paulo, que vinha em queda fazia tempo, deu um salto notável no dia 17, em particular na Grande São Paulo, o que não se via fazia muitas semanas.
Os dados recentes de doença e morte têm ainda mais ruídos do que de costume. Como se sabe, de 6 a 11 de novembro, ocorreram problemas no sistema nacional de registros de Covid-19, o que embananou a série de dados.
Além do mais, houve mudança de critério de confirmação de casos e mortes, diz o governo de São Paulo. Casos que ocorreram durante a epidemia foram agregados agora às estatísticas (221 mortes extras, segundo o governo paulista). Assim, os dados de casos (sempre imprecisos e variáveis em excesso) e de mortes parecem difíceis de interpretar desde o dia 5 e assim devem permanecer por mais alguns dias.
Ressalte-se que não é bem assim com o aumento recente de internações, dados de hospitais privados e da prefeitura paulista. Os dados dos hospitais parecem indicar pelo menos uma marola paulista.
Como não sabemos bem do que se trata, o aparente repique dos números serve de alerta renovado: não se pode relaxar no uso de máscaras e na limpeza, não se pode fazer aglomeração, festa ou maluquice pior.
Uma “segunda onda” ou mesmo apenas “marola forte” seriam um desastre humano e econômico. Não seria preciso decretar mais isolamentos, fechamentos etc. para que a atividade econômica desandasse. O medo já basta para causar estrago. Basta ver o movimento de restaurantes ou, pior ainda, a tentativa de reabrir cinemas.
É possível fazer o essencial para segurar essa, por ora, ameaça sinistra de repique. É preciso um pouco mais de persistência. Pode ser que o começo do fim da calamidade esteja próximo, com a esperança de vacinas. Mas, até lá, o relaxamento pode provocar um desastre evitável.
RPD || Ligia Bahia (UFRJ) e Mario Scheffer (USP): Como o SUS sairá da pandemia?
Promessas não cumpridas, omissões, evasivas e o reconhecimento da indisponibilidade de insumos estratégicos para o Sistema Único de Saúde têm marcado a gestão do Governo Federal no combate à pandemia
A pandemia do Covid-19 e seus trágicos desdobramentos sanitários, políticos e econômicos concederam ao Brasil lugar destacado entre os países com respostas tardias e insuficientes à prevenção de casos e óbitos. A demora e desproporção entre a quantidade de recursos para rastreamento e tratamento de pacientes mobilizados e a magnitude da epidemia passaram a ser um problema em si. Entre fevereiro e agosto de 2020, houve nítida mudança no conteúdo de pronunciamentos governamentais. No primeiro semestre, a preocupação com a “falta” de leitos, equipamentos e testes competiu com debates em torno do uso ou não da cloroquina.
Em seguida, o foco das atenções convergiu para o auxílio emergencial e para a abertura das atividades econômicas. Em maio de 2020, três meses após o Governo Federal ter declarado o estado de emergência em saúde pública no Brasil, em 4 de fevereiro, o SUS, os profissionais da saúde e a população diretamente afetada pela Covid-19 ainda conviviam, em muitas cidades, com grave insuficiência de leitos de internação, falta de médicos e de equipamentos de proteção individual para profissionais de saúde, assim como era precário o fornecimento de ventiladores e kits de testes diagnósticos.
O tom otimista e tranquilizador de autoridades governamentais sobre a “preparação do País” e a “capacidade do SUS” para o enfrentamento da pandemia foi pouco a pouco substituído por promessas não cumpridas, omissões, evasivas e o reconhecimento da indisponibilidade de insumos estratégicos. Por ocasião do registro oficial do primeiro caso positivo no país, em 26 de fevereiro, o então Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, afirmou que recursos novos estariam sendo investidos para a expansão de leitos, compra de equipamentos de proteção individual para profissionais de saúde e em laboratórios para a realização de testes.
O alegado investimento, como outros anúncios oficiais que se seguiram, teve pouca repercussão prática. Em maio, ainda estava explícita a carência extrema de testes e leitos para internação, além do colapso de unidades de terapias intensiva em capitais como Fortaleza, Manaus e Rio de Janeiro. Entre os meses de fevereiro e maio, embora menos eufóricos, discursos oficiais insistiam, no ápice da pandemia, em anunciar a expansão da rede hospitalar e a aquisição de insumos que deveriam ter sido providenciados muito antes da explosão da Covid-19 no País.
Em pleno agravamento da falta de vagas para internação de pacientes no SUS, transmitido diariamente pela mídia, ainda se ouvia que muitos leitos estariam disponíveis somente quando estivessem prontos novos hospitais, concluídas reformas e readequações na rede pública ou iniciadas negociações de compra de vagas do setor privado. Um dos principais parâmetros para a saída do isolamento social, o indicador de ocupação hospitalar, restava inviável, num cenário em que sequer os leitos prometidos e necessários eram ofertados. A tentativa tardia de responder, face à constatação da imensa subnotificação de casos, que em parte pode até hoje ser atribuída à ausência da testagem em larga escala, foi malograda. O então Ministro da Saúde, Nelson Teich, prometeu que o governo compraria 46 milhões de testes, quando sequer a divulgação de Mandetta, o ministro anterior, de distribuir 23,9 milhões de testes, havia sido concretizada. Similarmente, a divulgação oficial de que o Ministério da Saúde cadastraria cinco milhões de profissionais da saúde para reforçar o enfrentamento ao coronavírus fracassou.
Foram crescentes a falta de médicos, de especialistas em medicina intensiva e de pessoal na linha de frente assistencial, em condições de trabalho inadequadas e inseguras, com excesso de pacientes, sobrecarga de horas de trabalho, estresse emocional, infecção, bem como os óbitos de trabalhadores da saúde. Sem uma gestão coordenada de recursos humanos, viu-se a dificuldade de contratações temporárias e improvisadas, delegadas a organizações sociais privadas, fragmentadas em editais e chamadas pouco atrativas. Promessas de recursos financeiros com dois dígitos de bilhão, testes com dois dígitos de milhão, respiradores e leitos com dois e três dígitos de milhar, respectivamente, não se concretizaram, nem nas compras anunciadas, nem nos prazos previstos, nem nas datas de entrega, invariavelmente atrasadas, se e quando ocorreram. Expressões como “colapso do sistema de saúde” e “pontuação em UTI”, para avaliar quem vive e quem morre, chegaram a ser naturalizadas em determinado momento.
O fenômeno biológico do coronavírus e as dificuldades objetivas que o cercam, como a inexistência de terapias eficazes e de vacina, definitivamente, não são da mesma natureza da desorganização de um sistema de saúde e dos desmandos políticos que repercutiram decisivamente no aumento do número de mortes e, mais de seis meses após a entrada da Covid-19 no Brasil, são responsáveis por péssimos indicadores de controle da pandemia. Mesmo em meio às incertezas sobre a doença, diversos países resolveram as equações para o controle da disseminação e a redução da letalidade no âmbito do sistema de saúde, das instituições e dos serviços.
Os obstáculos objetivos para a contagem de todos os casos de Covid-19, assintomáticos e sintomáticos, comuns a tantos países, são bem distintos das barreiras que, no Brasil, impediram a contagem transparente de leitos de internação, o acompanhamento da execução orçamentária excepcional, da quantidade de testes ou do número respiradores colocados à disposição da população.
Imprecisões das informações sobre o modo de transmissão e disseminação da doença não são comparáveis à precariedade dos registros administrativos para o exercício do controle social e a produção de conhecimento científico sobre as respostas governamentais à epidemia. No Brasil, essa confusão, seja proposital ou não, impede até agora o discernimento dos rumos tomados pelo SUS e pelas políticas de saúde durante a pandemia.
Dos recursos previstos, de rotina do SUS ou excepcionalmente autorizados para a pandemia, o que de fato foi liberado e entregue, quando e para quem? A magnitude dos recursos que foram de fato operacionalizados é compatível com as necessidades de atendimento e as demandas acrescidas durante a pandemia?
A pergunta a ser respondida futuramente é se o SUS, que passou a ser reconhecido como um sistema de saúde adequado ao Brasil, sai maior, mais potente e com maior aceitação social após a pandemia do novo coronavírus?
*Lígia Bahia é médica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1980), mestre em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz (1990) e doutora em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz (1999). É professora adjunta da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
*Mario Scheffer é professor Doutor do Departamento de Medicina Preventiva (DMP) da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), na área de Política, Planejamento e Gestão em Saúde.
Elio Gaspari: A privataria da saúde não toma jeito
Costuraram no escurinho de Brasília um avanço sobre as Unidades Básicas de Saúde do SUS, conseguiram um decreto, que gerou gritaria e acabou sendo retirado
A turma da privataria da saúde desprezou um velho conselho de Tancredo Neves e deu-se mal: “Esperteza quando é muita come o dono”.
Costuraram no escurinho de Brasília um avanço sobre as Unidades Básicas de Saúde do SUS, conseguiram um decreto, provocaram uma gritaria, tomaram um momentâneo contravapor de Bolsonaro e avacalharam o general Eduardo Pazuello. Seu ministério disse que a ideia veio da ekipekonômika. Já o doutor Guedes disse inicialmente que ela veio do ministério do general.
Em 2019, essa turma produziu em segredo um projeto que virava de cabeça para baixo a legislação que rege os planos de saúde. Tinha 89 artigos, nenhum a favor da clientela. A peça havia sido produzida num escritório de advocacia por um consórcio de entidades, seguradoras e operadoras, e a consulta ao seu texto era sigilosa. Divulgada, a armação explodiu e ficou sem pai nem mãe. Covardemente, ninguém saiu em sua defesa, nem os autores.
De lá para cá, veio uma pandemia e roubalheiras público-privadas com a saúde foram expostas em Rio, Amazonas, Pará, Brasília e Santa Catarina. Três secretários de Saúde passaram pela cadeia, e dois governadores estão com o mandato a perigo.
Individualmente, entre os çábios da privataria médica há renomados profissionais, ou respeitados gestores. Coletivamente, eles se misturam com larápios e operadores do escurinho de Brasília, incapazes de botar a cara na vitrine. Se praticassem esse tipo de promiscuidade no tratamento de seus pacientes privados, a medicina brasileira já teria migrado para Miami.
Figueiredo, general de vitrine
Está chegando às livrarias “Me esqueçam: Figueiredo — A biografia de uma presidência”, de Bernardo Braga Pasqualette. Conta o governo do general João Baptista Figueiredo, o último governante do ciclo que foi de 1964 a 1985.
Estourado e vulgar (um lorde nos dias de hoje) deixou a Presidência pedindo para ser esquecido. Conseguiu, mas os tempos estranhos do século XXI pediam que seu caso fosse contado e Pasqualette ralou, entrevistando centenas de sobreviventes do ocaso da ditadura. Figueiredo foi um personagem trágico. É visto como o último presidente da ditadura, mas assinou a anistia de 1979, respeitou as regras do jogo e deixou o palácio por uma porta lateral para não passar a faixa a José Sarney, que assumiu por conta da doença de Tancredo Neves. Seria seu grande momento. Foi o retrato de um temperamental desorientado.
Sua administração foi errática e ruinosa, mas a ele também se deve o fecho da transição para um regime democrático.
Figueiredo era um general de vitrine, tríplice coroado nas escolas militares, fazia o gênero do cavalariano desbocado e atlético. Ali havia um cardiopata inseguro e dissimulado. Muita medalha e pouco mérito. Ele passou mais tempo no palácio do que em comandos de tropa e viveu parte da Segunda Guerra como instrutor da cavalaria na escola de Realengo.
Faixas
Ao tempo do general Figueiredo, o governo tinha mania de condecorações. Ela voltou, com mais um penduricalho: as faixas. Este adereço monárquico exige bons modos e elegância. Quando o uso de faixas era coisa de miss em concurso de beleza, as moças vestiam-nas como rainhas.
Bolsonaro veste suas faixas com tamanha desatenção que elas podem acabar virando cachecóis. Em seu benefício, diga-se que nunca usou faixa com o paletó aberto, coisa que pelo menos um dos seus generais já fez.
Lula caiu na real
Com o PT a pão e água nas pesquisas para a eleição dos prefeitos de Rio, São Paulo e Belo Horizonte, Lula caiu na real.
Em junho ele se recusava a assinar manifestos que julgava poluídos por eventuais adesões como as de Fernando Henrique Cardoso e Michel Temer.
Nas suas palavras: “Eu não tenho mais idade para ser maria vai com as outras. O PT já tem história neste país, já tem administração exemplar neste país. Eu, sinceramente, não tenho condições de assinar determinados documentos com determinadas pessoas”.
Passaram-se quatro meses e a “metamorfose ambulante” mudou, anunciando que “podemos ter uma ampla coalizão contra o Bolsonaro em 2022”.
Graças a uma costura de Camilo Santana, o governador petista do Ceará, “Nosso Guia” restabeleceu a comunicação com Ciro Gomes, a quem ele e o comissariado petista maltratavam.
Quando os dois se estranhavam, Ciro Gomes disse, com razão, que “o PT se acha dono dos votos” e Lula “se acha o maioral”.
Witzel saudita
O doutor Wilson Witzel (Harvard Fake’ 15) ameaça: “Se perceber que há perseguição política e cooptação das instituições contra mim e a minha família, pretendo pedir asilo político no Canadá”.
Ex-juiz, Witzel deve procurar um advogado ou pensar num outro tipo de fuga. É improvável que a embaixada do Canadá dê asilo político a um cidadão acusado de improbidade que tenha sido afastado do governo num processo público e irretocável.
Isso, fazendo-se de conta que o governador afastado do Estado do Rio defendia os direitos humanos quando dizia que “a polícia vai mirar na cabecinha e… fogo”.
O Canadá tem uma tradição humanitária e recebeu dezenas de milhares de refugiados, quase todos do andar de baixo. Talvez Witzel possa tentar a Arábia Saudita, que em 1979 asilou o balofo ugandense Idi Amin Dada, ou Marrocos, onde o larápio general congolês Mobutu terminou seus dias.
Guedes x Marinho
O doutor Paulo Guedes sempre soube que a Febraban opera a serviço dos bancos, até porque já esteve naquele lado do balcão. Como ministro, atacou a guilda acusando-a de financiar “estudos que não têm nada a ver com a atividade de defesa das transações bancárias, financiando ministro gastador para ver se fura o teto, para ver se derruba o outro lado”.
A fala seria trivial, mas seu final ficou críptico. Pode-se deduzir que o “ministro gastador” é Rogério Marinho. Falta explicar o uso da palavra “financiando”.
Pelo nível das cotoveladas que os dois trocam, poderiam ouvir o conselho de Djalma Marinho, avô de Rogério, em 1968, quando o governo armava o bote do AI-5: “Ao rei, tudo, menos a honra”.
O futuro de Salles
A segurança de Ricardo Salles no ministério do Meio Ambiente tornou-se idêntica à de uma jazida em reserva indígena.
Quando o general da reserva Santos Cruz reclamou do “desrespeito geral, por despreparo, inconsequência e boçalidade” que envenenam o ar, não deu nome aos bois, mas passou sua boiada.
Vinicius Torres Freire: Carta sobre a vacina brasileira para o leitor cansado do coronavírus
O que o SUS, a Alemanha e a recaída europeia dizem sobre a doença no Brasil
A Alemanha acha que é difícil vacinar seus 83 milhões de habitantes até o final de 2021. Sim, vacinar contra a Covid. Sim, a eficiente, organizada e disciplinada Alemanha. Aplicar 100 mil doses por dia seria “um desafio”, disse na semana passada Thomas Mertens, o chefe do Comitê Permanente de Vacinação do Instituto Robert Koch, agência alemã de controle e prevenção de doenças.
No Brasil, o SUS chega a atender 1 milhão de pessoas por dia nas campanhas de vacinação contra a gripe. Em alguns anos, esteve preparado para vacinar quase 1,5 milhão de pessoas por dia, em cerca de 65 mil postos.
Isso dá o que pensar nas burrices que o governo diz sobre vacina e sobre as nossas possibilidades de conter a doença, muitas desperdiçadas de modo criminoso até agora.
Sim, de um modo ou de outro, estamos fartos de ouvir, falar ou saber de coronavírus. Mas ainda podemos fazer um esforço para atenuar a situação e reagir contra a ignorância homicida. Se por mais não fosse, a Europa nos dá outro alerta de perigo, como em março.
Ainda não há vacina. Alguns países, Alemanha, Estados Unidos, Indonésia ou Brasil, se preparam para distribuí-las a partir de dezembro, mas apenas isso: preparam-se para o melhor. Cientistas discutem ainda a possibilidade de, a princípio, usar as vacinas apenas de modo comedido, limitado, experimental mesmo. Há quem diga que a vacinação precoce pode até atrapalhar a continuidade dos testes de eficácia e segurança, que ainda prosseguirão por meses ou anos.
Anthony Fauci disse nesta semana que talvez em dezembro apareçam dados suficientes para que uma ou duas das vacinas que estão sendo testadas nos Estados Unidos possam ser submetidas à aprovação das autoridades sanitárias. A vacinação ficaria então para o início do ano que vem, se tudo der certo. Fauci é chefe do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas e a autoridade oficial americana em matéria de Covid.
Isto posto, é um crime contra a humanidade enxovalhar a vacinação em geral, como faz Jair Bolsonaro, ou uma possível vacina contra a Covid, seja anglo-sueca, chinesa, americana, alemã ou russa. Devemos nos preparar para oferecer vacinas e não esquecer que a epidemia está longe de terminar.
Os mortos por Covid no Brasil ainda são o triplo do número de assassinados no país, na média por dia. A Covid mata 15 vezes mais que o HIV, ainda pela média diária. Quatro vezes mais que os acidentes de trânsito.
Na União Europeia, o número diário de mortes baixara muito até julho, quando chegou a 0,2 por milhão de habitantes. Agora está em 2,9 por milhão, por dia, e crescendo rápido. No Brasil, estamos com 2 mortes por milhão, por dia. Mas há indícios que a taxa geral de infecção por aqui não seja lá muito diferente da espanhola, por exemplo –haveria muita gente que pode ser infectada ainda. Assim, em tese, é possível um repique da doença. Não sabemos, mas o risco é sério.
Os maiores países da Europa voltaram a fechar as portas de muito negócio e atividade. Mesmo antes disso, em outubro, a economia já balançava de novo, se é que a recaída na recessão já não estava ocorrendo. Não é o “lockdown” que derruba os negócios, mas a doença. Mesmo quase sem restrições oficiais, o movimento nos trens e metrôs de São Paulo ainda é a metade do que se via no ano passado.
Há esperanças: uma vacina, o nosso SUS e que a maioria de nós não seja infectada pela desumanidade presidencial. Enquanto esperamos, nós que aqui estamos temos de tomar cuidado ainda. A Europa está nos avisando.
Marcus Pestana: O nevoeiro e o vácuo de liderança
Tancredo Neves assinalou certa vez, com a experiência de quem viveu muitos momentos tensos e decisivos: “A esperança é o único patrimônio dos deserdados, e é a ela que recorrem as nações, ao ressurgirem dos desastres históricos”. O mundo inteiro ainda assiste apreensivo e perplexo o furacão que devastou 2020, a partir da explosão pandêmica da COVID-19. Para despertar esperança, estadistas e líderes políticos precisam de firmeza, clareza, capacidade de previsão e compartilhamento convincente sobre os rumos a serem seguidos. Mas a sociedade não se alimenta só de retórica e promessas, quer ações e resultados.
Confesso que está difícil, no Brasil de nossos dias, ser um “realista esperançoso” como queria Ariano Suassuna. A cruzada contra a “vacina chinesa”, o fato de o próprio governo desestimular a população a se imunizar e a permanente exaltação de “medicamentos milagrosos” contra a COVID-19 não formam propriamente um quadro otimista. Tantos desafios e a energia sendo desperdiçada em polêmicas inúteis. Como diria Nelson Rodrigues é óbvio ululante que só serão oferecidas à população vacinas registradas na ANVISA, portanto seguras e eficazes. Assim como é uma sonora idiotice achar que há um plano diabólico do Partido Comunista Chinês por trás de sua vacina.
Se o horizonte no front da saúde pública é turvado pelo nevoeiro, na economia o cenário também é confuso e preocupante. O ufanismo governamental pode até tentar pintar de cor de rosa a realidade, mas o Brasil fechará o ano com uma dívida pública equivalente a 100% do PIB, um déficit primário de cerca de 860 bilhões, títulos do Tesouro Nacional sendo negociados com prazos cada vez mais curtos e juros cada vez mais altos, dólar batendo recordes de valorização e o mercado financeiro e de capitais nervoso e desconfiado.
Não é para menos. Amanhã entraremos em novembro e faltarão apenas oito semanas de trabalho parlamentar. A LDO ainda não foi votada. A Comissão Mista de Orçamento sequer foi instalada. O Orçamento Geral da União, que é a bússola necessária para sinalizar como lidaremos com a enorme restrição fiscal em 2021 e afastar especulações sobre experimentos heterodoxos e extravagantes, poderá não ser votado. As propostas de emendas constitucionais do pacto federativo, emergencial e dos fundos públicos e suas variantes, que poderiam flexibilizar a execução orçamentária, descansam empoeiradas nas gavetas. A dois meses do final do ano, os 64 milhões de brasileiros beneficiados pelo auxílio emergencial durante a pandemia não têm ideia do que ocorrerá em janeiro. E os 17 setores desonerados? Qual a previsão para o início do próximo ano? Nenhuma.
As reformas tributária e administrativa empacaram diante da falta de apetite reformador do governo. As privatizações naufragaram no vácuo de liderança e de apoio parlamentar. Medidas desburocratizantes e a abertura externa caminham a passo de tartaruga. O Congresso, que tanto tem a deliberar ainda em 2020, está bloqueado em suas votações por obstrução parlamentar, instrumento clássico das oposições. Mas aqui não, é a própria base do Governo liderada pelo “Centrão” que obstruí os trabalhos.
Para Ariano Suassuna, o otimista é um tolo e o pessimista um chato. Mas está difícil ser “um realista esperançoso” diante dos fatos que marcam o final de ano de um Brasil mergulhado na pandemia.
*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)
Ascânio Seleme: Saúde é o que interessa
Nos Estados Unidos esse debate ocorre em todas as campanhas presidenciais
Como alguém pode defender a suspensão do financiamento público para a assistência à saúde de uma importante parcela da população num debate eleitoral e obter voto com isso? O que você acha que aconteceria no Brasil se um candidato a presidente defendesse o fim do SUS? Outro dia mesmo, o governo Bolsonaro teve de recuar e se retratar menos de 24 horas depois de aventar a possibilidade de privatizar postos de saúde. Imagine o que ocorreria na França se o presidente Emmanuel Macron resolvesse parar de usar recursos da federação para pagar o equivalente a 60% dos custos nacionais com a saúde. Nem a pandemia seguraria as pessoas em casa. Macron seria escorraçado do Palácio do Eliseu e o candidato brasileiro seria varrido da política.
Nos Estados Unidos esse debate ocorre em todas as campanhas presidenciais. Agora mesmo, Donald Trump ataca seu adversário Joe Biden em razão do Obamacare, uma lei promulgada pelo ex-presidente Barack Obama que, se nem de longe se parece com o atendimento universal dado pelo SUS, garante planos de saúde com preços mais acessíveis e financia com recursos públicos o atendimento aos comprovadamente pobres. Trump ataca a lei com o argumento de que seu custo impacta sobre todos os que pagam impostos e chama Biden e os democratas de socialistas radicais em razão desta política. Uma piada.
Estaria frito se fosse aqui. Mesmo os eleitores da direita bolsonarista aprovam a política de proteção social brasileira. Por isso, aliás, o governo quer ampliar o Bolsa Família. Nos EUA, contudo, o argumento dá votos. A pergunta que se faz é como Trump pode atrair eleitores com um discurso que se lido de forma correta significa deixar sem tratamento médico, sem atendimento hospitalar e sem remédios, para morrer em casa, qualquer pessoa que ganhe pouco ou esteja desempregada? O fato de os Estados Unidos serem um país rico não responde nem explica a questão. O país é rico, mas seu povo nem tanto.
Os bolsões de pobreza se espalham por todos os EUA. São 41 milhões de pobres, ou 13% da população, de acordo com pesquisa oficial baseada na renda e nas necessidades nutricionais das pessoas. Todas estas pessoas, absolutamente todas, têm acesso negado por restrições financeiras a médicos e hospitais e não possuem recursos ou reservas que lhes permitam comprar medicamentos. Milhões de outras, com renda superior a US$ 25 mil ano (R$ 145 mil), não conseguem pagar planos de saúde. São inúmeros os casos de americanos que são obrigados a vender suas casas para poder pagar a conta de hospitais. Trata-se de uma tragédia, e toda a nação sabe disso.
Um sexto da população (1,5 milhão de pessoas) de Nova York, a cidade mais rica do mundo, depende da distribuição comunitária de comida para se alimentar, conforme revelou O GLOBO na quinta-feira passada. Neste caso, a pobreza foi acentuada pela pandemia que ceifou empregos urbanos e impediu a comercialização de produtos de milhares de produtores estabelecidos no cinturão agrícola da cidade. Mas uma boa parcela desse contingente não tem qualquer renda e vive às custas de indivíduos e instituições privadas que as recolhem, abrigam e alimentam, com ou sem coronavírus.
Na campanha americana que se encerra terça-feira, Trump tem torpedeado sistematicamente o Obamacare. Ele fez a mesma coisa na campanha de 2016, quando ganhou de Hillary Clinton. Eleito, conseguiu introduzir uma emenda, enfraquecendo a lei. Biden quer ampliar o plano, pagando com dinheiro público os planos de saúde de quem não conseguir arcar com seus custos. O plano obviamente beneficia os mais pobres e as comunidades mais vulneráveis. Segundo o “Politico”, um site americano de notícias, os ataques de Trump ao Obamacare ameaçam essas minorias e as comunidades negras, que já foram desproporcionalmente atingidas pelo coronavírus.
Por isso também o melhor é eleger Joe Biden.
Petrobras 1
Por que a Petrobras se nega a entregar para a defesa de Lula os documentos dos três acordos que fez nos Estados Unidos em razão dos escândalos da era petista? A estatal diz que os dados (mais de 75 milhões de páginas) não tratam de corrupção, mas de apenas falhas contábeis, e que por isso não interessam à defesa do ex-presidente. Quem escarafunchou a papelada diz que não é bem assim, que os documentos enviados ao Departamento de Justiça (DOJ), à SEC, que é a comissão de valores local, e à Justiça de Nova York têm um capítulo inteiro só sobre corrupção. E nele, a petroleira não cita Lula nem o PT, acusando apenas cinco ex-diretores da companhia e dois ex-governadores. As ações foram abertas nos EUA para indenizar investidores que perderam dinheiro com a queda do valor de mercado da estatal em razão do escândalo.
Petrobras 2
No Brasil, a Petrobras participou dos diversos julgamentos da Lava-Jato como assistente da acusação, e assinou as denúncias em que Lula é acusado de chefiar uma organização criminosa, de enriquecimento ilícito, de lavagem de dinheiro y otras cositas más. A incoerência entre o que a Petrobras assinou aqui e os documentos que enviou à Justiça americana, que beneficiaria Lula, só se tornará oficial se os dados forem entregues aos advogados do ex-presidente por ordem judicial. Depois de ter sua petição negada pela primeira instância em Curitiba e pelo STJ, a defesa aguarda agora manifestação final de Edson Fachin. O ministro do STF prestaria um bom serviço à Justiça liberando os documentos.
Petrobras 3
Para não virar ré nos EUA, a Petrobras concordou em pagar US$ 4,8 bilhões (R$ 27,7 bi) em multas. O valor é sete vezes maior do que as sentenças da Lava-Jato devolveram aos cofres da estatal.
Meio paulista meio bolsista
O PT está mal nas eleições municipais mesmo nos locais onde sempre foi grande. No seu berço paulistano, onde controla sindicatos, tem ascendência nas universidades e opera muito bem com o funcionalismo, viu Guilherme Boulos (PSOL) jogar poeira sobre Jilmar Tatto. No Nordeste, onde controlou o eleitorado por mais de uma década com sua política de bolsas, também patina enquanto velhos e novos adversários voam. Só está bem em Porto Alegre, onde manteve por anos uma disputa acirrada com o PDT de Brizola, mas lá aliou-se à Manuela D’Ávila (PCdoB) e abriu mão da cabeça da chapa.
Manuela e Boulos
Resta saber se Manuela e Boulos já entenderam que estão ficando grandes. Se observaram que o farol da esquerda está jogando luz em outra direção. Difícil dizer, mas o mais provável é que o espírito nanico os faça sair dessa eleição ainda incensando o PT.
O disco do João
João Santana, o ex-marqueteiro petista que foi preso por lavagem de dinheiro e hoje cumpre prisão em regime aberto, deu entrevista ao programa Roda Viva na segunda-feira passada, onde aproveitou para lançar um disco que foi para o streaming na mesma noite do encontro na TV Cultura. Você pode até concordar com algumas das histórias contadas por Santana, mas duvido que consiga se alinhar a ele quando a questão é a música e letra, a menos que concorde que “o ouro é o suor do sol e a prata é a lágrima da lua”. Seu disco é uma porcaria.
Off
Ao pedir que ministros não falem em off, Bolsonaro mostrou que não apenas desconhece a alma humana como não tem a menor noção de como se faz comunicação social. Mas, claro, sua assessoria nessa área simplesmente não existe. O que ele tem no Planalto é um grupo despreparado, que se diz ideológico e que só sabe fazer política. Pedir para ministro não falar nunca funcionou, excelência. Outros já tentaram e nenhum jamais conseguiu calar a boca dos fofoqueiros. Não vai ser agora.
Lastro ideológico
Esta é a denominação que se usa para justificar qualquer absurdo ou profanação do bem comum que se cometa na Praça dos Três Poderes ou na Esplanada dos Ministérios. E tem quem acredita na bobagem.
Se virando
O Old Vic Theater, teatro londrino inaugurado em 1818, vendeu 30 mil ingressos em 73 países ao longo da pandemia para peças que encena ao vivo pelo streaming. Considerando que tem 1.067 assentos, o velho teatro fez o equivalente a 28 noites de lotação esgotada. Ou nove fins de semana (de sexta a domingo) de casa cheia. Nada mal.
Blitz
A Airbnb e a Booking.com, duas das maiores plataformas de venda de hospedagem no mundo, foram intimadas pelas autoridades tributárias do Distrito Federal para colaborarem numa operação contra a sonegação. Elas devem informar ao fisco o volume das operações realizadas em 2019, indicando nomes e cpfs de quem vendeu estadias ao longo do ano passado e quanto eles faturaram. A indústria hoteleira considera a atividade como concorrência desleal. A ação tem tudo para fazer barulho.
Humilhação
O pavor de Donald Trump não é perder a eleição e sair da Casa Branca quatro anos antes do planejado. Sua agonia é a vergonha que terá de passar por ser considerado um “loser”, um fracassado. Na história recente, só Jimmy Carter e George Bush pai foram presidentes de um mandato só. Trump se somaria a estes, mas sem a coragem do primeiro e a elegância do segundo.
Maria Cristina Fernandes: Faísca, o SUS e o Rubicão dos liberais
Teto de gastos pode se mostrar curto demais para abrigar vacinas e empregos
Na segunda-feira, o governador de Minas Gerais, Romeu Zema, terminou, pelo Palácio do Planalto, uma agenda de visitas a autoridades em Brasília. Tratou de privatizações no BNDES e do socorro fiscal a seu Estado na Câmara dos Deputados. Com o presidente Jair Bolsonaro, resolveu acrescentar mais um tema, a vacina contra a covid-19.
Na entrevista que se seguiu, o governador conseguiu subir ao pódio do campeonato de disparates da atual temporada: “Sou de um partido liberal. Sou da opinião que quem quiser, deve se vacinar. Mas sou da opinião também que uma empresa que empregue mil funcionários exija, de alguém que trabalhe lá, que seja vacinado porque, caso contrário, ele pode representar risco para os outros. Então sou sempre favorável à liberdade do ser humano.”
Pela declaração do governador conclui-se que o dono da empresa que a comanda pelo zoom tem o direito de não se vacinar, mas ao funcionário do chão de fábrica resta apenas o dever de fazê-lo. Único governador eleito pelo Novo, Zema sugere um velho dilema: a liberdade do ser humano termina onde começa a necessidade de manter as empresas em funcionamento.
O ex-prefeito de Belo Horizonte, ex-ministro e hoje deputado federal Patrus Ananias (PT-MG), viu na declaração do governador a “privatização do ordenamento jurídico”. O governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), foi além e identificou resquícios da “mentalidade escravocrata”. No dia seguinte, o governador voltaria a se pronunciar sobre a vacina num tom dois degraus abaixo dizendo que se tratava de um tema mais de “consciência do que de obrigatoriedade”.
A declaração de Zema foi a cereja de um falso debate. Desde o estabelecimento do Plano Nacional de Imunização, em 1973, as leis sobre o tema preveem algum grau de compulsoriedade - vide o Estatuto da Criança e do Adolescente, a lei que criou o Bolsa Família ou até mesmo a primeira lei de enfrentamento da pandemia (13.379) em fevereiro deste ano.
Foi assim que o SUS, com um portfólio de 19 vacinas, uma das maiores ofertas públicas do mundo, chegou a erradicar doenças como poliomielite e varíola. Hoje enfrenta as notícias falsas, a fronteira com a Venezuela, o desaparelhamento de postos de saúde e o sucateamento da produção nacional para evitar que doenças como sarampo, já detectado em 21 Estados, voltem a se disseminar.
Nas pesquisas de opinião sobre a vacina da covid-19, a adesão supera 70%. Por isso, sanitaristas respeitados têm dito que não precisa obrigar a vacina, basta torná-la disponível e garantir que a população tenha acesso. Era assim que acontecia quando o tema era tratado acima das disputas políticas. O ex-ministro da Saúde e ex-governador José Serra (PSDB) posava vacinando o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), por quem havia sido derrotado.
Hoje o presidente da República sugere que só leva Faísca, seu cachorro, para se vacinar e diz que a cloroquina é mais importante que a vacina. Por outro lado, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), que exibe a parceria da Sinovac com o Butantã como vitrine de sua guerra pela ciência, não desistiu de garfar a Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (Fapesp). Depois de recuo na Assembleia Legislativa, apresentou novo projeto (PL 627) para congelar 30% de seus recursos.
A guerra da vacina contaminou outros governadores, como Ratinho Jr (PSD), do Paraná, e Rui Costa (PT), da Bahia, que firmaram acordos com o instituto Gamaleya, para que as fábricas de seus Estados (Tecpar e Bahiafarma) produzam a vacina russa. O recuo federal na compra da Coronavac pelo SUS levou governadores a imaginar que poderiam repetir, com a vacina, os consórcios formados para a compra de ventiladores.
O alvoroço levou à precipitação do presidente do Supremo, Luiz Fux. Depois de ter provocado um surto da covid-19 na Corte com sua posse, o ministro resolveu que chegara a hora de convocar as partes a entrar na justiça. Se inexiste vacina, não dá para dizer que há direito sendo negado.
No afogadilho, a primeira vítima é a obviedade. Primeiro vem o estabelecimento dos critérios de eficácia e segurança testados pela Anvisa, depois a possibilidade de produção e fornecimento. Se ainda houver algo a ser definido que não conste da legislação, ou garantias que precisem ser reforçadas dada a presença do rei do agito no Palácio do Planalto, parece ser atribuição do Congresso e não do Supremo.
O alvoroço levou muitos a imaginar que poderiam replicar o atropelo dos ventiladores, quando a falta de coordenação nacional do Ministério da Saúde levou governadores a formar consórcios e outros, quadrilhas. Com vacina é diferente. Um Estado pode colocar uma equipe de médicos e fisioterapeutas para testar respiradores, mas não há como contornar o papel da Anvisa e do SUS na certificação e na distribuição da vacina.
Outra dificuldade é que não estão assegurados os recursos estaduais para um programa de imunização. Este sempre foi um gasto federal. Se os Estados tiverem que bancá-lo vai ficar difícil arrumar dinheiro para manter as Unidades Básicas de Saúde (UBS).
É este o pano de fundo da trapalhada desta quarta-feira em torno do decreto para estudar a viabilidade de parcerias público-privadas (PPIs) para a construção e gestão das UBS. O financiamento da saúde é um dos buracos negros do orçamento de 2021. Se o SUS não cabe no teto de gastos, não está claro como a terceirização de seus serviços pode vir a caber. Alguém vai ter que pagar a conta. O mais provável é que sejam aqueles que ganharão uma vacina do governador de Minas e perderão o emprego.
Do jeito que foi apresentado, o tema pareceu nascido de um governo que não sabe como enfrentará o ano que vem, quando se aproximará do que o ex-porta-voz da Presidência chamou de Rubicão. Pra quem achou que já tinha visto tudo, o general Otávio do Rêgo Barros, avisou que, para atravessá-lo, aquele a quem chamou de ‘governante piromaníaco’, ainda tem um arsenal de “atos indecorosos, desalinhados dos interesses da sociedade”.
Bruno Boghossian: Decreto mostra que Bolsonaro prefere assinar primeiro e perguntar depois
Presidente parece não conhecer planos de subordinados ou não tem coragem de bancá-los
Em outubro do ano passado, Jair Bolsonaro editou um decreto que abria caminho para vender a operação da Casa da Moeda. A empresa era uma das prioridades na lista de privatizações do governo, mas o plano não saiu do papel. Depois de assinar a medida, o próprio presidente reclamou da proposta.
“Queriam privatizar a Casa da Moeda. Aí, o pessoal fala, eu interferi”, disse Bolsonaro, há poucas semanas. “Eu achei que não era o caso, tendo em vista informações que eu tive de outros países que privatizaram e depois voltaram atrás.”
Bolsonaro pode até dizer que considera a venda da estatal uma má ideia. Mas ele também poderia explicar por que saíram do gabinete presidencial dois documentos que abriam caminho para a privatização: aquele texto de outubro e uma medida provisória que quebrava o monopólio da empresa, no mês seguinte.
A desordem se repetiu agora, com o decreto do governo que incluiu as unidades básicas de saúde num programa de parcerias com a iniciativa privada. O documento assinado pelo presidente foi publicado na última terça (27) e revogado um dia depois.
Dessa vez, Bolsonaro não criticou a própria decisão. Ele afirmou que aquele não seria um movimento de privatização do SUS e que o objetivo era concluir obras e permitir que os cidadãos fossem atendidos na rede privada. Mas resolveu revogar a medida e prometeu reeditar o decreto “em havendo entendimento futuro dos benefícios propostos”.
O presidente mostrou mais uma vez que prefere assinar primeiro e perguntar depois. Em vez de discutir os tais “benefícios propostos” com gestores do Sistema Único de Saúde, o governo se apressou. Caso ninguém tivesse percebido, o decreto teria continuado de pé.
A equipe econômica entregaria até as emas do Palácio da Alvorada à iniciativa privada, se pudesse. O presidente endossou essa agenda na campanha, mas parece não conhecer os planos de seus subordinados ou não tem coragem de bancá-los. Bolsonaro governa por acidente.
Bernardo Mello Franco: O negócio da saúde
O ensaio de privatização do SUS resumiu, em um episódio, quatro características do governo Bolsonaro: insensibilidade social, autoritarismo, falta de transparência, voracidade para fazer negócios.
Ontem o Diário Oficial trouxe um decreto que dispunha sobre a “qualificação da política de fomento ao setor de atenção primária à saúde no âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência da República, para fins de elaboração de estudos de alternativas de parcerias com a iniciativa privada”.
Com o palavrório, abriu-se uma porta bilionária para a privatização das unidades básicas de saúde, que atendem até 80% dos problemas dos brasileiros.
Avesso à participação social, o governo não ouviu os conselhos de saúde, as entidades médicas ou os gestores locais. O ministro decorativo da Saúde, Eduardo Pazuello, também foi ignorado. Neste mês, o general admitiu que assumiu a pasta sem saber o que era o SUS. Dias depois, reconheceu que está no cargo para cumprir ordens. “Um manda, o outro obedece”, explicou.
A Constituição define a saúde como “direito de todos e dever do Estado”. Com a canetada de Jair Bolsonaro e Paulo Guedes, o sistema público, universal e gratuito seria rifado a operadores privados. A experiência com as organizações sociais (OSs) dá uma ideia de onde isso poderia parar. No Rio, o modelo produziu escândalos de corrupção, precarização de serviços e calotes em servidores.
Para os empresários da saúde, a privatização seria uma mina de ouro. Além de lucrar com o atendimento, eles receberiam informações coletadas desde o nascimento dos pacientes. Um fabuloso banco de dados para impulsionar novos e velhos negócios.
Num país em que 71,5% da população não conseguem pagar um plano de saúde, as UBSs garantem consultas, exames, remédios e vacinas de graça. Privatizá-las significaria quebrar a espinha do SUS. Apesar de todas as dificuldades, o sistema reafirmou sua importância no combate à pandemia. Isso explica a pressão que obrigou Bolsonaro a revogar o decreto um dia depois de publicá-lo.
Ricardo Noblat: Bolsonaro, um presidente acidental, outra vez dá meia volta volver
Marcha soldado, cabeça de papel
Bolsonaro nada aprendeu em 30 anos de vida pública. Em compensação, nada esqueceu. De duas, uma. A inclusão das unidades básicas de saúde num programa de parcerias com a iniciativa privada era uma boa ideia, e por isso ele assinou o decreto publicado, anteontem, no Diário Oficial. Ou então era uma má ideia, e por isso ele revogou o decreto 24 horas depois.
Algo semelhante aconteceu na semana passada quando Bolsonaro disse que a vacina chinesa contra a Covid-19 jamais seria comprada. Foi uma humilhação para o general Eduardo Pazuello, ministro da Saúde, especialista em logística, que anunciara a compra da vacina. Mas, em seguida, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária desautorizou Bolsonaro, e ele calou-se.
O ator Ronald Reagan foi um dos presidentes mais aclamados da história dos Estados Unidos. Detestava pegar no pesado. Não gostava de governar. Entendia de poucas coisas. Soube cercar-se, porém, de auxiliares competentes. Bolsonaro é quase tão ignorante quanto Reagan. Pegar no pesado não é com ele. Gosta do poder, de governar, não. Cercou-se de auxiliares incompetentes.
Onde já se viu assinar um decreto de tal importância, que necessariamente alcançaria larga repercussão como era fácil de prever, sem antes discuti-lo com os mais diretamente interessados e também com representantes do distinto público? Por unanimidade, os secretários estaduais de Saúde rechaçaram o decreto. O distinto público matou-o a pau sem dó nem piedade.
O movimento nas mídias sociais em defesa do Sistema Único de Saúde registrou a maior repercussão negativa via Twitter de uma medida do governo Bolsonaro desde janeiro de 2019. Dados levantados pela consultoria Arquimedes registram que 98,5% das menções feitas sobre o tema foram desfavoráveis ao decreto. A consultoria analisou mais de 150 mil referências.
Se não liga para o que lhe diz o ministro da Saúde, Bolsonaro liga em demasia para o que lê nas redes. Ali, estava acostumado a ver suas decisões aprovadas sem grandes discussões. De uns tempos para cá, parte delas passou a ser rejeitada. Foi o caso da demissão de Sérgio Moro, do seu comportamento na batalha contra o coronavírus e da aliança com o malsinado Centrão.
O mais bizarro: ao anunciar a revogação do polêmico decreto, Bolsonaro afirmou que ele era muito bom, sim senhor, e que poderá mais tarde ser reeditado. É mais fácil concluir que ele simplesmente não sabe direito por que assina certas coisas. Só sabe por que recua depois – mas isso não conta. Recua com medo de não se reeleger. É só o que lhe importa e orienta.
Míriam Leitão: Governo perdido e decreto sem dono
Qual é o pior momento para se juntar a palavra “privado” com a expressão “saúde básica” ? Resposta: no meio de uma pandemia, em que temos um ministro da Saúde convencido de que sua única função é obedecer ao presidente, sendo o presidente a pessoa que diariamente atormenta a área com péssimas ideias: ora um remédio sem comprovação científica, ora a negação da ciência, ora a campanha contra a vacina. O governo Bolsonaro conseguiu. Ele vai entrar no livro “Guinness” como o governo mais capaz de ter ideias ruins e na hora errada. Como, por exemplo, quando quis cobrar imposto de desempregado numa escalada de desemprego.
No final, o decreto que o governo havia baixado incluindo as Unidades Básicas de Saúde no Programa de Parceria de Investimentos (PPI) foi revogado. Esta pandemia nos mostrou o valor de se ter o Sistema Único de Saúde (SUS). Público. É conquista da Constituição que o líder do governo Ricardo Barros diz que tornou o país ingovernável. O que dificulta é uma administração sem rumo, atirando a esmo, e agravando as aflições do país no meio de uma pandemia.
Essa ideia de incluir a porta de entrada do SUS num programa que pode levar à privatização é ruim em qualquer momento, mas no meio da maior crise da saúde do mundo é ainda pior. Imediatamente políticos e especialistas se mobilizaram contra o decreto. Diante da reação, o Planalto lavou as mãos e mandou o Ministério da Economia se explicar. Lígia Bahia, professora de economia da saúde da UFRJ e colunista deste jornal, disse que o ministro Paulo Guedes deveria se preocupar com o desemprego, as empresas quebradas e a redução da renda, e completou: o “Brasil precisa de paz”. E paz é o que não temos tido em nenhuma área, notadamente na saúde.
A lista dos afazeres do ministro Guedes é grande. Inclui a resposta que precisa ser dada contra a crise fiscal que o país enfrenta. Os sinais são cada vez mais preocupantes. Ontem, o dólar encostou em R$ 5,80 e obrigou o Banco Central a vender US$ 1 bilhão à vista. O mercado financeiro, que havia comemorado a volta da bolsa brasileira acima dos 100 mil pontos, viu novamente o índice ter uma forte queda diária, voltando aos 95 mil. O investidor pessoa física que saiu da renda fixa para a bolsa precisa ter nervos de aço diante da oscilação dos últimos meses. Quem entrou no início do ano está vendo seu patrimônio reduzido. O país está sem horizonte na economia. Não há um plano para sair da crise. Há apenas ruídos ocupando o lugar de decisões de governo que deveriam ter sido tomadas. Como essa sandice criada pelo decreto das UBS.
Para o Banco Central, contudo, tudo está bem. No dia em que a bolsa caiu 4,5% ele escreveu no comunicado de ontem que “a moderação na volatilidade dos ativos financeiros segue resultando em um ambiente relativamente favorável para economias emergentes”. A propósito, uma comparação feita pela economista Fernanda Consorte entre moedas de países emergentes mostra que o real brasileiro é, como ela disse, o patinho feio. Desvalorizou-se 42%, enquanto a média em outras 15 moedas foi de 12%.
O BC fez o que todos esperavam. Manteve os juros em 2%. Mas foi otimista ao descrever o ambiente econômico. No dia em que a França e a Alemanha decretam novo lockdown ele diz que “no cenário externo, a forte retomada em alguns setores produtivos parecem sofrer alguma desaceleração”. Admite que “algumas leituras de inflação foram acima do esperado”, mas disse que as diversas medidas estão “compatíveis com o cumprimento da meta no horizonte relevante”. O Banco Central admite que o risco fiscal é elevado, mas avisa que não pretende subir os juros — “reduzir o grau de estímulo monetário” — desde que “condições sejam satisfeitas”. E o comunicado diz que estão satisfeitas essas condições: a inflação está abaixo da meta, “o regime fiscal não foi alterado”, e “as expectativas de inflação permanecem ancoradas”.
Por falar em regime fiscal inalterado, a cada dia o governo concede uma vantagem para um setor. Ontem foi sancionada lei que prorroga incentivos à indústria automobilística até 2025, dias atrás foi reduzido o imposto do setor de games, e na semana passada virou permanente um benefício para multinacionais de bebidas na Zona Franca. Cada um, isoladamente, pode parecer pouco, mas o caminho devia ser exatamente o oposto.