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Adriana Fernandes: Bolsonaro foi o gatilho para movimento fura-teto na véspera da votação da PEC

Presidente deixou, mais uma vez, a equipe econômica isolada dentro do governo, ao pedir pela retirada do Bolsa Família do teto

O presidente Jair Bolsonaro foi um dos principais patrocinadores da proposta de exclusão do programa Bolsa Família do limite do teto de gastos na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) do auxílio emergencial.

O chefe mandou. Essa foi a razão pela qual vários senadores governistas passaram a cravar entre terça-feira e ontem a aprovação da medida com a ajuda também de outros senadores, inclusive da oposição, que sempre foram contrários à regra que limita o crescimento das despesas à variação da inflação.

A coluna apurou que o presidente pressionou muito para que a proposta fosse incluída na PEC, enquanto a equipe do seu ministro da EconomiaPaulo Guedes, e o presidente do Banco CentralRoberto Campos Neto, se desdobravam na busca de apoio do mercado financeiro e de congressistas para enterrar a proposta.

A posição de Bolsonaro foi o gatilho que faltava para os senadores embarcarem nesse movimento fura-teto na véspera da votação da PEC.

A empolgação foi grande. Fontes relataram que as propostas para deixar o programa fora do teto variaram entre R$ 35 bilhões (o orçamento do programa previsto para 2021), R$ 60 bilhões até chegar em R$ 150 bilhões para 2021 e 2022.

A meta de déficit das contas do governo de R$ 247,1 bilhões para 2021 teria que subir no mínimo para R$ 282,1 bilhões. Como retratou o economista Caio Megale, da XP, o céu é o limite.

O movimento do presidente deixou mais uma vez a equipe econômica, incluindo também o BC, isolada dentro do governo. Por trás, a intenção política é abrir espaço no Orçamento para obras e os pedidos de ampliação de emendas.

O problema detectado de antemão é o que mostram números recentes obtidos pela reportagem do Estadão/Broadcast apontando um buraco de R$ 17 bilhões no limite do teto de gastos no Orçamento de 2021. Ou seja, seria preciso arrumar esse espaço no teto. Em relação à meta fiscal, as projeções apontam uma necessidade de arrumar R$ 20 bilhões.

O complicador é que o projeto de Orçamento foi enviado sem folga no teto, com as despesas batendo o limite previsto para este ano, de R$ 1,48 trilhão. Os parlamentares receberam esses números e viram a encrenca que será 2021 sem margem orçamentária para fazer quase nada.

O mercado entrou em polvorosa ao longo do dia com a Bolsa derretendo mais de 3% e o dólar perto de R$ 5,75 até que o presidente da CâmaraArthur Lira, garantisse, pelo Twitter, que o teto seria respeitado, enquanto o ministro palaciano Luiz Eduardo Ramos, articulador político do governo, atribuía a articulação para tirar despesas do teto a uma mera especulação no mercado financeiro. Ninguém acreditou.

Em meio ao tumulto e desorganização, alguns senadores também começaram a ficar incomodados de ficarem expostos sozinhos no movimento fura-teto sem Bolsonaro botar as caras no carimbo da medida. 

Diante da possibilidade de derrota no Senado, Guedes, que tem defendido com unhas e dentes a PEC com as medidas de controle de despesas, conhecidas como gatilhos, foi até o Tribunal de Contas da União se reunir com o ministro Bruno Dantas que alertara para o risco de a PEC desfigurar o teto de gastos e o texto constitucional com outras medidas aprovadas no afogadilho.

Dantas chegou a recomendar a edição de uma MP sem a necessidade da PEC para o pagamento do auxílio.

Ao insistir em acoplar o auxílio à aprovação de reformas que só terão efeitos entre 2024 e 2025, o ministro Paulo Guedes cometeu, na avaliação de muitos políticos experientes, um erro estratégico por conta da piora da pandemia, ampliando o seu desgaste depois da troca de comando da Petrobrás.

O episódio da Petrobrás não só enfraqueceu a posição de Guedes nas negociações da PEC como marcou um ponto de mudança de política do governo.

Bolsonaro tomou gosto de enfrentar o mercado. Só não colocou na conta até agora que, da véspera da demissão de Roberto Castello Branco até essa semana, o dólar já mudou de patamar: saltou de R$ 5,41 para um patamar em torno de R$ 5,70.

O irônico dessa crise é que o IBGE divulgou ontem uma queda do PIB de 4,1% em 2020, um dado positivo diante do estrago da pandemia no ano passado. Se não fosse a postura do presidente, muitos governadores e prefeitos, na condução da crise sanitária, a vacinação estaria a todo vapor e a economia em recuperação. O que vemos é mortes, colapso no sistema de saúde e desorganização na economia. Continuamos também sem auxílio e com milhões de pessoas esperando esse socorro que não chega.


Roberto Macedo: Prossegue a tragédia do PIB brasileiro

Quanto a políticas públicas em contrário, confesso meu pessimismo

O relatório do IBGE sobre o produto interno bruto (PIB) do quarto trimestre e do ano de 2020, divulgado ontem, é mais um amontoado de más notícias e outro retrato da tragédia por que passa o PIB brasileiro. Este caiu 4,1% em 2020, principalmente como resultado do impacto da covid-19.

Logo que a covid surgiu, houve previsões de queda próximas de 9% A política econômica governamental moveu-se em sentido contrário, como no auxílio emergencial e no crédito, mas uma queda de 4,1%, mesmo supondo que poderia ter sido pior, é por si mesma muito alta. E lamentável. Aliás, o relatório aponta que foi a pior taxa desde que a série dados foi iniciada em... 1996 (!). E mais: o PIB per capita, ou por habitante, caiu ainda mais, 4,8%, pois a população segue aumentando.

Em retrospecto, em 2020 as taxas trimestrais, relativamente ao trimestre imediatamente anterior, foram de -2,1% no primeiro, -9,2% no segundo, 7,7% no terceiro, e 3,2% no quarto. Esse movimento de descida e subida costuma ser chamado de recuperação em V, mas ele veio com sua haste direita sem voltar à mesma altura da haste esquerda. Assim, fazendo essa altura no último trimestre de 2019 igual a 100, em 2020 o PIB caiu para 89 no ponto mais baixo do V e alcançou 98,8% no alto de sua haste direita com as taxas positivas verificadas nos dois últimos trimestres do ano. Também se pode dizer que o PIB passou por uma recessão no primeiro semestre de 2020, que foi interrompida no segundo, mas sem voltar ao valor que tinha no final de 2019. Além disso, por conta desse V a média do PIB em 2020 ficou bem abaixo da média de 2019, o que levou a essa queda de 4,1%.

É importante colocar essa taxa no contexto mais amplo da tragédia do PIB brasileiro. Voltando à década passada, desde 2015 o PIB entrou num buraco do qual não saiu até hoje. No detalhe o relatório mostra isso, mas não há referência ao assunto na notícia do documento. Um dos gráficos do relatório apresenta um índice do PIB trimestral entre o primeiro trimestre de 1996 e o quarto de 2020, e percebe-se que o valor mais alto ficou lá atrás, no primeiro trimestre de... 2014! Ou seja, sete anos depois ainda não voltamos a ele. Em 2015 começa um movimento lembrando um U bem rebaixado e estendido, mas cuja haste direita não retornou ao mesmo nível marcado pela esquerda em sua ponta. Isso define uma depressão, algo mais longo do que as duas recessões ocorridas durante o mesmo movimento, a de 2015-2016 e a da covid-19.

Venho insistindo em apontar essa depressão ainda em curso, mas o noticiário, a classe política e mesmo vários economistas parecem ignorá-la, ou negligenciar a busca do seu enfrentamento. Aliás, influenciados pelo que se passa nos países desenvolvidos, muitos economistas brasileiros focados na economia como um todo concentram sua atenção na chamada macroeconomia, que foca principalmente em movimentos cíclicos ou de curto prazo. Questões de longo prazo são negligenciadas. Além da referida depressão, merece destaque o fato de que desde a década de 1980 a economia brasileira está em estagnação ou cresce abaixo do seu potencial, e muito pouco se fala disso.

Com dados do PIB desde 2014, incluídos os de 2020, estimei que ele precisaria crescer um total perto de 7% a partir de 2021 para voltar ao seu valor de 2014, o que tomaria cerca de três anos aumentando perto de 2,4% ao ano, e com muitas incertezas pelo caminho. Assim, para ao final voltar ao PIB de 2014, tomaria nove anos! Ou seja, quase uma década para voltar a um PIB que o Brasil já havia alcançado antes!

Passo agora a uma visão setorial do último ano. Um gráfico do relatório abrange 12 subsetores da economia, oito mostraram desempenho negativo em 2020, com destaque para o subsetor de outras atividades de serviços e o de transporte, comunicação e correio. O primeiro teve a maior queda, de 12,1%, e o segundo caiu 9,2%, resultados condizentes com o maior impacto da crise da covid-19 nesses subsetores. Entre os que cresceram, destacaram-se o de atividades financeiras, de seguros e serviços relacionados (4%) e o de atividades imobiliárias exceto construção (2,5%). Este último teve queda de 7,8%, a terceira entre as maiores.

Enfim, esse é um quadro trágico do péssimo estado da economia brasileira. Quanto a políticas públicas em sentido contrário, confesso meu pessimismo com o cenário à frente. 2021 pode até mostrar um crescimento do PIB próximo de 3%, mas principalmente pelo fato de que 2020 teve média muito baixa, bastando a economia não cair mais este ano para mostrar algo até acima dos 2,4% citados. Bolsonaro não se interessa pelo assunto e até mesmo atrapalha com suas propostas, como ao interferir em estatais, gerar incertezas e desencorajar investidores. E a covid-19 voltou até com mais força, e sem um forte retrocesso também agravará a situação da economia. Mas, nesse mau contexto, pessoalmente hoje me sinto melhor, pois vou sair para tomar a vacina com que sonhava.

*Economista (UFMG, USP E HARVARD), professor sênior da USP. É Consultor Econômico e de Ensino Superior


Vinicius Torres Freire: PIB foi até melhor do que se esperava, mas Bolsonaro estraga surpresa

Investimento produtivo caiu pouco; mortes de Covid e os dedos do presidente são ameaça para 2021

O resultado do ano seria um desastre histórico certo e óbvio, “recorde”, por causa da epidemia. Mas a economia andou um pouquinho melhor do que o esperado no final do ano horrível de 2020. Um tanto mais impressionante, o investimento caiu pouco –trata-se aqui da despesa em novas construções, casas, instalações produtivas, máquinas, equipamentos etc.

Caso a economia mantivesse o ritmo de produção do último trimestre de 2020 ao longo de todo este 2021, o crescimento seria algo em torno de 3,7% ao final deste ano. Seria uma estagnação, trimestre ante trimestre. Mas, como o trimestre final de 2020 foi muito melhor do que o restante do ano desastroso, na média 2021 seria melhor.

Vai manter o ritmo?

Difícil saber, mas o ano começou fraco: a economia sentiu o fim do auxílio emergencial, mais do que o previsto pelos economistas. A nova onda de morticínio da epidemia já fez estragos no primeiro trimestre e terá efeitos também pelo menos ainda em abril –o setor mais danado da economia em 2020 foi o de serviços, que não vai se recuperar enquanto o vírus estiver livre para matar, com ou sem restrições de movimento. A vacinação é tardia. Se houvesse governo, pois, seria possível crescer mais do que 3,7% e quase recuperar pelo menos o que se perdeu em 2020.

O resultado mais notável do PIB do ano passado, vamos repetir, foi a queda até pequena do investimento (0,8%). No pior momento da recessão de 2016, por exemplo, o investimento chegou a cair 16,3% no primeiro trimestre daquele ano (na taxa acumulada em quatro trimestres). Por falar no terror de 2016, o crescimento da economia acumulado em quatro trimestres foi tão ruim ou pior do que o do 2021 em três trimestres (chegando a diminuir 4,5%).

Os auxílios emergenciais, o aumento da oferta de crédito, nos bancos e em parte facilitado pelo Banco Central, e a “reabertura” da economia a partir de outubro evitaram desastre ainda maior. Outra contribuição importante veio do comércio exterior (valor das exportações menos importações), que contribuiu positivamente com 1,2 ponto percentual para o PIB. As exportações não tinham tamanha peso no PIB pelo menos desde ao ano 2000.

Quais os problemas para 2021? Aqueles sabidos por qualquer pessoa adulta e sensata: o governo de Jair Bolsonaro deixa passar a boiada assassina do vírus e a vacinação ainda é lerda. De efeito menos visível para o observador comum, há a gestão entre incompetente e estúpida da economia. Se deixarem estourar as contas do governo e Bolsonaro continuar a “meter o dedo”, fazer intervenções demagógicas e contraproducentes, dólar e taxas de juros subirão ainda mais.

O choque de preços de commodities (grãos, petróleo) e de alimentos em geral, multiplicado ainda pela alta do dólar, chutou a inflação para cima. O IPCA acumulado em 12 meses deve chegar perto de 7% em meados do ano. Pode ser um choque temporário. Logo, o Banco Central não precisaria reagir de modo muito agressivo, elevando os juros rapidamente, embora no atacado de dinheiro do mercado as taxas tenham explodido.

Mas o choque de preços pode não ser temporário. A intervenções estúpidas do governo e a má gestão geral da política econômica podem fazer com que o dólar permaneça nas alturas (ainda mais se continuar a tendência de fortalecimento da economia americana e de altas de juros por lá). Os juros subiriam. A inflação comeria ainda mais poder de compra.

O medo da epidemia e de que o governo cometa mais tolices causa insegurança e desconfiança de consumidores e empresas. Seria mais um freio no PIB. O nome do risco é Bolsonaro.​

Renda média do brasileiro regride a 2009

A renda do brasileiro regrediu ao nível de 2009. Quer dizer, o PIB (Produto Interno Bruto) per capita de 2020 foi similar ao daquele ano da década passada. PIB per capita: o valor da produção ou da renda dividido pela população. Na verdade, a situação socioeconômica é pior: há mais desemprego e pobreza.

No ano passado, o PIB per capita diminuiu 4,8%. Baixas piores do que essa haviam ocorrido apenas em 1983 (recessão final da ditadura militar) e 1990 (recessão do Plano Collor).

Vai demorar para que a renda média volte pelo menos ao nível registrado no ano de 2014 (anterior ao do início da grande recessão, último ano do primeiro mandato de Dilma Rousseff).

Se o Brasil crescer 3,5% neste 2021 e 2,5% nos anos seguintes, o PIB (renda) per capita volta ao valor de 2014 apenas em 2026. Mais do que uma década perdida em termos de PIB, sem contar os desastres sociais e a degradação da capacidade produtiva (crescimento mínimo da infraestrutura, desqualificação dos trabalhadores, atraso tecnológico etc.)

Por que apenas 2,5% de crescimento ao ano, no futuro visível? Seria mais ou menos a capacidade atual de a economia brasileira crescer. Para ser mais, teria de haver aumentos de eficiência e/ou capacidade de investimento. É um chute informado, digamos. Pode ser que a capacidade básica ou média de crescimento tenha diminuído nestes anos.


Ribamar Oliveira: É facultativo, pero no mucho

Estado ou município que não fizer ajuste não terá aval da União

Muitos analistas e mesmo parlamentares reclamaram de um artigo da PEC 186, em votação no Senado ontem, que torna facultativo o acionamento de medidas de ajuste quando as despesas de um Estado ou de um município superarem 95% de suas receitas correntes. A conclusão de muitos é que, se o ajuste é facultativo, nenhum governador ou prefeito vai disparar os gatilhos das medidas, todas impopulares. O artigo pode se tornar, portanto, letra morta.

Há, no entanto, um detalhe que pode ter passado despercebido. A PEC estabelece que, se um Estado ou município estiver com suas despesas correntes superiores a 95% de suas receitas correntes, não poderá receber garantias da União ou de outro ente da federação ou fazer operação de crédito com a União ou outro ente da federação. Estão ressalvados somente os financiamentos destinados a projetos específicos, celebrados na forma de operações típicas das agências financeiras oficiais de fomento.

A proibição vai durar até que todas as medidas de ajuste elencadas na PEC 186 tenham sido adotadas, de acordo com declaração do respectivo Tribunal de Contas. As medidas abrangem proibição de concessão de aumento, reajuste, vantagem ou adequação de remuneração de servidor, criação de cargo ou função, realização de concurso público, alteração de estrutura de carreira, criação de despesa obrigatória e adoção de medida que implique reajuste de despesa obrigatória acima da variação da inflação.

O governador ou o prefeito que estiver gerindo um Estado ou um município em situação pré-falimentar poderá até não adotar medidas de ajuste, como, aliás, tem sido uma prática usual no Brasil. Mas, a partir da aprovação da PEC 186, ele não terá mais garantia da União para fazer operação de crédito. E não existe investimento público sem financiamento.

O comando que está sendo colocado na Constituição obriga, de forma indireta, o governador ou prefeito a ajustar suas contas, sob pena de nunca mais ter direito a aval da União ou de outro ente da federação para obter financiamento. E, sem o aval, eles não conseguem crédito no mercado ou, quando o fazem, é com taxa de juros proibitiva. Assim, acionar os gatilhos é facultativo, pero no mucho - para usar uma expressão dos hermanos argentinos e uruguaios.

O Tesouro Nacional utiliza a relação entre despesa corrente e receita corrente, entre outros indicadores, para calcular a capacidade de pagamento de Estados e municípios. De acordo com a análise da capacidade de pagamento (Capag) realizada pelo Tesouro em 2019, apenas 11 Estados possuiam nota A ou B, as quais permitem que o ente receba garantia da União para novos empréstimos.

O Boletim de Finanças dos Entes Subnacionais, relativo a 2019, mostra que em 12 Estados as despesas correntes superavam 95% das receitas correntes. Ou seja, estes são os candidatos a acionarem os gatilhos das medidas de ajuste fiscal, caso a PEC 186 seja aprovada. Os Estados de Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul tinham, em 2019, despesas correntes superiores a 100% de suas receitas correntes, de acordo com o Tesouro. Isto significa que os governadores não tinham receita suficiente para quitar suas contas e estavam atrasando pagamentos.

Ao inscrever no texto da Constituição a proibição de que Estados em situação pré-falimentar recebam aval da União, a PEC 186 evita o que ocorreu em passado recente, quando a ex-presidente Dilma Rousseff autorizou empréstimos para Estados com Capag indicando nota C e D. Na época, o governo disse que a intenção era permitir que os Estados aumentassem os seus investimentos. O resultado dessa política, no entanto, foi uma ampliação das despesas com os servidores.

Como a proibição estará no texto constitucional, os Estados não terão condições de pressionar o presidente da República, por meio de senadores e deputados, para obter aval para empréstimos ou financiamentos de bancos públicos, como aconteceu no passado. Esta mudança não é pequena. E poderá ser decisiva como estímulo para que governadores e prefeitos de Estados e municípios em situação pré-falimentar façam o dever de casa, ou seja, ajustem as contas.

Há na PEC um limite prudencial para os Estados e os municípios. Toda vez que as despesas correntes ultrapassarem 85% das receitas correntes, o governador ou o prefeito poderá adotar medidas de ajuste. Mas, para isso, terá que submetê-las ao Legislativo. Os deputados estaduais ou os vereadores terão um prazo de 180 dias para se pronunciar sobre as medidas. Se elas forem rejeitadas ou não apreciadas no período, elas perderão eficácia, mas os atos praticados terão validade durante o período em que vigoraram. Algo parecido com o que ocorre, atualmente, com as medidas provisórias, editadas pelo presidente a República.

Numerosas sugestões

A PEC 186 veda a vinculação de todas as receitas públicas a órgão, fundo ou despesa pública. Mas abre numerosas exceções. Foram excluídas as taxas, contribuições, doações, empréstimos compulsórios, repartição de receitas com Estados e municípios, receitas vinculadas ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) e ao Regime Geral de Previdência Social (RGPS), prestação de garantias na contratação de operações de crédito por antecipação de receita e receita destinada por legislação específica ao pagamento de dívida pública.

A nota técnica 7/2021, da Consultoria de Orçamento da Câmara dos Deputados, explica que as taxas, contribuições e empréstimos compulsórios são vinculadas por sua natureza jurídica, assim como a repartição de receitas com entes federados. A nota, de autoria dos consultores José Cosentino Tavares, Eugênio Greggianin e Ricardo Volpe, estima que, após todas as exclusões, o governo vai poder liberar R$ 72,9 bilhões.

Esta desvinculação vai ser, certamente, de grande ajuda para o governo administrar a dívida pública neste ano. Os recursos desvinculados dos Fundos, que ficam no caixa único do Tesouro no Banco Central, poderão ser usados no pagamento da dívida pública.


Maria Cristina Fernandes: Calamidade Pública S.A.

Bolsonaro faz escola com propostas que se desviam da covid

A publicidade da nova transação imobiliária do senador Flávio Bolsonaro não estava no roteiro com o qual o presidente Jair Bolsonaro se preparava para enfrentar o momento mais dramático da pandemia.

A ideia era não mexer em time que está ganhando, o do presidente, claro, capaz de manter inertes as instituições contra seu desgoverno na pandemia. E repetir a estratégia do ano passado, no recrudescimento da covid-19, quando jogou o verbo e a Polícia Federal pra cima dos governadores.

Desta vez, parecia óbvio que a nova travessura do primogênito dificultaria sua tentativa de demonstrar que o desespero dos governadores vem do desvio de recursos. A nova morada do senador, no entanto, não foi capaz de baixar o tom do presidente. É assim que ele desvia do assunto. Puxando uma briga ruidosa com os governadores.

Encontrou em João Doria o parceiro ideal para a encenação. Sem espaço no seu próprio partido, o governador de São Paulo investe na polarização com o presidente, mimetizando-o. Endurece o isolamento para cativar os insatisfeitos com o bolsonarismo, mas excetua os cultos religiosos para cativar a mesma plateia do presidente.

A entrada dos presidentes da Câmara e do Senado na mediação com os governadores é útil para Bolsonaro porque canaliza parte das insatisfações. Na carona da mediação, amaciou-se a resistência à fila dupla na vacinação. No mesmo projeto do senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG) com o qual foi reapresentada a prerrogativa de Estados e municípios de comprar vacina, abriga-se a aquisição pelo setor privado depois de esgotada a vacinação de grupos prioritários.

A mediação com os governadores também amplia os aliados com os quais o presidente da Câmara espera contar para forçar o teto de gastos para além do auxílio emergencial.

Bolsonaro faz escola. Se baixa decreto para ampliar a posse de armas, Lira cria grupo de trabalho para mudar a legislação eleitoral. Ambos têm em comum a capacidade de se valer de um país em choque pelas quase 2 mil mortes diárias para propor temas que nada têm a ver com a urgência do país.

As iniciativas de Lira obedecem a três grandes eixos: aumentar o controle parlamentar sobre o Orçamento, reduzir a competitividade eleitoral e mitigar o controle sobre a atividade parlamentar.

A investida tem método. A começar pelo próprio projeto pessoal de Lira. O deputado renovou seu mandato graças a liminar que o blindou da Lei da Ficha Limpa. Reeleito, trabalhou na adesão do seu bloco a Bolsonaro com o mesmo afinco dedicado ao desmonte do entulho lajavatista.

Avançou uma casa ao conseguir que Augusto Aras desfizesse a denúncia que o próprio procurador-geral da República havia feito. E andou mais duas com o arquivamento de uma das denúncias no STF. Mas a luta continua.

Ainda lhe resta mudar a Lei da Ficha Limpa e a da Improbidade. Para isso, ganham celeridade no Congresso tanto o grupo de trabalho que revisará a legislação eleitoral, comandado pelo PP, quanto o projeto de lei que suaviza a lei da improbidade administrativa, relatado pelo PT.

Uma das opções do deputado em 2022 é a disputa pelo governo de Alagoas. Para isso, precisa limpar seu nome. Se largar o mandato para disputar uma eleição majoritária, o foro dos crimes pelos quais hoje responde como deputado desce para a primeira instância em Brasília, onde subsistem juízes como Vallisney Oliveira.

A sorte de Lira é que ele não está só. Uma das missões do PL, por exemplo, aliado de primeira hora de Lira e partido do indefectível ex-deputado Valdemar Costa Neto, é recuperar a elegibilidade do ex-governador do Distrito Federal, José Roberto Arruda, condenado em duas instâncias por esquema de distribuição de propinas, e marido da nova presidente da Comissão Mista de Orçamento, Flávia Arruda (PL-DF).

O fracasso na PEC da Impunidade não desanimou Lira. Tem à mão uma pauta ecumênica, capaz de ampliar seu apoio na Casa. Basta ver o que está em curso com as tentativas de jogar o maior número de despesas possíveis para fora do teto de gastos. Ao tirá-las do teto, sobraria espaço para aumentar os valores das emendas com as quais os parlamentares esperam se reconduzir em 2022.

Se não for bem sucedido no aumento das dotações para emendas, Lira tem uma carta na manga para aumentar a execução daquelas que o Congresso conseguir aprovar. O presidente da Câmara investe no fim da intermediação das emendas pela Caixa Econômica Federal. É uma das demandas mais ecumênicas da Casa.

Até 2019, todas as emendas tinham a intermediação da CEF. No fim daquele ano, foi aprovada uma emenda constitucional que nasceu pelas mãos da então senadora Gleisi Hoffmann (PT-PR) em 2015 e foi relatada pelo deputado Aécio Neves (PSDB-MG) na Câmara.

Por esta mudança constitucional, o parlamentar pode optar por mandar os recursos de suas emendas individuais pela Caixa ou diretamente para os municípios. Mas os parlamentares querem mais. Pretendem estender a possibilidade de mandar diretamente para a prefeitura também para as emendas de bancada e de comissão.

A Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2021 foi aprovada com este dispositivo. O presidente o vetou e agora o Congresso se prepara para derrubá-lo. Os parlamentares alegam que a burocracia da CEF é gigantesca e retarda a liberação.

Como se trata do primeiro Orçamento pós-eleições municipais de 2020, os parlamentares estreitaram laços com prefeitos que ajudaram a eleger e que, agora, se arregimentarão para a renovação dos mandatos dos deputados e senadores em 2022. Por isso, quanto menos travas, melhor.

Nos cálculos da própria Associação dos Engenheiros e Arquitetos da CEF, leva seis anos entre a aprovação de uma emenda e total liberação pelo banco, o que ultrapassa o mandato parlamentar.

Quando o dinheiro vai diretamente para o município fica mais difícil mapear o destino da verba que hoje deixa rastros nas plataformas do Ministério da Economia ou do Senado. No lugar da tríade de instituições que fiscaliza a aplicação dos recursos (Tribunal de Contas da União, Ministério Público Federal e Controladoria-Geral da União) entrariam combalidos tribunais estaduais de contas.

É esse o pulo do gato da execução das emendas ao Orçamento em 2021, ano que será atravessado de cabo a rabo pela pandemia. É a sociedade anônima da calamidade pública que dá as cartas.


Bruno Boghossian: Versão original de Bolsonaro ficou mais perigosa na pandemia

Presidente continuará a fazer estragos enquanto estiver ali

No dia em que o Brasil registrou 1.840 mortes em 24 horas, o presidente da República começou a manhã com seu esporte favorito: dar de ombros para a pandemia. “Criaram pânico, né? O problema está aí, lamentamos. Mas você não pode viver em pânico”, disse a apoiadores, no Palácio da Alvorada.

O discurso é o mesmo do início da crise do coronavírus. Em março do ano passado, em seu primeiro pronunciamento na TV para falar da doença, Jair Bolsonaro disse que não havia “motivo para pânico”. Nas semanas seguintes, vieram a “gripezinha”, o “e daí?” e o “não sou coveiro”.

O Brasil descobriu cedo o tamanho do estrago que um presidente poderia fazer numa pandemia mortal. Desde o início, Bolsonaro incentivou aglomerações, fez campanhas de desobediência a medidas de proteção, divulgou informações falsas sobre a Covid-19, distribuiu remédios ineficazes contra a doença e atrapalhou a aquisição de vacinas.

Nada mudou no curso da tragédia. O vírus se espalhou, e o país conheceu uma nova onda de colapso dos sistemas de saúde, mas o presidente continuou o mesmo. A diferença é que a atitude desumana e a incompetência absoluta dos integrantes do governo tornaram o avanço da doença cada vez mais dramático.

O atraso na imunização e a constante sabotagem às medidas de restrição implantadas nos estados sufocaram as redes hospitalares e deixaram o ambiente livre para o surgimento de variantes que podem ser ainda mais perigosas do que a versão original do vírus.

Também ficou mais perigosa a versão primitiva de Bolsonaro, que insiste em propagar mentiras para desencorajar o uso de máscaras e investe contra governadores que tentam amenizar o desastre.

Ninguém deveria esperar outro comportamento do presidente. Por 12 meses, autoridades aceitaram suas delinquências e se limitaram a corrigir seus erros ou obrigar o governo a cumprir suas funções. Foi pouco. Enquanto estiver ali, Bolsonaro continuará a fazer estragos.


Mariliz Pereira Jorge: Impeachment ou morte

Bolsonaro segue seu roteiro de morte sem ser perturbado.

Bolsonaro segue seu roteiro de morte sem ser perturbado. Na terça (2), ofereceu um almoço no Palácio do Planalto a autoridades. Talvez para celebrar o recorde de óbitos em um dia pela Covid-19. "Estava alegre e descontraído", contou o deputado Fabio Ramalho (MDB-MG). Tirou foto do convescote. Só faltou soltar um "foda-se a vida", como já fez uma blogueira, e postar nas redes sociais.

O prato principal foi leitão, embora saibamos que o que Bolsonaro têm servido numa bandeja diariamente é o pescoço do brasileiro. Nesta quarta, o presidente voltou a debochar da catástrofe que vivemos. Disse a apoiadores que a imprensa o considera "o vírus", que os veículos de comunicação criaram "pânico".

O "pânico", eu digo a Bolsonaro, é este: vacinamos menos de 4% das pessoas, as filas nas UTIs, desastre no PIB, intervenção nas estatais, brasileiros mais pobres, ministros fantoches, 260 mil mortes, um país sequestrado por um delinquente.

O Brasil definha a cada dia que Bolsonaro permanece como líder. Uma bússola quebrada que nos jogou num precipício no qual não paramos de despencar. Parlamentares batem na tecla de que não há clima para o afastamento do presidente. Quantas vidas serão perdidas até que o Congresso sinta o cheiro de mortandade que assola o país?

Mudam os presidentes da Câmara e do Senado, renovam-se as notas de repúdio. Para o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), a conduta nefasta de Bolsonaro são "exageros retóricos", "comportamentos pessoais condenáveis". Para Arthur Lira, que comanda a Câmara, nem isso. Está mais preocupado em garantir imunidade para a classe.

Ou as instituições afastam Jair Bolsonaro da Presidência ou condenarão um país inteiro à morte: uma parte do país pela devastação que a Covid-19 deixará, mas uma parte ainda maior que herdará terra arrasada pela incompetência e arrogância de Jair Messias Bolsonaro.


Maria Hermínia Tavares: A farra do centrão

Arthur Lira deve pensar que é um bom momento para passar a sua boiada

Na hora em que a morte é mais rápida que as vacinas, o presidente da Câmara e chefe do centrão, deputado Arthur Lira (PP-AL), decidiu trazer a reforma política de volta à agenda do Congresso.

Talvez imaginando que este seja um bom momento para passar a sua boiada, criou duas comissões destinadas a produzir uma pretensiosa revisão da legislação eleitoral e partidária, com mudanças na forma de escolha dos representantes, na propaganda e financiamento de campanhas e no papel da Justiça Eleitoral.

Assim reassume o seu lugar à mesa de debates o fim do sistema de voto proporcional de lista aberta, que distribui as cadeiras no Legislativo entre as legendas segundo a proporção de votos recebidos por elas, uma a uma, respeitada a preferência do eleitor pelos candidatos que compõem as listas partidárias. Em seu lugar, entraria o "distritão", apelido dado ao sistema que os especialistas denominam, com uma ponta de pedantismo, "voto único não transferível". Nele, as cadeiras nas Câmaras e Assembleias iriam para os mais votados, em seus distritos eleitorais, cujos limites, aqui, coincidiriam com os estados da Federação.

Forma raramente adotada de sistema majoritário, hoje, existe apenas na Jordânia, no Afeganistão e em paragens exóticas como Vanuatu e Ilhas Pitcairn. Seus efeitos mais notórios são limitar a representação das minorias e estimular os partidos a apostar em candidatos com grande potencial de votos: pastores, celebridades de TV e formadores de opinião nas redes sociais.

Além disso, o pacote representa um robusto retrocesso nas regras recém-aprovadas para reduzir o número de partidos representados no Legislativo. Pois propõe a revogação da cláusula de desempenho, pela qual cada legenda deve obter ao menos 2% dos votos em nove estados —ou eleger 11 candidatos—, e a volta das coligações nos pleitos para a Câmara e Assembleias Legislativas. Uma e outra coisa estimulam a multiplicação de legendas, fazendo do Brasil um caso extremo de fragmentação partidária.

Finalmente, muitas propostas intentam enfraquecer a Justiça Eleitoral, guardiã eficiente e indispensável da integridade do processo, sem a qual a democracia desaba.

Propostas de reforma política foram recorrentes no país. Por discutíveis que fossem, sempre miraram a melhoria da competição eleitoral e da capacidade de governar. A iniciativa do presidente da Câmara só pretende favorecer os interesses miúdos dos partidos idem que sustentam um governo de ainda mais baixa estatura. É a farra do centrão, que debilita a ordem democrática enquanto a Covid faz a sua parte.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap


Ricardo Noblat: Mansão de Flávio Bolsonaro vira dor de cabeça para seu pai

Rapaz treloso

É estranho que Flávio Bolsonaro (Patriotas-RJ) tenha comprado uma mansão em Brasília no valor de 6 milhões de reais se tem, como senador, a custo quase zero, o direito a um amplo apartamento em área nobre de Brasília e mais perto do seu local de trabalho da Praça dos Três Poderes?

Sim, seria estranho se recuarmos no tempo algo como 36 anos. Enquanto durou a ditadura militar de 64, apenas os mais destacados servidores do Estado moravam em casas luxuosas da chamada Península dos Ministros, no Lago Sul da cidade, com direito a todo tipo de mordomia. O acesso ali era controlado.

Havia quadras nas Asas Sul e Norte do Plano Piloto, como ainda há, destinadas a deputados, senadores e ministros de tribunais superiores. Mansões eram para os ricos do Distrito Federal que as construíam, ou para representantes de empresas que atuavam como lobistas, ainda poucos para os padrões atuais.

Ostentar riqueza pegaria mal para um parlamentar, era simplesmente inconcebível. A política ainda não tinha virado um grande negócio capaz de encher os bolsos dos mais ousados. A corrupção existia, embora não fosse admitida nos vastos salões, corredores e gabinetes do Congresso.

Um deputado ou senador comemorava quando conseguia emplacar um afilhado político em algum cargo de escalões inferiores do governo. No máximo, o afilhado retribuía mais adiante indicando fornecedores de serviços públicos que poderiam ajudar seu padrinho a pagar despesas das próximas eleições.

Àquela época, uma Lava Jato não teria feito o menor sucesso. O último presidente da ditadura, o general João Figueiredo, deixou o poder com alguns cavalos de raça a mais, presentes que recebeu de bom grado. E teve depois seu Sítio do Dragão, na região serrana do Rio, reformado de graça por empreiteiras.

O presidente Jair Bolsonaro conhece muito bem essas histórias, mas não as admite. Disse que criou os filhos para que comessem filé mignon, não carnes inferiores. Uma vez assim criados, com o pai a empregar na Câmara funcionários fantasmas, natural que eles queiram desfrutar das coisas boas da vida.

Nesse ramo, dos três primeiros filhos de Bolsonaro, Flávio é o que mais sabe aproveitar. Acusado por peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa, demonstrou estar convencido de que ficará impune a ponto de comprar um dos melhores e mais caros imóveis do exclusivo Setor de Mansões de Brasília.

Além do conforto, a casa oferece discrição. Fica num condomínio onde só entram os donos e seus convidados. Nada do que acontece por lá é visto de fora. Quem chega de avião a Brasília não precisa passar por nenhum ponto da cidade se quiser se reunir com Flávio. O aeroporto fica a 15 minutos de distância.

O senador consultou o presidente sobre a transação selada em dezembro passado e ele deu seu ok. Aconselhou-o, porém, a ser discreto. Flávio teve esse cuidado. A escritura de compra e venda foi assinada em um cartório de Brazlândia, cidade a 45 quilômetros de Brasília. O vendedor é um dos devotos do seu pai.

Mas aí deu ruim. Como, com a renda mensal que ele tem, pôde comprá-la? Mais uma pergunta a juntar-se a tantas outras que incomodam o presidente. Exemplo: por que Fabrício Queiroz depositou 89 mil reais na conta de Michelle, a primeira dama?

Em 7 vídeos, como Bolsonaro sabotou a vacinação contra o vírus

O apocalipse sanitário está logo ali

Os vídeos abaixo, aqui oferecidos em ordem cronológica, são uma pequena amostra do que disse o presidente Jair Bolsonaro de outubro último para cá a respeito da vacinação em massa contra a Covid. Todos estão postados no Youtube.

Eles indicam com clareza que Bolsonaro sempre teve duas preocupações: pôr em dúvida a eficácia das vacinas e livrar-se de qualquer culpa pelo número de mortos que nas últimas 24 horas bateu um novo recorde, o terceiro em uma semana: 1.840.

1 Bolsonaro diz que vacina contra covid-19 “não será obrigatória, e ponto final” (19/10/2020)

Não seria mais fácil investir na cura do que na vacina?”, perguntou Bolsonaro (28/10/2020)

Bolsonaro diz que não vai tomar a vacina (18/12/2020)

4 Bolsonaro questiona ‘pressa’ para acessar vacina (20/12/2020)

5 Bolsonaro diz que fabricantes de vacinas contra covid-19 deveriam procurar o Brasil (28/12/2020)

6 Bolsonaro afirma que apenas 50% da população brasileira pretende tomar vacina contra a Covid-19 (7/1/2021)

7 Enquanto Mourão vê vacina como saída para crise, Bolsonaro volta a defender tratamento precoce(2/3/2021)


William Waack: Cada um por si

A pandemia acelerou a já existente perda de autoridade do governo

Já é lugar comum afirmar que o maior efeito da pandemia ao redor do mundo foi o de acelerar ou agravar problemas já existentes. No caso do Brasil, ela escancarou a falta de governo, além da desigualdade, miséria e ignorância, mazelas bem antigas. No Brasil, a pandemia não “inventou” a má gestão pública nem o desperdício de recursos. Ela ensinou que não há governo efetivo sem capacidade de liderança política – outro problema do qual padecemos há tempos. 

A extraordinária incapacidade de Jair Bolsonaro para liderar e coordenar criou com a pandemia um fenômeno novo na política brasileira. É o cada um por si dos entes da Federação, e a instituição da dupla de primeiros ministros nas figuras dos presidentes das casas legislativas. Em linguagem militar, talvez ainda familiar a alguns ocupantes do Planalto, o Estado Maior da crise não está como deveria estar na Casa Civil e no Ministério da Saúde (instâncias do Executivo sob o comando nominal de generais) mas, na prática, foi para o Congresso

É nas casas legislativas que se decide agora o essencial para se tentar minorar os devastadores efeitos da maior tragédia da nossa história recente. É para lá que correm prefeitos e governadores na linha de frente do combate ao vírus. É lá que se negocia a aprovação de um mínimo de ajuda que impeça pessoas de morrer de fome. É lá que existe pressa e urgência para flexibilizar e acelerar a aquisição de imunizantes por quem quer que seja, incluindo empresas privadas. O arcabouço jurídico foi criado pelo STF, que transformou um de seus integrantes em virtual ministro da Saúde. 

Um resultado evidente dessa situação cujo alcance Bolsonaro não parece ter percebido ainda é a profunda desmoralização política associada a um governo visto como incompetente. Presidentes anteriores já foram desmoralizados por eventos abrangentes em parte piorados por eles mesmos, como ocorreu com Sarney/Collor (hiperinflação) e Dilma (recessão). No caso de Bolsonaro, além do estelionato econômico eleitoral do qual Paulo Guedes está se tornando cúmplice, é a pandemia que acelera perigosa desmoralização. 

A confluência de crise econômica, tragédia de saúde pública e incapacidade de liderança política (com seus graves riscos de populismo fiscal) compõe a “tempestade perfeita” mencionada por agências de classificação de risco ao publicarem no começo da semana cenários a curto prazo para o Brasil. O agravamento da crise de saúde pública faria as demandas sociais crescerem em ritmo mais rápido do que o “tempo político” necessário para a aprovação de medidas de contrapartida à continuidade da ajuda emergencial, trazendo ainda mais insegurança aos agentes na economia. 

Bolsonaro está no modo de sempre, dedicado a buscar culpados e livrar-se de responsabilidades. A aparente tranquilidade com que enfrenta um quadro que se agrava nitidamente vem de dois fatores proporcionados por sua estreita visão da realidade. O primeiro é a percepção de garantia política dada pela dupla de primeiros ministros – que, na verdade, mal controlam as próprias casas, como ficou demonstrado no episódio da PEC da imunidade ou impunidade dos parlamentares. 

O segundo é o aparente conforto trazido pelo aparelhamento das instâncias superiores do Judiciário – nomeações “casadas” para o STJ e STF, em estreito entendimento com os movimentos políticos evangélicos. Percalços jurídicos policiais de curto prazo em relação à família do presidente estão afastados, ao mesmo tempo em que não existe nada remotamente parecido à presença de uma Lava Jato para criar dificuldades políticas agudas para o atual governo (como aconteceu com Dilma). 

Desmoralização é um fenômeno político forte e de difícil reversão, que costuma nascer e se propagar primeiro nos vários componentes de elites (administração pública, setores empresariais e financeiros, profissionais liberais, elites culturais em sentido amplo). A perda de autoridade de Bolsonaro já se fazia sentir antes da pandemia, fato demonstrado pela maneira como o Legislativo e o STF encurtaram seu poder. A pandemia, como se diz, acelerou o que já existia. 


Merval Pereira: O futuro não chega

A aposta parecia factível em 2003. Se o Brasil crescesse em média 3,6% ao ano, chegaria em 2050 a ser a quinta economia do mundo, ultrapassando a Itália em 2025, a França em 2031, Inglaterra e Alemanha em 2036. Ela constava de estudo da Goldman Sachs que lançou ao mundo a sigla Brics, países que eram vistos como o futuro da economia mundial: Brasil, Índia, Rússia e China.

Mas a projeção não levou em conta peculiaridades brasileiras, como o maior escândalo de corrupção já desvendado no país, quiçá no mundo, uma crise econômica provocada por uma presidente que acabou impedida pelo Congresso de continuar governando, a chegada ao governo de um capitão tresloucado, uma pandemia que mata mais de 1.800 pessoas por dia. Resultado: a economia brasileira teve um crescimento na última década de pífio 0,3% ao ano, com o resultado de 4,1% negativos anunciado ontem pelo IBGE.

Após crescer 4,7%, em média, durante o período de 2004 a 2007 e de se expandir em 5,2% em 2008, o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, em 2009, caiu 0,3%. De 1990 a 2003, o crescimento médio foi de 1,8%; de 80 a 2003, 2%. Essa média cresceu um pouco com o resultado dos 8 anos do governo Lula, que teve um crescimento médio de 4% ao ano, mas voltou ao nível de 2% no governo Dilma.

O país já teve também períodos de crescimento sustentado de níveis asiáticos: de 1950 a 1980, média de 7,15%; de 1960 a 1969, média de 6,12%; de 1970 a 1979, de 8,78%. O problema é que já tivemos crescimento médio de 5,3% durante 50 anos, mas ele caiu nos últimos 40 anos, crescendo menos que o PIB mundial. Entre 1981 e 1990, o PIB brasileiro cresceu a mísero 1,55% ao ano. Daí até 2000, o crescimento médio foi de 2,65% ao ano, até 2010 chegou a 3,7%, retomando a performance prevista pela Goldman Sachs.

De um país que era visto como o futuro da economia mundial, junto com Rússia, Índia e China (Brics), o Brasil perdeu quase metade de sua participação no PIB do mundo nos últimos anos. Em 1980, representava 4,3% e, nesta década, passará a menos de 2,5%. O estudo da Goldman Sachs, coordenado pelo economista Jim O’Neill, lançado em 2003, mas com a medição a partir de 2000, mostra que o Brasil manteve-se no trilho da projeção até 2014, quando a crise do segundo governo Dilma jogou o número para baixo.

O economista Robinson Moraes, coordenador de pesquisa econômica do jornal “Valor”, fez uma projeção para o crescimento do Brasil nas duas últimas décadas, comparando com o previsto pelo estudo americano: deveríamos ter crescido 101,7% nos últimos 20 anos e crescemos apenas 43,6%. O Brasil, que no começo da década era a sétima economia do mundo, passou a cair de posição a partir de 2014, chegou a oitava economia em 2017, a nona até 2019 e hoje encontra-se na 12ª posição entre as maiores economias, ultrapassado por Canadá, Coreia do Sul e Rússia.

O ministro Paulo Guedes, numa espécie de recado metafórico, disse que, se o país tomar o rumo errado, dentro em pouco seremos uma Argentina, ou talvez até Venezuela. Isso na semana em que se debatia a intervenção do presidente Bolsonaro na Petrobras, para controlar o reajuste de preços da gasolina (“o cidadão tem que encher o tanque do carro”, disse o futuro presidente da Petrobras, general Joaquim Luna e Silva) e do diesel, por causa dos caminhoneiros.

A desmoralização que vem sofrendo com as seguidas intervenções do presidente na área econômica — também o Banco do Brasil vai trocar seu presidente, que pediu para sair depois que Bolsonaro estranhou o fechamento de agências — parece ter colocado Guedes em posição de aguardo. Está tentando a última cartada, apostando no compromisso do presidente da Câmara, Arthur Lira, de levar adiante as reformas.

Mas, se ficar aguardando essa boa vontade dos parlamentares e o engajamento de Bolsonaro, pode ficar sem tempo de reagir. A partir do segundo semestre, não haverá mais espaço para discussão de reformas, ainda mais as impopulares, como a administrativa, e as difíceis, como a tributária. Guedes também alertou que, se quisermos ser igual à França ou à Alemanha, teremos que fazer um esforço para o outro lado, durante bons 20 a 30 anos. Em 2050, onde estaremos?


Miguel Nicolelis: 'Brasil pode cruzar a marca de 3.000 óbitos diários por covid-19 nas próximas semanas'

Cientista defende um ‘lockdown’ nacional para evitar colapso sanitário. “Vamos entrar numa situação de guerra explícita. Podemos ter a maior catástrofe humanitária do século XXI em nossas mãos”

Felipe Betim, El País

Médico, neurocientista e professor catedrático da universidade Duke (EUA), Miguel Nicolelis coordenou ao longo da pandemia de coronavírus o Comitê Científico do Consórcio Nordeste para a covid-19. Deixou o grupo no final de fevereiro após meses traçando previsões e orientando os governadores sobre quais medidas deveriam tomar para conter a curva de contágios e evitar o colapso de hospitais públicos e privados. Uma catástrofe que, afirma em entrevista ao EL PAÍS por telefone nesta quarta-feira, está prestes a ocorrer. “Nós vamos entrar numa situação de guerra explícita. Nós podemos ter a maior catástrofe humanitária do século XXI em nossas mãos”, afirmou o médico, que também é colunista deste jornal.

Na conversa, ele afirma que, de acordo com seus cálculos, nos próximos dias o país começará a registrar 2.000 mortes diárias. Horas depois, o Ministério da Saúde registrou 1.910 mortes por covid-19, mais um recorde. “A possibilidade de cruzarmos 3.000 nas próximas semanas passou a ser real”, prevê. Ele argumenta que aumentar o número de leitos já não adianta e que a única saída é decretar um lockdown nacional pelas próximas três semanas.

Pergunta. O que esperar para as próximas semanas ou dias?

Resposta. Nós vamos entrar numa situação de guerra explícita. Nós podemos ter a maior catástrofe humanitária do século XXI em nossas mãos. A possibilidade de cruzar 2.000 óbitos diários nos próximos dias é absolutamente real. A possibilidade de cruzarmos 3.000 mortes diárias nas próximas semanas passou a ser real. Se você tiver 2.000 óbitos por dia em 90 dias, ou 3.000 óbitos por 90 dias, estamos falando de 180.000 a 270.000 pessoas mortas em três meses. Nós dobraríamos o número de óbitos. Isso já é um genocídio, só que ninguém ainda usou a palavra. O que são 250.000 mortes sendo que a vasta maioria poderia ter sido evitada?

P. São Paulo voltou para a fase vermelha e fechou comércios e serviços não essenciais. O que pode acontecer com o Estado?

R. Acho que São Paulo vai colapsar. Campinas já colapsou. Rio Preto colapsou. Ribeirão Preto está no mesmo caminho. A cidade de São Paulo não vai aguentar. O Hospital Emilio Ribas já está 100% e com fila de espera. O Hospital das Clínicas, que tem um dos maiores números de leitos de UTI do Brasil, está com 80% de ocupação e vai colapsar.

P. Estados têm apostado na abertura de novos leitos. Abrir novos leitos adianta?

R. Não tem mais médico, não tem mais enfermeiro. Todo mundo sabe, e os políticos sabem também, que a velocidade de crescimento do vírus é exponencialmente mais veloz que a capacidade de criar, equipar e por gente no leito de UTI. Não tem como combater isso criando mais vagas nos hospitais. É a típica estratégia de maquiagem. Aumenta os leitos, mas os leitos às vezes nem funcionais estão, mas vão para a conta e diminui a taxa de ocupação.

P. O que fazer então? Os governadores e secretários da Saúde pressionaram nesta semana o presidente Jair Bolsonaro por medidas.

R. É precisodecretar lockdown de pelo menos 21 dias e pagar um auxílio financeiro para que as pessoas fiquem em casa. Os governadores sabem que o Governo Federal não vai fazer nada, estão querendo empurrar a responsabilidade. Estou sugerindo desde de novembro de criar uma Comissão Nacional com a sociedade civil, governadores e Supremo, que precisa decretar uma tutela judicial no Ministério da Saúde. Uma intervenção. E essa Comissão Nacional ficaria responsável por tomar decisões e supervisionar toda a logística.

P. Mas a população já não respeita as medidas de restrição. Acataria um lockdown?

R. A população nunca teve uma mensagem correta da gravidade da pandemia porque não temos nenhum estadista no país. As pessoas estão falando de sucessão presidencial em 2022 quando o país está morrendo na pandemia. Faltou decisão política e visão estratégica. Faltou as pessoas eleitas pensarem não nos lobbys econômicos e políticos que as sustentam, mas nos cidadãos como prioridade. É preciso bancar uma decisão. John Barry, o maior historiador norte-americano de pandemias, escreveu que, mesmo com a ciência moderna, o que decide o destino de uma sociedade na pandemia é a decisão política, a opção política dos líderes de defender a população. Por isso que você é eleito, para liderar mesmo nos momentos em que a coisa correta a ser feita é impopular. É preciso convencer a população de que aquilo precisa ser feito.

P. Caso não haja lockdown nacional, como tudo indica... O vírus não tem uma dinâmica própria, em que o contágio sobe muito, chega a um pico e depois começa a descer por causa da sazonalidade, entre outras questões?

R. Não quando se tem um vírus mutando fora de controle e se novas variantes são mais letais e mais contagiosas. Cada variante tem sua dinâmica própria. Como você falou, cresce, chega ao pico e cai. Mas se você tem dezenas de variantes superpostas umas nas outras... Acabaram de detectar a variante da Califórnia em Minas Gerais, porque alguém veio de avião dos Estados Unidos e trouxe ela. Nós recomendamos fechar os aeroportos em agosto. Repetimos em setembro. E evidentemente a Infraero não deu bola. Temos no Brasil a reunião de todas as variantes, inclusive as nossas próprias. Essa é a bomba relógio.

P. Sendo assim, quem teve covid-19 meses trás pode acabar se reinfectando?

R. Se você foi contaminado com a variante inicial brasileira, os anticorpos que você desenvolveu são nove vezes menos eficientes para combater a nova variante amazônica. Por que temos que tomar a vacina contra a Influenza a cada ano? Porque as variantes surgem. Mas o que estamos tendo de número de infecctados do coronavírus é muito grave, então a chance do vírus mutar é muito maior.

P. Você mencionou em outra entrevista a possibilidade de colapso funerário. Como isso pode se dar?

R. Porto Alegre já está entrando, um hospital teve de comprar containers para estocar os corpos porque não estava dando conta de manejá-los. Isso é Manaus. A população cidade de São Paulo é nove vezes maior que a de Manaus. A Grande São Paulo é 20 vezes maior. Se a cidade São Paulo cai, todo o Estado de São Paulo cai. É como uma guerra mesmo: quando um batalhão importante cai, todas as forças armadas são comprometidas. É um efeito cascata. Minha metáfora é que somos Stalingrado, estamos cercados neste momento.