supremo
Ricardo Noblat: Um governo campeão de afrontas ao Supremo Tribunal Federal
A normalização da insanidade
Se concordassem com o que disse o ministro Luiz Fux, o próximo presidente do Supremo Tribunal Federal, a respeito do papel das Forças Armadas, o presidente Jair Bolsonaro, o vice Hamilton Mourão e o ministro da Defesa Fernando Azevedo estariam dispensados de se manifestar. Não foi o que fizeram.
Em nota divulgada ontem à noite, os três disseram que as Forças Armadas não cumprem “ordens absurdas” como a tomada de poder, mas que também não aceitam julgamentos políticos que levem à tomada de poder “por outro poder da República, ao arrepio das Leis, ou por conta de julgamentos políticos”.
Bolsonaro voltou a afirmar que lembra “à Nação Brasileira que as Forças Armadas estão sob a autoridade suprema do Presidente da República” e que “as mesmas destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.
Horas antes, Fux expediu liminar para disciplinar regras de atuação das Forças Armadas à luz da Constituição. Disse que o poder de “chefia das Forças Armadas é limitado” e que não há margem para interpretações que permitam sua utilização para “indevidas intromissões” no funcionamento dos outros Poderes.
Segundo o ministro, em linha com seus demais colegas de tribunal, “a missão institucional das Forças Armadas na defesa da Pátria, na garantia dos poderes constitucionais e na garantia da lei e da ordem não acomoda o exercício de poder moderador entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário”.
No início da semana, o ministro Dias Toffoli afirmou: “As Forças Armadas sabem muito bem que o Art. 142 da Constituição não lhes dá o papel de poder moderador”. E Gilmar Mendes, que cabe a elas “proteger os poderes constitucionais e atuar na defesa da lei e da ordem”. Interpretar a Constituição é tarefa do Supremo Tribunal.
E assim terminou a semana onde Bolsonaro, aos olhos de alguns observadores da política, parecia disposto a não confrontar mais os demais Poderes e nem a desatar mais crises que só tencionam o país. Bolsonaro jamais deixará de ser o que sempre foi – um militar anarquista com vocação de ditador. É da sua natureza.
E pelo jeito, não só da dele. O general Mourão, quando na ativa, chegou a ser punido por declarações políticas consideradas incorretas. Na campanha eleitoral de 2018, admitiu que o governo pudesse aplicar um “autogolpe” para se fortalecer. Como vice, fantasiou-se de cordeiro. Recentemente, despiu a fantasia.
A falsa mansidão de Bolsonaro não o impediu em menos de uma semana de assinar uma Medida Provisória para permitir que o ministro da Educação nomeasse interventores de universidades durante o período da pandemia. Por ferir a Constituição, o presidente do Senado devolveu a medida e Bolsonaro a revogou.
Também não o impediu de estimular seus devotos a invadirem hospitais a pretexto de filmá-los e conferir se estavam vazios. Missão dada, missão cumprida. Um grupo de cinco invadiu o Hospital Ronaldo Gazolla, unidade de referência no tratamento da Covid-19, no Rio, chutou portas e derrubou computadores.
Por ordem de Bolsonaro, o Ministério da Saúde tentou esconder o número de mortos pela doença, recuando em seguida graças a uma mais uma decisão do Supremo Tribunal Federal. O Ministério da Mulher e dos Direitos Humanos não fez diferente: em relatório, omitiu os dados sobre a violência policial no país.
Porque hoje é sábado e ainda restam horas para que a semana termine, não se pode descartar a produção de novos fatos por um governo empenhado em normalizar a insanidade. A propósito: o ministro da Defesa de Bolsonaro será outra vez obrigado a explicar em nota o que quis dizer na nota anterior? Já fez isso duas vezes.
Merval Pereira: Ponto final
Poder Moderador só existiu na Constituição de 1824 e restou superado com Constituição Republicana, diz Barroso
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luis Roberto Barroso deu ontem o primeiro pronunciamento oficial da Corte negando a função de Poder Moderador das Forças Armadas. Ao não dar seguimento a mandado de injunção que pedia a regulamentação do artigo 142 da Constituição, utilizado por seguidores de Bolsonaro para justificar uma eventual intervenção militar em caso de ameaça à democracia, o ministro Barroso aproveitou para reforçar formalmente o que já havia sido dito por organizações da sociedade civil, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), e pelo Congresso.
Agindo dessa maneira, Barroso replicou a atitude do juiz John Marshall, da Suprema Corte dos Estados Unidos, o primeiro a definir, em 1803, a capacidade da Suprema Corte de fazer o controle constitucional das leis, no caso mais famoso do constitucionalismo mundial.
Em uma discussão sobre a nomeação de um juiz feita pelo presidente anterior, o juiz Marshal decidiu que a lei em que se baseava a nomeação era inconstitucional e, portanto, ele não poderia ser nomeado. Ao mesmo tempo em que afirmava o poder da Suprema Corte de determinar a constitucionalidade das leis, que até aquele momento não tinha esse papel, não criava um conflito entre Poderes.
Aqui também, ao definir que o artigo 142 não requer regulamentação, Barroso formalizou um entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o tema, encerrando a discussão. Barroso marca posição referindo-se ironicamente a um “terraplanismo constitucional” dos que interpretam a Constituição erroneamente, e afirma que qualquer tentativa de usar medidas extraordinárias sem seguir os trâmites constitucionais configura crime de responsabilidade.
“Nos quase 30 anos de democracia no Brasil, sob a Constituição de 1988, as Forças Armadas têm cumprido o seu papel constitucional de maneira exemplar: profissionais, patrióticas e institucionais. Presta um desserviço ao país quem procura atirá-las no varejo da política”, afirmou Barroso.
Na sua decisão, ele ressalta que “o Poder Moderador só existiu na Constituição do Império de 1824 e restou superado com o advento da Constituição Republicana de 1891. Na prática, era um resquício do absolutismo, dando ao Imperador uma posição hegemônica dentro do arranjo institucional vigente. Nas democracias não há tutores”.
Para Barroso, “nenhum elemento de interpretação – literal, histórico, sistemático ou teleológico – autoriza dar ao artigo 142 da Constituição o sentido de que as Forças Armadas teriam uma posição moderadora hegemônica. Interpretações que liguem as Forças Armadas “à quebra da institucionalidade, à interferência política e ao golpismo chegam a ser ofensivas”, diz Barroso.
Depois de fazer um apanhado histórico sobre as diversas constituições do Brasil, desde a de 1824 que definiu o papel moderador do Imperador, até a de 1988, Barroso define que “finalmente o Brasil fez sua transição para um Estado Democrático de Direito. Nessa medida, submeteu o poder militar ao poder civil, e todos os Poderes à Constituição”.
Barroso lembra que, desde então, “passaram-se mais de 30 anos, dois impeachments presidenciais, uma intervenção federal, inúmeras investigações criminais contra altas autoridades (inclusive contra Presidentes da República), sem que se tenha cogitado jamais da utilização das Forças Armadas ou de um inexistente poder moderador”.
Todas as crises institucionais experimentadas pelo país, ao longo dos governos democráticos anteriores foram solucionadas sem rupturas constitucionais e com respeito ao papel de cada instituição – e “não se pode afirmar que foram pouco relevantes”, afirma Barroso. “Portanto, a menos que se pretenda postular uma interpretação retrospectiva da Constituição de 1988 à luz da Constituição do Império, retroceder mais de 200 anos na história nacional e rejeitar a transição democrática, não há que se falar em poder moderador das Forças Armadas”.
Míriam Leitão: Bolsonaro divulga falsa interpretação de decisão do STF sobre a pandemia
É falsa a versão de que o STF afastou o presidente do combate à pandemia. Jair Bolsonaro tem repetido essa interpretação distorcida sobre a decisão do Supremo, que definiu o papel de cada ente federativo. O presidente tem responsabilidade no combate à crise sanitária, mas não está cumprindo.
O Supremo, consultado por estados e municípios, esclareceu que a Constituição diz com todas as letras que a Saúde é um direito de todos e uma responsabilidade compartilhada entre União, estados e municípios. Cada um deles tem um papel a cumprir. A corte definiu que as decisões cotidianas, como o funcionamento do comércio, se dão em nível local. Mas isso não exime a União e o presidente de suas obrigações, obviamente.
Na sua conta no Twitter, o presidente escreveu esta semana: “Lembro à Nação que, por decisão do STF, as ações de combate à pandemia (fechamento do comércio e quarentena, p.ex.) ficaram sob total responsabilidade dos Governadores e dos Prefeitos.” Logo depois, saiu uma mensagem no Twitter, espalhada por robôs: “só para lembrar: STF afastou Bolsonaro do controle da Covid, dando poder a governadores e prefeitos.” Foi tão imediata a transmissão dessa mensagem que confirmou como funciona a comunicação do presidente nas redes, impulsionada pelo gabinete do ódio.
O conteúdo também é falso. O STF não afastou o presidente do combate à pandemia. O Supremo estabeleceu os limites da responsabilidade compartilhada entre União, estados e municípios, porque assim estabelece a Constituição.
Toda a preocupação do presidente, desde o início da crise sanitária, é saber como a atuação dele vai ser interpretada durante a campanha de 2022. Jair Bolsonaro fala isso abertamente. Na segunda-feira ele tratou como o maior problema do país nesse momento as manifestações contra o seu governo.
A situação é muito grave para ser tratada assim. É evidente que o maior problema atual é a pandemia, que já matou mais de 38 mil pessoas até aqui.
O esforço inicial do presidente foi para jogar o custo da crise econômica em cima de governadores e prefeitos. Agora o foco é distorcer a decisão do STF. A realidade é que a situação seria muito pior sem as medidas de restrição tomadas por governadores e prefeitos.
O STF não afastou o presidente das responsabilidades na Saúde, mas ele continua se omitindo o tempo todo. Bolsonaro é o presidente de uma nação que enfrenta uma crise grave, com esse grau de letalidade. Ele foge das suas obrigações de presidente. Passa o tempo todo administrando a versão dos fatos, para que possa usá-la eleitoralmente em 2022. É só com isso que se preocupa Jair Bolsonaro. Isso é impressionante. A situação é grave demais para ser tratada com essa leviandade.
Na terça-feira, o presidente chegou a dizer algo extremamente estapafúrdio. Bolsonaro falou que ninguém no Brasil morreu por falta de respirador ou de leito de UTI, e que no futuro se descobrirá que alguns morreram por não receberem hidroxicloroquina. Ele continua obcecado, incapaz de ver a realidade. É evidente que pessoas morreram por falta de UTI e de respiradores, como mostram os veículos de comunicação. Todos vimos. De novo, o presidente constrói uma versão falsa dos fatos.
El País: Moraes manda Governo Bolsonaro retomar divulgação total de dados da covid-19
Ministro do Supremo concedeu liminar a pedido de partidos de oposição. Antes, pasta havia fornecido boletim incompleto. Mortes vão a 37.312, segundo consórcio de veículos de imprensa
O Governo Bolsonaro sofreu mais um revés nas mãos do Supremo Tribunal Federal. No fim da noite de segunda-feira, o ministro da Corte, Alexandre de Moraes, concedeu uma liminar aos partidos oposicionistas Rede e PCdoB que obriga o Ministério da Saúde a restabelecer o formato de divulgação integral dos dados da pandemia do novo coronavírus. A pasta, dominada por militares e sem ministro titular desde a saída de Nelson Teich, decidiu, na sexta, aplicar uma mudança drástica no boletim diário sobre a pandemia, incluindo a ocultação de dados totais sobre a covid-19 no Brasil. A alteração foi alvo de uma bateria de críticas, do Congresso Nacional à Organização Mundial da Saúde (OMS), e havia pressionado o ministério a recuar em alguns pontos e anunciar uma nova plataforma, ainda não tornada pública, mesmo antes de a decisão de Moraes colocar Supremo e Planalto mais uma vez em rota de colisão.
Nesta segunda-feira, os representantes da Saúde fizeram uma apresentação à imprensa que acabaram por aprofundar a confusão em torno do tema. A pasta exibiu dados incompletos: no balanço diário consolidado da doença, ficaram de fora os números de ao menos quatro Estados. Também foi deixado de fora a informação de quantos óbitos suspeitos de terem sido causados no país pelo novo vírus seguem em investigação. Depois de atrasar para quase 22h o balanço durante toda a semana passada, agora a pasta diz que fará a divulgação diariamente por volta das 18h.
No boletim desta segunda-feira, os números oficiais foram: 15.654 casos novos da doença e 679 óbitos em 24 horas, totalizando 37.134 óbitos por covid-19 e 707.412 infecções no país. Em vez do gráfico com toda a informação resumida, como vinha fazendo sempre junto à atualização de um site, o ministério apresentou os índices em dois locais distintos. Questionado, a própria pasta admitiu que os números oficiais para o dia 8 de junho poderiam ser maiores, já que o balanço não incluía os dados atualizados dos Estados de Alagoas, Santa Catarina, Goiás e Distrito Federal. Segundo a pasta, as Secretarias de Saúde não haviam enviado as informações até o fechamento do boletim desta segunda-feira. “No caso dos Estados que não enviarem os dados a tempo, manteremos os números do dia anterior”, explicou o coronel Élcio Franco, secretário-executivo da pasta, que segue sem ministro titular em plena crise.
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As seguidas controvérsias e atrasos na divulgação dos dados levaram à formação de um consórcio de veículos de imprensa —G1, Globo, Extra, Estadão, Folha de S. Paulo e UOL— para monitorar de maneira independente os dados junto às Secretarias de Saúde dos Estados. Neste levantamento, que estreou nesta segunda, 37.312 mortes por covid-19 e 710.887 casos confirmados. A compilação mostra que foram notificados 849 óbitos nos 27 Estados e 19.631 casos nas últimas 24 horas.
Total de mortos
Na última sexta-feira, o ministério havia excluído o número total de casos confirmados e de óbitos por covid-19 registrados no país, o que agora foi revertido pela liminar de Moraes. Depois que a imprensa e outras instituição acusaram o Governo de falta de transparência, a pasta liderada interinamente por Eduardo Pazuello já havia voltado atrás e afirmado que tais dados consolidados estão disponíveis no painel covid-19 do Conselho Nacional de Secretarias de Saúde (Conass), alimentado pelas secretarias estaduais e no Datasus, a hermética plataforma de dados do SUS. Em nenhum dos dois está disponível, no entanto, o número de óbitos ainda em investigação, um dado que antes era divulgado diariamente e sinalizava o gargalo na análise de testes pelo país. Questionado pelo EL PAÍS sobre esse dado, o ministério não respondeu.
A pasta informou que vai adotar —ainda sem especificar quando— um novo modelo de divulgação, com base na data de ocorrência dos casos (quando o paciente informa os primeiros sintomas da doença) e dos óbitos, e não mais pela data de notificação deles no sistema, como vinha acontecendo desde o início da pandemia e como fazem praticamente todos os países do mundo. Como o Brasil ainda não conseguiu implementar estratégias de testagem em massa, o temor é que novo modelo apenas transforme o atraso nos resultados em uma forma de diluir a gravidade da pandemia no país.
“Temos de garantir transparência ativa, em detalhes, dos dados do Brasil. Isso nunca aconteceu desde 1975”, criticou Wanderson de Oliveira, o ex-secretário nacional de Vigilância em Saúde, em conversa com o biólogo Átila Iamarino. Oliveira contou que o sistema de vigilância epidemiológica brasileiro foi criado justamente um ano após a ditadura tentar esconder um surto de meningite em 1974. “O que mata o fungo é a luz do sol”, disse.
O cientista Vítor Sudbrack, físico que faz parte da equipe do Observatório Covid-19 BR, que analisa os dados da pandemia no Brasil, explica que a nova metodologia aplicada pelo ministério pode, sim, permitir ter um panorama mais real de como a doença de comporta no país, desde que seja feita de forma correta e sem ocultação de dados. “Na maioria dos casos, os primeiros sintomas acontecem 30 dias antes da notificação. Por isso, é bom que o Governo se atenha às datas de ocorrência e de óbito, porque aí temos um retrato do real impacto da doença, sem o atraso da notificação, que é arbitrária”, diz.
Pela análise feita no observatório, em alguns Estados, 61% dos óbitos levam mais de 10 dias para entrar no sistema do Ministério da Saúde, de acordo com Sudbrack. Ele explica ainda que o modelo prevê a correção sobre os dias anteriores, assim, uma morte ocorrida, por exemplo, no dia 5 de junho, mas cuja investigação só se conclua depois da divulgação do boletim epidemiológico de 8 junho, ainda deve entrar na soma total de vítimas fatais no país. “Resta ver se é isso que o Governo vai fazer de fato”, diz Sudbrack, cético quanto aos “truques” que o Executivo de Jair Bolsonaro tem usado para divulgar os números da pandemia.
Sudbrack conta que, no sistema Sivep-Gripe, do SUS, uma das base de dados usada pelo Observatório Covid-19 BR, também há discrepância entre os números nacionais e os das secretarias de Saúde estaduais. “Vimos que a base nacional tem menos casos que as estaduais. Em relação aos números do Estado de São Paulo, por exemplo, há 50% de casos a menos na base nacional. Já perguntamos ao Ministério da Saúde a que se deve a essa mudança, se foi aplicado algum filtro específico nos números, mas não tivemos resposta. Assim, tudo o que podemos fazer é especular", diz. Questionado sobre o tema, o Ministério da Saúde afirma que os erros nos boletins se devem à “duplicação” de dados e que “vem aprimorando os meios para a divulgação da situação nacional de enfrentamento à pandemia".
“O Brasil precisa entender onde o vírus está, como controlar os riscos. A OMS espera que a comunicação seja consistente e transparente e entende que o Governo brasileiro continuará relatando diariamente dados sobre a incidência e mortes de forma separada”, cobrou o chefe do programa de emergências da organização, Mike Ryan, nesta segunda-feira.
Enquanto isso, a pressão interna sobre a pasta também era crescente. O presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP) anunciou, após uma reunião com líderes políticos, que a comissão mista que acompanha as ações de combate ao novo coronavírus vai trabalhar a partir de agora com os números fornecidos pelas secretarias estaduais de saúde e não pelo ministério. “É papel do Parlamento buscar a transparência em um momento tão difícil para todos”, disse ele. Rodrigo Maia, presidente da Câmara, havia informado, via Twitter, que cobraria o ministro interino Pazuello sobre a divulgação de dados em reunião virtual nesta terça-feira. Antes da decisão de Moraes, Antonio Dias Toffoli, presidente da STF, já havia se unido ao coro das críticas: “Vimos hoje a realização de uma parceria colaborativa entre diversos veículos de comunicação para dar transparência aos dados da pandemia no país. A transparência é mandamento constitucional. São bem-vindas todas as medidas que visem reforçá-la”, disse ele, num evento no qual criticou as atitudes “dúbias” de Jair Bolsonaro em relação à democracia.
Bernardo Mello Franco: O ovo da serpente
Quando um general tentou emparedar o STF às vésperas da eleição, Celso de Mello lembrou a metáfora do ovo da serpente. Agora ele atualizou o alerta: o ovo “parece prestes a eclodir”
Quando o general Villas Bôas tentou emparedar o Supremo às vésperas da eleição presidencial, Celso de Mello foi o único ministro a protestar. Não é coincidência que ele seja, agora, a principal voz contra o cerco bolsonarista à Corte.
Em abril de 2018, o então comandante do Exército disparou um tuíte em tom de ameaça. Insinuou uma reação armada caso o tribunal concedesse habeas corpus a um pré-candidato ao Planalto.
O decano se levantou contra a interferência indevida. “Insurgências de de natureza pretoriana, à semelhança da ideia metafórica do ovo da serpente, descaracterizam a legitimidade do poder civil instituído e fragilizam as instituições democráticas”, afirmou.
Contra o voto de Celso, o Supremo negou o habeas corpus. A decisão satisfez o general e facilitou a eleição do candidato preferido dos militares.
Dois anos depois, o decano voltou a usar a metáfora sobre a ascensão do nazismo. Em mensagem privada aos colegas, ele advertiu que o ovo da serpente “parece estar prestes a eclodir no Brasil”. “É preciso resistir à destruição da ordem democrática”, escreveu.
O ministro advertiu que “intervenção militar, como pretendida por bolsonaristas e outras lideranças autocráticas que desprezam a liberdade e odeiam a democracia, nada mais significa, na novilíngua bolsonarista, senão a instauração, no Brasil, de uma desprezível e abjeta ditadura militar”.
Celso encerrou o alerta com quatro pontos de exclamação, mas ainda há quem finja que não ouviu.
Em 1999, o então deputado Jair Bolsonaro revelou seu plano para o Brasil: “Só vai mudar, infelizmente, quando partirmos para uma guerra civil aqui dentro. E fazendo o trabalho que o regime militar não fez. Matando uns 30 mil (…) Se vai morrer alguns inocentes? Tudo bem, tudo quanto é guerra morre inocente”.
Ontem o país ultrapassou as 30 mil mortes pelo coronavírus. Horas antes, o capitão declarou: “Eu lamento todos os mortos, mas é o destino de todo mundo”.
Juan Arias: Quem é o verdadeiro Bolsonaro?
De tanto ser nada, presidente está se revelando como um cavalo descontrolado que, quanto mais acossado, mais coices dá
Em seus 500 dias de Governo já se disse de tudo sobre o presidente de extrema direita, o capitão reformado Jair Bolsonaro. E, entretanto, sua verdadeira personalidade ainda é um mistério. Sobre ele já opinaram de psiquiatras a cientistas políticos e historiadores e ainda continuamos sem conhecer realmente a verdadeira periculosidade do personagem.
Ele, que sempre foi um obscuro político sem relevância, célebre, de todo modo, por suas grosserias contra os diferentes e as mulheres, é hoje examinado, já no comando da República, sob os traços mais obscuros de sua personalidade. A psicologia o descreve como um paranoico com complexos de inferioridade e fúrias destrutivas de morte, e os políticos como um personagem menor com desejos de vingança por ter passado 30 anos na sombra.
Assim se explica sua ambição exorbitada e sua fome de poder e de querer demonstrar que desta vez verdadeiramente o tem. Só que ele não entendeu que esse poder é compartilhado e que ele é responsável somente por presidir um país ao lado das outras instituições independentes do Estado. De ser nada passou a sentir a onipotência bater a sua porta e está se revelando como um cavalo descontrolado que quanto mais acossado mais coices dá. Mostra arroubos de valentia quando é criticado e se reveste de uma autoridade que não lhe pertence. E chega a proclamar como os velhos ditadores do passado, tantas vezes personagens complexados na vida, “eu sou a Constituição”, e “sou eu quem manda” e “as Forças Armadas estão sob meu comando”. E “eu quero o povo armado nas ruas”. Onipotência descarada e simplista que só pode conduzi-lo ao fracasso e levar o país ao abismo.
Não restam dúvidas de que na História sempre foram personagens complexados que, para demonstrar sua força, infringiram descaradamente todas as regras mais elementares da democracia para dar vida a experiências totalitárias que acabaram ensanguentando o mundo. Acho que hoje sobre o presidente brasileiro há algo claro e é que parece disposto a tudo, até a pisotear os valores da convivência com suas fúrias de poder.
Tivemos dias atrás mais uma amostra de seu viés não só autoritário como golpista após a reação à publicação por ordem do Supremo do vídeo já tristemente célebre da reunião ministerial de 22 de abril no qual aparecem ele e seus ministros mais ideologizados despidos de dignidade e ameaçando outras instituições, enquanto se esqueciam vergonhosamente do drama que o país está vivendo pelos efeitos da epidemia cujos mortos já nem encontram cemitérios para ser enterrados.
O vídeo deixou em evidência não só a mediocridade e o baixo calão do presidente e de seus principais ministros, mas também o perigo que significa uma nação da envergadura do Brasil ser governada por um punhado de pessoas sem empatia à dor e que ameaçam levar o país a uma nova aventura militar.
O conciliábulo deixou o país atônito, envergonhado e atemorizado ao ouvir da boca do presidente da nação, além de um rosário de palavras vulgares, que seu desejo é contar com uma população armada nas ruas. Para quê? Para matar? Para dar vida a uma guerra civil entre irmãos? Chegou ao sarcasmo de afirmar que o povo armado é o melhor antídoto contra a ditadura.
Era de se esperar que após o opróbrio público daquelas cenas de política obscena da reunião, o presidente Bolsonaro desaparecesse por uns dias na sombra envergonhado e com medo das consequências judiciais do encontro. Isso significaria, entretanto, não conhecer o personagem que como o touro quando recebe as bandeirolas do toureiro se enfurece ainda mais. Desse modo, apareceu em público antes de 48 horas para se encontrar com seu grupo fanático de seguidores que todos os domingos se juntam em frente ao palácio presidencial para aplaudi-lo e gritar palavras de ordem a favor de uma intervenção militar e contra as outras instituições do Estado.
Dessa vez foi possivelmente mais grave porque Bolsonaro apareceu ao lado do general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional. O presidente se sentiu tão seguro ao lado do general que dessa vez nem sequer se preocupou em pedir aos seus seguidores que retirassem os cartazes golpistas. Não só não teve uma palavra de pesar pelo rio de vítimas que todos os dias estremece o país, como fez questão de quebrar todas as normas contra o coronavírus ditadas pelas autoridades médicas e pelos governadores e se misturou às pessoas abraçando-as sem máscaras e sem escrúpulos.
Nessa mesma hora, como para rubricar um ostensivo apoio de uma parte do Exército às suas tentações golpistas, um grupo de 89 militares da reserva da Agulhas Negras, onde Bolsonaro se formou como paraquedista e de onde foi expulso por seus devaneios terroristas da época, publicou um documento de apoio ao presidente no qual chegam a fazer alusão a uma possível “guerra civil” caso o velho capitão hoje reformado não for obedecido.
Os que chegaram a pensar que os nove ministros militares do Governo e os mais de 2.000 militares colocados nos outros escalões do Estado poderiam servir de freio para deter as tentações autoritárias do presidente, começam a perder a esperança, já que a cada dia se revelam mais alinhados com ele e lançando ameaças claras de um golpe militar.
Tudo isso agravado pela decisão de Bolsonaro de conquistar com cargos e benefícios a parte mais repugnante e corrupta do Congresso, o chamado “centrão”, que é formado por muitos políticos ainda com processos nos tribunais. Para quem venceu as eleições em boa parte por sua promessa de acabar com a velha política e suas práticas corruptas, esse novo casamento com os partidos mais envolvidos em escândalos de corrupção, esse se jogar nas mãos da parte mais podre do Congresso, não pode deixar de aparecer como um sarcasmo e uma chacota aos seus eleitores.
Talvez o Brasil esteja perto de entrar em um dos piores momentos de sua história pelo afã do presidente de reviver velhos fantasmas autoritários inimigos dos valores democráticos que no passado só criaram fome, miséria e desprezo à cultura.
É urgente que o Brasil e suas forças democráticas, deixando de lado suas lutas partidárias, se unam para deter o cavalo descontrolado das velhas saudades autoritárias, já que acredito que restam poucas dúvidas de que Bolsonaro chegou para ficar e que a cada golpe recebido levanta a cabeça com mais orgulho ferido. E que nele não existem limites e cercas capazes de distinguir entre civilização e barbárie. E ainda mais acreditando-se enviado e iluminado por Deus. Por fim, da mesma forma que todos os déspotas da História.
Bruno Boghossian: Tanques e likes empurram Bolsonaro para o tudo ou nada
Presidente amplia ameaças de intervenção militar e recorre a uma base cada vez mais fervorosa
Jair Bolsonaro é hoje consideravelmente mais impopular do que era um mês atrás. Atualmente, há muito mais brasileiros que consideram o governo ruim ou péssimo do que gente que aprova seu desempenho. O presidente agora se equilibra em cima de tanques e diante de uma base cada vez mais fervorosa.
O governo nasceu sob a expectativa positiva de 65% dos brasileiros, segundo uma pesquisa feita antes da posse. Bolsonaro rapidamente jogou fora essa boa vontade e se acomodou sobre uma divisão dos brasileiros em três terços, que consideravam o governo bom, regular e ruim.
O arranjo estava longe de ser confortável para qualquer político, mas deu alguma estabilidade a um presidente que cometeu barbaridades diárias e se mostrou incapaz de apresentar um programa minimamente coerente para o país.
Os números da última pesquisa Datafolha, realizada nos últimos dias, mostraram que esse panorama mudou. As crises sanitária, política e econômica empurraram uma fatia razoável de brasileiros para o campo crítico a Bolsonaro. A proporção de entrevistados que rejeitam o governo subiu para 43%, enquanto sua parcela de apoiadores se manteve em 33%. A diferença entre os dois percentuais representa cerca de 20 milhões de pessoas.
Bolsonaro recorreu a outros métodos para preservar seu poder. Passou a fazer acenos ainda mais frequentes às Forças Armadas e lançou ameaças abertas de intervenção militar. Nesta quinta (28), o presidente divulgou um discurso favorável a uma ação fardada sobre o STF. Nenhum comandante o contestou.
O atrevimento golpista serve para demonstrar força, intimidar autoridades e energizar uma base crescentemente identificada com seu líder. A maioria do núcleo bolsonarista concorda com a ideia de armar a população, apoia a participação de militares no governo e acha que o presidente só queria melhorar sua segurança pessoal —e não interferir na Polícia Federal. Esse grupo empurra Bolsonaro para o tudo ou nada.
Hélio Schwartsman: Supremo tem o direito de errar por último
Democracia é o regime dos erros sucessivos
Faz bem o Supremo Tribunal Federal em impor limites a Jair Bolsonaro e a seus asseclas. Eles já deram repetidos sinais de que, deixados livres, não se deteriam diante de nada em seu intento de transformar o país em uma monarquia terraplanista.
A trupe bolsonarista tem o estranho dom de desmoralizar tudo de que se aproxima. Em alguns casos, o movimento é voluntário, como se vê nos esforços do grupo para erodir instituições como Legislativo, imprensa e o próprio Judiciário.
Em vários outros, a perversão não é pretendida, mas fruto de incompetência. É disso que foram vítimas a saúde pública, as perspectivas para a economia, que só pioram, e a própria Presidência da República, rebaixada a enredo de filme pastelão na reunião ministerial a que tivemos acesso por decisão do STF.
Institucionalmente, o ideal seria que fossem a PGR ou o Congresso a cortar-lhes as asinhas. Como Aras e Maia se acovardam, só resta mesmo o STF. Daí não decorre que o processo ocorra sem asperezas.
O chamado inquérito das fake news, que atinge em cheio a máquina de propaganda bolsonarista, surgiu como um teratoma, que desafia as melhores práticas do direito e caminha perigosamente perto de criminalizar opiniões. Ainda assim, é um expediente legal e válido. Por quê? Porque o STF diz que é.
De forma um pouco cínica, dá para definir a democracia como o regime dos erros sucessivos. O primeiro a errar são os eleitores, que tendem a escolher desqualificados para governá-los. Em seguida, vêm o Executivo, que invariavelmente faz enormes besteiras, o Legislativo, que só piora as coisas, e, por fim, o Judiciário, detentor da “ultima defaecatio”.
A democracia funciona porque assegura a paz social. E a paz social só é possível quando todos os agentes concordam que a palavra final nas disputas é a do STF. Na democracia, não existe hipótese de desobedecer ao Supremo. É ele que tem o direito de errar por último.
Merval Pereira: Caneta sem tinta
Os membros do Supremo riscaram uma linha de onde não admitirão passar os desmandos do presidente e seus seguidores
O presidente Bolsonaro conseguiu cimentar uma união interna no Supremo Tribunal Federal (STF) que já vinha sendo formada no cotidiano da Corte diante dos riscos à democracia desenhados pela retórica agressiva dos militantes bolsonaristas, em manifestações avalizadas pelo próprio presidente, e em atitudes agressivas das milícias, digitais ou não, contra seus membros.
Para além desse sentimento até mesmo de autopreservação, não fosse a ameaça à democracia, os ataques ao decano do STF, ministro Celso de Mello, tornaram-se exemplares da falta de limites desses militantes, que o decano classificou de “bolsonaristas fascistóides”.
Celso de Mello, aliás, já previa os problemas que a radicalização política poderia causar à democracia no país. Em 2018, com problemas de saúde que o impediam de se locomover normalmente, pensou em se aposentar. Começou mesmo uma conversa sobre seu substituto, e indicou indiretamente ao presidente Michel Temer que se sentiria feliz se a advogada-geral da União, Grace Mendonça, fosse indicada para sua vaga.
No final do ano, com a polarização política acirrada na campanha presidencial, ele avisou a Grace que continuaria até o final de seu período, e entrará na compulsória por fazer 75 anos, em novembro.
A operação de busca e apreensão da Polícia Federal de quarta-feira, que tanto incomodou o presidente Bolsonaro, estava prevista há pelo menos um mês, e só não foi realizada antes devido à pandemia, como noticiei na minha coluna “Golpe frustrado”, de 22 de abril.
Como já havia a perspectiva de que Bolsonaro estava tentando interferir na Polícia Federal na saída do então ministro da Justiça Sérgio Moro, o ministro Alexandre de Moraes determinou que fosse mantida a mesma equipe da PF que trabalhava no caso há um ano. Com isso, evitou que a operação pudesse ser inviabilizada por questões burocráticas ou vazamentos com viés político.
Os membros do Supremo riscaram uma linha de onde não admitirão passar os desmandos do presidente e seus seguidores. Em consequência, as duas novas tentativas do governo de reverter decisões do Supremo têm chances próximas de zero de vingar, tanto o habeas corpus a favor do ministro Abraham Weintraub, quanto o pedido de fim do inquérito sobre fake news feito pelo Procurador-Geral da República, Augusto Aras.
Há uma jurisprudência firmada de que o tribunal não deve receber pedido de habeas corpus contra atos de seus ministros. Quanto ao inquérito, mesmo os que, a princípio, consideraram que era uma demasia do presidente Dias Toffoli, hoje entendem que os fatos descobertos nas investigações justificam sua existência, indo muito além da auto defesa que parecia ser o objetivo inicial.
Trata de ataques à democracia. Além do mais, iniciado de maneira equivocada, esse inquérito foi colocado nos eixos muito devido às críticas que recebeu. O ministro Alexandre de Moraes comanda as investigações, e não julgará, o PGR Aras tem conhecimento delas e foi atendido na tese de que os deputados não deveriam ser alvos de busca e apreensão em suas residências.
A fala do presidente Bolsonaro ontem de manhã foi reveladora de seus intentos, mas ele não tem meios legais para afirmar que “acabou”, se referindo à ação da PF autorizada pelo ministro Alexandre de Moraes contra as fake News. Não há nada que ele possa fazer contra o STF, que, como disse Rui Barbosa, tem o direito de errar por último.
É preocupante que ele não aceite limites que a democracia impõe, queixando-se de que sua caneta não tem tinta. Não imagino que tenha algum tipo de apoio fora dessas milícias digitais para tomar qualquer providência fora da lei. Vários militares, inclusive o vice-presidente, Hamilton Mourão, reafirmaram ontem que não há possibilidade de golpes militares. Os comandantes das Três Armas não são tão condescendentes quanto seus colegas da reserva com relação às extravagâncias políticas do presidente Bolsonaro. Enquanto ficar na retórica, e não houver nenhuma medida prática para desautorizar o STF, vamos viver nesse clima de tensão permanente. Para parar o STF, nem mesmo mandando o soldado e o cabo, como disse o filho 03 Eduardo, para fechá-lo.
Elio Gaspari: Uma reunião patética
Chega a ser um exercício pedagógico, sobretudo num tempo de horas vagas
A leitura da transcrição da patética reunião do ministério de Jair Bolsonaro exige algum tempo, mas chega a ser um exercício pedagógico, sobretudo num tempo de horas vagas. Descontem-se os palavrões (37). Esqueçam-se as tolices (um dos maganos dizendo que o pico da epidemia parecia ter passado). Deixem-se de lado os delírios presidenciais. Sobra o quê? O ministro da Economia, Paulo Guedes, dizendo que leu o economista inglês John Maynard Keynes no original, insistindo nas suas “reformas estruturantes” e colocando duas propostas na mesa.
A primeira foi criativa, caso inédito de colocação do maoísmo a serviço dos cânones da universidade de Chicago. Ele propôs uma mobilização de jovens para que se formassem como aprendizes. Quantos? “Duzentos mil, trezentos mil”. Nas suas palavras: “O cara de manhã faz calistenia, canta o hino, bate continência”, ajuda a abrir estradas e “aprende a ser cidadão”. O doutor lembrou que a “Alemanha fez isso na reconstrução”. Em 1945 a Alemanha estava destruída e faminta, mas deixa pra lá.
Afora a ingenuidade dessa proposta de militarização do andar de baixo, Guedes expôs outra avenida para o progresso e novamente inspirou-se na Ásia. Nas suas palavras:
“O problema do jogo lá… nos recursos integrados [provavelmente ele disse “resorts”]. Tem problema nenhum. São bilionários, são milionários. Executivo do mundo inteiro. O cara vem, é… fazem convenções … olha, a … o … o turismo saiu de cinco milhões em Cingapura pra 30 milhões por ano. (…) Macau recebe 26 milhões hoje na … na China. Só por causa desse negócio. É um centro de negócios. É só maior de idade. O cara entra, deixa grana lá que ele ganhou anteontem, — ele deixa aquilo lá, bebe, sai feliz da vida. Aquilo ali num … atrapalha ninguém. Aquilo não atrapalha ninguém. Deixa cada um se foder. (…) O presidente fala em liberdade. Deixa cada um se foder do jeito que quiser. Principalmente se o cara é maior, vacinado e bilionário. Deixa o cara se foder, pô! Não tem … lá não entra nenhum, lá não entra nenhum brasileirinho”.
No meio de uma epidemia e de uma recessão, o ministro da Economia oferece a legalização da jogatina em resorts turísticos. Esse é um velho sonho de Bolsonaro, desde sua conversão à ideia pelo magnata americano Sheldon Adelson, dono de resorts em Las Vegas, Cingapura e Macau. De fato, nos cassinos de Adams, “brasileirinho” não entra. Guedes conhece o Rio de Janeiro. Ele ganha um mês de férias em Macau se realmente acredita que alguém operará um cassino por lá sem que o crime organizado (e a milícia) entrem na operação. Sem cassinos, três governadores do Estado foram para a cadeia e um continua lá. (Na China, o hierarca que ocupou cargos equivalentes à presidência da Petrobras e ao Gabinete de Segurança Institucional está trancado).
O aspecto patético da reunião presidida por Bolsonaro é que ela não leva a lugar nenhum. E não leva porque o presidente não tem a menor ideia do que fazer, salvo sair por aí arrumando brigas.
Alô, alô Faria Lima
Um trecho das falas de Paulo Guedes, para a turma do papelório pensar na vida.
“Ô presidente, esses valores e esses princípios e o alerta aí do Weintraub é válido também, como seu… sua evocação é que realmente nós estamos todos aqui por esses valores. Nós tamos aqui por esses valores. Nós não podemos nos esquecer disso. Nós podemos conversar com todo mundo aqui, porque é o establishment, é porque nós precisamos dele pra aprovar coisa, mas nós sabemos que nós somos diferentes. Nós temos noção que nós somos diferentes deles”.
O Centrão no FNDE
Jair Bolsonaro prometeu governar com a boa vontade daquilo que chamava de “bancadas temáticas”. Nem ele, que acredita em “resfriadinho”, acreditava nisso. O deputado Alceu Moreira (MDB-RS), presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária avisava: “Quem disser que sabe qual é o resultado que esse novo modelo produzirá, de duas uma: ou é adivinho ou está mentindo”. Deu-se o inevitável e a “nova política” do capitão desembocou num acordo com o velho centrão. Nem sempre o inevitável precisa ser tóxico, os governos anteriores mantiveram padrões variáveis de moralidade nas suas negociações com essa bancada de interesses difusos, mas Bolsonaro exagerou. No primeiro toma-lá-dá-cá entregou o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas. No segundo, terceirizou uma diretoria do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, entregando-a ao chefe de gabinete da liderança do Partido Liberal, onde reina o inesgotável Valdemar Costa Neto. Com um caixa de R$ 55 bilhões o FNDE não é coisa que possa ficar dando sopa.
Em menos de dois anos do governo de Bolsonaro, esse fundo já teve três presidentes e vida acidentada. Com pouco mais de uma semana, em janeiro de 2019, descobriu-se que uma mão invisível havia mudado um edital, permitindo a inclusão de publicidade nos livros didáticos. A burocracia explicou-se dizendo que “houve um erro operacional no versionamento”. O que é isso, não se sabe. Em agosto passado o FNDE publicou um edital para a compra de 1,3 milhão de computadores, notebooks e laptops para a rede pública de ensino. Coisa de R$ 3 bilhões. A Controladoria Geral da União sentiu cheiro de queimado. E não era para menos, 355 escolas receberiam mais laptops que seu número de alunos. Uma delas, em Itabirito (MG) receberia 30.030 laptops. Como tinha 255 alunos, disso resultaria que cada um deles receberia 117 pequenos computadores.
O edital foi suspenso, o presidente do FNDE foi trocado e a peça foi revogada. Pouco depois,sem qualquer aviso, caiu o segundo gestor do fundo. O que seria um caso clássico de bom funcionamento dos órgãos de controle da máquina do Estado, tornou-se também um exemplo da falta de transparência de um governo que faz uma nova política. Ninguém sabe quem botou o jabuti no edital de agosto.
O ministro da Educassão, Abraham Weintraub, perdeu a oportunidade de lustrar sua biografia. Em vez de sugerir a prisão de ministros do Supremo, poderia ter mostrado o caminho da Procuradoria à turma que concebeu o edital do FNDE.
Brazil?
De um empresário que opera internacionalmente:
"Do jeito que vai a reputação do Brasil pelo mundo afora, daqui a pouco eu só conseguirei ser atendido pelas secretárias eletrônicas".
Eremildo, o idiota
Eremildo é um idiota e não acredita em denúncias.
A única coisa que ele não entende é por que os Bolsonaro demitiram Fabrício Queiroz e sua filha Nathalia.
Tendo demitido o chevalier servant os Bolsonaro não deveriam ter se interessado pela sua defesa.
Proeza
O governo do Rio conseguiu uma proeza: antecipou os escândalos em torno da construção dos hospitais de campanha e adiou suas inaugurações.
Bernardo Mello Franco: A lógica da milícia
Bolsonaro levou a lógica da milícia para o governo. A função da Polícia Federal é proteger sua família e amigos. A tarefa dos ministros é defendê-lo do alcance da lei
O vídeo liberado pelo ministro Celso de Mello expõe as vísceras da extrema direita no poder. A gravação mostra como Jair Bolsonaro transportou a lógica da milícia para o governo. A função da Polícia Federal é proteger a família e os amigos do presidente. A tarefa dos ministros é defender o chefe do alcance da lei. “O que os caras querem é a nossa hemorroida!”, brada o capitão, antes de atacar prefeitos e governadores aos palavrões.
Bolsonaro comanda a reunião no Planalto como se estivesse num churrasco em Rio das Pedras. Entre berros e xingamentos, ele diz estar “se lixando” para a reeleição. Em seguida, avisa que a vitória de um adversário em 2022 pode levá-lo para a cadeia. “Se for a esquerda, eu e uma porrada de vocês aqui tem (sic) que sair do Brasil, porque vão ser presos”, ameaça. Todos os ministros estavam presentes, e nenhum deles se encorajou a retrucar.
A gravação reforça as suspeitas de interferência indevida na PF. “Eu não vou esperar foder a minha família toda de sacanagem, ou amigos meus”, diz o presidente. “Vou interferir e ponto final”, acrescenta. Dois dias depois, ele cumpriu a promessa. Demitiu o diretor-geral da polícia, à revelia do ministro da Justiça.
O vídeo fornece matéria-prima para novas frentes de investigação. Num trecho, o capitão revela a existência de um sistema particular de informações. Na noite de sexta, ele disse que essa rede clandestina o avisou da “possibilidade de busca e apreensão na casa de filho meu”. “Levantei isso. Graças a Deus, tenho amigos policiais civis e policiais militares do Rio”, contou.
Em outra passagem da fita, o presidente fala em “escancarar a questão do armamento” e ordena a publicação de uma portaria para facilitar a venda de armas a civis. “Eu quero dar um puta de um recado pra esses bostas”, diz, referindo-se a prefeitos que decretaram medidas de isolamento contra o coronavírus. O presidente estimula a formação de grupos paramilitares, o que é proibido pela Constituição. Cinco generais e um almirante ouvem o disparate sem abrir a boca.
O clima de conspiração contra a República domina as conversas na sala. Abraham Weintraub defende a prisão de ministros do Supremo Tribunal Federal. “Por mim, botava esses vagabundos todos na cadeia”, vocifera. Damares Alves sugere prender prefeitos e governadores. O presidente fala em “pedir às Forças Armadas que intervenham pra restabelecer a ordem no Brasil”. Ele cita três vezes o artigo 142 da Constituição, fetiche da militância bolsonarista que clama por uma “intervenção militar”.
Enquanto o capitão e seus aloprados sonham com um golpe, outros ministros falam em aproveitar a pandemia para afrouxar leis e liquidar patrimônio público. Ricardo Salles sugere “passar a boiada”, desmontando o que resta da legislação ambiental. Paulo Guedes defende uma privatização a jato do Banco do Brasil. “Tem que vender essa porra logo!”, afirma.
Num momento em que milhares de negócios quebram sem apoio do governo, o vídeo expõe as prioridades do economista-chefe do bolsonarismo: “Nós vamos ganhar dinheiro usando recursos públicos pra salvar grandes companhias. Agora, nós vamos perder dinheiro salvando empresas pequenininhas”.
Míriam Leitão: Ideia de Bolsonaro é inconstitucional
O que pensam sobre as falas de Bolsonaro um ministro do Supremo, um procurador do MPF e um general de alto escalão
A proposta do presidente Jair Bolsonaro de armar a população, na radicalidade que ele defendeu na reunião, se posta em prática, permitiria a formação de grupos armados, milícias, como há na Venezuela, e até uma guerra civil. O mais impressionante era que os oficiais, inclusive um integrante do Alto Comando, na ativa, estivessem vendo isso sem reagir. É inconstitucional a proposta do presidente. O Estado tem o monopólio da força, e ele é garantido pelas Forças Armadas. Bolsonaro quer que pessoas armadas saiam de casa para desrespeitar leis e determinações das autoridades.
Um ministro do Supremo com quem eu conversei ontem considera que essa é a parte mais relevante da reunião, não apenas por ser claramente inconstitucional, mas porque já há precedentes:
— Tem aquele fato anterior de revogação das portarias que permitiam a rastreabilidade de armas, balas e munições de uso exclusivo do Exército. Eles substituíram inclusive o responsável pelas portarias. Se você flexibiliza a rastreabilidade você beneficia os milicianos e grupos marginais. Essa é uma questão que precisa ser olhada com atenção. Já há uma ação do PDT no Supremo.
A Procuradoria-Geral da República (PGR) tinha que tomar alguma providência, na opinião desse ministro.
Um general que eu ouvi acredita que as instituições impedirão que o presidente execute esse seu projeto armamentista. Disse que o presidente não tem o poder de armar a população, porque a legislação não permite, e ele não teria o apoio necessário no Congresso para mudar a lei. O militar acha que o Brasil não tem essa cultura, a não ser “grupos restritos e os marginais”.
— Assim, quando ouço esses arroubos vejo apenas como uma figura de retórica — disse o general, que tem posição de destaque no governo.
O presidente estava naquela reunião estimulando, na minha opinião, um conflito armado dentro do país, a desobediência armada às ordens das autoridades estaduais. Isso pode ser o começo de algo muito perigoso. Na Venezuela, o coronel Hugo Chávez fez exatamente isso para se perpetuar no poder. Armou grupos, os círculos bolivarianos, inicialmente com o argumento de defender a “revolução” que ele dizia representar, depois outros grupos paramilitares foram sendo formados. Hoje, há mais “soldados” nesse exército paralelo do que no oficial. Por outro lado, o chavismo fez uma simbiose com as Forças Armadas, militarizando o governo e dividindo o poder com os oficiais.
Em seguida, enfraqueceu as instituições, como Congresso e Judiciário, e perseguiu a imprensa. O Brasil, no governo Bolsonaro, faz um ensaio claro na mesma direção do chavismo que demoliu a Venezuela. Naquela reunião do dia 22 de abril, o país redescobre, graças à decisão do ministro Celso de Mello, do que é feito o governo. Lá se viu de tudo, desde ministros pedindo prisões de autoridades, ameaças do presidente a quem falasse com a imprensa, até o estímulo à reação armada contra a ordem das autoridades.
Isso causou espanto em integrantes de outros poderes, mas é crescente a impressão de que o procurador-geral da República, Augusto Aras, tentará arquivar o inquérito que investiga se houve tentativa de interferência na Polícia Federal. Entre os meus interlocutores, tenho ouvido que o fato ficou disperso entre as muitas falas do presidente. Um procurador do alto escalão do MPF, no entanto, me disse ontem que é evidente que houve crime naquela reunião. O ponto do ex-ministro Sergio Moro estaria provado naquela fala, recheada de palavrões, em que ele diz que vai trocar sim “o pessoal da segurança nossa” no Rio. Ninguém honestamente pode confundir com a segurança pessoal, pelo contexto, e porque ele fala em proteger filhos e amigos. “Se não puder trocar, troca o chefe dele. Não pode trocar o chefe dele? Troca o ministro e ponto final.” E ele de fato trocou o diretor da PF no dia seguinte para mudar o superintendente no Rio. Ponto final. Era isso que ele queria. Se Aras não quiser ver, é porque não quer fazer seu papel institucional. Perguntei ao procurador que eu ouvi que crime estaria caracterizado nessa fala. “Advocacia administrativa, pelo menos.”
É diante deste fato que o país está: o presidente cometeu crime e faz ameaças à Constituição numa reunião ministerial. Ignorar isso é flertar com o abismo.