supremo

Merval Pereira: Caso exemplar

Sistema de escolha dos ministros do STF pode ser deturpado , assim como o do procurador-geral da República

O habeas-corpus dado pelo presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ) João Otavio Noronha ao Queiroz, amigo dos Bolsonaro, e à sua mulher, foragida da Justiça, não foi surpresa para ninguém, apesar de ele já ter recusado nada menos que sete habeas-corpus anteriormente para presos que argumentavam com o perigo de se contaminarem com a Covid-19, razão alegada para conceder a graça a Queiroz.

Já era consabido que ele está empenhado em se colocar para o presidente Bolsonaro como alternativa confiável à vaga no Supremo Tribunal Federal que se abre em novembro com a aposentadoria compulsória do ministro Celso de Mello.

Antes, depois que Noronha derrubou uma decisão que obrigava Bolsonaro a apresentar seus exames médicos, o presidente elogiou Noronha em discurso, dizendo que tinha sido “um amor à primeira vista”.

As freqüentes decisões a favor do presidente, a dos exames acabou derrotada no STF, e o habeas-corpus de Queiroz, que causou incômodo entre seus pares, pode ser derrubada pelo relator Felix Fischer, têm uma razão de ser. João Otávio Noronha fará 65 anos em agosto do ano que vem, idade máxima para ser indicado para o Supremo.

Portanto, a próxima vaga é a chance que tem de ser indicado, pois o ministro Marco Aurélio se aposenta só em agosto de 2021. Já houve um caso em que o ministro tomou posse dias antes de fazer 65 anos, mas foi preciso um malabarismo para realizar o sonho.

Carlos Alberto Direito também provinha do STJ e precisou que o ministro Sepulveda Pertence antecipasse a aposentadoria para que pudesse tomar posse antes de fazer 65 anos, o que aconteceu a 5 de setembro de 2007, três dias antes da data fatal.

O caso de João Otavio Noronha é exemplar de como o sistema de escolha dos ministros do STF pode ser deturpado, assim como o do Procurador-Geral da República Augusto Aras, outro que disputa uma vaga no STF. Por isso há diversas propostas de mudanças, desde a fixação de um mandato para os ministros, até a maneira de escolha.

Há um projeto já em discussão na Comissão de Constituição e Justiça do Senado que propõe não apenas um mandato de 10 anos como que o presidente escolha o novo ministro através de uma lista tríplice com nomes indicados pelo STF, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e Procuradoria-Geral da República.

Embora muitos considerem que é preciso alterar os critérios da escolha e o período da atuação dos ministros no STF – atualmente há uma idade limite de 70 anos -, na opinião do advogado e professor Álvaro Palma de Jorge, co-fundador da FGV Direito-Rio, que acaba de publicar o livro “Supremo interesse, a evolução do processo de escolha dos ministros do STF”, temos desenvolvido bem esse processo, que é semelhante ao da Suprema Corte dos Estados Unidos, com a diferença de que lá o mandato é vitalício.

O autor faz um balanço da evolução do sistema, e adverte que os Estados Unidos levaram um século para chegar ao sistema de sabatina no Senado “ao atual estágio de complexidade”. Ele vê uma transformação saudável no nosso sistema de escolha, com a “paulatina inclusão informal da participação popular nesse processo”.

Para Álvaro Palma Jorge, o papel do Senado tem se aprimorado nas sabatinas recentes, justamente porque o Supremo é hoje “protagonista da vida jurídica, cultural, econômica, política e regulatória nacional”. Além do mais, o Senado já não desempenha mais sozinho o escrutínio dos indicados ao Supremo: “Tem junto consigo o cidadão, que pergunta, sugere, critica. Tem junto a academia, que analisa e oferece sugestões.Tem junto a pressão de entidades de direitos humanos. Tem defensores e críticos do nome indicado. Tem a imprensa. Tudo como deve ser”.

Assim como nos Estados Unidos, aqui também as mudanças eleitorais se traduzem em mudanças de jurisprudência, embora com uma freqüência às vezes indesejável no nosso caso, pois a rotatividade do nosso sistema é maior.

Por isso o presidente Bolsonaro quer garantir vagas para ministros conservadores, um pelo menos “terrivelmente evangélico”, na tentativa de alterar decisões da maioria progressista que domina hoje o STF. É impossível, porém, garantir o voto de um ministro que tem garantias de independência, inamovibilidade, irredutibilidade de salários. O próprio mensalão, e depois o petrolão, mostraram, inúmeras vezes, que os ministros e as ministras do STF podem, com suas decisões, surpreender e até desagradar a quem os indicou.


Merval Pereira: Pouco tempo

A tentativa de escapar da primeira instancia é tão evidente que sua defesa já tentava mudar o foro para o Supremo, alegando que Flávio Bolsonaro fora eleito senador. O STF recusou

As chances de o senador Flavio Bolsonaro conseguir que seu processo sobre a “rachadinha” continue na segunda instância no Rio de Janeiro são próximas de zero. O decano do Supremo Tribunal Federal (STF) Celso de Mello, defensor intransigente do fim do foro privilegiado, foi sorteado para relatar uma ação do partido Rede contra a decisão do TJ do Rio, - ele deve ficar também com a ação do Ministério Público do Rio -, mas qualquer dos ministros atuais tem a mesma posição, alguns até mais drásticas.

O ministro Marco Aurélio Mello, na reunião de maio de 2018 que decidiu, por unanimidade, restringir o foro privilegiado para deputados federais e senadores, parecia estar adivinhando a polêmica decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que devolveu o processo do senador Flavio Bolsonaro para a segunda instância do Poder Judiciário, contrariando a jurisprudência definida naquela sessão.

Ao apoiar o voto de relator Luis Roberto Barroso, divergiu quanto ao que chamou “perpetuação do foro”. Queria que ficasse explícito que, caso a autoridade deixe o cargo, a prerrogativa cessa e o processo-crime permanece, em definitivo, na primeira instância da Justiça.

Na semana passada, quando da decisão do TJ do Rio, Marco Aurelio reagiu indignado: “É o Brasil do faz de conta. Faz de conta que o Supremo decidiu isso, mas eu entendo de outra forma e aí se toca. Cada cabeça, uma sentença”. Na mesma linha, depois de ajustar seu voto à maioria, o hoje presidente do Supremo Dias Toffoli propôs naquela ocasião estender a todas as autoridades que tenham prerrogativa de julgamento em instâncias superiores, inclusive ministros do Supremo e do Ministerio Público, a restrição ao foro privilegiado.

Foi acompanhado pelo ministro Gilmar Mendes, que queria até a edição de uma súmula vinculante considerando inconstitucionais dispositivos de constituições estaduais que estendessem a prerrogativa de foro a autoridades em cargo similar ao dos parlamentares federais. Pouco tempo depois, o STF considerou inconstitucional uma decisão do Tribunal de Justiça do Maranhão que estendia a diversas autoridades o foro privilegiado.

Naquele 3 de maio de 2018, o Supremo decidiu, de acordo com o relator, ministro Luis Roberto Barroso, que o foro por prerrogativa de função conferido aos deputados federais e senadores se aplica apenas a crimes cometidos no exercício do cargo e em razão das funções a ele relacionadas.

Em seu voto, Celso de Mello declarou-se a favor do fim de todas as prerrogativas em matéria criminal, que é o caso de Flavio Bolsonaro, por entender que todos os cidadãos devem estar sujeitos à jurisdição comum de magistrados de primeira instância,. Já no início do julgamento do chamado mensalão ele havia defendido que a questão do foro privilegiado merecia uma nova discussão.

A nova interpretação da Constituição foi um marco na restrição do foro, fazendo uma atualização dos procedimentos adotados anteriormente, quando o foro privilegiado protegia para sempre seu detentor, mesmo quando ele já não exercia a função que lhe dava essa prerrogativa especial, como acontece hoje com o senador Bolsonaro.

A tentativa de escapar da primeira instância é tão evidente que sua defesa já tentara anteriormente mudar o foro para o Supremo, alegando que Flavio Bolsonaro agora fora eleito Senador. O STF recusou essa manobra. Essa dança das instâncias judiciais, aliás, era uma truque muito usado pelos parlamentares, que a cada nova eleição conseguiam mudar o foro para a primeira instância, levando a que o processo voltasse sempre à estaca zero, até a prescrição.

Por isso, a decisão do Supremo naquela sessão de 2018, por proposta do relator Luis Roberto Barroso, foi de que, na publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar outro cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo.

Era comum a renúncia do parlamentar quando o processo chegava na fase final, para que ele retornasse à primeira instância. Flavio Bolsonaro está fazendo o inverso, quer sair da primeira instância, onde as investigações já estão avançadas, para tentar anular todas as provas já obtidas nesses dois anos de investigações. Só que lhe resta pouco tempo.


‘Não creio que Bolsonaro produzirá conflito que leve à ruptura’, diz Nelson Jobim

Ex-ministro da Defesa concedeu entrevista à revista Política Democrática Online e diz que horizonte de solução da crise política passa pelas eleições de 2022

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Em entrevista exclusiva concedida à revista Política Democrática Online, o ex-ministro da Defesa Nelson Jobim é enfático ao afirmar que o artigo 142 da Constituição de 1988 não dá o direito de as Forças Armadas intervirem contra um dos poderes da República. “É equivocada a tese, verbalizada por Ives Gandra, que teima em trazer o passado por cima da legislação nova, ou seja, ajustar a legislação nova com pressupostos anteriores”, afirma. “Sempre haverá discursos políticos, mas não creio que o presidente Bolsonaro terá condições de produzir algum conflito que possa levar a uma ruptura do processo”, diz, em outro trecho.

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A publicação é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília. Todos os conteúdos podem ser acessados, gratuitamente, no site da entidade. Até 1988, os militares tinham a faculdade, pela Constituição, de intervir para preservar a lei e a ordem, sem limitação alguma. “Trata-se de uma prática tão comum como nociva no sistema legal, essa de tentar, por via de exegese, fazer sobreviver o modelo anterior por dentro do modelo novo”, afirma.

Jobim foi ministro da Defesa durante o segundo mandato de Lula e no primeiro ano do governo Dilma. Ele também foi deputado federal por dois mandatos, ministro da Justiça do governo Fernando Henrique Cardoso (1995-1997) e presidente do STF (2004-2006), Nelson Jobim é defensor da teoria de que, na história do Brasil, os conflitos mais emblemáticos tiveram suas soluções encaminhadas pela conciliação e não pelo confronto.

O horizonte de solução da crise política que o país vive atualmente, segundo Jobim, passa pelo processo eleitoral de 2022. Em sua avaliação, nenhum processo como os decorrentes das declarações do ex-ministro Sérgio Moro, envolvendo a reunião ministerial de 22 de abril; a ação em curso no TSE (Tribunal Superior Eleitoral), que analisa o processo eleitoral que deu a vitória a Bolsonaro ou o afastamento do presidente da República por conta do acolhimento de alguma denúncia de crime impetrada pelo Ministério Público Federal tem possibilidades concretas de andamento.

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Míriam Leitão: A desigualdade piora na pandemia

Ministro Marco Aurélio diz que há vários caminhos na Constituição para diminuir os gastos com servidores sem ter reduzir salários

O ministro Marco Aurélio Mello disse que a despesa com os servidores pode ser reduzida, ainda que o Supremo tenha decidido que são irredutíveis os salários dos funcionários públicos da União, Distrito Federal, estados e municípios. No mesmo dia dessa decisão, que protege um grupo profissional, o IBGE divulgou que a renda do brasileiro caiu 18% em maio, e que, dos afastados do trabalho, quase dez milhões passaram a não ter renda alguma. Desses, 33% são empregadas domésticas sem carteira. São os retratos do país.

O Brasil sabe como construir desigualdades e faz isso na saúde e na doença, na prosperidade e na crise. Agora, por exemplo, alguns, como eu, conseguem trabalhar de casa porque têm boa internet e bons equipamentos. Os de maior escolaridade, avisa o IBGE, são a maioria entre os que conseguiram continuar produzindo de casa.

O ministro Marco Aurélio explicou que a Constituição estabelece a irredutibilidade dos salários dos servidores, mas não o de trabalhadores do setor privado.

— É bom pensar nisso para uma futura emenda — disse.

O tratamento é desigual, afinal, o Brasil vive uma pandemia, um colapso da arrecadação que devasta as finanças de estados e de municípios, e o gestor público pode cortar tudo, menos o salário do servidor. Imagine uma cidade sem recursos que tenha que, em vez de comprar remédio para um hospital, manter o mesmo rendimento para o servidor num país que empobreceu?

O que o ministro argumenta é que a própria Constituição aponta um caminho:

— O rol de medidas, para reduzir as despesas com pessoal, contido na Constituição, é exaustivo. Está no artigo 169. Permite a redução dos gastos de pessoal, primeiro afastando 20% dos detentores de cargos de confiança, depois exonerando os servidores não estáveis e por último até os estáveis, desde que pagando-se uma indenização de um mês por ano trabalhado. Mas tem que conciliar todo ajuste à irredutibilidade dos salários dos servidores — disse.

Nesse artigo a Constituição estabelece que os salários dos servidores de qualquer esfera administrativa do setor público não pode exceder o limite estabelecido por lei complementar. E faz a lista desses ajustes que podem ser feitos. Nada impede agora que o governo federal diante da conhecida queda de arrecadação reduza em 20% os cargos comissionados. Mas, pelo visto, na negociação com o centrão para defender seu mandato, o presidente está fazendo o caminho oposto. Aumentando as nomeações de apadrinhados.

Os efeitos econômicos do coronavírus no mercado de trabalho são como um bombardeio sobre os postos de trabalho. Os servidores que têm estabilidade já estão num abrigo antiaéreo. Na outra ponta, estão 19 milhões de trabalhadores que foram afastados e, desses, quase 10 milhões ficaram sem remuneração alguma. Somando-se os brasileiros que gostariam de procurar trabalho mas não estão procurando por causa da pandemia e os desempregados, há 36,4 milhões de brasileiros “pressionando o mercado de trabalho”, como disse o IBGE.

E, ao contrário do que o presidente Bolsonaro argumenta, isso não é provocado pelas decisões de isolamento, mas sim pelo vírus em si. As medidas, agora cada vez mais neglicenciadas, são decorrentes da necessidade de proteger a vida. Se o governo tivesse sido eficiente nas linhas de crédito para as empresas micro, pequenas e médias, teria reduzido em muito a crise atual. Se tivesse organizado com competência a distribuição do auxílio emergencial, teria evitado a maior parte das filas que certamente aumentaram as taxas de contaminação. E, principalmente, se o presidente não tivesse passado tantos sinais contraditórios, não tivesse negado a ciência, mas agido como coordenador, o peso da pandemia e da crise econômica teriam sido menores.

Em todas as áreas o que se vê no Brasil durante a pandemia é o aprofundamento das desigualdades. A falta da cobertura de banda larga no país, a falta de computadores nos lares dos mais pobres, a falta de celulares afastam pessoas do mercado e tiram a capacidade de aprendizado dos estudantes. E pensar que quando foi criado o FUST era para ser, como o nome diz, um fundo para universalizar os serviços de telecomunicação. O dinheiro ficou parado no fundo, no meio de muito debate sobre o seu destino, e agora o governo Bolsonaro propôs sua extinção.


Fernando Schüler: A democracia não deve conviver com a violência e o medo

O STF, assim como o governo, erra ao tomar opinião como delito

Talvez não devesse, mas me surpreendo que o tema da liberdade de expressão tenha se tornado central em nosso debate. Joel da Fonseca definiu bem a questão: devemos punir ideias agressivas e violentas? Sua resposta é negativa e veio com uma provocação: “me preocupo mais com a ‘justiça’ das redes do que com as falas violentas que ela busca punir”.

Minha resposta também é negativa. Ela vem na trilha da primeira emenda americana. Me parece também a linha de Hélio Schwartsman dizendo que a democracia aceita “quaisquer críticas, em quaisquer termos, mas não admite ações concretas com o objetivo de subjugá-la”.

O debate me fez voltar ao inquérito das fake news, conduzido pelo Supremo. Muita gente que respeito me diz não ver ali nenhum problema e que o ponto é simplesmente dar um basta a este “bando de fascistas”. Há quem pense diferente. No mínimo a falta de clareza sobre o que exatamente se está pretendendo punir.

Resolvi conferir com um pouco mais de detalhe. Voltei ao documento em que o ministro relator do inquérito apresenta sua lista de “mensagens ilícitas” exemplificando como atua a “associação criminosa” que se investiga.

São 25 mensagens. Três delas trazem referência a intervenção militar ou coisa do gênero (“passou a hora de contarmos com as forças armadas!”, me pareceu a mais dura); seis delas usam termos de baixo calão e xingamentos (“canalhas”, “vagabundos”, “crápulas) e 16 não passam de opinião política mais ou menos contundente.
Metade dirige-se não apenas ao Supremo, mas a outros Poderes e lideranças, ou simplesmente às instituições.

A que conclusão devemos chegar? O primeiro ponto é não julgar essas coisas a partir do gosto pró ou contra o governo. Se alguém quer fazer isso, boa sorte. De minha parte, não faço.

Se o STF erra ao punir opinião, erra também o governo ao tentar enquadrar na Lei de Segurança Nacional uma charge associando o presidente à suástica nazista. A pergunta é sobre direitos. Sobre nossa capacidade de separar o que é um crime e o que é retórica odiosa ou ideias que julgamos politicamente insuportáveis.

Vamos repetir: dois terços das “mensagens ilícitas” citadas no inquérito não passam de opiniões (dessas que a internet anda abarrotada) sobre o STF e as instituições.

Podemos fazer de conta que não, mas é evidente que há um problema aí. Não acho que isto expresse os limites que desejamos para a liberdade de expressão em nossa democracia. Não me refiro a ameaças de “estuprar” ou “enforcar” quem quer que seja. A lei brasileira é bastante clara sobre como lidar com essas coisas.

Me refiro exclusivamente ao tema da opinião. Individual ou organizada, não importa. Opinião de grupos mais ou menos articulados, visto que é um direito que pessoas de esquerda ou de direita se organizem, combinem “levantar” hashtags para defender as ideias (corretas ou não) que julgarem conveniente defender.

Penso que o Brasil tem uma Suprema Corte da qual deve se orgulhar, por muitas razões. Mas talvez lhe esteja faltando um exercício de autocontenção. Considerar que ministros cumprem uma função pública e estão sujeitos à crítica pública. Da mesmíssima forma que as demais autoridades da República.

E mais: no contexto de uma sociedade que tende sistematicamente a abusar da palavra. Pelo excesso, pelo grotesco, pela irresponsabilidade. E para tudo isso encontra um antídoto: a irrelevância.

A democracia não pode conviver com a ameaça direta e objetiva de violência. Mas igualmente não deve conviver com o medo. O medo de exercer a crítica, por ácida e contundente que seja.

Não deveríamos deixar que a paixão política, que por vezes parece a única variável orientando o debate público, obstrua nossa defesa dos direitos mais elementares. Direitos dos quais, tenho certeza, a maioria de nós não gostaria de abrir mão.

*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.


Andrea Jubé: Começam as baixas na caserna

Prisão de Queiroz amplia desconforto no Exército

Apesar de esforços de vários atores em várias frentes para arejar a cena política, a prisão de Fabrício Queiroz, ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), aumentou a tensão em todos os ambientes, inclusive em uma das bases mais caras de Jair Bolsonaro: as esposas dos oficiais militares.

Uma evidência do derretimento da popularidade do presidente é a progressiva perda de apoio nesse segmento, refletida nos vários grupos de WhatsApp em que as mulheres dos oficiais da ativa e da reserva trocam impressões sobre os fatos políticos. A prisão de Queiroz e as circunstâncias que a envolveram provocaram uma debandada nesse grupo, inclusive de defensoras obstinadas do presidente.

Nem a saída do ex-juiz Sergio Moro do governo nem a postura negacionista de Bolsonaro sobre a pandemia - e a indiferença diante das mais de 50 mil vítimas fatais da covid-19 - haviam espantado essas apoiadoras.

Mas o esconderijo no escritório do advogado Frederick Wassef, que não saía dos dois palácios, Planalto e Alvorada, é visto como um detalhe estarrecedor. Ainda que Wassef tenha deixado a defesa do senador, até ontem suas digitais estavam lá, próximas da família, e suas declarações para tentar blindar o presidente são consideradas artificiais.

Outra convicção do grupo de mensagens das esposas é de que mais do que um auxiliar, Queiroz era um personagem do entorno do presidente, frequentador de churrascos e pescarias da família. Em um dos primeiros episódios em que se viu obrigado a esclarecer esses laços, Bolsonaro teve de responder por que Queiroz depositou um cheque de R$ 24 mil na conta da primeira-dama Michelle Bolsonaro.
Um general que viu algumas das mensagens trocadas entre elas assegura que até “o grupo mais radical sumiu”. Os grupos de mensagens das esposas dos oficiais antecipam tendências, diz este general.

É uma análise sem dúvida empírica. Mas em 2018, antes dos institutos de pesquisas e dos analistas políticos, as trocas de mensagens nesses grupos já indicavam a vitória de Bolsonaro.

Se o presidente amarga as primeiras baixas no estrato feminino da caserna, generais da ativa afirmam que a prisão de Queiroz acentuou o desconforto da cúpula com a persistente vinculação do governo ao Exército.

A imagem mais clara desse vínculo para o grupo do comandante Edson Leal Pujol é a permanência de dois generais da ativa no primeiro escalão: os ministros Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, e Eduardo Pazuello, da Saúde.

É com esse pano de fundo que a cúpula militar espera que nesta semana, em que o Alto Comando do Exército está reunido para definir promoções e analisar a conjuntura, o ministro Ramos finalmente anuncie a sua transferência para a reserva.

Há 15 dias, Ramos anunciou a aposentadoria, mas não falou em data. Na próxima semana ele completará um ano como general da ativa em um cargo civil, para desassossego de Pujol.

Quanto o general Braga Netto, ainda na ativa, tomou posse como ministro-chefe da Casa Civil, para assumir a gerência do governo, em menos de um mês formalizou sua transferência para a reserva.

Aposentando a farda, entretanto, Ramos perde a oportunidade de ser indicado para a próxima vaga para o Superior Tribunal Militar (STM), que será aberta no segundo semestre de 2022, com a aposentadoria compulsória do ministro Luís Carlos Gomes Mattos.

A cúpula da caserna, entretanto, distingue a situação de Ramos e Pazuello. Ambos ainda têm um ano e meio na ativa para galgar outros postos na carreira. Mas há uma leitura de que como general de Exército, Ramos atingiu o topo da carreira - acima, só o posto de Pujol.

Enquanto Pazuello, oficial de intendência (especializado em tarefas administrativas ou logísticas), teria a prerrogativa de buscar outras colocações porque como ministro interino da Saúde estaria cumprindo missão das mais espinhosas, sem chance de deserção.

Mas se há o desconforto com o vínculo direto do governo Bolsonaro com o Exército, a cúpula militar também não está satisfeita com as recorrentes insinuações de que tentariam um golpe militar, tampouco com o que classificam como excessos de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF).

Foi por esse motivo que o ministro do STF Gilmar Mendes pediu a audiência com o comandante do Exército na semana passada. A reunião foi salutar, mas a conversa nem de longe foi conclusiva.

Os generais reconhecem os excessos de Bolsonaro, mas da mesma forma enumeram episódios em que a seu ver, os ministros do STF teriam extrapolado.

O episódio mais recente que irritou os generais foi a declaração do ministro do STF e presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Luís Roberto Barroso, de que a nomeação de militares para vários cargos era a “chavização” do governo. “Ele praticamente nos chamou de bandidos”, indignou-se um general da ativa.

Outro gesto considerado desrespeitoso é atribuído ao decano do STF, Celso de Mello. ele incluiu no mandado para ouvir Ramos e o ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, a advertência de que se não comparecessem na data agendada para a oitiva, estariam sujeitos “como qualquer cidadão à condução coercitiva ou debaixo de vara”. Eles seriam ouvidos sobre a acusação de Moro da suposta interferência política de Bolsonaro na Polícia Federal.

“Bolsonaro tem excessos, mas o Supremo está fora da casinha, o tribunal está politizado há muito mais tempo”, ressaltou um general.
A cúpula do Exército avalizou a declaração de Ramos à revista “Veja” de que os militares não cogitam nenhum golpe, mas a oposição não pode esticar a corda. O entendimento na cúpula da caserna é de que as instituições devem ser preservadas: o Judiciário, o Legislativo e o Executivo.

Investigações e processos que mirem o presidente e algum de seus familiares devem seguir o curso normal, sem açodamentos nem ardis. A reiteração do que a cúpula classifica como excessos será compreendida como cutucar a onça com vara curta. E a onça está dormindo com um olho aberto.


Merval Pereira: Guerra fria

Gestos em direção ao STF feitos por Bolsonaro não têm o poder de paralisar as investigações que envolvem seu círculo íntimo

Os gestos do presidente Bolsonaro em direção ao Supremo Tribunal Federal (STF) têm pouca chance de reverter o relacionamento institucional entre os dois Poderes por uma razão simples: eles não têm o poder de paralisar as investigações que envolvem Bolsonaro ou seu círculo íntimo, e nem isso pode ser objeto de proposta de negociação. Seria ofensivo.

Espera-se uma reação menos biliosa por parte do presidente caso alguma decisão judicial nos próximos dias, o que não é improvável, mexa com seu humor. O que é classificado de “guerra fria institucional” pelos enviados especiais do Palácio do Planalto a São Paulo para uma conversa apaziguadora com o ministro do STF Alexandre de Moraes é, na verdade, a irresignação do presidente Bolsonaro com as decisões judiciais que lhe são desfavoráveis, o que não tem solução a ser pactuada.

Os enviados foram o ministro Jorge Oliveira, chefe do Gabinete Civil, o ministro da Justiça André Mendonça (ambos candidatos a vagas no Supremo) e José Levi, Advogado-Geral da União. Obviamente, não conversaram sobre investigações ou casos específicos, focando o diálogo na necessidade de acabar essa “guerra fria institucional”.

Ficou combinado que cada um exercerá suas funções sem agressões institucionais, mas o apaziguamento depende mais do presidente, que considera toda ação que atinja seus filhos ou seguidores parte de uma conspiração contra ele. Foi essa, aliás, a intenção de outro ministro do Supremo, Gilmar Mendes, ao conversar com o Comandante do Exército Edson Pujol. Mostrar que o STF apenas cumpre seu papel de guardião da Constituição

Os três emissários do Planalto fazem parte do grupo considerado dos que prezam a institucionalidade, e com a saída do ministro da Educação ,Abraham Weintraub, parecem prestigiados. Mas, com Bolsonaro, nunca se sabe. A expressão dele ao lado de Weintraub, que tomou a iniciativa de anunciar a própria saída, mostrava um homem claramente constrangido, e as possíveis razões disso são ruins para ele.

Se for devido à prisão, naquele mesmo dia, do Queiroz, têm-se a dimensão do estrago feito. Mas há outras especulações. Podia estar incomodado por ter que demitir Weintraub, ou insatisfeito por ter que dar, pela pressão das redes sociais, uma saída honrosa a ele, ou o prestígio virtual de Weintraub já o contraria.

Como Weintraub pretende assumir papel relevante nas redes sociais, ao lado do ideólogo de Virginia agora que estão juntos nos Estados Unidos, pode ser que o eventual atrito aumente. Mas esses problemas tornaram-se pequenos diante do que tem pela frente na Justiça.

O futuro presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luis Fux, nega que tenha sido procurado por interlocutores do governo para uma tentativa de aproximação, que de resto acha desnecessária, pois considera a relação institucional entre os Poderes natural.

Mas os que conhecem o ministro Fux consideram difícil que ele recebesse o presidente e sua comitiva na visita extemporânea ao Supremo, como Bolsonaro fez com um grupo de empresários sem ter marcado previamente com o presidente Dias Toffoli. São espíritos distintos.

Toffoli mais propenso a tentar um pacto de governabilidade entre os três Poderes que foi implodido pelo estilo totalitário de Bolsonaro. Até mesmo pela experiência anterior, o futuro presidente Fux não repetiria o gesto, mesmo porque o presidente Bolsonaro entendeu o pacto como sinal de que o Judiciário e o Congresso não o incomodariam, o que se mostrou um ledo engano de sua parte.

Além de tudo, há um componente nessa equação de paz que não está sob controle: as milícias digitais, que o governo diz não controlar. Como as investigações estão caminhando na direção de exibir os coordenadores e os financiadores desses grupos, e o próprio presidente estimula as manifestações com motes antidemocráticos de fechamento do Congresso e do STF, ficará muito difícil desvincular o presidente e seu círculo íntimo dos agressores.

O recado que o presidente tem recebido dos contatos com ministros do Supremo pode ser resumido à resposta do ministro Luis Roberto Barroso a um interlocutor que o procurou para saber se o presidente tinha o que temer em relação ao inquérito do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que preside. Disse Barroso: “Só se tiver feito alguma coisa errada”.


William Waack: O STF no ataque

O governo está na defensiva contra um adversário que se sente jogando em casa

“Bola no chão”, disse o general Hamilton Mourão, o porta-voz político do time dos militares no governo, referindo-se ao enfrentamento entre Executivo e Judiciário, a questão mais relevante e perigosa no momento. Ao sugerir como tratá-la, o general recorreu a uma frase da folclórica figura de Neném Prancha (1906-1976), que foi roupeiro, massagista, técnico e filósofo do futebol brasileiro: “A bola é de couro, o couro vem da vaca, a vaca come a grama, então bola no chão”.

Mas também o time do outro lado, o do STF, parece ter adotado uma frase de outra figura folclórica do futebol brasileiro, a do técnico Zezé Moreira (1907-1998), que assim descrevia a vantagem de jogar em casa mesmo contra equipes consideradas muito mais fortes: “Lá em casa até boi vira vaca”. De fato, o STF está jogando em casa. E no ataque.

Não se trata apenas da questão dos inquéritos que o Supremo dirige e que são clássicos do “follow the money” para chegar a quem organizou e financiou ações contra instituições democráticas – a principal razão do nervosismo no Planalto. Nem do formidável arsenal de medidas com o qual o STF já vinha impondo limites ao Executivo, muito evidente quando o Judiciário definiu o papel dos entes da Federação na crise de saúde.

Ministros do Supremo, articulados a uma vasta comunidade de operadores no campo do Direito (acadêmicos, advogados, juízes, procuradores), derrubaram com notável rapidez uma interpretação do artigo 142 da Constituição favorável a colocar as Forças Armadas como uma espécie de “poder moderador” entre os Poderes. “Isso é terraplanismo constitucional”, resumiu o ministro Luís Barroso, trazendo a filosofia de Neném Prancha para o campo jurídico. Em outras palavras, sumiu a justificativa “técnica” ou “constitucional” ou “legal” para qualquer intervenção política das Forças Armadas.

Pior ainda para o time do Planalto: o do STF ganhou um reforço considerável com a postura do procurador-geral da República – que o presidente tinha constrangido em público, obrigando Augusto Aras não só a ser “técnico” nas suas ações, mas a parecer ser. E ser “técnico” neste âmbito significa que a PGR e o STF tocam juntos os inquéritos que tanto irritam o Planalto e os militares.

Em termos das personalidades envolvidas na disputa, talvez a expressão mais eloquente da grave tensão entre os poderes Judiciário e Executivo esteja na evolução das posturas do presidente do Supremo, Dias Toffoli, e do ministro da Defesa, general Fernando Azevedo, considerado entre seus pares como uma brilhante cabeça política. Então chefe do Estado-Maior do Exército, Azevedo foi deslocado em 2018 para ser o principal assessor de Toffoli, que havia acabado de assumir a presidência do STF.

Naquela época, a ideia era promover um esforço conjunto (militares e juízes) para pacificar um delicado ambiente pré-eleitoral. Hoje, Toffoli enxerga “dubiedade” nas posturas do chefe do Executivo frente às instituições democráticas. Enquanto seu ex-assessor, atual ministro da Defesa, assina uma nota com o presidente da República e seu vice afirmando que as Forças Armadas “não aceitam a tomada do poder por outro Poder por conta de julgamentos políticos” – referência também aos inquéritos do STF, da PGR e do TSE, vistos no Planalto como ferramenta política para derrubar um governo eleito com 57 milhões de votos.

A natureza, o alcance e a profundidade das crises de saúde pública e econômica acuariam por si qualquer governo brasileiro, mas o de Bolsonaro se empenhou em agravar também a crise política, com o resultado de ter de jogar na defesa nas três. Neném Prancha definia o futebol como um jogo muito simples: “Quem tem a bola ataca, quem não tem, defende”. A bola está com o STF.


Bernardo Mello Franco: O bolsonarismo estica a corda

As ameaças de golpe já imobilizaram o Congresso. Agora o bolsonarismo quer domesticar a Justiça, que tenta frear a escalada autoritária do governo

O general Luiz Eduardo Ramos já reclamou que a imprensa publica “muita notícia ruim”. Agora resolveu usá-la para ameaçar a democracia. Em entrevista à revista “Veja”, o ministro da Secretaria de Governo disse ser “ultrajante” pensar que os militares preparam um golpe. “Agora o outro lado tem de entender também o seguinte: não estica a corda”, acrescentou.

Responsável pela barganha de cargos com o centrão, Ramos criticou o ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal. Em seguida, deu um tiro de advertência contra o Tribunal Superior Eleitoral. “Não é plausível achar que um julgamento casuístico pode tirar um presidente eleito com 57 milhões de votos”, sentenciou.

Para o jurista da caserna, os militares teriam poder de veto sobre decisões judiciais. É uma tese exótica, sem qualquer amparo na Constituição. O general apontou a garrucha para o TSE, que julgará se houve fraude nas eleições de 2018. A Corte poderia fazer tudo, menos cassar a chapa bolsonarista.

Para entender Ramos, é preciso saber quem ele situa no “outro lado”. O ministro não se refere à oposição, que não se une nem para redigir manifestos. Seus alvos são o Legislativo e o Judiciário, que podem esticar a corda da lei para frear a escalada autoritária.

A tática da intimidação já funcionou com o Congresso. O presidente comete crimes de responsabilidade todos os dias, mas o deputado Rodrigo Maia se recusa a tirar os pedidos de impeachment da gaveta. Resta ao bolsonarismo domesticar os tribunais, onde correm múltiplas frentes de investigação contra o clã Bolsonaro.

Até aqui, o Supremo tem resistido aos ataques coordenados pelo Planalto. Apesar do colaboracionismo do presidente da Corte, a maioria dos ministros dá sinais de independência. Na quarta-feira, Edson Fachin esclareceu que a liberdade de expressão não protege a apologia do golpe. “São inadmissíveis no estado de direito democrático a defesa da ditadura, a defesa do fechamento do Congresso ou a defesa do fechamento do STF”, disse.

No mesmo dia, o ministro Luís Roberto Barroso escreveu que “em nenhuma hipótese a Constituição submete o poder civil ao poder militar”. “É simplesmente absurda a crença de que a Constituição legitima o descumprimento de decisões judiciais por determinação das Forças Armadas”, afirmou. Na sexta, o ministro Luiz Fux lembrou que a lei não confere aos militares nada parecido com um “poder moderador”. O Executivo não pode usá-los para promover “indevidas intromissões” em outros Poderes.

É preocupante que juízes do Supremo se obriguem a dizer o óbvio: numa democracia, os militares devem lealdade ao Estado, não aos governantes de plantão. Apesar dos alertas, Bolsonaro continua a assediar os quartéis. Após a decisão de Fux, ele afirmou que as Forças Armadas “não cumprem ordens absurdas” e “também não aceitam tentativas de tomada de poder por outro Poder da República, ao arrepio das leis ou por conta de julgamentos políticos”.

O vice-presidente Hamilton Mourão e o ministro Fernando Azevedo subscreveram a nota golpista junto com o capitão. Para reforçar os argumentos, fizeram questão de anotar suas patentes de general.


Ricardo Noblat: Sem teto e sem palco para atentarem contra a democracia

Zona proibida

O governador Ibaneis Rocha (MDB), do Distrito Federal, saiu do modo letargia e mandou a polícia desmontar três acampamentos de bolsonaristas radicais que ocupavam áreas da Esplanada dos Ministérios e da Praça dos Três Poderes, em Brasília.

Além de choro e de ranger de dentes, a reação dos desalojados limitou-se a um passeio desafiador sobre a cúpula do prédio do Congresso a título de ameaça de invasão, e disparo de fogos de artifício sobre o prédio do Supremo Tribunal Federal.

Então Ibaneis sentiu-se estimulado a decretar o fechamento da Esplanada neste domingo, proibindo manifestações de cunho antidemocrático. E num ato raro de coragem, disse: “Bolsonaro é presidente, mas quem governa o Distrito Federal sou eu”.

Cabe ao governo federal arcar com as despesas de saúde, educação e segurança pública do governo local. É por isso que nenhum governador ousa contrariar o presidente. Os dois acabam se entendendo e jogando juntos, ou mais ou menos.

Apesar das pressões de empresários e de entidades patronais, se tivesse dependido apenas de Ibaneis, ele não teria afrouxado tão cedo as medidas de isolamento social contra a pandemia. Afrouxou sob a pressão de Bolsonaro, e o resultado não está sendo bom.

Os que ficaram sem acampamento prometeram pedir socorro ao presidente. Mas até esta madrugada, o socorro limitou-se à visita de solidariedade que lhes fez o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), o Zero Três, a mando do pai. Posou para fotos e foi embora.

Movimentos sociais pretendiam protestar, hoje, na Esplanada, contra a discriminação racial e a favor da democracia. Ibaneis não esclareceu se a ordem de fechá-la vale para eles também. Não faz sentido que uns paguem pela desordem dos outros.


Igor Gielow: Militares da ativa e ministros do Supremo reprovam nota de Bolsonaro

Presidente, vice Mourão e ministro da Defesa assinaram texto em nome das Forças Armadas

A nota em que o presidente Jair Bolsonaro, o vice Hamilton Mourão e o ministro Fernando Azevedo (Defesa) dizem que as Forças Armadas não cumprirão "ordens absurdas" foi reprovada por setores da cúpula militar e pelo seu alvo, os ministros do Supremo Tribunal Federal.

O texto foi elaborado na noite de sexta (12), após o ministro Luiz Fux conceder uma decisão provisória delimitando a interpretação do artigo 142 da Constituição, que regula o emprego dos militares.​

Na liminar, Fux respondia a um questionamento do PDT acerca da interpretação corrente no bolsonarismo de que o artigo permitiria às Forças Armadas intervir caso um Poder tentasse tolher o outro.

A visão vem sendo ventilada pelo presidente, pelo vice e outros membros do governo. A nota de sexta dizia também que as Forças não tolerariam "julgamentos políticos", uma referência nem tão velada à ação de cassação da chapa Bolsonaro-Mourão que corre no Tribunal Superior Eleitoral.

Folha conversou com oficiais-generais da ativa dos três ramos armados. Enquanto muitos consideram que o Judiciário tem exagerado em suas decisões, e todos ressaltem que os signatários da nota são seus superiores hierárquicos, o tom foi reprovado.

Não que haja aprovação às colocações de Fux, consideradas igualmente hiperbólicas nas conversas entre fardados.

Mas, para um almirante, a nota coloca as Forças Armadas como um poder moderador acima da lei. Ele disse que é óbvio que os militares têm de responder a decisões e que, se não concordarem, sempre caberá recurso dentro da Constituição.

Em grupos de WhatsApp de oficiais, a crítica mais comum era a de que as Forças foram colocadas como uma extensão do bolsonarismo militante, que tem no confronto com Poderes uma de suas características.

Já havia grande irritação pela entrevista que o general Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) havia concedido à revista Veja, no qual ele falou em tom ameaçador contra a oposição ao mesmo tempo em que se apresentava como representante das Forças.

Ramos, já no centro de insatisfações quando foi cogitado por Bolsonaro para substituir o comandante Edson Pujol, ao mesmo tempo cedeu a pressões e decidiu passar à reserva —irá deixar o interino da Saúde, Eduardo Pazuello, como último general da ativa com cargo de primeiro escalão.

A nota coroou uma semana de ruídos entre a ativa e o governo Bolsonaro, como a Folha mostrou. A tentativa de maquiagem de dados da Covid-19 na Saúde, a frustrada portaria para dar direito ao uso de aviões ao Exército e a revelação de negócio entre a Força e uma empresa americana de armas favorecida pelo filho presidencial Eduardo Bolsonaro não foram bem digeridos.

Ante todo esse clima, com efeito, Mourão concedeu entrevista à Folha na manhã deste sábado e tentou modular a nota, dizendo que não há indisciplina possível entre os fardados da ativa.

Há relatos divergentes acerca de uma consulta do Planalto aos comandantes de Forças sobre o tom da nota. A Folha questionou o general Azevedo sobre isso. Segundo sua assessoria, os chefes militares não participam de manifestações políticas.

Já entre ministros do Supremo, o tom variou de desânimo a irritação.

O desapontamento veio do fato de que o Planalto havia dado sinais de uma tentativa de normalização na relação com a corte, que está em processo de votação que deverá manter vivo o inquérito das fake news —que atinge o coração do bolsonarismo.

A principal sinalização foi dada acerca do ministro Abraham Weintraub (Educação), que na reunião ministerial de 22 de abril disse que queria ver os integrantes do Supremo, a quem chamou de vagabundos, na cadeia.

Nas últimas semanas, emissários fizeram chegar a ministros da corte que o Planalto estaria disposto a rifar Weintraub como punição pela fala. Em vez disso, o ministro envolveu-se em nova polêmica, com a rejeitada medida provisória que previa nomeação de reitores de universidades federais nesta semana.

A esse empoderamento somou-se a nota de sexta. A liminar de Fux havia sido alvo de contentações internas por parte de alguns ministros, que viram nela um certo truísmo ao reafirmar o que já está na Constituição e pela vacuidade do objeto: é uma decisão retórica, na prática.

Mas há simbolismos inescapáveis, e aí entra a contrariedade geral. Fux será o próximo presidente da corte, a tomar posse em setembro, e em momentos de crise entre Poderes os 11 integrantes do Supremo costumam agir em bloco.

Assim, o ataque direto a Fux se tornou, por extensão, mais uma afronta à corte por parte de Bolsonaro, que já participa contumazmente de atos pedindo o fechamento do órgão máximo do Judiciário e do Congresso.

A assinatura conjunta com Mourão foi vista como um recibo de ambos pelo fato de serem objeto da ação no TSE. Já a presença de Azevedo reforçou um sentimento que vem se consolidando na classe política: Bolsonaro tem usado as Forças Armadas como escudo por extrema fragilidade.

Assim, a banalização das ameaças, que assustam muitos devido ao passado intervencionista das Forças, tem sido vista pelo decrescente valor de face. Preocupa mais o Supremo a eventual perda de controle nas ruas, estimulada por Bolsonaro.

Chocou especialmente a sugestão do presidente para que hospitais sejam invadidos para provar a hipótese de que governadores estão inflando politicamente números da Covid-19.

Situações de violência implicam o uso das polícias militares, consideradas muito próximas do espírito bolsonarista. O motim da PM do Ceará no começo do ano, apoiado veladamente pelo governo, é um exemplo sempre lembrado.

Seja como for, no Distrito Federal a polícia acabou com o acampamento do 300 do Brasil neste sábado sem incidentes. O grupo pró-Bolsonaro prega violência e fechamento de Poderes, e não houve a temida adesão de policiais a ele.

As consultas que começaram na noite de sexta prosseguem neste sábado no mundo político, dado que Bolsonaro conseguiu elevar ainda mais o patamar de suas provocações institucionais, mas por ora o clima é mais de observação de cenário do que de reações exacerbadas.


Merval Pereira: Mais iguais

Não há mais caminho na Constituição para a interpretação intervencionista. Mas, claro que sempre é possível um golpe militar

O papel das Forças Armadas na nossa democracia continua dando assunto para o debate político, e o Supremo Tribunal Federal (STF), o intérprete definitivo da Constituição, se pronunciou novamente ontem através do ministro Luis Fux, que assumirá a presidência da Corte em setembro.

Respondendo a uma consulta do PDT, Fux disse, entre outras coisas: “A chefia das Forças Armadas é poder limitado, excluindo-se qualquer interpretação que permita sua utilização para indevidas intromissões no independente funcionamento dos outros Poderes, relacionando-se a autoridade sobre as Forças Armadas às competências materiais atribuídas pela Constituição ao Presidente da República”.

Há, no entanto, quem tema que “esse famigerado artigo 142 ainda vai dar pano para manga”, como o historiador José Murilo de Carvalho, da Academia Brasileira de Letras. Ele escreveu um belo artigo recentemente no Globo fazendo um apanhado histórico do papel das Forças Armadas nas constituições brasileiras, onde ressaltou que desde 1891 existe a definição delas como “garantidoras dos poderes constitucionais”, aspecto que considera “ a justificativa preferida pelas FA para definir seu papel e justificar sua intervenção”.

José Murilo me mandou um acréscimo de suas pesquisas sobre as FA nas constituições da Argentina, Uruguai e Chile, as outras três ditaduras da América do Sul, onde ele vê um “abismo de distância”. Nossos vizinhos, de fato, não definem um papel para as Forças Armadas. A Constituição argentina de 1994 diz apenas, em seu artigo 99: “O Presidente da República é o comandante-chefe das forças armadas da Nação”. A do Chile, de 2010, diz que “As FA dependem do Ministério da Defesa e “existem para a defesa da pátria e são essenciais para a segurança nacional”. A do Uruguai, de 1997, define: “O presidente da República tem o mando supremo de todas as Forças Armadas”.

Entendo o temor de José Murilo de Carvalho e tantos outros, mas, diante das diversas manifestações institucionais do Supremo, do Congresso, e de órgãos como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), acho que não há mais caminho dentro da Constituição para a interpretação intervencionista.

Mas, claro que sempre é possível um golpe militar. Quanto aos nossos vizinhos, sempre haverá quem diga que o presidente, sendo o comandante em chefe das FA, poderá decidir por uma intervenção militar. No Brasil, há ainda, pela primeira vez em 30 anos de democracia, essa indesejada mistura de militares com o governo.

O presidente Bolsonaro usa os militares como ameaça – “as Forças Armadas estão do meu lado”, - embora os militares que estão no governo sempre aleguem que não há ministro militar, há ministros que vêm da área militar, como outros são políticos, ou engenheiros, ou advogados.

Nesse caso, é indispensável que todos sejam da reserva e, sobretudo, que nunca mais vistam a farda, mesmo metaforicamente, muito menos para ameaçar as instituições. Não é o que acontece. O General Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo, embora tenha anunciado a decisão de ir para a reserva, garante em entrevista à revista Veja que o Exército não dará um golpe, mas adverte: “o outro lado tem que entender também o seguinte: não estica a corda”.

Ele também se recusou a comentar o que considera “implausível”: o TSE cassar a chapa presidencial. Ontem, o relator dos processos, ministro Og Fernandes, aceitou que o STF envie as provas já coletadas no inquérito das fake news presidido pelo ministro Alexandre de Moraes para serem compartilhadas pelo TSE.

O general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), se considerou com o direito de advertir que se o celular do presidente Bolsonaro fosse apreendido pela Polícia Federal poderia haver “consequências imprevisíveis”. Quando o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Celso de Mello convocou os três ministros militares do Planalto para depor, o aviso veio com um procedimento formal, que todo cidadão recebe da mesma maneira: se não comparecerem na data marcada, vão “debaixo de vara”.

Um linguajar próprio da Justiça que em nada rebaixa os convocados. Mas os militares ficaram irritadíssimos, como se mentalmente continuassem se considerando diferentes dos outros cidadãos. Acham que são mais iguais que os outros, como no livro “A Revolução dos Bichos”, do George Orwell.