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Merval Pereira: Lava-Jato sob risco

Duas decisões da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) dão indicações de que as decisões judiciais geradas pela Operação Lava-Jato estão a ponto de serem revistas.

A ausência do ministro Celso de Mello por doença transformou a Segunda Turma, que já foi chamada de Jardim do Éden, no refúgio mais seguro para os críticos do ex-juiz Sérgio Moro (foto) e dos procuradores da Lava-Jato.

Não se trata de acusar os ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski, mas de constatar que, por circunstâncias aleatórias, o pensamento dos dois em relação à ação da força-tarefa de Curitiba prevalecerá nas questões penais, pois o empate favorece sempre os réus.

A presença do ministro Edson Fachin, o relator da Operação Lava-Jato no Supremo, atrai para a Segunda Turma todos os processos sobre a operação, o que significa que o empate permanente favorecerá sempre os que a questionam.

As decisões tomadas na terça-feira, embora se refiram a casos fora da Lava-Jato, indicam o que poderá acontecer quando chegar a hora de julgamentos que lhe digam respeito, especialmente a ação que acusa o ex-juiz Sérgio Moro de ter sido parcial contra o ex-presidente Lula.

O STF, representado pela Segunda Turma, derrubou uma sentença de Moro condenando um doleiro no caso do Banestado, anos atrás, alegando que o juiz foi parcial ao incluir no processo documentos fora do prazo.

Moro, em nota, afirma que o Código de Processo Penal lhe confere o direito de mandar juntar aos autos documentos necessários, e lembra que a condenação foi avalizada pelo TRF-4 e pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Em outra decisão, pela primeira vez o Supremo aceitou um pedido de anulação de delação premiada feita por investigados na Operação Pelicano, sobre desvio de dinheiro público por fiscais de renda em Curitiba.

Um deles denunciou o grupo, que entrou no Supremo para anular a delação premiada, alegando ilegalidades no acordo entre o delator e o Ministério Público. Os ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski afirmaram que o caso em pauta era especial, pois havia ilegalidades evidentes.

A Segunda Turma está reduzida a quatro, ministros, com posições claramente definidas nas questões criminais. Fachin e Carmen Lucia a favor da Lava-Jato como instrumento de combate à corrupção. Gilmar Mendes e Lewandowski vêem ilegalidades neste combate à corrupção, que anulariam a maioria das decisões.

Consideram, inclusive, Sergio Moro parcial, quase um ativista político.

Essas decisões da Segunda Turma preparam o futuro, que tem o ponto alto no julgamento da parcialidade ou não do juiz Sérgio Moro nas condenações do ex-presidente Lula.

Ação que já começou a ser julgada, com os votos dados a favor de Moro pelos ministros Fachin e Cármen Lucia. A definir se num caso como o do Lula, tão importante, o ministro Gilmar Mendes, que pediu vista e é quem prepara a pauta da Turma, vai colocar em julgamento com a Turma desfalcada, se vai esperar Celso de Mello voltar, ou ainda se vai esperar a mudança do ministro para fazer o julgamento com a Turma completa.

Evidentemente, os ministros que têm visão crítica em relação à Lava-jato abriram caminho para que investigados entrem com processos contra as delações, e também, condenando por parcialidade o juiz Sergio Moro no caso do Banestado, estão indicando suas posições.

O julgamento de Deltan Dallagnol, coordenador dos procuradores de Curitiba, definiu que o caso estava prescrito e não poderia ser julgado. Só que julgaram. Todos deram suas opiniões, criticaram a Lava-jato, criticaram os procuradores. Por que fizeram isso?

No final, o advogado do Lula, Cristiano Zanin, disse que ia juntar a opinião dos ministros do CNMP para reforçar os processos no Supremo.

Está tudo sendo armado para que esse corpo estranho no Judiciário, a operação Lava-Jato, os juízes de Curitiba, o direito penal de Curitiba, como diz o ministro Gilmar Mendes seja controlado.


Bernardo Mello Franco: O palavrão que salvou Deltan

Na fase áurea da Lava-Jato, Deltan Dallagnol enchia auditórios para pontificar contra a corrupção. O procurador virou tribuno e lançou uma campanha para endurecer as leis penais. Queria aumentar as penas e reduzir as hipóteses de prescrição.

“Uma das razões centrais da impunidade é aquilo que a gente chama de prescrição. Prescrição é um palavrão jurídico que significa o cancelamento do caso criminal porque ele demorou muito tempo na Justiça”, dissertou, em outubro de 2016. “Você dá um atestado de boa conduta para o criminoso, o corrupto, como se o crime não tivesse acontecido”, prosseguiu, em entrevista a uma rádio paulista.

Um mês antes, Deltan virou alvo de reclamação no Conselho Nacional do Ministério Público. O motivo foi o PowerPoint em que ele apontou o ex-presidente Lula como “comandante máximo” dos desvios na Petrobras.

Em entrevista transmitida ao vivo na TV, o chefe da força-tarefa definiu o petista como o maestro de uma “grande orquestra concatenada para saquear os cofres públicos”. Em outro momento, chamou Lula de “grande general” da roubalheira.

O procurador ainda comparou Lula a um assassino que “foge da cena do crime após matar a vítima e depois busca silenciar as testemunhas”. O falatório foi ilustrado com um diagrama de 14 setas que apontavam para o nome do ex-presidente.

O espetáculo tinha um problema: apesar do discurso inflamado, Deltan não denunciou o ex-presidente por organização criminosa. Ele foi acusado num caso específico, em que teria recebido vantagens da OAS.

No Supremo, o ministro Teori Zavascki reprovou a performance. “Essa espetacularização do episódio não é compatível nem com o objeto da denúncia nem com a seriedade que se exige na apuração”, condenou.

A reclamação se arrastou no CNMP por quatro anos. Com recursos e chicanas que fariam inveja aos réus da Lava-Jato, o procurador conseguiu adiar 42 vezes o próprio julgamento. Ontem seu advogado convenceu o conselho de que o episódio já estava prescrito. Deltan foi salvo pelo “palavrão jurídico” que combatia.


Janio de Freitas: Fachin vê, como todos, e diz, como poucos, sobre futuro contaminado por despotismo

Ministro do STF faz diagnóstico forte e destemido ao tratar da escalada do autoritarismo no Brasil após eleições de 2018

A repercussão negada pelos jornalistas não nega ao exame da atualidade pelo ministro Edson Fachin, do Supremo, a condição de mais importante pronunciamento de um integrante das altas instituições brasileiras, ao menos desde iniciado o governo Bolsonaro, se não desde a queda de Dilma Rousseff.

A “recessão democrática” ainda não recebera nada no nível adotado por Fachin, exceto em parte pelo ministro Celso de Mello.

Objetivo como os magistrados evitam ser, claro e simples como os magistrados detestam ser, franco e lúcido como deveriam ser as considerações necessárias dos magistrados, Fachin advertiu que “as eleições de 2022 [as presidenciais] podem ser comprometidas se não se proteger o consenso em torno das instituições democráticas”. Proteger de quê ou de quem?

O diagnóstico é forte e destemido: há “uma escalada do autoritarismo no Brasil após as eleições de 2018”, gerada pela existência de “um cavalo de Troia dentro da legalidade constitucional” do país.

“Esse cavalo de Troia apresenta laços com milícias e organizações envolvidas com atividades ilícitas. Conduta de quem elogia ou se recusa a condenar ato de violência política no passado”. O
que inflama o presente com “surtos arrogantes e ameaças de intervenção”.

Fachin vê, como todos, e diz, como poucos: “O futuro está sendo contaminado por despotismo”.

No Supremo, a ministra Cármen Lúcia pareceu dar eco às palavras de Fachin no Congresso Brasileiro de Direito Eleitoral. Considerou triste a volta forçada do tribunal, diante do dossiê do Ministério da Justiça contra antifascistas, “a este assunto quando já se acreditava ser apenas”, ou ter sido, “uma fase mais negra da nossa História”. Nada a ver com o dito por Fachin, se até agora Cármen Lúcia tinha tal crença. Mesmo a tristeza soa irrealista.

Não faltaram ocasiões em que o Supremo e o TSE foram chamados a sustar a candidatura que atacou a democracia com a defesa da ditadura e da tortura, atacou as instituições constitucionais, prometeu acabar com os petistas e outros, anunciou uma população armada, transpirou ódios preconceituosos e vocação homicida. Isso tudo expelido por uma perturbação mental indisfarçável e com histórico comprovado.

Hoje não faltam crimes de responsabilidade acumulados. Como não faltam mortes pela Covid, não combatida de fato e inocentada para os incautos. E nem é só o figurante principal que continua inatingível pela defesa da ordem constitucional e do devido à população.

Flávio Bolsonaro não precisa controlar as revelações que se sucedem sobre sua delinquência, porque controla a passividade do Senado e o vagar dos seus inquéritos. Carlos Bolsonaro nem interesse demonstrou pelas revelações que o atingem. Fabrício Queiroz e seus contatos milicianos estão protegidos.

A instauração e a ameaçadora continuidade do descrito por Edson Fachin, como ninguém ousou fazer nas altas instituições, têm corresponsabilidades no Judiciário e no Congresso. Mas aí mesmo, na impossibilidade de negar o exposto pelo ministro, ficará mais difícil não ver o que está vendo, para não fazer o que deve.

OS BONS MOÇOS
Desde que passou de senador a deputado, para que seus processos saíssem de Brasília rumo à sua Minas, Aécio Neves não cessa de receber benesses.

Agora é o desaparecimento de delações premiadas integrantes dos seus processos, que por isso param… na Justiça (sic) de Minas.

O que importa é poder usufruir bem, com sua vocação de playboy, os milhões que extorquiu por aí com a irmã. Enquanto Geraldo Alckmin e José Serra seguem suas vidas discretas e bem providas. Aos bons moços do PSDB correspondem bons moços no Ministério Público e nos tribunais.


Bruno Boghossian: Supremo escancara ação do governo contra opositores de Bolsonaro

Presidente blinda extremistas enquanto ministério monitora policiais críticos ao Planalto

Quando o STF mandou bloquear páginas de bolsonaristas que espalhavam mensagens de ódio e defendiam um golpe de Estado, em julho, o governo se apressou para socorrer os acusados. O próprio presidente acionou o tribunal e pediu que fossem reativadas as contas dos militantes –incluindo uma extremista que usa a rede para praticar crimes.

Jair Bolsonaro mobilizou a Advocacia-Geral da União em defesa daquela tropa. Nenhum dos alvos era agente público, mas o presidente cobrou a suspensão da medida e tentou blindar o grupo que fazia um trabalho sujo a seu favor.

Esse mesmo governo moveu sua máquina para cercar um conjunto de seus críticos. A produção do dossiê do Ministério da Justiça que fichou professores e 579 policiais identificados como antifascistas foi suspensa nesta quinta (20) pelo Supremo. No julgamento, os ministros do tribunal escancararam o monitoramento de opositores de Bolsonaro.

Os autores do documento diziam que as informações coletadas eram todas públicas, mas tentaram camuflar o objetivo da papelada. O tribunal mostrou que o problema era o critério de escolha dos alvos.

“Uma coisa são relatórios para verificar eventuais manifestações que possam interromper, como houve com a greve dos caminhoneiros, o abastecimento. Outra coisa é começar a planilhar, estado por estado, policiais que são lideranças contra o governo. Qual é o interesse disso?”, perguntou Alexandre de Moraes.

Luís Roberto Barroso lembrou que a exploração política de órgãos de segurança remete a regimes autoritários. Ele disse que a bisbilhotagem de adversários é “completamente incompatível com a democracia” e sugeriu que os alvos deveriam ser os fascistas e não os antifascistas.

Os integrantes do tribunal ressaltaram que o trabalho de inteligência é fundamental, mas apontaram que investigações do tipo devem ser direcionadas, por exemplo, àqueles que tramam contra as instituições. Até aqui, no entanto, o governo preferiu proteger alguns deles.


Merval Pereira: Outros recados

O Supremo Tribunal Federal (STF) marcou de maneira expressiva, por 9 votos a 1, sua posição em defesa do Estado de Direito ao proibir o ministério da Justiça, com evidente efeito para todos os demais órgãos do governo Bolsonaro, de fazer dossiês “sobre a vida pessoal, escolhas pessoais ou políticas e práticas cívicas exercidas por opositores ao governo”, seguindo o voto da relatora, ministra Carmem Lucia.

Mas, ao mesmo tempo, o julgamento serviu para demonstrar que continuamos nos guiando por regras de compadrio e leniência, esta por parte do Procurador-Geral Augusto Aras. Os ministros que criticaram tão duramente os dossiês não aceitaram investigar o ministro da Justiça e Segurança Pública André Mendonça ´(foto) por ter mandado fazê-lo, aceitando a cândida explicação de que ele só teria começado a ser feito no dia 24 de abril, por coincidência o dia em que o ministro anterior, Sérgio Moro, pediu demissão do cargo.

Como é humanamente impossível que um dossiê iniciado num dia determinado estivesse, meses depois, tão recheado de informações, parece claro que essa explicação merece pelo menos ser investigada. Se o dossiê é obra do ex-ministro Sergio Moro, desafeto do presidente Bolsonaro, por que André Mendonça não denunciou sua existência assim que tomou conhecimento dele pela imprensa?

Se não foi ele o autor da ordem, por que não suspendeu o dossiê assim que a imprensa denunciou sua existência? Por que, considerando grave a existência de tal dossiê, ao demitir o servidor responsável Secretaria de Operações Internas (Seopi) não renegou publicamente a prática de espionagem? Por que passou dias negando sua existência, e até mesmo se recusou a entregá-lo à ministra Carmem Lucia, alegando cinicamente que ela não havia pedido, só o fazendo depois que o Congresso o pressionou?

Só existe uma explicação para o que aconteceu: no interregno entre a saída de Moro e a chegada de Andre Mendonça, alguém iniciou o dossiê e o foi alimentando aproveitando-se do vácuo de poder. Se aconteceu assim, e Mendonça explicou aos ministros do STF, nós os cidadãos, deveríamos ter sido avisados.

O Supremo, que deu duros recados ao presidente Bolsonaro em seus votos a favor dos direitos do cidadão, mandou também outro, talvez tão importante quanto para nosso futuro: pode nomear André Mendonça para a próxima vaga do ministro Celso de Mello que ele será recebido muito bem.

Quem resumiu o pensamento da Casa foi o presidente de saída Dias Toffoli em seu voto contra o dossiê elaborado no Ministério da Justiça sobre antifascistas: “Como presidente do STF, registro a atuação de sua excelência: (André Mendonça, ministro da Justiça) atuou da maneira mais correta, deu toda a transparência a esse STF”. Toffoli afirmou sobre o dossiê que “Governos anteriores tinham, ministros da Justiça anteriores tinham”, sem, no entanto, dar notícia de onde tirou essa informação.

O único que fez uma acusação sem insinuações foi o ministro Gilmar Mendes, que afirmou, atribuindo indiretamente o dossiê a Sérgio Moro: “A produção desses relatórios tem ocorrido durante grande parte do tempo de instalação do atual governo, não se tratando apenas de atos especificamente praticados na atual gestão da pasta da Justiça”.

As atuações do Procurador-Geral da República, Augusto Aras, e do advogado-geral da União, José Levi do Amaral, foram na mesma linha, a de negar a existência de tal dossiê que acabou sendo muito real para os ministros do Supremo. A alegação foi de que não havia nenhuma investigação criminal em curso, mas apenas informações públicas coletadas para prevenção da segurança governamental.

O Procurador-Geral chegou a argumentar que as informações coletadas no dossiê não prejudicaram ninguém, como se isso fosse o bastante para inocentar o governo Bolsonaro. Quanto às informações serem públicas, mas organizadas em fichários com os nomes dos cidadãos, significa não apenas que elas estavam sendo seguidas, como que os serviços de informação continuam usando a imprensa como fonte primária. Os arquivos do SNI também tinham recortes sobre as pessoas investigadas, e nem por isso elas deixaram de sofrer perseguições, prisões e torturas.

Como advertiu a ministra Carmem Lucia “(…) Não compete a ninguém fazer dossiê contra quem quer que seja ou instalar procedimento de cunho inquisitorial. O Estado não pode ser infrator. O abuso da máquina estatal para escolher informações de servidores contrários ao governo caracteriza desvio de finalidade.”


Elio Gaspari: Um terreno baldio chamado Palocci

O comissário petista avacalhou as delações

Não foi por falta de aviso. Em 2018, quando se falava numa eventual colaboração de Antonio Palocci, ex-ministro da Fazenda de Lula e quindim da banca, o procurador Carlos Fernando dos Santos Lima, da Lava-Jato, dizia que aquilo que poderia ser uma delação do “fim do mundo” estava mais para “fim da picada”. Palocci negociava com o Ministério Público, mas sua colaboração foi rebarbada. O doutor estava na cadeia, onde cultivava uma pequena horta. Começou a conversar com a Polícia Federal e com ela conseguiu fechar um acordo que o levou para casa. Passaram-se alguns meses, e Carlos Fernando voltou à carga: “O procedimento de delação virou um caos”.

De nada serviram as advertências. O caos prosperou, e a colaboração de Palocci, com suas 86 páginas, foi astuciosamente divulgada pelo juiz Sergio Moro dias antes do primeiro turno da eleição de 2018.

Olhada de longe, foi explosiva. Examinada de perto, assemelhava-se à cabeça daqueles que Tancredo Neves queria maltratar: “Parece um terreno baldio, onde as pessoas que passam jogam o que querem”. Naquele terreno baldio havia lixo, mas lá estavam também coisas que poderiam ser investigadas. A ajuda do ditador líbio Muamar Kadafi às primeiras campanhas de Lula, por exemplo. Palocci indicou como o dinheiro teria chegado ao PT, mas não se conhece providência para puxar esse fio.

Num dos 39 anexos, Palocci contou à Polícia Federal que Lula acertou com o banqueiro André Esteves (BTG) uma conta-propina de R$ 10 milhões que seria abastecida pelos ganhos com informações privilegiadas. O comissário indicou detalhadamente como o banco foi favorecido. A PF quebrou sigilos, ouviu operadores e dois personagens que estavam colaborando com a Justiça.

Conclusão: “As afirmações feitas por Palocci parecem todas ter sido baseadas em dados públicos, sem acréscimo de elementos de corroboração, a não ser notícias de jornais”.

A Polícia Federal colheu o depoimento, Moro jogou-o no ventilador, e agora a própria PF concluiu que ali havia muito pirão e nenhuma carne.

A estrepitosa colaboração de Palocci incriminou algumas das maiores empresas do país, constrangeu cidadãos, alimentou vinditas e ações espetaculosas. O encanto que o andar de cima teve pelo então ministro da Fazenda permite supor que ele mantivesse relações promíscuas com alguns maganos. O médico que o PT elegeu prefeito de Ribeirão Preto em 1992 acumulou considerável patrimônio, devolveu uma parte, ralou uma cadeia e hoje está preso em casa. Tornou-se símbolo do “fim da picada” e do “caos” previstos e denunciados pelo procurador Carlos Fernando. Sua colaboração, liberada durante a campanha eleitoral pelo juiz que desafortunadamente viria a aceitar o Ministério da Justiça de Jair Bolsonaro, caminha para ser o que sempre foi: uma ardilosa construção para tirá-lo da carceragem de Curitiba.

Palocci transformou em realidade a piada do advogado que, na madrugada de 24 de agosto de 1954, teria sido chamado para atender um cliente preso com uma faca ensanguentada, saindo de um quarto de pensão do Catete onde estava, morta, uma mulher. O advogado não sabia o que fazer, até que, às oito e meia da manhã, um rádio anunciou o suicídio de Getúlio Vargas.

O rábula virou-se para o delegado e disse: “Doutor, esses dois eventos são conexos.”


Bernardo Mello Franco: Cavalo de Troia

O ministro Edson Fachin considera que as eleições de 2022 estão em risco. Em palestra na segunda-feira, o vice-presidente do TSE alertou para o avanço do autoritarismo no Brasil. Ele disse que é preciso proteger a democracia antes que seja tarde demais.

Sem citar nomes, Fachin afirmou que as ameaças começaram na última disputa presidencial. “A escalada do autoritarismo no Brasil após as eleições de 2018 agravou os males da saúde da democracia”, disse, no VII Congresso Brasileiro de Direito Eleitoral.

Nas palavras do ministro, o país pegou a “contramão da História” e passou a conviver com “surtos arrogantes e ameaças de intervenção”. “O futuro está sendo contaminado por despotismo, e lamentavelmente nos aproximamos do abismo”, avisou.

Fachin recorreu à Grécia Antiga para explicar a enrascada do Brasil atual. Ele disse que “há um cavalo de Troia” dentro da fortaleza democrática erguida pela Constituição de 1988. “Esse cavalo de Troia apresenta laços com milícias e organizações envolvidas com atividades ilícitas”, acrescentou.

O ministro citou o livro “Como as democracias morrem”, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt. Os autores descrevem a nova tática dos autocratas: em vez de promover rupturas violentas, minam a democracia por dentro para se eternizar no poder.

Segundo os cientistas políticos, os inimigos da democracia incentivam a violência, demonizam adversários e sabotam as regras do jogo, ameaçando não aceitar derrotas nas urnas. Para Fachin, o Brasil já apresenta todos esses sintomas de “recessão democrática”. “As eleições presidenciais de 2022 podem ser comprometidas se não se proteger o consenso em torno das instituições”, alertou.

Em março, Jair Bolsonaro declarou que a disputa de 2018 teria sido fraudada para impedir sua vitória no primeiro turno. Passaram-se cinco meses e ele nunca apresentou provas da acusação. Em desvantagem nas pesquisas, Donald Trump passou a dizer que só será derrotado se a eleição americana for manipulada. É questão de tempo para o capitão imitar mais essa.


Merval Pereira: Manobra interrompida

As decisões dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) Luiz Fux e Celso de Mello sobre o julgamento de Deltan Dallagnol pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), marcado para ontem, mas suspenso, dão uma visão menos política e mais técnica das disputas sobre os procedimentos da Operação Lava-Jato.

Por isso, é apressado tirar-se alguma conclusão sobre os efeitos da decisão de ontem sobre sua posição futura, se participar do julgamento da Segunda Turma do STF sobre a suspeição do ex-juiz Sérgio Moro nos julgamentos do ex-presidente Lula. Mas é possível fazer-se a ilação de que sua posição de exigir provas evidentes para uma decisão exclui a utilização das reportagens do Intercept Brasil baseadas em informações roubadas dos celulares de procuradores de Curitiba, pois são provas ilegais.

Já iniciado, esse julgamento conta com dois votos dados a favor de Moro, os dos ministros Edson Fachin e Carmem Lucia. O ministro Gilmar Mendes, que pediu vistas e decidirá quando o tema voltará à pauta, e Ricardo Lewandowski devem votar a favor de Lula, ficando para o decano o desempate.

Mas ele se aposenta em novembro, e se até lá a ação não for julgada, a Segunda Turma poderá decidir com apenas quatro ministros, e o empate favorece Lula. Ou o então presidente Luiz Fux poderá designar algum ministro para o lugar de Celso de Mello.

Seria feio julgar assunto tão delicado e polêmico sem a turma completa. Existe também a possibilidade de o futuro novo ministro ocupar o lugar do decano na Turma, mas essa substituição demorará muito, pois haverá necessidade de o indicado ser sabatinado pelo Senado.

A decisão de Celso de Mello suspendendo o julgamento é magnífica, pois define o papel do MP como defensor da sociedade que não pode ser calado, fala sobre manobras que impediram o exercício pleno da defesa do chefe dos procuradores da Operação Lava-Jato em Curitiba, inviabilizando o devido processo legal, e ressalta a importância singular do Ministério Público: “(…) a Constituição da República atribuiu ao Ministério Público posição de inquestionável eminência político-jurídica e deferiu-lhe os meios necessários à plena realização de suas elevadas finalidades institucionais, notadamente porque o Ministério Público, que é o guardião independente da integridade da Constituição e das leis, não serve a governos, ou a pessoas, ou a grupos ideológicos, não se subordina a partidos políticos, não se curva à onipotência do poder ou aos desejos daqueles que o exercem, não importando a elevadíssima posição que tais autoridades possam ostentar na hierarquia da República, nem deve ser o representante servil da vontade unipessoal de quem quer que seja, sob pena de o Ministério Público mostrar-se infiel a uma de suas mais expressivas funções, que é a de defender a plenitude do regime democrático”.

O julgamento de ontem era sobre casos que já haviam sido julgados; estava tudo marcado para punir Dallagnol, com uma série de irregularidades sendo aceitas como normais. O ministro Luiz Fux, vendo que estava sendo preparada uma armadilha, anulou uma advertência contra Dallagnol imposta anteriormente, que seria um agravante contra o procurador.

Irritado com a decisão de Celso de Mello, mas sem referir-se diretamente ao caso, o Procurador-Geral da República Augusto Aras, que está empenhado em controlar a Operação Lava-Jato, fez um pronunciamento no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) pedindo “mais respeito” à suas decisões, e às do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), lembrando que “não há ninguém acima da Constituição”.

Ao contrário, o que estava em curso era uma reação política. O relator do processo, Bandeira de Mello, foi chefe de gabinete do senador Renan Calheiros, autor de uma das acusações. As cartas estavam marcadas, e é uma vergonha para o Conselho Nacional do Ministério Público.

Foi montado um circo para dar “uma lição” na Lava-Jato através de sua figura mais proeminente hoje. Acredito que, a partir de agora, o caso seguirá dentro dos parâmetros normais e assim, não há por que retirar Deltan Dallagnol da função de coordenador da operação Lava-Jato.

Nada grave aconteceu para que ele fosse punido dessa maneira. Não é possível transformar em bandidos os juízes e procuradores que desvendaram o maior esquema de corrupção do país.


Carlos Ayres Britto: Projeto de lei sobre ‘fake news’

Artigo 10.º do PL 2.630 é o que me parece mais vistosamente destoante da Constituição

É de percepção geral o fenômeno das fake news. Fake news como notícias falsas, literalmente. Ainda que tal desencontro com a verdade não seja total. Ou aconteça por modo tão completamente voluntário quanto apenas em parte, ou até mesmo sem nenhum ingrediente subjetivo de parceria com a inverdade. De toda maneira, notícias falsas que se espalham instantaneamente e em escala planetária, porquanto formatadas sob essa revolucionária forma de mensageria em rede que toma o nome técnico de “comunicação de dados”.

Compreensível, pois, que se pressione o Estado para editar leis de enfrentamento eficaz desse recorrente fenômeno. É o pano de fundo do Projeto de Lei número 2.630, em tramitação pela Câmara dos Deputados e sob a ementa de “Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet”. A exigir a lembrança de que boa parte dos temas ali tratados tem o seu regime jurídico diretamente estabelecido pela Constituição da República. Logo, um regime que não pode deixar de se pôr como obrigatório parâmetro para toda e qualquer lei de escalão infraconstitucional. 

Essa advertência começa pela necessidade de se entender o que não sejam fake news. Por ilustração, elas não correspondem às categorias constitucionais da liberdade de “manifestação do pensamento” e da “expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação”. Tampouco mantêm identidade com o direito de “acesso à informação”. Antes frustram o direito de todos ao mais livre acesso a um tipo veraz de informação, pois somente ele é que se põe como direito fundamental (por isso que bem de personalidade). E quanto à tarefa de dizer em que as fake news consistem, é preciso ver se elas já se encaixam nesse ou naquele molde legal de infração penal. Ou se é possível tomá-las como hipótese de incidência de um novo ilícito. Mais ainda, importa saber se a perpetração de fake news expõe o(s) seu(s) agente(s) à vedação de protagonizar futuras e distintas relações de internet. O que, data venia de entendimento contrário, me parece juridicamente descabido.

São aspectos que, junto a muitos outros de idêntica relevância – a partir do caráter jurídico totalmente privado das relações de internet -, não têm como ser dissecados num breve artigo de jornal. Por isso me limito a pinçar do projeto em causa todo o artigo 10.º, que me parece mais vistosamente destoante da Constituição. É que ele instaura um regime de rastreamento sobre as pessoas naturais que termina por lhes recusar os direitos fundamentais à “intimidade” e à “vida privada” (inciso X do artigo 5.º). Vida privada num plano intersubjetivo ou social, vida privada num plano espacial ou geográfico. Além de submetê-las a um tipo de investigação que, por independer do caso concreto e da apuração das coisas em autos oficiais, ignora os pressupostos também diretamente constitucionais da investigação criminal e da instrução processual penal. 

Deveras, penso que esse artigo 10.º inverte as coisas. Investigação criminal e instrução processual penal não se instauram senão documentalmente. Assim como não são abertas a partir do nada. Ambas pressupõem a ocorrência de algo sinalizador, em sua materialidade, de infração penal. Algo já abstratamente definido como ilícito penal e a ser apurado quanto à respectiva materialidade. Isso na perspectiva da identificação do respectivo autor. Um só autor, ou mais de um, contanto que essa coautoria seja passível de quantificação ou determinação numérica. Não em aberto, porque, senão, a essa indeterminação subjetiva passa a corresponder uma permanente situação de suspeita criminal sobre todo mundo e um Estado-polícia por definição. Como se a máxima de que “o preço da liberdade é a eterna vigilância” (Thomas Jefferson) não fosse cunhada a favor dos particulares e contra ele mesmo, Estado. Não o contrário.

Claro que não se está a desconhecer o vínculo funcional entre o combate às fake news e a concreção do bem jurídico fundamental da “segurança pública”. Ainda assim, que esse imbricamento se faça a partir do recorte que o artigo 144 da Constituição já fez quanto a dois literais sujeitos jurídicos: de uma banda, o Estado; de outra, as pessoas privadas. O Estado como sujeito que tem o “dever” de assegurar à população tal segurança; as pessoas privadas como titulares do direito ao desfrute desse bem da vida e também como responsáveis pela respectiva prestação. Sem que a lei possa baralhar as duas categorias jurídicas, pois o substantivo “dever” é conatural à figura do Estado mesmo. Estado que tem como uma das suas justificativas existenciais a permanente desincumbência desse específico dever, justamente.

Já a responsabilidade, o seu significado técnico é de colaboração ou ajuda ou auxílio. Sem constituir-se numa das próprias razões de ser das pessoas privadas. Pelo que a lei não pode forçar os particulares a fazer as vezes do poder público. A se colocar no lugar dele. Mais uma advertência que fica. 

EX-PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAl (STF)


Hélio Schwartsman: Supervisão teológica

Pior do que igreja fazer campanha para político é o Estado decidir o que cada igreja pode defender

O abuso do poder religioso deve ser coibido em eleições? O TSE julga uma ação no curso da qual poderá ampliar o conceito de abuso de autoridade para abarcar igrejas. Se a tese proposta pelo ministro Edson Fachin sair vitoriosa, políticos eleitos com uma mãozinha de clérigos poderão ter seus mandatos cassados.

Não sou o melhor amigo das religiões, mas a inovação sugerida por Fachin me parece inoportuna e perigosa. Ela limitaria em demasia não só a liberdade de expressão mas também a de crença religiosa.

Já fui proprietário de uma igreja, a Igreja Heliocêntrica do Sagrado EvangÉlio (IHSE). Era um bom negócio. Criá-la não custou mais do que algumas centenas de reais e sua existência permitia-me fazer aplicações financeiras livres de impostos, entre outras vantagens. Como o propósito de minha aventura sacerdotal não era enriquecer nem usar drogas legalmente (outra das vantagens), mas demonstrar, numa reportagem, quão fácil é usar a religião para livrar-se de impostos, acabei fechando a IHSE.

A legislação brasileira proíbe o poder público de negar registro a qualquer instituição religiosa cujos estatutos não afrontem nenhuma lei e sigam uma estrutura semelhante à das associações civis.

Não era o caso da IHSE, mas eu poderia ter estabelecido como princípio único do credo heliocêntrico o “não votarás para presidente em ninguém cujo sobrenome não comece com a letra b e termine com o”.

Seria um mandamento esdrúxulo, mas totalmente dentro da lei. Nesse caso, a aplicação da regra proposta por Fachin impediria a igreja de cumprir seu único desígnio, situação a meu ver incompatível com a da liberdade de crença assegurada pela Constituição (a Carta não afirma que a crença precisa fazer sentido).

Ainda pior do que igrejas fazendo campanha para políticos é o Estado se arrogando o direito de exercer supervisão teológica e decidir o que cada igreja pode ou não defender.


Bernardo Mello Franco: A sorte do Zero Um

Flávio Bolsonaro tem muitos problemas, mas não pode reclamar da sorte. Desde 2018, o Ministério Público acumula provas contra o senador. Os investigadores acreditam que ele montou uma organização criminosa para desviar dinheiro da Assembleia Legislativa do Rio. As suspeitas só aumentam, mas uma sucessão de manobras e percalços impede que o caso vá adiante.

No ano passado, a investigação foi paralisada duas vezes pelo Supremo Tribunal Federal. No plantão de janeiro, o ministro Luiz Fux trancou o inquérito a pedido da defesa. O Zero Um ainda não havia tomado posse, mas alegava ter direito ao foro privilegiado em Brasília. No mês seguinte, o ministro Marco Aurélio cassou a liminar e mandou o caso de volta à primeira instância.

No plantão de julho, o ministro Dias Toffoli jogou outra boia para o primeiro-filho. Ele aceitou a tese de que um relatório do antigo Coaf teria sido compartilhado sem autorização judicial. O documento mostrava a movimentação milionária nas contas de Fabrício Queiroz, segurança e motorista de Flávio. Também registrava depósitos em espécie para o Zero Um, que costuma pagar contas e comprar imóveis em dinheiro vivo.

Em dezembro, o Supremo concluiu que não havia nada de errado no envio de informações ao MP. O ministro Toffoli retificou o voto e passou a apoiar o compartilhamento de dados. Entre a liminar e o julgamento, o senador ganhou um refresco de quatro meses e meio.

Em junho passado, a polícia prendeu Queiroz e o MP fez saber que Flávio seria acusado de peculato, organização criminosa e improbidade administrativa. Às vésperas da denúncia, os desembargadores Paulo Rangel e Monica Tolledo voltaram a suspender o caso. A dupla entendeu que o Zero Um tinha direito a foro privilegiado no Tribunal de Justiça do Rio. A blindagem protege os deputados estaduais, cargo que ele deixou de ocupar ao virar senador.

Na quinta-feira, o tribunal informou que o MP perdeu o prazo para recorrer contra a regalia. Na sexta, uma reportagem da “Folha de S.Paulo” informou o motivo. A procuradora Soraya Gaya, que já elogiou Jair Bolsonaro nas redes sociais, acessou a intimação sem avisar os colegas. Com isso, a doutora antecipou a contagem do prazo em três dias. Agora ela será alvo de uma sindicância.

A sorte de Flávio é tamanha que chega a transbordar para Queiroz. Em julho, ele saiu da cadeia graças a um habeas corpus do presidente do Superior Tribunal de Justiça, João Otávio de Noronha. Generoso, o ministro estendeu o benefício à mulher do ex-PM, que estava foragida e não integra o grupo de risco da Covid-19.

Na quinta-feira, uma notícia voltou a preocupar os Bolsonaro. O ministro Felix Fischer cassou a liminar de Noronha e determinou a prisão do casal. Marido e mulher já esperavam o camburão quando foram salvos por um habeas corpus de Gilmar Mendes. O juiz do Supremo teve uma noite e tanto na sexta-feira. Além de salvar Queiroz, ele participou de uma live com dirigentes do MST. Depois de anos de pregação contra os sem-terra, ouviu João Pedro Stédile chamá-lo de “nosso ministro”.


Merval Pereira: Dallagnol na mira

Dando seqüência à tentativa de desconstruir a Operação Lava-Jato, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) julgará na terça-feira casos envolvendo o procurador Deltan Dallagnol, coordenador da Lava-Jato em Curitiba. Não são os primeiros, nem serão os últimos casos, pois ao longo de seu trabalho à frente da força-tarefa de Curitiba Dallagnol já teve cerca de 50 reclamações disciplinares contra si, a maior parte vinda de investigados e réus e seus aliados.

Apenas duas delas, e sempre por opinião, mereceram advertências. Por isso, é estranho que na reunião de terça exista a possibilidade de afastamento cautelar devido a um procedimento disciplinar por remoção compulsória por interesse público, impetrado pela senadora Katia Abreu, investigada pela Lava-Jato. Até hoje, foram poucos os afastamentos a bem do interesse público, e ambos por questões totalmente diversas das que Dallagnol está sendo acusado.

Um por trabalho ineficiente em defesa do consumidor, e outro por assédio moral e outras faltas funcionais. Ambos ao fim de um processo em que houve possibilidade de o acusado apresentar sua defesa, não de maneira cautelar. O afastamento cautelar de Dallagnol feriria de morte a garantia de inamovibilidade de integrantes do Ministério Público, o que afetaria a independência do órgão e levaria uma insegurança funcional nos demais membros do órgão investigador, que ficariam expostos à retaliações políticas.

Outro que apresentou Processo Administrativo Disciplinar (PAD) contra Dallagnol foi o senador Renan Calheiros, que pede sua punição por ter defendido a votação aberta para a eleição da presidência do Senado, afirmando que a eleição de Calheiros seria prejudicial ao combate à corrupção. O plenário do CNMP já rejeitou a mudança da caracterização da fala como atividade político-partidária, e negou o afastamento cautelar de Dallagnol pedidos ainda em 2018.

O relator é Luiz Fernando Bandeira de Mello, braço-direito de Renan Calheiros no Senado, onde atua até hoje como secretário-geral da Mesa Diretora. Por essa relação, um grupo de senadores pediu que ele fosse considerado suspeito para relatar os casos. Vários deles já foram julgados em outras reclamações disciplinares e considerados legítimos, como as palestras remuneradas que Dallagnol deu, ou o acordo da força-tarefa com a Petrobras envolvendo a restituição bilionária de multa paga nos Estados Unidos e que ficaria no Brasil com a criação de uma fundação para combate à corrupção.

Uma fundação polêmica, que acabou anulada pelo Supremo, mas, alega a defesa de Dallagnol, aprovada por diversos órgãos como uma solução jurídica legítima. Além disso, há uma questão técnica importante, que pode inviabilizar o julgamento.

O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) é composto por 14 membros, e é preciso maioria absoluta para aprovar uma remoção por interesse público. No momento, no entanto, existem somente 11 conselheiros em atividade, pois três indicações estão paradas no Senado para aprovação, o que desequilibra a composição do Conselho, pois o Ministério Público fica sub representado.

Há, portanto, uma discussão preliminar que deve ser enfrentada no julgamento de terça-feira: sem sua representação integral, o CNMP pode julgar uma ação dessa envergadura, raramente usada para punir procuradores? A não nomeação de dois representantes do Ministério Público por questões internas do Senado, como a paralisação dos trabalhos devido à pandemia, não é motivo para adiar a decisão? Há ainda a posição do Procurador-Geral da República, Augusto Aras, que abriu guerra declarada contra a Operação Lava-Jato.

Nas votações anteriores, os procuradores sempre tiveram o voto do Procurador-Geral da República, o que não é garantido desta vez. Todas essas circunstâncias formam um quadro que indica, no mínimo, que o julgamento desta terça-feira não está organizado dentro dos melhores padrões, e pode levar insegurança a todos os membros do Ministério Público.

O procurador Deltan Dallagnol é a face mais exposta da Lava-Jato em atividade em Curitiba. O interesse público é o fortalecimento do combate à corrupção, que fica fragilizado se do julgamento sair uma decisão que cheire a mais uma ação contra a Operação Lava-Jato.