supremo

Míriam Leitão: O ministro que não viu o visível

Jair Bolsonaro, no dia 28 de maio, amanheceu querendo dar ordens ao Supremo Tribunal Federal. Foi quando ele berrou na porta do Alvorada aquele ultrajante “acabou, porra”. O que o irritara era a decisão do ministro Alexandre de Moraes de expedir mandados de busca em endereços de empresários e blogueiros amigos do governo, investigados pela suspeita de ameaçar ministros do STF, disseminar fake news e financiar crimes digitais. “As coisas têm um limite. Não dá para admitir mais atitudes de certas pessoas”, disse o presidente. Era uma ameaça ao Judiciário e, portanto, à democracia. Mas Dias Toffoli não viu.

“De todo o relacionamento que tive com o presidente Jair Bolsonaro e com seus ministros de Estado, nunca vi da parte dele nenhuma atitude contra a democracia”, disse Dias Toffoli. O ataque descrito acima fora contra o inquérito que o próprio Toffoli abrira. Um dos seus filhos, o deputado Eduardo Bolsonaro, postou que era preciso uma “atitude enérgica” do presidente, acrescentando que não era uma questão de “se” mas “quando” ocorreria uma ruptura. O presidente continuou: “Repito, não teremos outro dia igual a ontem. Chega. Chegamos ao limite. Estou com as armas da democracia nas mãos”. Era uma ameaça, mais uma, mas Dias Toffoli não viu.

Bolsonaro atacou a imprensa de todas as formas, como naquele 23 de agosto em que diante da pergunta de um repórter deste jornal disse que queria “encher sua boca de porrada”. Era o valentão, cercado de seguranças e de imunidades presidenciais, fazendo ameaças físicas a um profissional no exercício da profissão. Não foi o primeiro ataque. Ele escolheu alguns jornalistas para ofender, injuriar e caluniar. Ameaçou também órgãos de imprensa que não o bajulam. Editou uma MP dizendo que o objetivo dela era prejudicar o jornal “Valor”. De variadas formas ele ameaçou a liberdade de expressão, um dos pilares da democracia. Isso também Toffoli não viu.

O presidente participou de passeatas antidemocráticas. Muitas. Foram domingos consecutivos em que, aproveitando-se do distanciamento social que mantinha em casa tantos brasileiros, convocou seus apoiadores. Eles foram com faixas pedindo o fechamento do Congresso, do Supremo e uma intervenção militar “com Bolsonaro e AI-5”. Numa delas foi para a frente da sede do Exército em Brasília e discursou aos brados para a multidão:

“Acabou a patifaria. Não queremos negociar nada, agora é o povo no poder”. Disse que as Forças Armadas estavam com eles. Em outro domingo, sobrevoou a multidão num helicóptero da Força Aérea com o ministro da Defesa a bordo. Usar as Forças Armadas para intimidar é subversão da ordem democrática. Todas aquelas manifestações foram um ataque explícito à democracia. Nem isso, contudo, o ministro Dias Toffoli viu.

O presidente fez ameaças em postagens e em declarações ao ministro Celso de Mello, disse que não respeitaria ordem judicial e publicou numa de suas redes que a decisão do ministro de divulgar o vídeo da reunião ministerial poderia ser enquadrada como abuso de autoridade passível de prisão. O ministro fez bem ao divulgar o vídeo porque nessa reunião claramente se conspirou contra as instituições. Integrantes do governo pediram prisão de ministros do Supremo, o presidente disse que era preciso armar a população para resistir às ordens dos governadores, e citou o artigo 142 da Constituição que, segundo interpretação canhestra que endossava, permitiria a intervenção militar. O presidente postou um vídeo repulsivo em que ele é um leão atacado por hienas e uma delas era o STF. O decano Celso de Mello reagiu. Soltou uma nota dizendo que “o atrevimento presidencial parece não encontrar limites” e lembrou que o presidente desconhecia o princípio da separação dos poderes. Ainda bem que tivemos os olhos de Celso de Mello, porque Dias Toffoli nada viu.

Houve nestes um ano e oito meses homenagens a ditadores, como Stroessner e Pinochet, que nos constrangeram no exterior, exaltação da ditadura, endosso a textos apócrifos claramente golpistas, disseminação de fake news. Bolsonaro colocou em dúvida o processo eleitoral brasileiro, dizendo que houve fraude na última eleição sem apresentar qualquer prova. Nada disso o presidente do STF viu. E tudo era tão visível.


Carlos Pereira: A Justiça como arma política

A influência do Judiciário na política é fruto da escolha dos próprios políticos

Têm sido cada vez mais frequentes reclamações e críticas acerca da proeminência do Judiciário brasileiro, especialmente da sua Suprema Corte. Muitos afirmam que esta tem extrapolado a sua atuação, não apenas invadindo a seara de outros Poderes, mas também constrangendo de forma exacerbada a atuação dos políticos. Alegam também que a existência de decisões judiciais em direções opostas sobre temas semelhantes, não só proferidas pelo colegiado, mas especialmente de forma monocrática, tem supostamente acarretado insegurança jurídica.

A crescente influência do Judiciário na política não é um fenômeno brasileiro nem tampouco fruto de voluntarismos unilaterais de juízes ou mesmo de jacobinismos. Na realidade, é produto da escolha dos próprios políticos. Ou seja, o espaço que o Judiciário opera é definido politicamente.

De acordo com Ran Hirschl (The Political Origins of Judicial Empowerment Through Constitucionalization: Lessons from Four Constitutional Revolutions, 2000), essa influência é um fenômeno global. Em países cuja constituição garante direitos fundamentais e atribui ao Judiciário o poder de rever a constitucionalidade de atos de outros Poderes, verificou-se um aumento considerável da influência do Judiciário nas prerrogativas do Legislativo e do Executivo. Diante dos riscos de os interesses minoritários serem esmagados por uma maioria episódica, o empoderamento do Judiciário se tornou um imperativo.

O incremento na judicialização de políticas fez com que o jogo democrático dependesse cada vez mais da posição do Judiciário. A Justiça, na realidade, se transformou em uma espécie de arma política utilizada estrategicamente pelos próprios políticos.

José Maria Maravall (The Rule of Law as a Political Weapon, 2003) propõe três condições para que esse fenômeno ocorra. A primeira quando Executivos constitucionalmente fortes são majoritários no Legislativo ou conseguem formar coalizões. Nesse caso, o Parlamento teria poucas condições de responsabilizar e controlar o governo de plantão, tornando-se menos relevante. O confronto político seria assim transferido para o terreno do Judiciário. Haveria incentivos políticos para que a oposição minoritária embarcasse em uma estratégia de judicialização da política.

A segunda condição se daria quando a oposição aceita a derrota nas eleições na expectativa de se tornar governo no futuro próximo, mas novamente é derrotada nas eleições subsequentes. Mesmo com menores esperanças de se tornar vencedora com as regras do jogo atual, a oposição não parte para saídas autoritárias, mas utiliza o ativismo judicial como instrumento de competição política.

A última condição aconteceria quando o governo de plantão é minoritário e vulnerável no âmbito eleitoral. O governo teria assim incentivos para se valer do ativismo judicial para consolidar seu poder e enfraquecer a oposição. A expectativa do governo de ser vitorioso no futuro sob as atuais condições de competição é inferior à de ganhar após a politização do Judiciário. Evidentemente, essa estratégia depende de o governo encontrar apoio dentro do Judiciário.

No Brasil, as condições institucionais para uma maior interferência do Judiciário na política estão presentes desde a Constituição de 1988. Mas foi com a consolidação e amadurecimento de sua democracia que esse fenômeno ganhou maior intensidade e relevância. Pois, como disse Toqueville, “o poder arbitrário de magistrados em regimes democráticos é ainda maior do que a de seus colegas em regimes despóticos”.

Por maior que seja a insatisfação que a interferência do Judiciário na política gere em parte dos políticos e da sociedade, esse fenômeno tem se mostrado extremamente resiliente ou quase irreversível. Apenas em momentos de crise aberta que exigem refundação, mudanças dessa magnitude conseguem ser implementadas. Mas é preciso lembrar que um enfraquecimento do Judiciário também teria consequências negativas e, portanto, que não existe solução ótima.


Bruno Boghossian: Toffoli absolveu BolsonaroToffoli absolve Bolsonaro e passa verniz democrático numa conduta delinquente

Só faltou oferecer um troféu ao presidente por ainda não ter dado um golpe de Estado

Na última semana, Jair Bolsonaro e Dias Toffoli fizeram uma dobradinha. Questionado sobre críticas feitas por ministros do STF a seus ataques à democracia, o presidente protestou. “Eu queria que essas pessoas apontassem um ato meu, uma ação antidemocrática. Só isso, mais nada”, disse, na quinta-feira (3).

“Quando é que eu tentei censurar a mídia?”, emendou Bolsonaro. Ele deve se lembrar do dia em que disse ter vontade de encher de porrada a boca de um repórter que perguntou o motivo dos depósitos de R$ 89 mil na conta da primeira-dama, mas essa é outra história.

Horas depois, Toffoli decidiu absolver o colega do Planalto. Ao fazer um balanço de sua gestão, na manhã seguinte, o presidente do Supremo disse nunca ter visto “nenhuma atitude contra a democracia” partindo de Bolsonaro e seus ministros.

Toffoli poderia ter ficado no papo do equilíbrio institucional ou até repetido a propaganda sobre seus esforços para reduzir a tensão entre os Poderes. Mas o chefe do Judiciário preferiu passar um verniz democrático numa conduta delinquente.

Bolsonaro é o presidente que, irritado com um punhado de decisões do STF, passou a divulgar uma teoria segundo a qual as Forças Armadas poderiam fechar o tribunal.

Ele também já ameaçou descumprir decisões da corte e disse que não aceitaria determinações de seus ministros. “Acabou, porra!”, gritou o democrata depois que a Polícia Federal acordou extremistas que apoiam o governo nas redes sociais.

Quanto aos ministros do governo, Toffoli deve ter esquecido que a Esplanada tem integrantes que falam com despreocupação sobre a edição de um novo AI-5 e gente que promete “consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional” quando se vê sob a mira do tribunal.

Com certo orgulho, Toffoli afirmou ter feito o presidente “compreender que cabe ao Supremo declarar inconstitucionais determinadas normas”. Só faltou oferecer um troféu a Bolsonaro por ainda não ter dado um golpe de Estado.


Bernardo Mello Franco: Só Toffoli não viu

Existem figuras que não veem e figuras que não querem ver. Quando chamou o golpe militar de “movimento de 1964”, o ministro Dias Toffoli não padecia de cegueira histórica. Estava distorcendo os fatos para agradar Jair Bolsonaro, então favorito na eleição presidencial.

Toffoli deixa o comando do Supremo Tribunal Federal na próxima quinta-feira. Em sua gestão, o governo atacou e ameaçou a Corte de forma inédita desde o fim da ditadura. O ministro fingiu não perceber o que ocorria. Calou-se diante das ofensas e se comportou como um aliado do capitão.

A Constituição afirma que os Poderes devem funcionar de forma independente e harmônica. Toffoli ignorou a independência e radicalizou na harmonia. Chegou a se outorgar um certo “papel moderador”, a pretexto de “oferecer soluções em momentos de crise”. A oferta só serviu à família presidencial, que encontrou proteção jurídica nas horas de aperto.

No início do mandato de Bolsonaro, o presidente do Supremo anunciou um “pacto” entre Poderes. Ele se voluntariou a favor de reformas que poderiam ter sua legalidade questionada no tribunal. Um despropósito que irritou ministros mais preocupados com a autonomia da Corte.

Em julho de 2019, Toffoli suspendeu as investigações sobre o senador Flávio Bolsonaro, suspeito de desviar verbas na Assembleia Legislativa do Rio. A canetada aliviou o Zero Um e paralisou centenas de outros inquéritos que usavam dados da Receita e do antigo Coaf.

O refresco ajudou o primeiro-filho a escapar da polícia e do Ministério Público do Rio. Enquanto Flávio aproveitava a blindagem de Toffoli, seu amigo Fabrício Queiroz se escondia na chácara do advogado do clã.

Em 20 meses no poder, Bolsonaro fez quase tudo para minar a autoridade do Supremo. Ofendeu ministros, ameaçou descumprir decisões e participou de manifestações que pediam o fechamento da Corte. Em maio, o deputado Eduardo Bolsonaro declarou que uma “ruptura” era apenas questão de tempo. Seu pai sugeriu o mesmo em falas públicas e reuniões privadas.

Diante do silêncio de Toffoli, o decano Celso de Mello liderou a defesa do Judiciário. Em mensagem enviada aos colegas, ele descreveu a ofensiva autoritária e avisou que o “ovo da serpente” parecia “prestes a eclodir no Brasil”. O presidente do Supremo desprezou o alerta e manteve a linha colaboracionista. Há cinco dias, ele voltou ao Planalto para uma cerimônia que prometia levar cabos de fibra ótica à Região Norte. Seu discurso estava afinado com a propaganda do governo.

Na sexta, o ministro usou uma entrevista coletiva para enaltecer a própria gestão e se gabar do “diálogo intenso” com o chefe do Executivo. “De todo o relacionamento que tive com o presidente Jair Bolsonaro e com seus ministros de Estado, nunca vi diretamente da parte deles nenhuma atitude contra a democracia”, disse.

O golpe passou na janela, e só Toffoli não viu.


Eliane Cantanhêde: De retrocesso em retrocesso

Sem Lava Jato e com ‘fiscais do Messias’, logo chegaremos a 1980. Viva o Centrão!

Além da pandemia, que parece arrefecer, mas já matou mais de 125 mil brasileiros, o Brasil convive neste momento com ameaças a vários alvos bem definidos: Lava Jato, reforma administrativa, ministro Paulo Guedes e liberalismo do governo, vacinação em massa contra a covid-19 e preços de alimentos. Pairando sobre tudo isso, um mesmo fantasma que insiste em rondar o País: retrocesso.

O cerco à Lava Jato une a esquerda de Lula à direita de Bolsonaro, PGR, ministros do Supremo, cúpula e líderes do Congresso e parte da mídia, com tudo caminhando para um gran finale de efeitos explosivos: o julgamento sobre a suspeição do ex-ministro Sérgio Moro nas condenações do ex-presidente Lula, que passaria de réu a vítima e de preso a candidato.

O aperitivo foi quando a Segunda Turma do STF, por empate, que é pró-réu, anulou as condenações do Banestado e depois sustou ação penal contra o ministro do TCU Vital do Rêgo. A sobremesa, em cascata, será quando os advogados entrarem aos montes com recursos (que já devem estar prontos) pedindo “isonomia” para os seus presos e condenados.

“Se estava tudo tão errado assim na Lava Jato, vamos ter de soltar o Sérgio Cabral e devolver o dinheiro, mansões, lanchas, joias e diamantes do Sérgio Cabral?”, adverte um ministro do próprio Supremo, refletindo um temor que cresce na opinião pública na mesma rapidez com que caem os instrumentos e agentes da Lava Jato.

Já a reforma administrativa, que nove entre dez autoridades reconhecem como “fundamental”, mas só de boca para fora, está sem pai e sem mãe. O presidente Jair Bolsonaro, que trancou a proposta por dez meses, não quer e vai querer cada vez menos mexer com o funcionalismo – ou qualquer coisa que possa ameaçar sua reeleição em 2022. E Paulo Guedes e Rodrigo Maia, ambos fortemente a favor da reforma, romperam bem na hora decisiva.

Ex-Posto Ipiranga e ex-superministro, Guedes promete muito, entrega pouco, perdeu as graças do presidente, rompeu com a ala forte do governo e agora se mete numa briga juvenil com o homem-chave das reformas e do seu futuro no governo. E de um jeito ridículo. Proibir seus secretários de conversar com o presidente da Câmara?! Bem, Maia apresentou uma reforma da própria Câmara e foi cuidar da reforma tributária. Guedes que se vire. Com quem? Não se sabe.

E que tal ter na Presidência alguém que usa o cargo para fazer propaganda de um medicamento sem comprovação científica em nenhuma parte do mundo e para desestimular o uso obrigatório da vacina para livrar o País da maldição da covid-19? Por quê? Porque ele governa o Brasil misturando seus achismos com conselhos de terraplanistas que apostavam em no máximo 2.100 mortos. Já chegam a 125 mil, mas Bolsonaro continua firme com eles.

A última do presidente é apelar para o “patriotismo” dos donos de supermercados para segurar os preços. É evidente que a disparada dos preços já começou, em função de pandemia, dólar, estoques da China. E que o governo não tem ideia do que fazer. Além de apelar a empresários, talvez seja hora de orar. Milhões de pessoas sem emprego, com alta de preços de arroz, feijão e óleo… Boa coisa isso não dá.

Como alertou o colega José Fucs, é a volta aos anos 1980. A polícia (ou o Exército?) laçando bois no pasto, “fiscais do Messias” prendendo gerentes nos supermercados ao som do Hino Nacional. Nada com liberalismo, tudo com populismo e perfeitamente de acordo com cegueira ideológica, meio ambiente, Educação, saúde, política externa, cultura, inclusão, respeito à divergência, combate à corrupção e… censura quando se trata de Flávio Bolsonaro. De retrocesso em retrocesso, logo chegaremos a 1980. E viva o Centrão.


Demétrio Magnoli: Avanço da doutrina racialista para a representação política golpeia a soberania popular

Benedita da Silva e Luís Roberto Barroso tratam o acesso a cargos parlamentares como uma carreira

"Estaremos do lado dos que querem escrever a história do Brasil com tintas de todas as cores." O ministro Luís Roberto Barroso anunciou, por essa frase capciosa, a pretensão dos altos tribunais de tutelar os partidos políticos e os eleitores, determinando uma distribuição racial dos fundos públicos eleitorais.

O inevitável avanço da doutrina racialista para a esfera da representação política golpeia o conceito de soberania popular, pilar da democracia.

A discussão jurídica nasceu de um pedido aos tribunais da deputada Benedita da Silva (PT-RJ), pelo estabelecimento de cota de 30% de "candidaturas negras" em cada partido. Barroso disse "não", argumentando que só o Congresso tem a prerrogativa de legislar.

Mas, como é de seu feitio, prontificou-se a legislar de outro jeito, no mesmo rumo racialista, gerenciando o caixa dos partidos com vistas a um "equilíbrio racial".

As leis de cotas raciais para ingresso nas universidades apoiam-se na justificativa da promoção social de grupos excluídos. As cotas raciais dividem os estudantes de escolas públicas segundo a cor da pele, alavancando ressentimentos que nutrem o racismo. O consenso partidário formado em torno delas destina-se a mascarar a ruína do ensino público, raiz da desigualdade de oportunidades no umbral das universidades. Quando a raça chega ao terreno do voto, o racialismo retira sua máscara, exibindo a face que precisava ocultar.

Benedita e Barroso tratam o acesso a cargos parlamentares como o ingresso na universidade —ou seja, como uma carreira. A política é definida, aí, como profissão: meio de ganhar a vida e produzir patrimônio.

"Escrever a história do Brasil com tintas de todas as cores" significa, para eles, alçar "negros" a empregos bem remunerados. O problema do raciocínio é que, no fim, a seleção desses "profissionais" depende dos eleitores. Que tal, então, dirigir a mão que digita o voto para o lugar "certo"?

Os programas pioneiros de cotas raciais nas universidades foram introduzidos em 2003. Seus defensores alegavam, à época, que o expediente seria provisório, esgotando-se no horizonte de dez ou, no máximo 20 anos. Hoje, quase duas décadas depois, não só esqueceram-se do prazo limítrofe como engajaram-se na introdução de cotas raciais na pós-graduação e na administração pública.

A fraude da vontade popular na esfera eleitoral também caminhará por etapas. A primeira, em curso, define a distribuição de fundos de campanha. Numa segunda, cotas "raciais" dentro dos partidos. A conclusiva, pelo estabelecimento de cotas raciais nos próprios órgãos legislativos. No Líbano, a representação parlamentar é repartida segundo linhas sectárias, com a divisão de cadeiras entre cristãos, sunitas e xiitas. No Brasil, a lógica racialista aponta para uma divisão entre as "raças oficiais" —isto é, basicamente, entre "brancos" e "negros", pois os autodeclarados "pardos" já foram administrativamente suprimidos do universo legal.

A "voz dos negros" deve ser ouvida —eis a tradução conceitual da frase de Barroso. Os "negros", porém, participam de diferentes partidos, exprimindo ideologias diversas. Quem é a "voz dos negros"? Benedita, que é uma "voz de Lula", ou Sérgio Camargo, uma "voz de Bolsonaro"? A racialização dos órgãos legislativos nada tem a ver com a "voz dos negros". Expressa a voz das elites brasileiras que recobrem, com uma mão de tinta fresca, o racismo institucional praticado pelas polícias e a exclusão social de pobres de todas as cores.

A política é o campo dos valores, das visões de mundo —não das raças. A "voz dos negros" exigiria a constituição de um Partido Negro. Os arautos do racialismo não vão criá-lo, pois sabem que seriam rejeitados inclusive pelo eleitorado não branco. A estratégia deles é tutelar o voto por meio de leis restritivas da soberania popular.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Elio Gaspari: A Casa de Rui Barbosa não merece isso

Quem é o cachorro da Suprema Corte Cachorral?

A Casa de Rui Barbosa merece respeito. O repórter Lauro Jardim revelou o teor de uma mensagem de sua presidente, Letícia Dornelles.

Nela, dizia o seguinte: “Sua excelência, o ilustre ministro Cachorro, da Suprema Corte Cachorral, prepara habeas corpus para seus nobres colegas cachorrinhos poderem latir em paz. Liberdade de expressão cachorral.”

Ainda não se sabe a qual “cachorro” do Supremo Tribunal ela se dirigia. Sabe-se que a senhora foi nomeada pelo ministro Osmar Terra, comendador da Ordem da Covid, médico e ex-secretário de Saúde do Rio Grande do Sul, famoso por ter previsto, em abril passado, que o coronavírus mataria, no máximo, duas mil pessoas no Brasil. Já matou 120 mil.

A presidente da Casa de Rui é uma carta do baralho bolsonarista na qual estiveram um ministro da Educação para quem “brasileiro viajando é um canibal, rouba coisas nos hotéis”. Foi sucedido por outro que chamou os ministros do Supremo de “vagabundos”. Na Secretaria de Cultura o bolsonarismo colocou um cidadão que entrou no cargo parafraseando Joseph Goebbels, o ministro da Propaganda de Hitler. Para seu lugar foi a atriz Regina Duarte, que infelicitou sua biografia com uma entrevista na qual relativizou os assassinatos praticados durante a ditadura.

Na Educação e na Cultura, o bolsonarismo mostra a diferença entre o conservadorismo e o atraso. A Casa de Rui foi dirigida de 1939 a 1993 pelo historiador Américo Jacobina Lacombe. Era um conservador da cepa de Hélio Vianna. Trabalhava em cima de arquivos e, assim, deu corpo ao acervo da Casa que dirigiu. Em 1964, quando nos comícios gritava-se “Reforma agrária na lei ou na marra”, ele assinou um manifesto contra a edição de uma “História nova” pelo Ministério da Educação. Criticava-a porque era esquerdista, mas também porque era ruim. Meses depois, o governo de João Goulart foi deposto, e o marechal Castello Branco assumiu a Presidência. Ele era cunhado de Hélio Vianna que, como Lacombe, havia militado no movimento integralista, uma contrafação nacional do fascismo italiano. Nenhum dos dois associou-se ao terror cultural do regime. (Por justiça, diga-se que o próprio Castello Branco condenava os excessos que se praticavam.) Eram todos conservadores, mas não eram atrasados, muito menos ignorantes.

Aquilo que hoje se chama de Nova Direita tem um dente envenenado com a cultura e outro com o Poder Judiciário. Quando os bolsonaristas investem contra o Supremo Tribunal, ecoam as táticas dos húngaros de Viktor Orbán e dos poloneses do partido Lei e Justiça. Ambos detestam também a imprensa, mas essa é outra conversa. A raiva bolsonarista, como a da presidente da Casa de Rui, vem dessa raiz, mas a senhora Letícia não percebeu que a Casa que dirige tem o nome do patrono dos advogados brasileiros.

No mês passado completou um ano a publicação de um edital do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação que pretendia gastar R$ 3 bilhões na compra de 1,3 milhão de computadores, laptops e tablets para escolas da rede pública. Um colégio que tem 255 alunos receberia 30.030 laptops. A Controladoria-Geral da União apontou esse vício e vários outros. O edital foi cancelado.

Até hoje não se sabe quem botou o jabuti na árvore.


Folha de S. Paulo: Fachin diz que eleição coloca em disputa projeto autoritário a outro alinhado à Constituição

Sem citar Bolsonaro, ministro do STF e do TSE criticou ataques ao processo eleitoral, comparando-os a um 'habeas corpus preventivo para contaminar o resultado'

O ministro Edson Fachin, do STF (Supremo Tribunal Federal), afirmou que as duas próximas eleições vão colocar em disputa dois projetos: um que ele chamou de autoritário, e outro, ligado à “agenda de 88”, em referência ao ano de promulgação da Constituição.

“Creio que a sociedade brasileira precisa se preparar para fazer uma escolha entre essas duas agendas e esses dois projetos. E isso, na via da democracia deliberativa, se dará em 2022”, disse Fachin em transmissão ao vivo nesta segunda-feira (31), promovida pelo programa Violações e Retrocessos, coordenado por acadêmicos de direito da UFPR (Universidade Federal do Paraná).

Ao longo de sua manifestação, o ministro —que também é vice-presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral)— descreveu o que caracterizaria esse projeto que se contrapõe ao campo democrático.

“Uma agenda em raízes de elogio à ditadura civil-militar, uma agenda, portanto, de mentes autoritárias, de menosprezo à democracia, de menosprezo a questões vitais, como meio ambiente, povos indígenas, quilombolas", disse.

"De uma agenda que mistura o nome de Deus com negócios do Estado e uma agenda que tem uma política armamentista, que desrespeita as instituições democráticas, que ofende a imprensa, que escolhe inimigos externos e que busca, entre outras coisas, o controle da educação e do ensino”, acrescentou.[ x ]

Questionado sobre reportagem da revista Piauí, que relatou que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) teria manifestado intenção de intervir no Supremo, Fachin disse que não comentaria o fato político. Mas mencionou o livro “Como as Democracias Morrem”, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, sugerindo que o autoritarismo pode se manifestar sem a necessidade de um golpe.

“Eu estou nesse time, ou seja, naqueles que leem porque é importante ter informação de qualidade, para saber que é possível, sim, criar isso o que podemos chamar de endoautoritarismo, ou seja, manter-se um verniz democrático e, por dentro as instituições serem corroídas a tal ponto de que o hospedeiro, que é a democracia, seja destruído pelo parasita, que é o autoritarismo”, disse.

Em seguida, em reação ao autoritarismo, Fachin enfatizou a necessidade de “produzir confiança” no processo eleitoral e na Justiça Eleitoral, além, de sobretudo, se estabelecer o compromisso de respeitar a decisão manifestada nas urnas.

“O primado da democracia não é apenas que o processo deliberativo da consulta popular se realize, mas é que todos se comprometam a respeitar essa estrutura simbólica que se forma ao fim desses processos."

Sem citar Bolsonaro, o ministro criticou ataques feitos ao processo eleitoral, comparando-os a um “habeas corpus preventivo para contaminar o resultado”.

“Por isso, soa inadmissível que até mesmo quem tenha saído vencedor nas urnas venha a questionar a credibilidade da Justiça Eleitoral. Soa inadmissível que presidentes de outros países, como se lê nos noticiários, por antemão já estão colocando em dúvida o processo eleitoral, caso obviamente necessitem desta forma atípica de habeas corpus preventivo para contaminar o resultado”, disse.

Fachin também foi questionado sobre a reforma trabalhista, aprovada em abril de 2017. Na avaliação do ministro, as alterações efetivadas pelo Congresso durante o governo de Michel Temer (MDB) não se configuraram em “retrocessos”, mas em “violação à Constituição”.

“Eu já deixei em vários julgamentos do Supremo Tribunal Federal que eu entendo que, a rigor, diante da Constituição e de direitos sociais fundamentais, não há, exatamente, retrocesso. O que há é violação da Constituição. O que se chama de retrocesso é pular para fora da Constituição. E, portanto, boa parte dessas alterações legislativas vão de encontro à Constituição e não tiveram a minha compreensão, porque eu jurei defender a Constituição, não jurei defender as minhas convicções pessoais”, disse Fachin.

Em julho, também em live promovida pelo programa Violações e Retrocessos, de acadêmicos da UFPR, Temer havia afirmado que ministros do seu governo inflaram perspectivas de geração de postos de trabalho com a reforma trabalhista.

Antes da aprovação, o então ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, havia estimado a geração de 6 milhões de empregos. Outro ministro da época, Ronaldo Nogueira, titular da pasta do Trabalho, estimou que ao menos 2 milhões de vagas seriam criadas em dois anos.

“O nosso ministro Meirelles e Ronaldo Nogueira exageraram nas suas previsões. Eles estavam pautados pela ideia, que na verdade é muito comum aqui no Brasil, que é o seguinte: quando você produz uma lei no Brasil, no dia seguinte, o céu é azul, você não tem desemprego, você não tem insegurança”, disse Temer.


Cristina Serra: No STF, o 'legado' de Toffoli

Diálogo entre Poderes pressupõe altivez, e a simples percepção de tutela militar é anomalia

O mandato do ministro Dias Toffoli na presidência do STF termina nos próximos dias deixando um enigma. Por que ele teve dois generais da reserva no cargo de “assessor especial” no seu gabinete? O primeiro foi Fernando Azevedo e Silva, por indicação de ninguém menos que o então comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, o general “influencer”.

Villas Bôas foi quem, na véspera do julgamento do pedido de habeas corpus do ex-presidente Lula, no STF, em abril de 2018, fez ameaças numa rede social dizendo que o Exército repudiava a “impunidade” e que estava “atento às suas missões institucionais”. O STF rejeitou o pedido de Lula por 6 x 5, ele foi preso, bem, o resto você sabe.

Azevedo ficou dois meses no cargo e saiu para ser ministro da Defesa do candidato vencedor na disputa presidencial. Para a vaga, Toffoli acolheu outro general bolsonarista, Ajax Porto Pinheiro. Num vídeo, durante a campanha de 2018, em meio a raciocínios tortuosos, Pinheiro fala dos perigos do comunismo e diz que, se o PT voltasse ao poder, o Exército seria “a principal vítima”. Desconhece-se a contribuição do general ao Judiciário, ao custo mensal de R$ 12.940 para o contribuinte.

Indicado por Lula em 2009 para o STF, Toffoli fez um grande esforço para se distanciar da esquerda e mostrar-se confiável aos militares. Antes de assumir a presidência, num exercício de contorcionismo semântico e impropriedade histórica, chegou a dizer que preferia chamar o golpe de 1964, que instaurou 21 anos de ditadura no Brasil, de “movimento de 64”.

Há quem interprete a contratação dos generais como uma tentativa de manter canais abertos com as Forças Armadas em tempos turbulentos. Se foi esse o intuito, mostrou-se malogrado. O Supremo vive sob ataque, e o próprio Bolsonaro já quis dar um golpe e substituir os 11 ministros. Diálogo entre Poderes pressupõe altivez. Tutela militar —ou a simples percepção dela— é uma anomalia a ser evitada. Não é um legado do qual se orgulhar.


Vera Magalhães: Corrida da toga

Vale tudo em nome das cadeiras que vão vagar no Supremo Tribunal Federal

Com o protagonismo ainda maior adquirido pelo Supremo Tribunal Federal em tempos de revisão da Lava Jato e de freios nos arreganhos autoritários de Jair Bolsonaro, foi desencadeada uma bizarra corrida pelas duas cadeiras de ministros que vão vagar no intervalo de um ano. Vale tudo para demonstrar lealdade ao presidente e ser digno da canetada da sua Bic.

Pelo menos três atores têm sido pródigos em mostrar serviço na expectativa de serem premiados com a cobiçada toga. A briga pelos lugares dos “Mellos”, Celso e Marco Aurélio, tem produzido decisões em que o direito é torcido e retorcido, com graves consequências políticas e institucionais.

O procurador-geral da República, Augusto Aras, nomeado por Bolsonaro ao arrepio da lista tríplice e à revelia dos seus pares, é um deles. A última da PGR sob seu comando foi produzida pelo seu vice, Humberto Jacques de Medeiros: o parecer favorável ao foro privilegiado retroativo para Flávio Bolsonaro no caso Fabrício Queiroz.

Medeiros também tem expectativas com a “corrida da toga”: se for Aras o agraciado agora em novembro, são grandes as chances de Bolsonaro designá-lo para o seu lugar.

O fundamento para aliviar a barra de Flávio contrasta com o que o próprio Medeiros usou em outra recente decisão polêmica: a de que requisitar documentos da Lava Jato de Curitiba. Agora ele argumentou que Flávio pode ter seu caso levado para o TJ do Rio porque a decisão do STF em contrário não era vinculante. Na outra, pegou um precedente aleatório para justificar a requisição de dados, sem evocar a necessidade de “aderência”. Um direito para cada ocasião.

Aras deu parecer contrário a buscas e apreensões contra bolsonaristas no inquérito do STF. Agora, no caso Wilson Witzel, o Ministério Público Federal pediu o afastamento de um governador e ele foi acatado por um ministro do STJ de forma monocrática.

Qual a linha da PGR? Depende da circunstância e do alvo?

O próprio STJ, aliás, virou palco auxiliar da corrida pela vaga no tribunal mais prestigiado. Basta lembrar do “canto do cisne” de João Otavio de Noronha na presidência da Corte: mandar Fabrício Queiroz para a prisão domiciliar por uma liminar no meio do recesso. Noronha é outro que tem a expectativa de ser agraciado por Bolsonaro.

Mais próximo do presidente está o ministro da Justiça, André Mendonça, que se transformou em tudo aquilo que Bolsonaro queria que Sérgio Moro fosse, mas o ex-juiz não quis.

A Advocacia-Geral da União, que ele chefiava antes, continua sendo uma subsidiária de sua linha de trabalho, e a pasta da Justiça virou um misto de advocacia particular do presidente e agência de espionagem de seus inimigos, em procedimento para o qual a maioria dos ministros do STF passou uma reprimenda, mas aliviou a barra do postulante a colega.

E aí há um aspecto importante: os 11 ministros do Supremo têm dado sinais ambíguos quanto à defesa da institucionalidade e aos freios necessários aos demais Poderes e a outros órgãos do sistema de Justiça.

Contêm o presidente, mas usam expedientes no mínimo duvidosos para isso. Repreendem os excessos da Lava Jato, mas seguem tomando decisões monocráticas que chocam a sociedade porque vão na contramão do esperado combate à impunidade. Defendem a liberdade de imprensa, mas abrem um precedente ao evocar a Lei de Segurança Nacional para punir ativistas – dando a senha para Mendonça fazer o mesmo com um jornalista.

O grau de degradação de todas as instâncias da vida nacional que Bolsonaro produziu com sua Presidência tóxica em um ano e 8 meses dará trabalho de corrigir. O sistema de Justiça não passará incólume a essa deliberada estratégia de destruição. Sob a complacência, quando não participação ativa, de muitos dos seus atores.


Bernardo Mello Franco: As façanhas do Zero Um

Em 2018, o Supremo Tribunal Federal restringiu a farra do foro privilegiado, que protegia políticos investigados por corrupção. A decisão já rompeu a blindagem de deputados, senadores, ministros e outros figurões da República. Só não atinge Flávio Bolsonaro, o primogênito do capitão.

Em janeiro de 2019, o Zero Um conseguiu a primeira façanha. O ministro Luiz Fux suspendeu as investigações sobre o vaivém de dinheiro em seu antigo gabinete no Rio. Flávio ainda não havia tomado posse como senador, mas alegava já ter direito ao foro no Supremo. Fux aceitou a conversa e concedeu a liminar. Ao fim do recesso, o ministro Marco Aurélio Mello cassou a decisão e devolveu o caso para a primeira instância.

O filho do presidente não desistiu. Em junho passado, ele alcançou a segunda façanha. A 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio inventou uma nova figura jurídica: o foro privilegiado de ex. Apesar de já ter deixado de ser deputado estadual, o senador ganhou direito a ser julgado no órgão especial do TJ. Tudo sob medida para livrá-lo do juiz Flávio Itabaiana, que mandou prender o ex-PM Fabrício Queiroz.

Ontem Flávio conseguiu a terceira façanha. A Procuradoria-Geral da República emitiu um parecer contrário ao Ministério Público do Rio e favorável ao senador. O documento foi assinado por Humberto Jacques de Medeiros, o vice de Augusto Aras.

A PGR defendeu que a Segunda Turma do Supremo rejeite a reclamação dos promotores contra o TJ. Na prática, isso significaria livrar o senador da primeira instância. E abriria caminho para anular tudo o que a investigação já descobriu, incluindo os cheques de Queiroz para a primeira-dama.

O procurador Humberto foi ousado. No parecer, ele falou em “mandatos cruzados” e escreveu que Marco Aurélio “não disse qual juiz seria competente” para julgar o Zero Um. O ministro não pertence à Segunda Turma, mas esclarece que não tem dúvidas: o caso deve ser devolvido à primeira instância. “O Supremo já bateu o martelo sobre isso”, sentenciou à coluna. “O Humberto foi meu aluno, mas não seguiu minhas lições…”.


Merval Pereira: Mandatos cruzados

Surpreendente, devido às posições anteriores de contenção do foro privilegiado, mas nem tanto, pelas decisões recentes alinhadas ao governo Bolsonaro, o posicionamento da Procuradoria-Geral da República (PGR), defendendo que o Supremo Tribunal Federal (STF) recuse o recurso do Ministério Público do Rio de Janeiro que questiona decisão do Tribunal de Justiça do Rio a favor do foro privilegiado do senador Flávio Bolsonaro no caso das “rachadinhas” não tem como prosperar se a jurisprudência do Supremo for seguida, como tem sido até hoje.

O caso mais emblemático é o do atual deputado e ex-senador Aécio Neves, cujos casos foram enviados para a primeira instância em decisões das Primeira e Segunda Turmas. No de Flavio Bolsonaro, a decisão do Tribunal de Justiça do Rio fez com que as investigações voltassem para o STF.

Estavam na primeira instância pelo entendimento de que os casos ocorreram quando ele era deputado estadual, e, portanto, pela interpretação do Supremo de 2018 de que o foro privilegiado só serve para crimes cometidos no exercício do mandato e em função dele, não tinham nada a ver com o atual cargo de senador.

A grande discussão levantada tanto pela defesa de Flavio Bolsonaro quanto pela PGR é sobre “mandatos cruzados” ou “mandatos prolongados”, quando um político passa de um cargo para outro em eleições seguidas, que não estariam tratados na decisão do Supremo. “Da mesma forma que não há definição pacífica do Supremo Tribunal Federal sobre ‘mandatos cruzados’ no nível federal, também não há definição de ‘mandatos cruzados’ quando o eleito deixa de ser representante do povo na casa legislativa estadual e passa a ser representante do Estado da Federação no Senado Federal (câmara representativa dos Estados federados)”.

Alegando que não há essa definição, a PGR diz que a reclamação do Ministerio Público do Rio é indevida pois “não pode ser usada para alcançar entendimento inédito” no STF. Essa falta de definição é questionada em particular por muitos dos ministros do Supremo, mas o ministro Marco Aurélio Mello já se pronunciou na ocasião, afirmando que a decisão "desrespeitou, de forma escancarada" o entendimento do STF sobre o alcance do foro privilegiado.

A Primeira Turma do STF, acompanhando por maioria o parecer do próprio Marco Aurélio, decidiu no ano passado enviar para a Justiça Federal de São Paulo inquérito que investigava denúncias de dirigentes da JBS sobre fatos ocorridos quando Aécio Neves era senador por Minas Gerais.

Os deputados estaduais são julgados pelos Tribunais de Justiça, mas deputados federais e senadores são da alçada do Supremo. Diferentemente de Flavio Bolsonaro, que mudaria de instância, Aécio Neves poderia alegar que continuava sob a jurisdição do STF, pois passou de senador a deputado federal.

Mas o relator, ministro Marco Aurélio, entendeu que os casos aconteceram num mandato que já se esgotara e, portanto, o deputado mineiro já não não tinha foro privilegiado em relação a eles. Por esse entendimento majoritário no STF, tanto Aécio quanto Flavio não têm mais o mandato em que os fatos ocorreram, e portanto devem ser julgados como qualquer outro cidadão, na primeira instância.

Também os ministros Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes, da Segunda Turma, em que o presente caso de Flavio Bolsonaro será julgado, enviaram inquéritos de Aécio para a Justiça Eleitoral. A maioria dos ministros do Supremo considera desnecessária a especificação cobrada pela Procuradoria-Geral da República, pois ambas as Turmas têm usado a mesma interpretação da legislação.

Se houver, no entanto, uma mudança de entendimento da Segunda Turma, é certo que será preciso uma revisão do plenário, para dirimir dúvidas sobre os “mandatos cruzados”. Mesmo que a decisão futura do plenário não favoreça a tese do Tribunal de Justiça do Rio, que lhe deu foro privilegiado no STF, o senador Flavio Bolsonaro não perderia esse privilégio, pois a lei só retroage em benefício do réu, nunca contra.