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Merval Pereira: O ponto fraco

O caso da soltura do traficante André do Rap pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello reacendeu um debate sobre segurança pública que estava adormecido desde que o presidente Bolsonaro livrou-se do ex-juiz Sérgio Moro para adotar posição de leniência no combate ao crime organizado.

A ida ontem do presidente Bolsonaro ao Supremo, para falar com o seu presidente, ministro Luis Fux, mostra que ele sabe como lidar quando as circunstâncias são adversas. Ao contrário do que fez com Dias Toffoli, quando praticamente invadiu o STF com um grupo de empresários para pressioná-lo a reduzir as medidas restritivas por causa da Covid-19, ontem o presidente marcou hora, e teve uma conversa institucional com o ministro Luis Fux, respeitosa de ambos os lados.

Não há dúvida, porém, que a escolha do momento, quando está sendo criticado o novo artigo do Código de Processo Penal que deu base à soltura do traficante, sancionado por ele, é um sinal de que Bolsonaro procura não se afastar do novo estilo implantado por Fux na presidência do Supremo.

Seu grande fantasma político, o ex-ministro Sérgio Moro, ressuscitou no debate provocado pelo caso, lembrando que pediu por escrito ao presidente Bolsonaro que vetasse tal artigo. O galardão do combate à corrupção continua com Moro, e é o ponto fraco de Bolsonaro no momento.
Na impossibilidade de fechar o Congresso e o Supremo, plano inicial postergado pela reação das instituições, a aproximação com o Congresso através de políticos do Centrão processados pela Operação Lava-Jato, e a necessidade de reatar relações com o Judiciário através do Supremo Tribunal Federal (STF) fizeram com que Bolsonaro fosse deixando pelo caminho camadas de peles até chegar à formação atual, que não se sabe se será a definitiva.

Bolsonaro disse uma vez que nunca se meteu em corrupção porque não fazia parte da elite política. Lídimo representante do baixo clero da Câmara, provavelmente sempre sonhou em fazer parte dessa elite, pois se ajeitou tão bem ao modelo quanto o ex-presidente Lula aos ternos de grife.

Com bom humor, Lula disse certa vez que passara 30 anos sem acostumar com o macacão de operário, mas parecia que tinha nascido para usar os ternos. Da mesma forma, parece que Bolsonaro se sente à vontade entre seus novos aliados, e cada vez se afasta mais dos radicais que ajudaram a levá-lo ao poder.

Inevitável fazer a comparação com Lula. Eleito ao assumir a postura de conciliador, o ex-presidente recebeu muitos votos que não eram para o PT, mas para uma continuidade do programa econômico tucano, com toques de política social, uma social-democracia a la brasileira. Ainda era visto pelos eleitores como um outsider.

Os primeiros anos de mandato mantiveram as bases do equilíbrio fiscal, e só depois de ser reeleito, apesar do mensalão, é que o governo do PT assumiu nova postura que levou a Dilma e à recessão. Nos bastidores, corria solto o petrolão.

Bolsonaro, ao contrário, foi eleito pelo radicalismo de extrema-direita que está no seu DNA, e, aproveitando-se da aversão ao PT da maioria do eleitorado, tornou-se um Cabo Daciolo bem sucedido. No meio do mandato, porém, Bolsonaro viu-se premido pelas circunstâncias a largar o radicalismo que o elegeu para participar do jogo democrático distorcido pelo fisiologismo.

Assumiu, com a desenvoltura de quem sempre sonhou estar onde está, o papel que Lula procurou esconder durante boa parte de seu mandato, o de caudatário do Centrão. Lula chegou a vetar um acordo que o então Chefe do Gabinete Civil José Dirceu havia amarrado com o MDB. Como disse Roberto Jefferson, o PT tratava seus aliados como se fossem amantes que não podiam ser reveladas.

Bolsonaro, ao contrário, mostra-se feliz como pinto no lixo com as novas companhias, e critica o que chama de “direita-burra”, que não entende que tem que governar com o Centrão. Saindo da extrema-direita para o Centrão, o presidente tenta restringir o espaço para os candidatos de centro na sua sucessão.

Dificilmente perderá os eleitores radicais, que não terão candidato viável, mas pode avançar num eleitorado que se move pela máquina administrativa nos rincões mais profundos do país, com o apoio do Renda Cidadã. Luciano Huck, Sérgio Moro, Ciro Gomes terão que demonstrar ao eleitorado que o verdadeiro Bolsonaro continua hibernando à espera da reeleição.


Eliane Cantanhêde: Marco Aurélio, qual é a sua?

Juízes e ministros do STF não são robôs, que juntam o caso X com o artigo Y e apertam um botão

Em 27 de julho do ano 2000, escrevi artigo sobre a decisão monocrática do Supremo que mandou soltar o então banqueiro Salvatore Cacciola, apesar da obviedade da culpa e das evidências de que, assim que deixasse a prisão, ele fugiria do País. O ministro deu a liminar, Cacciola voou para a Itália, via Paraguai e Argentina, e só foi preso de novo seis anos depois, ao cometer um erro primário. Título do artigo: “Marco Aurélio, qual é a sua?”

Vinte anos e muitas decisões polêmicas depois, Marco Aurélio Mello assume a partir de hoje a solene condição de decano, no lugar do ministro Celso de Mello, já empurrando a Corte para o centro do debate nacional – ou melhor, da ira nacional. Qual o sentido de soltar André do Rap, o chefe do PCC que a polícia demorou anos e gastou fortunas para capturar?

Dono de helicóptero, lancha, mansões e carrões, o facínora tem duas condenações em segunda instância, somando 26 anos, mas entrou com recurso e estava ainda em prisão provisória desde setembro de 2019. Ao acatar o habeas corpus, Marco Aurélio justificou que sua prisão não fora renovada de 90 em 90 dias, como manda o novo Código Penal, aprovado no Congresso e sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro – contra a posição de Sérgio Moro.

Pode? Não pode. Bastava o relator pedir explicações e ganhar tempo até cumprir-se a burocracia. Mas esse não seria Marco Aurélio. Ele tem cultura jurídica, é respeitado tecnicamente, acorda cedo e mergulha em livros, leis e casos. O problema é a personalidade, o gosto de ser “do contra”. Se tal julgamento foi 10 a 1, o “1” é de Marco Aurélio, 74, no STF desde 1990, por indicação de seu primo Collor de Mello.

Ao libertar o líder do PCC, ele determinou: “Advirtam-no da necessidade de permanecer em residência indicada ao juízo, atendendo aos chamados judiciais”. Seria cômico, não fosse trágico. André do Rap deve ter dado boas gargalhadas antes de escafeder-se por esse mundão afora, assim como Cacciola ao fugir para sua Itália natal.

Na época, nem havia o artigo usado agora pelo ministro, mas o resultado foi o mesmo. O então presidente do STF, Carlos Velloso, revogou a liminar de Marco Aurélio e mandou prender Cacciola novamente, assim como o atual, Luiz Fux, fez no caso de André do Rap. Tarde demais nas duas vezes. Eles têm dinheiro, recursos e aliados para fugir da polícia, do MP e da Justiça, que são obrigados a consumir nossos impostos, durante anos, para prendê-los de novo.

Com a “letra fria da lei”, Marco Aurélio jogou o País contra o Supremo, aprofundou o racha na Corte, deixou Fux sem saída e gerou um empurra-empurra infernal. Um ministro condena Marco Aurélio, outro recrimina Fux, o Congresso joga no colo do MP, o MP devolve para o Congresso. Para nós, os leigos, é uma bagunça. Para os traficantes, uma janela de oportunidades.

Juízes e ministros do STF não são robôs, que juntam o caso X com o artigo Y e apertam um botão. São seres humanos que estudam e aplicam leis, conscientes de que cada caso é um caso e avaliando personagens, circunstâncias e a gravidade da situação, com bom senso. Afinal, qual o objetivo? Fazer justiça. Por isso o plenário tem 11 votos, 11 formas de compreender e votar, evitando empates.

O Congresso não deveria aprovar um artigo tão burocrático, Bolsonaro não deveria sancionar sem ouvir seu ministro da Justiça, Marco Aurélio deveria ter juízo. André do Rap, definido por Fux como de “altíssima periculosidade”, que “compromete a ordem e a segurança pública”, não estaria solto por uma canetada “técnica”, aterrorizando a sociedade e jogando dúvidas sobre a justiça brasileira.

*Comentarista da Rádio Eldorado, da Rádio Jornal e do Telejornal Globonews em Pauta


Pablo Ortellado: A normalização de Bolsonaro

Concessões ao establishment podem desmotivar base militante do presidente

Existe um equilíbrio difícil entre o que é necessário para governar e o que é necessário para se eleger, sobretudo com plataforma populista.

A indicação de Kassio Nunes para o STF, o jantar de Bolsonaro com Toffoli e Alcolumbre e a retomada do diálogo entre Paulo Guedes e Rodrigo Maia são os sinais mais visíveis da normalização de Bolsonaro que abandonou o discurso golpista e fez sucessivas concessões ao establishment.

As duras críticas que recebeu da militância mostra que os movimentos necessários para estabelecer as bases políticas para a governabilidade podem comprometer a disposição e o entusiasmo dos apoiadores. Será que Bolsonaro vai conseguir equilibrar os pratos?

Dois fatores contribuíram para a mudança de atitude do presidente.

O primeiro foi a agressiva reação de Alexandre de Moraes que conduziu com mão dura dois processos que envolviam apoiadores de Bolsonaro —aquele que investigava os atos antidemocráticos e aquele que investigava ataques à corte nas mídias sociais.

O segundo foi a descoberta tardia e fortuita de que boas políticas públicas —sobretudo políticas sociais —rendem votos. Bolsonaro descobriu esse princípio patente por acaso, quando as circunstâncias da pandemia o forçaram a implementar um programa amplo de transferência de renda.
Bolsonaro pode ser bronco e obtuso, mas tem instinto de oportunidade.
Seu compromisso com o radicalismo online veio do reconhecimento de que sua eleição se deveu à agitação de Carlos Bolsonaro no WhatsApp. E sua nova postura parece vir do reconhecimento de que no momento em que a agitação militante foi contida, sua aprovação cresceu com a implementação do auxílio emergencial.

Mas nem tudo o que o ajuda a governar, o ajuda a se reeleger.

Como Bolsonaro bem demonstrou nas eleições de 2018, uma militância entusiasmada e enraizada na sociedade pode derrotar campanhas adversárias com mais recursos. Sua recondução em 2022 depende de uma base motivada e continuamente mobilizada.

Bolsonaro não pode se dar ao luxo de deixar a militância esmorecer. Ele vai precisar fazer como Lula, que enquanto governava com um pragmatismo desavergonhado, distribuía migalhas à militância de esquerda que passou oito anos acreditando que seu governo estava em disputa.

É o que parece que Bolsonaro já começou a fazer com a promessa feita à base evangélica de que, embora não tenha sido dessa vez, sua próxima indicação ao STF será de um ministro, não apenas evangélico, como pastor —e acendeu a fantasia dos fanáticos com a imagem de sessões do Supremo precedidas por uma oração.

*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia


Ricardo Noblat: Supremo confirmará a decisão de Fux que suspendeu a de Mello

Traficante solto fugiu para o exterior

O autor da lambança foi o Congresso que, no ano passado, ao aprovar o pacote anticrime que o governo lhe remeteu, deu nova redação ao artigo 316 do Código de Processo Penal incluindo a exigência da revisão de prisão preventiva a cada 90 dias. Antes não havia prazo para isso.

O coautor da lambança foi o presidente Jair Bolsonaro. À época, a Procuradoria-Geral da República pediu à Casa Civil da Presidência o veto ao artigo em sua nova redação. Alertou para a impossibilidade da revisão em prazo tão curto. O então ministro da Justiça, Sérgio Moro, também pediu que Bolsonaro vetasse.

Mas o presidente sancionou o pacote tal como o recebeu do Congresso. No mesmo dia, nas redes sociais, justificou-se: “Na elaboração de leis quem dá a última palavra sempre é o Congresso. Não posso sempre dizer não ao Parlamento, pois estaria fechando as portas para qualquer entendimento”.

Conversa fiada. Não poucas vezes, Bolsonaro vetou no todo ou em parte projetos aprovados pelo Congresso. Tem esse direito. E não poucas vezes, o Congresso derrubou seus vetos. A última palavra, de fato, é do Congresso. Que em muitas ocasiões se conforma e mantém os vetos do presidente. É assim que as coisas funcionam.

Ao aceitar o habeas corpus para soltar André do Rap, o ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal, afirmou que o traficante, com duas condenações, estava preso, sem culpa formada, desde o fim de 2019. E que de lá para cá não houve a revisão de sua prisão preventiva como manda a lei.

Mello leu a lei ao pé da letra, como costuma fazer. Há uma corrente de juízes que acha que deve ser assim. Mas há outra que acha que cabe ao juiz interpretar a lei e aplicá-la levando em conta as circunstâncias, não só o que ela diz. Foi por isso que o ministro Luiz Fux, presidente do tribunal, suspendeu a decisão de Mello.

O plenário do Supremo, por larga maioria de votos, confirmará a decisão de Fux, revogando a de Mello. É a tendência. Mello não esquentará a cabeça porque perderá outra vez. Com frequência, vota na contramão dos demais ministros e não esconde o prazer que sente com isso. Mello se aposenta em julho do próximo ano.

Até lá, terá outras oportunidades de fazer o que mais gosta – marcar posição, causando polêmica e atraindo os holofotes para si. Dele, no passado remoto, um mordaz ex-ministro do Supremo já disse que é um jurista notável e com uma grande vantagem: confia cegamente na sensatez dos seus colegas de tribunal.

O “Efeito Bolsonaro” aumentou o número de casos da Covid-19

Onde ele foi mais votado, a pandemia foi pior

Bolsonaro jamais ameaçou beijar os seus devotos, como fez o presidente Donald Trump em comício, ontem à noite, na Flórida. “Eu me sinto tão poderoso”, disse Trump, sem máscara, depois de ter sido infectado pelo coronavírus. “Vou beijar todo mundo. Vou beijar os caras e as mulheres lindas. Dar um grande beijo”.

Mas, também sem máscara, Bolsonaro abraçou, carregou crianças, posou para fotos e provocou aglomerações, antes e também depois de ter sido infectado. E seu exemplo, e também a maneira como tratou o coronavírus que não passaria de uma gripezinha, ajudou a aumentar a pandemia no Brasil.

Foi o que concluiu um estudo da Universidade Federal do Rio de Janeiro em parceria com o Instituto de Radioproteção e Dosimetria. O levantamento cruzou os dados de expansão da doença com o resultado da votação em primeiro turno nas eleições presidenciais de 2018 nos 5.570 municípios do país.

Conclusão: há uma correlação entre a preferência por Bolsonaro e a expansão da Covid-19. Para cada 10 pontos percentuais a mais de votos para Bolsonaro há um acréscimo de 11% no número de casos de vírus e de 12% no número de mortos, segundo a Folha de S. Paulo. O texto da pesquisa destaca:

– O estudo mostrou que a Covid-19 causa mais estragos nos municípios mais favoráveis ao presidente Bolsonaro. Podemos pensar que o discurso ambíguo do presidente [e a sua postura] induz seus partidários a adotarem com mais frequência comportamentos de risco e a sofrer as consequências.

Outro estudo da Universidade Federal do ABC, Fundação Getúlio Vargas e Universidade de São Paulo chegou à mesma conclusão. Nas ocasiões em que Bolsonaro minimizou a pandemia, o isolamento social diminuiu – e mais pessoas se contaminaram e morreram nos locais em que ele foi mais votado.


Carlos Andreazza: O padrinho faz o currículo

Aí está Dias Toffoli para encarnar o precedente exemplar

Sabe-se — informaram-nos os senadores Ciro Nogueira, Flávio Bolsonaro e Renan Calheiros — que o presidente da República não indicou Kassio Nunes Marques ao Supremo pela qualidade de seu curriculum vitae. Informou-nos também a respeito o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, dependente do aval do STF para avançar no golpe — contra a Constituição — que lhe permitiria concorrer à reeleição, também ele um dos graúdos que, com foro e interesses naquele tribunal, apadrinham Marques; a quem, no entanto, deve-se fazer justiça. Não terá sido o primeiro escolhido assim; por virtudes outras que não derivadas do tal notório conhecimento jurídico. Aí está Dias Toffoli para encarnar o precedente exemplar.

Sejamos, porém, igualmente justos com Toffoli, indicado pelo currículo, o real, que tinha — ou: indicado pelo que era, apesar do currículo. Tempos românticos — dirá o cínico. Aqueles, tempos raiz, em que um agente político ganhava a toga por ser agente político, com missão dada (e logo a ser traída), sem precisar se inflar de pós-graduações cumpridas em cinco dias.

Ou, talvez, tempos em que a transparência não era uma cultura estabelecida — imposta mesmo — pelo avanço da tecnologia. Parece mais difícil enganar hoje; donde o cético se vê obrigado a questionar se não terá sido sempre desta maneira, séculos de currículos fraudados e protegidos por raros e modestos mecanismos de acesso à informação. Neste caso, estando correto o desconfiado (ele costuma estar certo no Brasil), faria água a ideia de que a liquefação da verdade — o processo, em pleno curso, de desmaterialização dos fatos — chegara até ao pobre currículo; essa velha afirmação, ato de crença na palavra, da história individual… Mas já divago.

Vamos ao fato. Um raro fato ainda não tornado versão: o currículo do ora desembargador federal Kassio Nunes Marques nem pôde ser examinado. Refiro-me a um currículo — rico ou pobre — que não seja obra de ficção. Não ao currículo farsante de uma autoridade contra cuja dissertação de mestrado — a cada enxadada, uma minhoca — há a acusação, bastante carnuda, de plágio. E é esse senhor — mesmo diante de tudo quanto se levanta — que Jair Bolsonaro empurra para quase 30 anos de STF. Esse senhor: indivíduo que tira de uma imaginação pobre para dar a um currículo paupérrimo. (Não sou eu, por favor, quem classifica o CV do doutor como miserável; mas ele próprio — o inchamento artificial da peça sendo a admissão da pindaíba.)

O episódio — a maneira indecorosa como processo se dá, minimizando, ignorando mesmo, a exposição da fraude curricular — é eloquente de como ter padrinho basta no Brasil patrimonialista; em cujo corpo, registre-se, Bolsonaro constituiu bem-sucedida empresa familiar. Consagração que faltou — quem se lembra? — a Carlos Alberto Decotelli, nomeado ministro da Educação, mas ceifado em decorrência de haver recorrido ao mesmo expediente do currículo criativo. Qual a diferença?

Leia-se o início da nota divulgada pela assessoria de Marques — obra-prima da distorção de valores: “Além da formação em Direito, não há requisitos mínimos acadêmicos para a posição de desembargador federal ou para a indicação ou nomeação de ministro do STF. A apresentação de um currículo, portanto, é um ato de boa fé, possibilitando à sociedade conhecer as áreas de interesse e especialização do servidor público”.

Ninguém ora questiona o cumprimento de requisitos formais nem qualquer indigência curricular, mas tão somente a difusão de um currículo falso. Se apresentar o documento — verdadeiro — seria, segundo Marques, ato de boa-fé, como definir o expediente de divulgar um fraudado?

Estamos, pois, num lugar anterior; numa fase decisivamente anterior àquela em que Toffoli, então advogado-geral da União apontado para o Supremo, teve sua miúda formação escrutinada pela sociedade. Quem dera — devaneará o sonhador conformado — estivéssemos discutindo, na página das exigências constitucionais para um ministro de corte constitucional, sobre o saber jurídico de Marques…

Não estamos. Mas estamos, sim, na página das (poucas) exigências constitucionais para um ministro de corte constitucional. Daí por que pergunto, sendo generoso no verbo: alguém — ademais um desembargador federal — que manipula o currículo tem reputação ilibada? Hein?

Essa, sonhará o delirante, deveria ser a questão fundadora — a pedra fundamental — da sabatina de Marques no Senado. Para tanto, porém, num ato de ineditismo, os senadores teriam de transformar o que conduzem, historicamente, como reunião de confrades em pleno exercício do equilíbrio impessoal entre Poderes — com o que também, implicará o cínico, fundariam um pouquinho de República entre nós.

Não fundarão.

Por fim, não sem uma nota de humor, registro a passagem curiosa em que consiste observarmos a última esperança do reacionarismo bolsonarista — por ver cair a indicação de um tipo “pouco conservador” — depender do trabalho do jornalismo profissional.


Ricardo Noblat: Na raiz do conflito entre ministros, a chaga dos presos provisórios

O que diz a lei não vale para todos

Não convidem para dividir a mesma mesa os ministros Marco Aurélio Mello e Luiz Fux do Supremo Tribunal Federal. Nem Fux e os ministros Gilmar Mendes e Dias Toffoli. Jamais os ministros Gilmar e Marco Aurélio. Gilmar e Marco Aurélio, por querelas antigas que quase resultaram em troca de socos.

Fux detestou o acordo feito pelo presidente Jair Bolsonaro com Gilmar e Toffoli em torno da indicação do desembargador Kassio Nunes Marques para a vaga no Supremo aberta com a aposentadoria do ministro Celso de Mello. Falta ao “nosso Kassio” envergadura para tal, ou mesmo currículo confiável.

O troco veio rápido. Para evitar que Kassio chegue ao tribunal com essa bola toda e blindar a Lava Jato contra seus futuros votos, Fux sugeriu devolver ao plenário o poder de julgar ações penais que era repartido entre a Primeira e a Segunda Turma, cada uma delas formada por cinco ministros. Sugestão dada, sugestão aceita.

No último fim de semana, explodiu o conflito entre Marco Aurélio e Fux por causa de uma decisão do primeiro revogada em tempo recorde pelo segundo. Marco Aurélio mandou soltar o traficante André do Rap, um dos líderes do Primeiro Comando da Capital (PCC). Fuz revogou a ordem do colega.

Quem tem razão? Marco Aurélio e Fux têm razão, a levarem-se em conta os argumentos esgrimidos para justificar uma e a outra coisa, e esse é o nó da questão. Marco Aurélio baseou-se em novo trecho do artigo 316 do Código de Processo Penal, incluído após a aprovação do pacote anticrime aprovado no Congresso em 2019.

O novo trecho diz que o juiz precisa reavaliar a prisão preventiva a cada 90 dias – antes não havia prazo. Como isso não foi feito no caso de André do Rap, e sua defesa bateu às portas do Supremo, Marco Aurélio libertou-o. Desconfia a polícia paulista que o traficante fugiu para o Paraguai e que será difícil recapturá-lo.

Fux entendeu que o traficante deveria continuar preso porque é de “comprovada e altíssima periculosidade, com dupla condenação em segundo grau por tráfico transnacional de drogas, investigado por participação de alto nível hierárquico em organização criminosa e com histórico de foragido por mais de 5 anos”.

Marco Aurélio partiu para cima de Fux: “Ele assumiu a postura de censor. Eu não sou superior a ele, mas também não sou inferior”, disse. “Atuo segundo o direito posto pelo Congresso Nacional e nada mais. Evidentemente não poderia olhar a capa do processo e aí adotar um critério estranho a um critério legal”.

Presidente do Supremo há menos de um mês, Fux não quis polemizar com Marco Aurélio. Mas disse a pessoas que com ele, ontem, conversaram que viu “perigo” na tese do seu colega que beneficiou o traficante, pois se ela vingasse, “inúmeros réus perigosos acabariam sendo soltos”. Sobrou para quem?

Para o Congresso. Em sua defesa, saiu Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara. Ele não descartou revisão na lei que amparou a decisão de Marco Aurélio, mas afirmou que a falha foi do Ministério Público que deveria ter renovado o pedido de prisão preventiva do traficante em um prazo de 90 dias, e não o fez.

O Brasil tem mais de 773 mil presos provisórios, informou em fevereiro deste ano o Ministério da Justiça e Segurança Pública. Preso provisório é aquele cuja prisão foi decretada com o intuito de garantir que o acusado passe por um processo penal com amplo direito de defesa antes de ser sentenciado em definitivo.

São quase todos jovens, pobres, negros e mulatos. Somam algo como 40% do total de encarcerados em 2,6 mil cadeias de presídios e delegacias. A maioria está trancada há pelo menos quatro anos à espera da assinatura de um juiz que decida seu destino. Muitos, desde antes da sentença de primeira instância.

A Constituição assegura “a todos” o direito à “razoável duração do processo” e “a celeridade de sua tramitação”. Na vida real, a história é outra. Ministério Público, juízes e parlamentares sabem disso. A discussão pega fogo quando acontece um caso como o do traficante famoso, mas depois o fogo baixa e tudo fica como está.


Celso Rocha de Barros: O que acontecerá se a democracia brasileira for salva por seus defeitos?

Todas as iniciativas de combate à corrupção saem perdendo, e centrão está mais forte que nunca

Há uma percepção generalizada de que Bolsonaro tornou-se mais conciliador porque não conseguiu abafar o caso Queiroz. Dois colunistas da Folha notaram isso no último sábado (10): Hélio Schwartsman escreveu que Bolsonaro foi moderado pelo medo das investigações contra ele.

Fernando Haddad foi mais direto (e sarcástico): a corrupção de Bolsonaro pode ter salvado a democracia brasileira. Mais sutil, a revista Veja dessa semana elogiou Bolsonaro pela postura mais moderada, "goste-se ou não de suas motivações".

Na verdade, houve época em que os problemas legais de Bolsonaro até aceleraram seu golpismo. Mas, de fato, foram as investigações que o levaram às negociações com Toffoli, às conversas com Gilmar e com o centrão.

Ali começou o processo que culminaria na indicação de Kassio Nunes Marques para o Supremo Tribunal Federal. Kassio tem certas crises de identidade na hora de citar autores, mas é muito melhor do que o que se esperava de uma indicação bolsonarista.

O medo em 2018 era que Bolsonaro desse um golpe surfando o lavajatismo, aproveitando a desmoralização das instituições para confrontá-las. No fim das contas, o golpismo era 100% real, mas o moralismo era cascata. A posição atual do governo é que o que cura corrupção não é Lava Jato, é cloroquina.

Restam algumas perguntas, que já discutimos aqui na coluna: o acordão de Bolsonaro é estável? O desmantelamento da Lava Jato é uma pacificação ideologicamente neutra ou um aparelhamento do combate à corrupção, como o que se viu no caso Witzel? Bolsonaro continuará cauteloso se os protestos de rua voltarem? Se for reeleito? Se o caso Queiroz for definitivamente encerrado? E o que faremos, se, da próxima vez, o fascista for honesto?

Vamos supor que haja boas repostas para tudo isso, e que o risco autoritário tenha sido reduzido.

Mesmo neste caso, você já parou para pensar no que significa a democracia brasileira ter sido salva por seus defeitos?
Não só a Lava Jato, mas todas as outras iniciativas de combate à corrupção saem perdendo, seja pelo aparelhamento bolsonarista, seja pela ressaca de anos de turbulência que acabaram dando no Jair.

Mas isso pode ser o de menos: vai haver uma reorganização partidária nos próximos anos. E agora ela vai acontecer com o centrão mais forte do que nunca.

Em 2017, o Congresso Nacional aprovou mudanças eleitorais que devem reduzir o número de partidos. A principal delas é a proibição de coligações nas eleições proporcionais (para vereadores, deputados estaduais e federais).

Nossa esperança sempre foi que o centro fisiológico da política brasileira fosse, aos poucos, sendo espremido entre uma centro-esquerda e uma centro-direita fortes a partir de PT e PSDB. Torcíamos pelo fim do que o filósofo Marcos Nobre chamou de "peemedebismo".

Aconteceu o contrário. Às vésperas de uma mudança de regra que deve reforçar quem já é grande, os partidos de identidade mais clara e maior enraizamento social vão mal, e o peemedebismo está dando volta olímpica por ter salvado a democracia.

Mesmo no cenário otimista em que Jair Bolsonaro foi só uma curva errada no caminho de nossa democracia, mesmo se tivermos conseguido moderá-lo, tanto seu autoritarismo quanto a forma de sua moderação podem ter consequências que durem muito mais tempo do que seu mandato.

*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).


Vera Magalhães: A construção de bunkers

Como Bolsonaro minou o combate à corrupção para proteger a família

Bastou se aproximar do Centrão, da ala fisiológica do MDB e dos ministros antilavajatistas do Supremo Tribunal Federal que Jair Bolsonaro, logo quem, passou a ser visto por setores da política (os mesmos acima, diga-se) e até da imprensa como alguém imbuído da disposição de construir pontes.

Trata-se de uma leitura entre cínica e ingênua de uma realidade bastante clara aos olhos de quem quiser ver. Bolsonaro continua onde sempre esteve: avesso à ideia de qualquer composição a não ser as de ocasião, que lhe permitam lograr seus intentos na política e proteger a si e aos filhos da perigosa aproximação das garras da lei quando esticaram demais a corda da ruptura institucional e/ou foram com sede ao pote demais nos recursos públicos a que tiveram acesso nas suas longas carreiras políticas dotadas de todos os vícios de um clã tradicional brasileiro.

Eduardo Bolsonaro, o “03”, conhecido por ser dos menos brilhantes da família, deixou claro o jogo nas redes sociais, com direito a erro de português: “Não é arrependimento, é espertise (sic) de mudar de estratégia pois o plano original fracassou”.

Não precisa desenhar. O plano original era fazer as instituições se curvarem diante de uma tropa golpista, “antiestablishment”, como adorava se gabar o “estrategista” Filipe G. Martins. A pandemia foi o gatilho para colocar o plano original em marcha, com direito a uso de terroristas como Sara Winter, que agora se diz decepcionada, e seus 30 gatos-pingados.

O fracasso constatado pelo ex-quase-embaixador veio do próprio STF, que colocou freio aos delírios autoritários de Bolsonaro.

A “espertise”, assim com “s”, talvez, além de desconhecimento da língua, aponte um ato falho: o filhote quis provavelmente fazer menção à esperteza de mudar de time para evitar o tão temido impeachment e frear as investigações que chegavam perto de Flávio (rachadinhas e aumento de patrimônio), do próprio Eduardo (gabinetes do ódio, aumento de patrimônio), Michele (depósitos em dinheiro da família Queiroz e dinheiro de doações desviado para programa assistencial da primeira-dama), Carlos (rachadinha, aumento de patrimônio, fomento a atos golpistas, gabinetes do ódio) e de si próprio (aparelhamento da Polícia Federal, responsabilização pelo agravamento do enfrentamento da pandemia e participação em atos antidemocráticos).

Construção de pontes? Faz-me rir, faz-me engasgar, pedindo licença a Chico Buarque para usar seus versos tão precisos.

Bolsonaro tem por figuras como Renan Calheiros, Toffoli, Gilmar Mendes, Kassio Nunes e Ciro Nogueira o mesmo apreço que por Sérgio Moro, Gustavo Bebianno, general Santos Cruz, Luciano Bivar, Joice Hasselmann, Alexandre Frota, Paulo Guedes, Bia Kicis, Carla Zambelli ou Jorge Oliveira: nenhum. Assim como já fez com vários desta lista, pode descartar os demais se disso depender sua sobrevivência e a dos seus.

O presidente tem na covardia e na insegurança alguns de seus traços de caráter mais notórios, bem como o pouco apreço à gestão e o instinto destruidor de tudo aquilo que signifique construção de marcos institucionais, conquistas de minorias e legados civilizatórios.

O que Bolsonaro constrói com afinco, além de um robusto patrimônio na forma de imóveis comprados com farto uso de dinheiro vivo oriundo de gabinetes, é um bunker no qual se abrigar e abrigar mulher e filhos.

Disso decorrem a indicação de Augusto Aras para a Procuradoria-Geral da República, a troca de Moro por André Mendonça, as mudanças no Coaf, a tentativa de interferir também na Receita e, agora, a escolha de Kassio Nunes para o STF.

A ponte (pinguela, no caso) pode bem ser implodida depois que por ela passar o último Bolsonaro, pouco importando quem for deixado para trás.

*Editora do BR Político e apresentadora do programa Roda Viva, da TV Cultura


Almir Pazzianotto Pinto: Breve história do STF

Supremo deve aplicar a Constituição quando provocado e defendê-la quando exigido

O Supremo Tribunal Federal (STF) tem raízes profundas na Casa da Suplicação do Brasil, criada por dom João VI após a chegada da Casa Real portuguesa, em 1808. Proclamada a Independência, a Constituição Imperial de 1824, outorgada por dom Pedro I, instituiu o Supremo Tribunal de Justiça, “composto de Juízes letrados, tirados das relações por suas antiguidades”, os quais eram “condecorados com o título de Conselheiros” (artigo 163). Relações era o nome dado a tribunais existentes nas províncias, destinados ao julgamento em segunda e última instância, “para a comodidade dos povos” (artigo 158).

A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, promulgada em 1891, criou o Supremo Tribunal Federal (artigo 55). Na Constituição de 1934 a denominação passou a ser Corte Suprema (artigo 73). O nome Supremo Tribunal Federal foi restabelecido pela Carta Constitucional de 1937 e preservado nas Constituições de 1946, 1967, 1969 e 1988.

Na frase ácida e definitiva de João Mangabeira, encontrada no livro Rui o Estadista da República, “o órgão que, desde 92 até 937, mais falhou à República não foi o Congresso; foi o Supremo Tribunal (…). O órgão que a Constituição criara para seu guarda supremo, e destinado a conter, ao mesmo tempo, os excessos do Congresso e as violências do Governo, a deixava desamparada…” (Ed. Livraria Martins, SP, 3.ª ed., páginas 69/70).

A vaga aberta com a aposentadoria do ministro Celso de Mello, anunciada para 13 deste mês, não é de fácil preenchimento, diante das qualidades intelectuais e morais do ilustre magistrado. Concede, porém, ao presidente Jair Bolsonaro o direito de lhe indicar o sucessor. Quais os requisitos impostos pela Constituição para a indicação de magistrado dos tribunais superiores e do Supremo? São quatro. Dois de natureza objetiva: ser cidadão, ter mais de 35 e menos de 60 anos de idade. E dois de caráter subjetivo: notável saber jurídico e reputação ilibada. Os primeiros se provam com mera exibição de documentos, os segundos dependem da interpretação do presidente da República. A Lei Fundamental não cobra amizade com o chefe do Poder Executivo ou crença religiosa.

Apesar das palavras duras de João Mangabeira, o Supremo Tribunal Federal tem sido o último baluarte na defesa do regime democrático. Vem à lembrança a manifestação do ministro Álvaro Ribeiro da Costa, presidente no biênio 1964-1965, diante de impertinente e autoritária proposta de emenda constitucional enviada pelo presidente Castelo Branco. Reagindo ao ato presidencial, declarou Ribeiro da Costa: “Já é tempo de que os militares se compenetrem de que nos regimes democráticos não lhes cabe o papel de mentores da nação, como há pouco o fizeram, com estarrecedora quebra de sagrados deveres, os sargentos, instigados pelos Jangos e Brizolas. A atividade civil pertence aos civis, a militar a estes que, sob sagrado compromisso, juraram fidelidade à disciplina, às leis e à Constituição”.

Em 192 anos de vida o STF conheceu ministros das mais diversas personalidades. É de justiça relembrar alguns deles. Começo por Pisa e Almeida (19/11/1842), natural de Capivari, “cujo nome se imortalizou, como símbolo de resistência e honra, em meio à dobrez e à covardia”, como escreveu João Mangabeira; e do também capivariano e emérito processualista Moacyr do Amaral Santos (25/7/1902-16/10/1983). Alguns sobressaem na memória do STF pela cultura ou como símbolos de oposição ao totalitarismo. Além de Piza e Almeida, destaco o nome de Amaro Cavalcanti, de Carlos Maximiliano, de Epitácio Pessoa, Hermes Lima, Evandro Lins e Silva, Vítor Nunes Leal, Ribeiro da Costa, Lafayette de Andrade, Gonçalves de Oliveira e de Moreira Alves,

O desembargador Kassio Marques, integrante do Tribunal Regional Federal da 1.ª Região, é desconhecido além das esferas do seu tribunal. Sabe-se que é do Piauí e foi promovido a desembargador pela presidente Dilma Rousseff. Ao indicá-lo, o presidente Jair Bolsonaro destacou ser seu amigo, com quem tomou tubaína e espera tomar cerveja nos fins de semana. Parece-me insuficiente para justificar a nomeação para o Supremo Tribunal, composto por 11 ministros, onde o desempenho não se dilui, como em geral acontece nos tribunais integrados por elevado número de magistrados.

A pauta do STF é carregada de processos que examinam matérias de alta indagação jurídica e política. A transmissão em tempo real das sessões de interesse nacional expõe à opinião pública o perfil de cada ministro. Revela se é dotado de reputação ilibada e notável saber jurídico ou se não passa de trapezista guindado à alta Corte pelas boas graças de um presidente da República e pela proverbial leniência do Senado.

Compete à Corte Suprema “precipuamente a guarda da Constituição” (artigo 102). Estamos na oitava, seis abatidas por golpes de Estado. Para não ser acusado de falhar à República o Supremo deve aplicá-la quando provocado e defendê-la quando exigido. É o que a Nação espera de seus 11 magistrados.

*Advogado, foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho


Ascânio Seleme: A beleza da rotatividade

O novo time de Bolsonaro havia esquecido que o Supremo tinha um novo presidente

Nada como um dia depois do outro. Até o final de setembro, as articulações dos novos aliados de Bolsonaro contra a Lava-Jato andavam de vento em popa. A indicação de Kassio Marques para a vaga de Celso de Mello era o ponto alto do entendimento entre o centrão, o Planalto e alguns ministros do Supremo Tribunal Federal. O presidente afastava, pelo menos provisoriamente, a ideia de nomear um nome terrivelmente evangélico ou um advogado despreparado para o posto, o tribunal seguia na sua solene altivez, e o centrão ganhava um ministro que ajudaria a torpedear a saga punitivista, engordando a ala garantista da Segunda Turma do STF. Aí chegou o Fux.

O novo time de Bolsonaro havia esquecido que o Supremo tinha um novo presidente. Acostumado com a simpatia e a amizade de Dias Toffoli, batia bola como se nada houvera. Foi um erro. O mundo estava diferente. E esta é a beleza da rotatividade no comando do STF. Se Toffoli fosse presidente vitalício, como funciona na Suprema Corte dos Estados Unidos, Bolsonaro nadaria de braçada. Mas, não, por aqui o sabiá muda de cantiga a cada dois anos. E o canto da vez é o de Luiz Fux, que reagiu à manobra do capitão com outra manobra, e tirou poder da Segunda Turma sobre a Lava-Jato.

Sem entrar no mérito de quem tem razão, se os garantistas ou os punitivistas, é fato que se Bolsonaro e o centrão estão de um lado, tudo indica que o outro lado é melhor. Se o lado de Bolsonaro e do centrão também tiver a simpatia do PT de Lula, mais forte fica esta convicção. Foi o que se viu com a indicação de Kassio Marques. O festival de elogios ao magistrado não teve qualquer contenção partidária. O PT sentiu-se à vontade para falar bem alegando que o indicado já havia sido conduzido para o TRF pela ex-presidente Dilma. Mas é mais do que isto, além de tentar enterrar a Lava-Jato, Kassio provavelmente se somará aos que querem punir e desautorizar Sergio Moro, anulando a sentença de Lula no caso do tríplex do Guarujá.

O ex-sumido senador Renan Calheiros também entrou no circuito ao lado de Bolsonaro, do centrão e do PT de Lula, reforçando a tese de que o outro lado é melhor. Há três semanas, Renan recebeu Lula num hospital de São Paulo, onde se convalescia de uma cirurgia. “Vou vingar o senhor, presidente”, disse Renan ao visitante. Dias depois, saiu do hospital e voltou a operar com toda a desenvoltura que o distingue. Junto com seu ex-desafeto, o presidente do Senado Davi Alcolumbre, Renan organizou a paz entre Paulo Guedes e Rodrigo Maia; ajudou a consolidar a vida de Bolsonaro no STF; está azeitando o caminho de Kassio no Senado e incentivando a punição a Moro.

Renan trabalha por Lula, com o seu aval, e por Bolsonaro, com o OK do presidente. Foi para atender ao capitão que ele acionou a senadora Kátia Abreu, a organizadora do jantar que reuniu Guedes e Rodrigo. E para contemplar também o petista, Renan se uniu a Alcolumbre em favor do rito rápido na aprovação do garantista Kassio e da votação para a suspeição de Moro. Se depender de Renan e dos novos aliados de Bolsonaro, a maquiagem do currículo do indicado não o impedirá de ser aprovado pelo Senado. Com isso, ganham centrão, Bolsonaro e Lula. E ganha o reinserido Renan.

Não foram poucas, como se vê, as articulações que reuniram sob o mesmo guarda-chuva Bolsonaro, Lula, Renan, Gilmar, Toffoli, Alcolumbre e o centrão. Não importa a força e o poder que um grupo desse possa ter, o problema é que sempre há um outro lado. E de dois em dois anos a fila anda.

Transparência

Pode-se falar tudo de Dias Toffoli, menos que não seja transparente. Tem o currículo que tem e não se acanha. Não inventou mestrados, doutorados ou pós-docs. Sabe-se que lecionou numa universidade meia boca de Brasília e nunca escondeu que tentou ser juiz e foi reprovado em dois concursos. Ele é o que é. E ponto final.

Grande negócio

Sabe qual o melhor investimento hoje no Brasil? Esqueça Bolsa, dólar ou fundos de investimento. Na Justiça é que a grana rola. Qualquer sentença judicial que envolva pagamento em dinheiro, rende 1% ao mês se a parte condenada recorrer da decisão. Assim, quando uma pessoa ou empresa é sentenciada e recorre, a dívida vai sendo ajustada mensalmente até a sentença em instância derradeira. Se o caso tramitar por mais de dez anos e a decisão final confirmar a sentença inicial, o devedor deverá pagar juro de 1% ao mês por todo o período. Numa simulação feita pelo TJ do Rio, uma dívida de R$ 10 milhões vai pagar R$ 20,6 milhões só de juros. Somam-se a isso a correção monetária e os honorários advocatícios, e a facada final chega a R$ 42,1 milhões.

Esfarrapadas

A cordialidade entre Paulo Guedes e Rodrigo Maia, quando fizeram as pazes publicamente, deve ser vista com muita atenção para se saber quem mesmo se desculpou com o outro. Na entrevista do perdão, Rodrigo disse com os olhos marejados fitando Guedes: “Eu fui grosseiro e pedi desculpas”. Na sua vez, Guedes foi muito menos inflamado: “Caso tenha ofendido alguém inadvertidamente, peço desculpas”. Claro que Paulo Guedes não se desculpou. Na verdade, nem acha que ofendeu Rodrigo Maia ao desautorizar membros da sua equipe a se reunir com o presidente da Câmara.

Huck Bobeou

Tucanos da nova geração de São Paulo acham que Luciano Huck perdeu uma grande chance de testar sua capacidade eleitoral e ganhar corpo para uma disputa presidencial mais adiante. Huck poderia ter se candidatado à prefeitura do Rio, dizem os tucanos, com grande chance de ganhar. Partido não lhe faltaria, e o PSDB chegou a sondá-lo neste sentido. Se ganhasse, estaria se qualificando para 2022, além de obter experiência na administração pública. Se perdesse, aprenderia a jogar, o que lhe daria um pouco mais de segurança para o pleito seguinte.

Lema

Para os que vivem se lamentando pela vitória de Bolsonaro, vale a pena lembrar o lema americano de convivência democrática: “Vote, eleja, aguente, aprenda”. Nos Estados Unidos, a máxima está em vigor desde a eleição de Donald Trump, em 2016. Os americanos votaram, elegeram e depois aguentaram, resta saber se aprenderam. Aqui no Brasil, vai-se saber se houve algum aprendizado desde Bolsonaro já nas eleições municipais.

Agulha no palheiro

Um mil e 800 candidatos de 33 partidos se apresentam para concorrer a um mandato de vereador na Câmara do Rio. Tem todo tipo de gente. Tem doutor, tem cabo, sargento e tenente, tem corretor, bombeiro e pastor. Tem até um que se apresenta como “advogado de Deus”. O eleitor terá de vasculhar para encontrar agulhas neste palheiro. Mas com esforço e determinação, vai encontrar candidato que presta. Não desanime, nobre eleitor.

Serial killer

É incalculável o número de vidas ceifadas pelo negacionismo de Donald Trump em relação ao coronavírus. Mas tem gente calculando quantas pessoas ele matou nos últimos cinco dias, desde que tuitou que as pessoas têm de enfrentar o vírus sem medo e tirou a máscara em cadeia de TV ao voltar para a Casa Branca depois de sua internação.

Reza o contrato

A gigante Pinterest, uma rede social de compartilhamento de fotos, pagou US$ 90 milhões a uma empresa imobiliária para desfazer contrato de leasing de um prédio de 46,5 mil metros quadrados em São Francisco. Com a pandemia, a empresa aprendeu que dá para manter muita gente em casa e seguir suas operações a custos bem mais baixos. O detalhe curioso é que o prédio ainda nem foi construído.

Que susto

Certo dia um senador que atende pelo apelido de Vulcabras foi a São Paulo receber uma propina de um empresário local. Chegou ao escritório da empresa, contou o dinheiro e levantou-se para sair, quando o empresário lhe ofereceu um carro blindado para levá-lo ao aeroporto. No meio do caminho para Cumbica, o veículo parou por falta de gasolina. Em dois minutos uma patrulhinha da PM estacionou ao lado do carrão. O senador, que achou que tinham armado contra ele, se identificou com os policiais e pediu ajuda. Pois não, excelência. Os PMs então empurraram o carro blindado e pesado, que carregava um senador com uma mala cheia de dinheiro, até um posto de gasolina.

Dinos do Planalto

A Christie’s leiloou na terça passada em Londres o esqueleto de um Tiranossauro Rex. Conseguiu oferta final de US$ 31,8 milhões (R$ 177,2 milhões) pelos restos da fera do período cretáceo. Se viesse garimpar em Brasília, a leiloeira levantaria uma fortuna.


Hélio Schwartsman: A maldição do currículo

A mania de ficar embelezando CVs é generalizada

A indicação de Kassio Nunes para uma vaga no STF vai sobrevivendo às inconsistências curriculares. Carlos Alberto Decotelli, que fora apontado para ocupar o MEC, não resistiu mais do que alguns dias quando apanhado na mesma situação. Não tenho como provar que a diferença de tratamento se deve ao fato de Decotelli ser negro, mas essa é uma daquelas suspeitas difíceis de afastar.

Não é, porém, o racismo estrutural que eu gostaria de discutir hoje, e sim a mania de ficar embelezando CVs. Ela é generalizada. Levantamento de 2019 da DNA Outplacement mostra que 75% dos currículos enviados a RHs de 500 empresas no Brasil continham informações distorcidas. Os pontos sobre os quais os candidatos mais mentem são salário (48%) e fluência no inglês (41%). Escolaridade e títulos acadêmicos são deturpados por 10%.

Se a prática é tão disseminada, deve funcionar. Mas, se é razoável imaginar que pequenas empresas deixem de proceder a checagens, tal complacência é inimaginável quando falamos dos principais cargos do país, que estão sob os holofotes da imprensa e de lobbies variados. E isso reforça o mistério: se é grande a chance de ser desmascarado, por que tantos candidatos a altos postos insistem em turbinar seus CVs?

Nossa espécie tem uma relação ambivalente com a verdade. Se, de um lado, nós a glorificamos e pintamos o mentiroso como alguém cujo caráter é falho, de outro criamos dinâmicas sociais em que faltar com a verdade é uma necessidade. Você elogia a comida do anfitrião mesmo que ela seja intragável.

E fica pior. Pesquisas mostram que há correlação positiva entre capacidade de mentir bem e popularidade. Isso significa que é justamente entre aqueles que navegam com facilidade nos círculos sociais e na política que encontraremos as pessoas que se sentem mais à vontade mentindo. Às vezes ficam tão à vontade que esquecem que algumas afirmações serão conferidas.


Reinaldo Azevedo: Medo da cadeia faz Bolsonaro escolher Kassio, e isso é bom!

O garantismo assegura a Bolsonaro o devido processo legal, negado a seus adversários

Por que Jair Bolsonaro indicou Kassio Marques —para todos os efeitos, um garantista— para o Supremo? Porque, sendo inculto, não é burro e é capaz de aprender com a experiência, inclusive aquela que o levou à Presidência, fagocitando o juiz-celebridade dos tolos, que havia engaiolado seu adversário por meio de uma condenação sem prova, referendada pelos parças do TRF-4.

O “Mito” percebeu que, tudo o mais constante, seu destino inexorável é a cadeia. “Está acusando o presidente de ter cometido algum crime, Reinaldo? Seja claro!” Não neste artigo. Já o fiz dezenas de vezes. No dia 29 de março de 2019, diga-se, antes de ele concluir o terceiro mês de mandato, apontei aqui ao menos quatro crimes de responsabilidade então consumados. Na minha conta, já são 19.

O objeto deste artigo é outro. Mesmo que Bolsonaro fosse inocente como as flores, o encontro com o xilindró está em seu destino porque essa é a metafísica influente. E isso vale para qualquer governante. Este país manteve encarcerado um ex-presidente da República condenado sem prova e contra o que dispõem o artigo 283 do Código de Processo Penal e o inciso LVII do artigo 5º, cláusula pétrea da Constituição.

Ainda que Bolsonaro possa achar intimamente que seus olhos azuis deveriam lhe conferir certa vantagem comparativa sobre um nordestino moreno, sabe intuitivamente que, a depender do alarido, isso pode ser até um agravante. Lula, o maior líder popular da história do Brasil, foi alvo, “sob vara” (by Celso de Mello), de uma condução coercitiva espetaculosa e ilegal. A investigação que levou Sergio Moro a tomar essa decisão durou quase cinco anos e foi arquivada. Nem denúncia houve por falta de provas.

O presidente não leu Shakespeare, mas intui que a necessidade impõe estranhos companheiros de trajetória. Sua súcia de lunáticos na internet —da qual ele é cada vez menos dependente— não compreende e se ressente do que seria um flerte do líder com a “velha política”.

Bolsonaro riu de orelha a orelha quando viu Wilson Witzel cair em desgraça. Mas certamente não lhe escapou que o adversário incidental, alvo da fúria de seus aliados na Procuradoria-Geral da República, foi afastado do cargo sem ter tido a chance de ao menos apresentar a defesa. Foi punido antes da aceitação da denúncia. Não há uma miserável palavra impressa que justifique a decisão.

Se o presidente tiver realmente aprendido a lição, indicará no ano que vem, para a vaga de Marco Aurélio, um nome mais terrivelmente garantista —evangélico, católico, umbandista ou adorador da natureza, como os aborígenes australianos.

Moro, desgostoso com o insucesso da empreitada rumo ao poder, resolveu refletir no Twitter: “As tentativas de acabar com a Lava Jato representam a volta da corrupção. É o triunfo da velha política e dos esquemas que destroem o Brasil e fragilizam a economia e a democracia. Esse filme é conhecido. Valerá a pena se transformar em uma criatura do pântano pelo poder?”

Huuummm…

Antes da Lava Jato, entende-se, o Brasil era terra arrasada, com a economia em frangalhos e sem democracia, certo? Ele acredita ter deixado como legado uma fase de prosperidade, luzes e devido processo legal! Impressiona-me menos o ressentimento do que a parvoíce. Mas é a indagação final que desperta minha curiosidade. A quem se dirige?

Parece-me que é Moro falando com Moro —também Deltan Dallagnol mandava mensagens para si mesmo no Telegram. Ali está a confissão de que o objetivo era mesmo “o poder”. E criaturas “do pântano” são todas as que não concordam com o juiz universal, inclusive aquela a quem se aliou antes, durante e depois da eleição, vilipendiando o Poder Judiciário.

O presidente escolher garantistas para o STF não o preserva necessariamente de seus eventuais crimes, mas pode significar, ao menos, o direito ao devido processo legal, coisa negada a Lula e a Witzel. Desde a “Ilíada”, convém que o poderoso veja como exemplo, advertência e vaticínio o destino de seus adversários. “Bolsonaro nem sabe o que é ‘Ilíada’, Reinaldo”. Não faz diferença. Basta que intua.