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Juan Arias: Novo ministro do Supremo de Bolsonaro surpreende com defesa do Estado laico

Magistrados como Kassio Nunes Marques devem ser terrivelmente fiéis à Constituição, sem maracutaias políticas que acabam manchando a lei

O presidente Jair Bolsonaro havia anunciado que a primeira nomeação de um novo magistrado do Supremo Tribunal Federal seria alguém “terrivelmente evangélico”, o que criou preocupação visto que o Brasil, pela Constituição, é um Estado laico. O novo ministro do STF, Kassio Nunes Marques, porém, surpreendeu, na última quarta-feira, ao defender enfaticamente a laicidade do Estado, que deve respeitar todas as confissões religiosas igualmente sem se identificar com nenhuma.

Segundo Nunes Marques, “a laicidade do Estado não significa Estado ateu, mas Estado de todas as religiões e de religião alguma”. E acrescentou que “o fato é que o Estado não deve professar religião alguma e que se manter neutro não significa manter uma postura hostil ou impeditiva da religiosidade”.

A postura impecável do novo magistrado na defesa da laicidade do Estado contrasta com a ideia quase obsessiva de Bolsonaro desde que era um simples deputado, quando defendia que o Estado brasileiro não é laico, mas cristão. “Deus acima de tudo. Não tem essa historinha de Estado laico, não”, gritou durante a campanha eleitoral, acrescentando: “o Estado é cristão e a minoria que for contra, que se mude. As minorias têm que se curvar para as maiorias”.

Não é descabido pensar que o sonho de Bolsonaro e dos pastores evangélicos, que já têm três partidos próprios no Parlamento e estão presentes em outros 16, é mudar a Constituição para eliminar sua laicidade e trocá-la pela Bíblia, para criar uma espécie de República islâmica.

E o sonho dos evangélicos, que passam de 30% da população, sempre foi ter um presidente deles. Até agora só conseguiram que um deputado, o pastor Marco Feliciano, presidisse a importante Comissão Parlamentar de Direitos Humanos. O pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, já havia profetizado que “era a vontade de Deus que um evangélico chegasse à presidência”.

Com Bolsonaro o conseguiram só pela metade, pois na verdade sempre foi católico e se fez rebatizar na Igreja Evangélica por cálculos eleitorais, já que essas igrejas poderosas movimentam milhões de votos sob o lema “o irmão vota no irmão”.

Todos os presidentes até agora nas campanhas eleitorais tiveram que se render aos evangélicos e se ajoelhar para pedir sua bênção, inclusive a candidata agnóstica Dilma Rousseff, escolhida por Lula para substituí-lo. Dilma foi obrigada, para não perder o voto dos evangélicos, a enviar-lhes uma carta se comprometendo a não tocar na lei contra o aborto durante seu mandato. Dilma foi eleita e cumpriu sua promessa.

O deputado Feliciano, que foi coroinha aos 13 anos na Igreja Católica e se converteu ao evangelismo quando conseguiu sair do mundo das drogas, hoje é um evangélico que chega a dizer que “os católicos adoram Satanás e têm seus corpos entregues à prostituição”.

No Brasil, o reino de Deus é cada vez mais deste mundo. As igrejas evangélicas e pentecostais atuam cada vez mais como um tea party à brasileira.

O pastor Feliciano, que dirige uma das igrejas mais importantes, chegou a dizer que os africanos carregam uma maldição divina desde os tempos de Noé, que faz com que vivam na miséria.

Ainda é cedo para saber se o novo ministro do Supremo, Nunes Marques, se manterá firme na defesa da Constituição e do Estado laico. E ainda é difícil saber o que Bolsonaro pensou da defesa da laicidade do Estado feita por seu magistrado. Como é cedo para saber se, em se tratando de assuntos que dizem respeito ao delicado tema das denúncias de corrupção da família Bolsonaro, o novo magistrado continuará sendo coerente com seu juramento de defender a Constituição em vez de ser um lacaio do presidente que o escolheu a dedo.

Para não cair no pessimismo, prefiro pensar que o presidente tenha ficado decepcionado com seu novo ministro e que este preferirá não sujar sua carreira de alto jurado da mais alta corte e, como acaba de fazer, seja fiel à Constituição.

Prefiro pensar que essa defesa aberta da laicidade do Estado estabelecida na Constituição continue alinhada com a independência que todo magistrado do Supremo deve ter, o que nem sempre tem sido o caso, pois levou não poucas vezes a relações espúrias entre alguns magistrados e o mundo político, ao que tantas vezes se dobraram, traindo a importante separação entre as instituições que devem ser independentes, como exige a Constituição.

Mais do que “terrivelmente evangélicos”, os magistrados do Supremo devem ser terrivelmente fiéis à Constituição, sem maracutaias políticas que acabam manchando a Carta Magna dos brasileiros.


Luiz Fux: Constituição para todos

Seguiremos tratando a questão prisional como política judiciária de Estado

A trajetória democrática brasileira tem pés firmes na jurisprudência da Suprema Corte, que nas últimas três décadas vem contribuindo para o avanço do processo social à luz da Constituição Cidadã. Mas se por um lado temos julgados paradigmáticos que permitiram saltos civilizatórios notáveis, incluindo o fortalecimento de direitos e garantias e de proteção aos vulneráveis, é preciso manter vigília permanente contra ameaças e violações a princípios basilares de nossa Carta Magna, notadamente no campo dos direitos fundamentais e da dignidade humana.

Foi imbuído desse espírito que agiu o Supremo Tribunal Federal em 2015, ao reconhecer que quase 1 milhão de brasileiros vivem à margem da lei máxima do país enquanto dentro de nossas prisões, sob a tutela do Estado. É para a superação definitiva desse grave desarranjo institucional, com efeitos nefastos para o grau de desenvolvimento inclusivo ao qual nos comprometemos por meio da Agenda 2030 das Nações Unidas, que executamos no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) o programa Fazendo Justiça.

Trata-se de continuação da parceria de sucesso iniciada em 2019 com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, somada a importante apoio do Ministério da Justiça e Segurança Pública. Em verdade, a natureza interinstitucional é um dos principais méritos da parceria —de forma inédita, mais de 3.500 atores estratégicos em diferentes níveis federativos estão mobilizados em torno de uma agenda nacional com planejamento e indicadores bem definidos, adaptável às realidades locais com foco em resultados de médio e longo prazo.

Nos próximos meses, o CNJ conduzirá 28 ações nacionais estruturantes para diferentes fases e necessidades do ciclo penal e do ciclo socioeducativo, facilitando serviços, produzindo e difundindo conhecimento e reforçando o arcabouço normativo. Lançaremos planos nacionais de geração de trabalho e renda, de incentivo à leitura e de incentivo ao esporte e ao lazer, fundamentais para dinâmicas de ressocialização. Até o segundo semestre de 2021 teremos um fluxo permanente de identificação civil por meio de biometria conectando todo o país, com emissão de documentos para facilitar o acesso a direitos durante e após o cárcere.

Pactuações em andamento com tribunais e outros atores locais resultarão na inauguração de ao menos 13 Serviços de Atendimento à Pessoa Custodiada, 10 Núcleos de Justiça Restaurativa, 3 Centrais de Alternativas Penais e 12 Escritórios Sociais, serviço de atenção a pessoas egressas e familiares fomentado pelo CNJ que garantiu 20 unidades em 14 estados apenas no último ano.

No campo da tecnologia da informação, o Sistema Eletrônico de Execução Unificado (Seeu) já centraliza de forma inédita a gestão da execução penal, integrando atores, agilizando procedimentos e produzindo dados nacionais em tempo real. Também passa por revolução o monitoramento e fiscalização das execuções de medidas socioeducativas, que aliada a outras ações estruturantes, fortalecerá a atuação do Judiciário sob o princípio da proteção integral de adolescentes preconizado por nossa Constituição e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Em ambos os sistemas, segue como prioridade o enfrentamento à Covid-19 pelo direito à saúde coletiva e pelo direito à vida.

Tantas ações em andamento durante uma pandemia global, com resultados já visíveis —registramos a menor taxa de prisão provisória dos últimos 17 anos—, só se tornaram possíveis com um ambiente de diálogo permanente entre poderes públicos, setor privado e sociedade civil para a construção de soluções colaborativas.

No Judiciário, o empenho de diferentes gestões para desmantelar o cenário narrado pelo STF em 2015 reforça o compromisso para oferecer respostas robustas a um desarranjo que se alimenta da inércia. Seguiremos tratando a questão prisional como política judiciária de Estado para que nossa Constituição permaneça como a certeza primeira de todos os brasileiros.

*Luiz Fux é presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça


Elio Gaspari: O quadrado do Supremo

Brasil não precisa que o STF entre numa guerra da vacina

Com quase 158 mil mortos, depois de três ministros da Saúde, da cloroquina, da gripezinha e de outras tolices do curandeirismo político, o Brasil não precisa que o Supremo Tribunal Federal entre numa guerra da vacina. Países andam para trás. Passado mais de um século da Revolta da Vacina, o Brasil regrediu. Em 1904 o presidente Rodrigues Alves foi um campeão do progresso, inflexível na manutenção da ordem. Ao seu lado estava o médico Oswaldo Cruz, enfrentando políticos, jornalistas e militares, mais interessados num golpe de Estado que na saúde pública.

O presidente Jair Bolsonaro decidiu fazer da pandemia um instrumento de sua propaganda. Salvo poucos parlamentares excêntricos, alguns dos quais partiram para outra melhor, o Congresso manteve-se longe dos debates pueris. Pelo andar da carruagem, Bolsonaro está chamando o Supremo Tribunal Federal para a rinha: “Entendo que isso [não] é uma questão de Justiça, é uma questão de saúde acima de tudo. Não pode um juiz decidir se você vai ou não tomar a vacina. Isso não existe. Nós queremos é buscar a solução para o caso”.

O capitão tem direito às suas opiniões, mas o fato é que as atribuições do Judiciário estão definidas na Constituição e compete ao Supremo Tribunal Federal interpretá-la. Bolsonaro tem uma relação agreste com a Corte, e em maio passado ouviu-se seu brado de “vou intervir”. Viu que não tinha mandato nem cacife para isso.

Pode-se discutir se o presidente Luiz Fux fez bem ao dizer que a obrigatoriedade da vacina acabaria chegando a seu tribunal. O Supremo não está aí para avisar que vai decidir um litígio. Ele simplesmente decide. A Corte não é um assembleia para debate político nem uma consultoria (apesar de alguns de seus ministros gostarem do papel de consultores). É uma Corte onde os 11 ministros votam.

O quadrado constitucional do Supremo é específico. Seu poder emana de sua independência, e essa independência emana do distanciamento. Quando sai do quadrado, vira bancada, como a do boi ou a da bala. Os 11 ministros podem decidir, à luz do Direito, se uma vacina pode ser ou não obrigatória. Numa dimensão, quem não se vacina pode contrair febre amarela, sarampo ou Covid. Noutra, socialmente relevante, pode propagá-la. Onde acaba o direito de não se vacinar e começa a prerrogativa de contagiar?

A criação de um Fla X Flu com Bolsonaro de um lado e o Judiciário de outro pode atender aos interesses do capitão, mas é uma inconveniência constitucional. Quando o Supremo decidiu que os governadores tinham autoridade para criar regras de isolamento social, ajudou a salvar milhares de vidas. Vale lembrar que, à época, um dos paladinos da liberdade era o ministro-médico Osmar Terra. Ele achava que a pandemia mataria menos gente que a gripe sazonal.

Tudo indica que a obrigatoriedade da vacinação irá ao plenário do Supremo. Os ministros deverão decidir e argumentar com base no Direito e na Constituição. Quanto menos bate-bocas fora do quadrado, melhor para todo mundo. Um dia a Corte se reúne, cada ministro vota, a televisão mostra, e o caso está decidido.

Se Bolsonaro quiser criar uma crise, deverá buscá-la noutro lugar. Com ministros sem modos que insultam colegas, não lhe será difícil.


Bernardo Mello Franco: Cheque em branco

O Senado assinou um cheque em branco para Kassio Nunes Marques, que substituirá Celso de Mello no Supremo Tribunal Federal. Na quarta-feira, o desembargador passou dez horas na Comissão de Constituição e Justiça. Poderia ter passado dez minutos, e o resultado seria o mesmo. Culpa dos senadores, que abriram mão de escrutinar as credenciais e as ideias do futuro ministro.

Ao abrir a sessão, a emedebista Simone Tebet disse que a sabatina “não é, nunca será e não pode parecer ser mero ato protocolar”. Faltou combinar com os colegas. A maioria estava ali para gastar tempo e cortejar o indicado. Ele ouviu mais elogios do que perguntas de quem deveria inquiri-lo.

Apesar das inconsistências no currículo, Kassio foi chamado de “culto”, “ilustre” e “dedicado”. “O orgulho que nos enche hoje não é só do Piauí, é do Nordeste como um todo”, desmanchou-se Ciro Nogueira, o poderoso chefão do PP. “É uma grande e oportuna indicação, que elevará a nossa Corte Superior”, emendou o emedebista Renan Calheiros, também investigado na Lava-Jato.

A oposição poderia apertar o sabatinado, mas preferiu destacar suas virtudes. O líder do PDT, Weverton Rocha, informou que não faria nenhuma pergunta. “O Piauí está feliz, o Maranhão, o Nordeste, o Norte”, empolgou-se. O líder do PT, Rogério Carvalho, ignorou os indícios de plágio e felicitou Kassio por seu currículo. Na segunda-feira, ele já havia oferecido um jantar para o desembargador.

Em meio ao clima de confraternização, alguns senadores ficaram à vontade para tratar de assuntos particulares. Soraya Thronicke, do PSL, reclamou de uma condenação por litigância de má-fé. Ela disse discordar da multa imposta pela Justiça. “Por isso eu me nego a depositar uma parte do valor”, acrescentou.

Questões que poderiam provocar embaraço foram deixadas de lado. Ninguém quis saber se o futuro ministro vai se declarar impedido de julgar Flávio Bolsonaro, que fez lobby por sua indicação. Questionado sobre os padrinhos políticos, Kassio desconversou. “Ninguém interferiu na escolha do presidente”, disse, sem que ninguém o contestasse.

Em outro momento, ele alegou não saber o que sua própria mulher faz como assessora do senador Elmano Férrer, do PP. “Realmente eu não tenho essa informação”, embromou. Mais uma vez, ficou por isso mesmo.

O indicado recorreu a um truque conhecido para se esquivar de polêmicas. Disse que não poderia opinar sobre casos que poderão ser julgados no Supremo. Como quase tudo pode passar pela Corte, o artifício serve para que os sabatinados não digam nada de relevante. Os senadores aceitaram a desculpa sem protestar.

Kassio só deixou o figurino escorregadio para acalmar a base bolsonarista, que esperava a nomeação de um juiz “terrivelmente evangélico”. Ele citou trechos da Bíblia e prometeu “valorizar a vida, a família e os valores morais e cívicos brasileiros”.

Na prática, quem resistiu às dez horas de sabatina continuou sem saber o que pensa o futuro ministro. Com o cheque em branco do Senado, ele deverá permanecer no Supremo até 2047.


Reinaldo Azevedo: Temos, sim, vacina contra o caos

A única saída é tentar resgatar o país dos escombros da legalidade

A entropia do sistema político elegeu Jair Bolsonaro. Ainda que um reacionarismo nada subterrâneo se manifestasse transversalmente na sociedade brasileira, este se mantinha mais ou menos à margem como força (des)organizadora do sistema. Os agentes da desordem eram neutralizados pelos da ordem.

No dia em que se estudar o sistema político a sério, o Brasil descobrirá razões para, por exemplo, lamentar o esfacelamento do núcleo duro do MDB. O partido atraía e digeria o monstro, hoje autônomo. O surto de moralismo barato, que investia e ainda investe na destruição de garantias legais, liberou as forças do caos. E, como já refletiu a filósofa, “depois que a pasta de dente sai do dentifrício, ela dificilmente volta para dentro do dentifrício”.

Bolsonaro virou o beneficiário e o monopolista desse caos. Pode não agir em nome de uma teoria do poder, mas se expande na ausência de uma força organizada que lhe faça oposição. Seria incapaz de redigir uma redação do Enem explicando o seu pensamento, mas intui que sua primeira tarefa é esmagar os adversários que estão em seu próprio campo ideológico.

A personalidade tirânica, e é o caso, não admite contestação em seu próprio terreno —e nisso ele não inova. Todos os beneficiários de movimentos disruptivos, ainda que pela via eleitoral, como ocorre, procuram eliminar primeiro os parceiros de trajetória. Construída a lenda pessoal, então pode se ocupar de alvejar os verdadeiros inimigos ideológicos, se é que Bolsonaro sabe quais são.

Suas formulações são tão primitivas e desinformadas que até seu extremismo de direita não passa de um vomitório para indignar adversários e manter unida a tropa. Observem que ele chega a inventar um passado de combatente contra a inexistente guerrilha do Vale do Ribeira. Quando aconteceram por lá não mais do que duas escaramuças, tinha 15 anos.

O “Mito” é um mitômano. É preciso que se pensem as circunstâncias que permitiram a um marginal chegar ao centro do poder. Não foi sem melancolia que li e ouvi, por exemplo, as reações à sabatina de Kassio Marques na CCJ, ministro aprovado do Supremo. Muitos sábios entortaram o nariz para o que fez de melhor: a defesa do garantismo.
Quando o establishment político, intelectual e jornalístico admite que possa haver em direito outra corrente que não a garantista —entendida esta como o cumprimento da letra da lei, com suas… garantia!—, então é preciso admitir que estamos vivendo, sim, uma nova era.

Que força relevante fazia a defesa da democracia naquele ancestral 1964, que resultou em golpe? A resposta, como é sabido, é esta: nenhuma. Não vivemos as vésperas de um rompimento institucional, mas há o risco de esgarçamento do Estado democrático e de Direito. Sem estrondo. Quem se atreve a falar em defesa das forças da ordem?

É evidente que Bolsonaro sabia das negociações empreendidas pelo seu soldado raso, o general Eduardo Pazuello, com o Instituto Butantan — e isso significa que também as Forças Armadas foram tragadas pelo movimento entrópico, viciadas que estão numa boquinha.

Nem tanto por cálculo, mas em razão da pressão da expedição interventora dos EUA que veio ao Brasil para buscar um aliado na guerra comercial contra a China, o presidente desautorizou o seu ministro da Saúde; atacou um adversário do seu campo ideológico; pôs em dúvida a qualidade de uma vacina sem ter elementos para isso; ameaçou, de forma velada, negar o registro à Coronavac e correu para colher os louros junto a seus lunáticos.

O que resta do antigo establishment político e intelectual, inclusive a imprensa, se queda paralisado, estatelado, mal acreditando no que ouve e vê. E o homem pode muito mais porque ele e o vácuo se contemplam. Bem-aventurados os que tentam resgatar o país dos escombros da legalidade. É nossa única saída.

“Kassio foi indicado por Bolsonaro, Reinaldo!” E daí? Edson Fachin foi indicado por Dilma.

Lembrando são Mateus, pelo fruto saberemos se é videira ou espinheiro. A ordem legal —com todas as mobilizações sociais cabíveis, claro!— é nossa única vacina contra as forças do caos.


Maria Cristina Fernandes: Uma garantia estendida por 27 anos

Vínculos de Kassio Nunes com a OAB precedem Bolsonaro

O desembargador Kassio Nunes Marques foi inquirido por quase dez horas, só perdendo para a sabatina do ministro Edson Fachin (11 horas), mas duração não foi reflexo de contenciosos. Com 57 votos favoráveis, 10 contrários e 1 abstenção no plenário do Senado, o novo ministro chegará ao Supremo Tribunal Federal com uma aprovação menos contestada que a de Fachin (52 a 27), Gilmar Mendes (57 a 15) e Rosa Weber (57 a 14). O quórum de sua aprovação aproxima-se daquele de Dias Toffoli (58 a 9), o último dos ministros a ter um currículo tão contestado quanto o de Nunes Marques. Apesar da pandemia, a votação teve a presença de um número maior de senadores (68) do que a aprovação dos ministros Cármen Lúcia (56), Marco Aurélio (54), Ricardo Lewandowski (67) e Luís Roberto Barroso (65).

O panorama da votação foi antecipado pelo voto em separado de Alessandro Vieira (Cidadania-SE). O senador anotou que o desembargador “é a mais perfeita materialização do sistema de cruzamento de interesses que impera no Brasil há décadas”. Por esta razão, disse o senador, “não surpreende o fato de a indicação angariar apoios entusiasmados de políticos que vão do petismo ao bolsonarismo, nem a recepção expressiva por parte de ministros da Suprema Corte que confundem costumeiramente o republicano dever de urbanidade com a condenável confraternização efusiva com investigados poderosos e seus representantes”.

No condomínio de lealdades montado pelo presidente da República para a indicação de Kassio Nunes Marques, o senador não incluiu a Ordem dos Advogados do Brasil. A OAB, certamente, não esteve entre as instâncias consultadas por Jair Bolsonaro, mas nenhum outro ministro terá chegado à Corte com tão fortes vínculos com a instituição. Durante a sabatina, Kassio Nunes Marques falou até do carrinho de cachorro-quente que teve em Teresina, mas não da parceria com o ex-presidente da OAB, Marcus Vinícius Coelho Furtado, maranhense de nascimento, mas criado no Piauí.

Com a parceria, chegou ao conselho da Ordem e, a partir dele, ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região, no Distrito Federal. Contou, ainda, para o cargo, com o apoio do ex-presidente da OAB-DF, hoje governador, Ibaneis Rocha, outro que morou por muitos anos no Estado natal do novo ministro e cujo escritório, em Brasília, tem muitos processos em tramitação no TRF-1. A ambos juntou-se o senador Ciro Nogueira (PP-PI) e o presidente do STJ, ministro Humberto Martins, para a chegada do desembargador ao Superior Tribunal de Justiça. Foi neste momento, que o presidente, alertado pelo filho, o senador Flávio Bolsonaro, o fisgou para o Supremo Tribunal Federal.

Trata-se quase de uma “República do Piauí”, que tem planos de futuro buscando atrair ainda o jovem Pedro Felipe Oliveira Santos. Juiz auxiliar do Supremo Tribunal Federal, alçado pelo ministro Luiz Fux para a Secretaria-Geral da Corte, Santos tem um currículo sem os mesmos puxadinhos do futuro ministro. Foi primeiro lugar no concurso para a Justiça Federal, tem mestrado em Harvard e é doutorando em Oxford.

Ao longo de sua sabatina, o desembargador mostrou-se merecedor da confiança do seu condomínio de indicações ao definir como o principal ativo de sua indicação, o “garantismo”, rótulo que situou entre o “originalismo”, tradução literal do texto constitucional, e o “ativismo”, interpretação da Carta que comporta um judiciário participante da mudança social e política. Suas origens acrescentam, senão um ativo, mas uma decorrência de sua indicação, a importância, para a OAB, da ocupação de tribunais por ministros egressos da Ordem.

É uma força que tem tradução numérica. Para que um recurso ao Supremo seja acolhido, é preciso o aval de um ministro do STJ. Para que um apelo suba ao STJ, também é necessário que um desembargador o ponha no elevador. Decisões como essas podem render, a advogados, valores de até sete dígitos em honorários. Na atual conjuntura da OAB, a proximidade com um ministro como Kassio Nunes Marques, pode, ainda, desbalancear favoravelmente à atual direção “garantista” na queda de braço travada internamente com os conselheiros de filiação lavajatista. A se confirmarem as expectativas dos antigos companheiros do futuro ministro na OAB, sua filiação aos princípios que hoje movem a Ordem ultrapassarão, e muito, o mandato do presidente Jair Bolsonaro. Se ficar na Corte até a aposentadoria compulsória, Kassio Nunes Marques só a deixará em 2047.

Ao longo da sabatina, Nunes Marques valeu-se de vedações legais que o impedem de vir a se manifestar sobre temas que podem entrar na pauta do Supremo, da prisão em segunda instância à existência da TV Justiça. Disse ao senador Oriovisto Guimarães (Podemos-PR), que lhe perguntou sobre a mediação do senador Flávio Bolsonaro e do advogado Frederick Wasseff, que o presidente havia tomado a decisão sozinho. E repetiu, em quase todas as respostas, sua determinação em fazer valer a necessária segurança jurídica do país, numa sabatina que teve na audiência Humberto Martins, do STJ. O ministro liderou a decisão daquele tribunal que levou o prefeito do Rio e aliado de Bolsonaro, Marcelo Crivella, a encampar a Linha Amarela.

O ministro foi menos convincente na reação às acusações em torno de seu currículo turbinado. Inventou o verbo “aspasar” numa tentativa de mostrar que sabe usar aspas. Disse que a Universidade Autônoma de Lisboa tem a “melhor ferramenta antiplágio do mundo”, mas não explicou porque sua orientadora, alertada pela revista “Crusoé”, teria aberto a possibilidade de rever o título concedido. Na dissertação acusada de plágio, o novo ministro defende que a União forneça medicamentos a todos os pacientes que deles necessitem. Chegará ao Supremo num momento em que a Corte pode vir a ser instada a se pronunciar sobre a vacina que o presidente quer negar aos brasileiros. Terá, então, oportunidade de mostrar o que, de fato, pensa sobre o tema.


Hélio Schwartsman: O sistema de escolha de juízes para o STF funciona?

Receio que, se funcionasse, Kassio Nunes não seria aprovado

O que aconteceria com Kassio Marques se nosso sistema de escolha de juízes para o STF fosse plenamente funcional? Receio que, neste caso, o futuro ministro não teria seu nome aprovado pelo Senado.

É possível que Marques seja um bom magistrado e que sua fortificação curricular seja um pecado venial, mas não estamos falando de um cargo obscuro nos meandros da administração, e sim de uma vaga na Suprema Corte do país, onde deveriam ter assento apenas os melhores e mais probos de cada geração.

Não é possível que, entre os cerca de 2 milhões de brasileiros em carreiras jurídicas, não exista ninguém com excelência técnica e sem pecados curriculares.

Apesar de eu mesmo ter classificado como pouco funcional nosso modelo de seleção, no qual o presidente indica mais ou menos livremente um nome, que precisa ser sabatinado e aprovado pelo Senado, devo dizer que o sistema não é tão ruim quanto alguns o pintam. O risco maior, que seria a entronização de ministros próximos demais de quem os designou, foi posto à prova e não se materializou.

Embora as últimas composições do STF tenham tido a maioria de seus integrantes apontados pelo PT, a corte, em seu conjunto, não hesitou em tomar decisões que contrariaram os interesses do partido, como se viu no julgamento do mensalão e do impeachment de Dilma. O segredo é a vitaliciedade. Uma vez nomeado, o ministro não precisa mais se preocupar com seu próximo emprego e pode dedicar-se só a sua biografia. A vaidade faz o resto.

Para o sistema tornar-se plenamente funcional, o Senado teria de exercer sua prerrogativa de realmente avaliar os candidatos e rejeitar os que não estivessem à altura do cargo. Como isso dificilmente acontecerá, até acho que poderíamos limitar mais a escolha do presidente, restringindo-a a listas de nomes elaboradas por outros atores, mas eu não mexeria na vitaliciedade. É a parte que está dando certo.


Eros Roberto Grau: Igualdade ou desigualdade?

Programa do Magazine Luiza é iluminado por Platão e Aristóteles, Lewandowski e Barroso

O Magazine Luiza recentemente implementou um programa de contratação de jovens que estejam cursando ensino superior e se autodeclarem negros ou pardos. Daí foram desdobrados inúmeros debates. Por conta disso emiti um parecer no qual afirmo sua correção jurídica. Não obstante, tal tem sido a repercussão dessa sua iniciativa que me permito agora escrever a propósito de sua correção em termos sociais.

O artigo 5.º da nossa Constituição estabelece que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza e garante aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à igualdade. Note-se bem que o preceito contém uma afirmação – a igualdade perante a lei – e uma garantia. Uma conhecida lição de Kelsen é primorosa: a chamada “igualdade” perante a lei não significa outra coisa que não seja a aplicação correta da lei, qualquer que seja o conteúdo que esta lei possa ter, mesmo que não prescreva um tratamento igualitário, desigual.

A concreção da regra da igualdade reclama a prévia determinação de quais sejam os iguais e quais os desiguais, até porque – e isso é repetido desde Platão e Aristóteles – a igualdade consiste em dar tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais. Vale dizer: a Constituição e as leis devem distinguir pessoas e situações distintas entre si a fim de conferir distintos tratamentos normativos a pessoas e situações que não sejam iguais.

Mais, permito-me lembrar dois acórdãos exemplares. Um lavrado na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186 – relator o ministro Ricardo Lewandowski – outro na Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 41 – relator o ministro Luís Roberto Barroso.

Leem-se na ementa do primeiro deles os seguintes trechos: “I – Não contraria – ao contrário, prestigia – o princípio da igualdade material, previsto no caput do art. 5.º da Carta da República, a possibilidade de o Estado lançar mão seja de políticas de cunho universalista, que abrangem um número indeterminados de indivíduos, mediante ações de natureza estrutural, seja de ações afirmativas, que atingem grupos sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo a estes certas vantagens, por um tempo limitado, de modo a permitir-lhes a superação de desigualdades decorrentes de situações históricas particulares; II – O modelo constitucional brasileiro incorporou diversos mecanismos institucionais para corrigir as distorções resultantes de uma aplicação puramente formal do princípio da igualdade”.

Na ementa da ADC 41, o seguinte: “1. É constitucional a Lei n.º 12.990/2014, que reserva a pessoas negras 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal direta e indireta, por três fundamentos. Em primeiro lugar, a desequiparação promovida pela política de ação afirmativa em questão está em consonância com o princípio da isonomia. Ela se funda na necessidade de superar o racismo estrutural e institucional ainda existente na sociedade brasileira, e garantir a igualdade material entre os cidadãos, por meio da distribuição mais equitativa de bens sociais e da promoção do reconhecimento da população afrodescendente”.

As lições de Ricardo Lewandowski e Luís Roberto Barroso confirmam que não se interpreta o Direito em tiras, aos pedaços, que não se interpretam textos de Direito isoladamente, mas sim o Direito, no seu todo.

Repito: todos são iguais perante a lei, mas a igualdade consiste em dar tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais. Em voto proferido no julgamento do Mandado de Segurança (MS) 26.690, quando exerci a magistratura no Supremo Tribunal Federal (STF), afirmei que “sabemos, desde Platão e Aristóteles, que a igualdade consiste exatamente em tratar de modo desigual os desiguais”.

Ainda que seja assim, uma ação civil pública movida pela Defensoria Pública da União, subscrita por Jovino Bento Junior, nos deixa perplexos. A Defensoria Pública da União é incumbida, nos termos do disposto no artigo 4.º, inciso XI, da Lei Complementar 80/94, de exercer a defesa dos interesses individuais e coletivos de grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado, e entre os grupos que merecem proteção especial do Estado está a população negra. O que essa ação pretende, penetrando o absurdo, é que seja dado tratamento igual aos desiguais.

A lição de Carlos Maximiliano é primorosa, cá se aplicando qual uma luva. “DEVE O DIREITO SER INTERPRETADO INTELIGENTEMENTE: não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis” (maiúsculas no original).

O programa de contratação implementado pelo Magazine Luiza é iluminado pelos meus velhos amigos Platão e Aristóteles e pelos de agora, lá do Supremo, Ricardo Lewandowski e Luís Roberto Barroso.

*Advogado, professor titular aposentado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, foi ministro do STF


Carlos Melo: Uma sabatina para não sabatinar

A indicação de Kassio Marques para a vaga no STF é um processo de surpresas e atropelos. Surpresas porque se esperava de Jair Bolsonaro um nome “terrivelmente evangélico” – o que não ocorreu. Atropelos porque, após a indicação, aspectos do currículo do candidato foram revelados, deixando constrangimento para quem se apresenta à vaga, quem o indica e quem o aprovará, em sabatina.

Ao se afastar da promessa que fez à base evangélica, o presidente surpreendeu pelo pragmatismo, incomum no seu caso. Ser “terrivelmente” adepto de qualquer religião não é qualificativo para tribunais em Estados laicos e democráticos. O que se espera de um juiz é estatura jurídica. De sorte que Bolsonaro surpreendeu e indicou alguém com melhores condições do que se esperava.

Mas, também as articulações que levaram ao nome de Marques foram surpreendentes. O noticiário indica que a escolha compreende enfraquecimento da Lava Jato no STF. O futuro ministro pode ter visão jurídica distinta da operação; ser mais ou menos crítico em relação a isso não é um defeito, desde que faça sentido jurídico. Posicionamentos dessa ordem deveriam ser tratados pelos senadores.

O irônico é que ministro com essa inclinação seja indicado por Jair Bolsonaro, que cavalgou na popularidade e no radicalismo lavajatista. Que fez coro a ele, exigindo o fim da “velha política”, e a mais que dura punição, sem remissão, de envolvidos com corrupção. Os ventos mudam de direção: Bolsonaro teria capitulado e conciliado com seus antigos adversários? O certo é que ou errou lá ou erra aqui.

Da indicação para cá, problemas nos certificados de notório saber do futuro ministro foram revelados: títulos que não se confirmam e denúncias de plágio surgiram; imprecisões, enfim, frequentes no atual governo. Mas que, num ambiente de necessário rigor, seriam pontos para reanálise da própria indicação: são questões que comprometem mais do que ser contra ou a favor de teses jurídicas, pois desgastam a imagem de alguém que será guardião inconteste da Constituição. A busca do esclarecimento deveria ser ponto central da sabatina.

Mas isso dificilmente ocorrerá. A sabatina tende a não sabatinar, pois a posição do futuro ministro em relação à Lava Jato parece bastar. A conciliação de interesses apenas aparentemente contraditórios sabe fazer a curva dos ventos e tudo se dissipa na fachada do teatro.

*Carlos Melo cientista político e professor do Insper


Carlos Andreazza: Colegialidade de ocasião

O problema — talvez o maior — do STF não é simplesmente o excesso de decisões monocráticas, mas o uso constante de liminares

A lei é boa. E era necessária. Refiro-me ao artigo 316, parágrafo único, do Código de Processo Penal: aquele — expressão do estado de direito — que estabelece a necessidade de a prisão preventiva ser revista a cada noventa dias. Lembremo-nos: prisão preventiva é medida cautelar de natureza provisória. Há requisitos para que alguém seja mantido em cárcere por essa razão. Por exemplo: representar risco à ordem pública. São dezenas de milhares os brasileiros — sobretudo pretos e pobres — esquecidos, presos provisoriamente, em cadeias do Brasil profundo; a grande maioria sem oferecer os riscos que justificam a preventiva.

Exigir que essa condição seja reexaminada a cada três meses é movimento da civilização. Aqui, uma obviedade: tivesse a lei sido aplicada corretamente, André do Rap estaria preso. Ele, ameaça à sociedade, encarna as razões para a privação cautelar de liberdade. Aqui, portanto, outra obviedade — para desmontar a falácia dos oportunistas que querem fazer do episódio escada para reabilitar a prisão após condenação em segundo grau: o criminoso não está foragido porque a jurisprudência corrente no Supremo impõe trânsito em julgado para o cumprimento de pena.

Debatamos a questão. Mas sem embustes.

Diga-se que o erro original de Marco Aurélio Mello não derivou de sua leitura do artigo 316 do CPP. Tivesse o ministro respeitado, antes, a súmula 691 do STF, sua análise do habeas corpus — que resultou na liberação do traficante — nem sequer existiria. Marco Aurélio não foi ingênuo, tampouco literalista. Foi negligente com o regramento da corte constitucional. Simples. O STJ já havia indeferido a liminar. Não cabia acolhimento pelo STF. Ponto final. O ministro, no entanto, atropelou a súmula; para então se lançar ao fetiche, com o qual sempre se defende, de que processo não tem capa — como se isso, o enfrentamento impessoal de um caso, eximisse-o de estudar o conteúdo e pedir informações a respeito.

Não é todo dia que o tribunal se depara com a demanda por liberdade de um traficante que comercia toneladas de cocaína. O Supremo não precisaria deliberar sobre a não automaticidade da lei se Marco Aurélio tivesse trabalhado. Sua consulta — ao juízo de primeiro grau — sobre o processo teria bastado para que o juiz responsável pela prisão se visse provocado a renová-la. Chama-se bom senso. Algo que poderia ajudar a corte constitucional a não legislar tanto. Porque, afinal, a disciplina — talvez o menor dos males — que o STF assentou sobre como se comportar (blindar, na verdade) diante do artigo em xeque não deixou de ser mais uma invasão no terreno da atividade legislativa. Menos mal também porque, ainda que legislando, o Supremo acabou por avalizar a constitucionalidade da (boa) lei.

Não pode passar despercebida a proposição esperta que, a propósito da leitura do artigo 316 do CPP, tentou encaixar Alexandre de Moraes; segundo quem, havendo, contra o indivíduo preso preventivamente, condenação em segundo grau, não seria necessária a revisão da cautelar a cada noventa dias. Isto mesmo: o ministro, sem corar, tentava erguer um puxadinho para fazer valer de novo a prisão após condenação em segunda instância. Não prosperou. Ainda.

Prosperou, porém, a derrota, dura, de Marco Aurélio — exposto, sem dó, pelos pares. Um decano jogado ao mar. Não se pode dizer, entretanto, que Luiz Fux tenha vencido. O placar engana sobre o que foi o jogo. O tribunal fez a escolha pelo improviso menos danoso à sua imagem. Só por isso endossou, cheio de ressalvas, a intervenção — ilegal e autoritária — de seu presidente. Fux a chamou de excepcionalíssima. Mentiu.

O recurso autofágico — ministro suspendendo liminar de ministro — tem sido usado com frequência. Dias Toffoli usou. Idem o próprio Fux, agora tão dedicado a valorizar a colegialidade. Ou não terá sido ele o — censor, e censor prévio — que sustou decisão, perfeitamente legal, de Ricardo Lewandowski, que autorizara uma entrevista de Lula desde a prisão? Este Fux que ora vem, cheio de mídia, para combater a febre monocrática, outrora censor monocrático, sendo o mesmo que por quatro anos se sentou sobre liminar — monocracia corporativista de próprio punho — que garantiu auxílio-moradia para juízes e procuradores. Conta bilionária.

O problema — talvez o maior — do STF não é simplesmente o excesso de decisões monocráticas, mas o uso constante de liminares, como se os ministros fossem birutas, embasadas pelo vento influente, oportunista, de ocasião, não raro com a intenção de jogar para a galera, não raro fora da lei.

A suspensão discricionária de Fux da liminar bizarra de Marco Aurélio — Supremo comendo Supremo — se baseou em lei, a 8.437, que absolutamente não lhe autoriza o ato; como sem qualquer lastro legal foi a decisão de Barroso pelo afastamento do senador Chico Rodrigues. Assim vamos. Ademais sob o risco de, como forma de controlar a convulsão das canetadas monocráticas, impor-se uma tirania da colegialidade que, na prática, resulte em restrição ao habeas corpus.

Cuidado. De nada adiantará um choque de plenário se houver escassez de juízes.


Janio de Freitas: Embate oferece controvérsia, mas STF marchou de mãos dadas contra Marco Aurélio

Ministro considerou justificada a liberação de André do Rap, que requereu habeas corpus baseado em excesso de prisão

A indiferença da classe privilegiada pelo que se passa abaixo dela recebeu do próprio Supremo Tribunal Federal, instância quase divina da “Justiça”, mais uma autenticação. É o destino histórico, deliberado por quem pode, para a imensa maioria dos brasileiros.

Com intenção fora das exigências vigentes, o Congresso alterou o tal pacote anticrime com uma medida para reduzir o número indecente de mais de 250 mil detentos em prisão nominalmente provisória, mas de fato sem prazo. Uma população abandonada, inúmeros sem culpa constatada, resultado da falta de meios para pagar advogados eficientes. Em vigor desde o final de dezembro último, a nova medida determina o reexame da prisão a cada 90 dias, para verificação da necessidade de mantê-la ou não. É claro que os reexames não são comuns.

O ministro Marco Aurélio considerou justificada a liberação de um detento provisório, que requereu habeas corpus baseado em excesso de prisão, mais do que os 90 dias legais e sem o reexame que a avaliasse. Recém-empossado na presidência do STF, Luiz Fux atribuiu-se o inexistente poder de invalidar a decisão do colega. E o fez com o forte argumento de ser o detento um chefe de milícia que, solto, ameaçaria a sociedade.

Um embate, portanto, que oferece controvérsia para muito tempo, entre defensores de que a lei é igual para todos, e aplicá-la é a função do juiz; de outra parte, os que sobrepõem à lei, ao decidir, presumidas decorrências de sua aplicação —ou, não raras vezes, suas inclinações pessoais. Controvérsia, mas não para o plenário do STF, que logo marchava de mãos dadas contra Marco Aurélio Mello, como sempre. E o fez com originalidade: abraçou a opinião aplicada por Luiz Fux, mas não que a aplicasse.

Para Luiz Fux, que lembra o Fernando Henrique das exógenas e endógenas para dizer externas e internas, o tribunal nada decidiu sobre o prazo de 90 dias: tratou do “prazo nonagesimal”. Que, conforme a resolução adotada, “não implica automática revogação da prisão preventiva, devendo o juiz competente ser instado a reavaliar a legalidade e a atualidade de seus fundamentos”.

Em que prazo? A rigor, deveria fazê-lo antes do dia “nonagesimal”, pois já no dia seguinte a prisão entra em excesso de prazo. Na lei, o prazo é tanto para o detento como para o juiz do caso. O Supremo cuidou, no entanto, de dar-lhes sentidos opostos. O do preso é fechado e dependente. O do juiz é livre, à vontade, a menos que haja intervenção do advogado nunca presente para a imensa maioria dos detidos provisórios sem meios de tê-lo.

Novo fogo

A emboscada policial que matou 12 de uma “narcomilícia” apreendeu, entre as armas que carregavam, três metralhadoras. É uma novidade. Um passo a mais.

Metralhadoras eram consideradas menos convenientes pela dificuldade de dirigir tiros mais precisos, nos confrontos. Sua utilidade estaria em ataques do tipo militar, os chamados assaltos. Se é isso que sua chegada prenuncia, não se sabe. Mas que trazem novidade, e para pior, é certo.

Nostalgias

As restrições às armas de brinquedo, o fim dos quintais e os síndicos extinguiram, ou quase, os empolgantes enfrentamentos de mocinho e bandido. Agora as críticas se voltam para os sobreviventes enfrentamentos de azuis e vermelhos, os mocinhos e bandidos dos falsos tiroteios do pessoal do Exército. Mas saíram todos contentes: os combates vencidos pelos azuis na Amazônia correram muito bem, como nos velhos tempos.


Merval Pereira: A favor do coletivo

O episódio polêmico do habeas corpus dado pelo ministro Marco Aurélio Mello ao traficante André do Rap serviu para levantar diversas questões que há muito distorcem a atuação do Supremo Tribunal Federal.

Para começo de conversa, não é razoável que um caso como esse tenha chegado à última instância da Justiça, numa Corte que deveria ser apenas constitucional e cada vez mais se vê às voltas com crimes, de colarinho branco a tráfico internacional de drogas.

Transferir para o colegiado do Supremo o poder decisório que hoje pode ficar com um ministro em julgamento monocrático é o objetivo da proposta do presidente, ministro Luis Fux, que será apresentada em reunião administrativa do STF.

A idéia é fazer com que toda decisão individual seja levada ao plenário virtual imediatamente. Está sendo criado um espaço especial para votações rápidas, provavelmente em 48 horas, sobre decisões monocráticas, incluindo habeas corpus.

A chamada “desmonocratização” do Supremo, anunciada pelo novo presidente tem o objetivo de que as decisões do tribunal "sejam sempre colegiadas, em uma voz uníssona daquilo que a Corte entende sobre as razões e os valores constitucionais". Os ministros perderão poder individualmente, mas o plenário do Supremo ganhará relevância.

Esse debate está sendo feito nos bastidores, mas o ministro Gilmar Mendes já reagiu publicamente, dizendo que se trata de uma medida demagógica, citando “telhado de vidro” dos que propõem a medida. Ele se referia indiretamente ao ministro Fux, lembrando que “a liminar mais longa que conheço” é a do auxílio moradia, dada pelo hoje presidente do Supremo em 2014, que nunca foi a plenário, revogada por ele mesmo quatro anos depois devido a um reajuste salarial dado aos juízes federais pelo presidente Michel Temer.

O ministro Gilmar Mendes é muito cioso dos seus poderes como ministro do Supremo, e não acredita que a Corte tenha que ter reduzidas suas funções. Certa ocasião, quando se debatia a necessidade de tirar do STF o julgamento de crimes, eleitorais ou comuns, o ministro Luis Roberto Barroso sugeriu a criação de um novo tribunal para tratar apenas dessas situações. Gilmar reagiu, dizendo que Barroso queria tirar poder do STF para criar um supertribunal que analisaria os casos criminais envolvendo os detentores de foro privilegiado.

O presidente Luis Fux, diante dos problemas que surgiram com a distribuição do habeas corpus, decidiu também acabar com a chamada “roleta russa” na escolha do relator dos casos, uma manobra costumeira que burlava a escolha através de sorteio.

Os advogados costumeiramente entram com uma ação ou recurso, que são distribuídos por sorteio a um ministro, ou encaminhados ao ministro “prevento”, isto é, que cuida de assuntos ligados ao tema. O ministro “prevento” para a Lava Jato no plenário é Edson Fachin.

Se o sorteio designa um ministro que não é partidário desta ou daquela causa, por decisões anteriores, o advogado desiste da ação e entra com outro pedido, esperando que desta vez a sorte lhe seja benfazeja.

Foi o que aconteceu no caso do habeas corpus do traficante, impetrado e retirado por oito vezes, até que caísse com o ministro Marco Aurélio, um garantista conhecido que já havia se utilizado do artigo 316 do Código de Processo Penal para soltar dezenas de presos. A partir de agora, o registro ou distribuição de ação ou recurso no STF gerará prevenção ao ministro inicialmente sorteado para todos os processos relacionados à primeira petição, impedindo a mudança de relator.

Essas mudanças de procedimento no STF estão sendo submetidas aos ministros nas reuniões administrativas, e até agora o ministro Luis Fux tem conseguido o apoio necessário para executá-las, como a volta das ações ao plenário, em vez das Turmas.

Seu objetivo de longo prazo é que todos os temas sejam debatidos e decididos pelo plenário. Para tal, ele pretende, até o final de seu mandato, que o Supremo Tribunal Federal recupere a capacidade de tratar apenas de temas constitucionais, sem tratar de casos como o do traficante André do Rap.