STF
O Globo: Comissão no Senado tenta caminho mais curto para prisão em 2ª instância
CCJ pauta cinco projetos para modificar legislações e reverter decisão do Supremo. Por não mexer na Constituição, sofreriam menos contestação na Justiça
Em vez de modificar trechos da Constituição, como ocorre em PECs, os projetos de lei preveem mudanças no CPP e na Lei Introdução às Normas do Direito Brasileiro com o mesmo objetivo: abrir caminho para que a pena seja executada depois da condenação em segunda instância. Uma PEC precisa de três quintos dos votos de deputados e senadores para ser aprovada; já um projeto de lei passa com a maioria absoluta das duas Casas.
Defensores da alteração via projeto de lei, e não PEC, argumentam que esse caminho evita questionamentos na Justiça sobre eventual desrespeito a cláusulas pétreas da Constituição. Outro grupo de parlamentares diz, porém, que a mudança por meio de projeto pode ser da mesma forma alvo de ações na Justiça, caso seja interpretado que houve um atropelo da Constituição.
Na pauta de Tebet, o projeto mais antigo é de 2015 e foi apresentado pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP). Ele altera o CPP para definir o que é trânsito em julgado. No texto, o senador estabelece que os condenados podem ser presos quando os recursos disponíveis não são mais capazes de reverter ou anular a sentença, o que ocorre a partir da segunda instância. O projeto garante, porém, que ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Supremo Tribunal Federal podem suspender a execução da pena.
“Estatísticas levantadas pelo então ministro Cézar Peluzo, do STF, revelam que apenas 15% dos recursos extraordinários e especiais (que são dirigidos às cortes superiores) em matéria criminal são providos. Desse número, boa parte não resulta em reversão da condenação, só em redução da reprimenda”, alega o senador.
Pacote anticrime
Outros três projetos foram apresentados em 2018. O do ex-senador Cássio Cunha Lima (PSDB-PB) acrescenta na Lei Introdução às Normas do Direito Brasileiro, em trecho que trata de “coisa julgada ou caso julgado”, o dispositivo: “para fins de cumprimento de sentença penal condenatória, o trânsito em julgado será considerado a partir da condenação em 2º grau, em única instância ou após julgamento de recurso”.
O senador acrescenta que “o STF tem formado uma maioria muito volátil em torno do tema”, o que permitiria debater um “limite mais elástico à coisa julgada”.
Os outros dois projetos do ano passado são de Laisier Martins (Podemos-RS) e novamente de Randolfe Rodrigues, e modificam respectivamente os artigos 283 e 674 do CPP, com o mesmo objetivo de permitir a prisão após condenação em segunda instância.
O quinto projeto na pauta de Tebet é parte do pacote anticrime do ministro da Justiça, Sergio Moro, que está na Câmara. Idêntico ao que propõe o ministro, o texto foi apresentado pela senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA) para ser debatido também no Senado. Ele prevê que se acrescente ao CPP um trecho que determina que a execução provisória da pena seja decisão dos tribunais de segunda instância.
Simone Tebet reconhece, no entanto, que, de forma mais rápida, a menor chance de consenso é sobre a proposta de Moro, porque no mesmo pacote o ministro propõe outra série de alterações na legislação, demandando mais tempo de debate.
Os cinco projetos de lei no senado
PL 238/2015
Autor: Randolfe Rodrigues (Rede-AP): Muda o entendimento previsto no artigo 674 do CPP sobre trânsito em julgado, que se daria quando esgotados os recursos ordinários (até a 2ª instância)
PL 147/2018
Autor: ex-senador Cássio Cunha Lima (PSDB-PB). Modifica o o artigo 6º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, também considerando o trânsito em julgado na 2ª instância.
PLs 166 e 201/2018
Autores: Lasier Martins (Podemos-RS) e Randolfe Rodrigues. Alteram os artigos 283 e 674 do CPP para permitir que a execução provisória de pena seja determinada por tribunais de 2ª instância.
PL 1.864/2019
Autora: Eliziane Gama (Cidadania-MA). Reproduz trecho do pacote anticrime de Sergio Moro para autorizar que a pena de prisão seja determinada já em segunda instância.
Adib Abdouni: O trânsito em julgado é cláusula pétrea
A discussão acerca da prisão em segunda instância antes mesmo do trânsito em julgado da sentença penal condenatória — festejada por uns e repudiada por outros — pode até soar casuísta à primeira vista caso se leve em conta que sua motivação gravita exclusivamente em torno da figura do ex-presidente Lula. Na verdade, não há casuísmo.
Em essência, cuida-se de temática penal de índole constitucional da mais elevada importância, tendo em vista que a eliminação definitiva dessa controvérsia afetará a vida de milhares de cidadãos brasileiros que se encontram em iguais condições processuais às de Lula.
Sabemos que em fevereiro de 2016 o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), ao rejeitar por maioria de votos o Habeas Corpus n. 126.292, alterou drasticamente sua jurisprudência para afirmar que a partir de então seria possível a execução provisória da pena após a confirmação em segunda instância da sentença penal condenatória, mesmo antes de seu trânsito em julgado.
Além do placar ter sido de 7 a 4 (acompanharam o saudoso ministro relator Teori Zavascki pelo indeferimento do HC, os ministros Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Dias Toffoli, Cármen Lúcia e Gilmar Mendes, vencidos os ministros Rosa Weber, Marco Aurélio, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski), o julgamento atingiu somente as partes envolvidas naquele processo criminal, à míngua de efeito vinculante da decisão.
Daí a importância maior do desate final, havido dia 7 de novembro de 2019 por meio do julgamento das Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) 43 e 44 pelo Plenário do STF — palco próprio para aquilatações de questões dessa magnitude e impacto social — cujo resultado proclamado, por decisão majoritária de votos (6 a 5), deu pela constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal. Este afirma que ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado, em exata harmonização com o artigo 5º., inciso LVII, da Carta da República, a prestigiar o princípio da inocência ou da não culpabilidade.
Vale dizer, a maioria dos membros da mais alta corte de justiça do país, enquanto guardiões da Carta Magna, nada mais fizeram do que, no estrito cumprimento do dever judicante, decidir pela procedência dos pedidos formulados nas ações diretas de controle constitucional. Estes que ambicionavam o reconhecimento expresso da constitucionalidade do referido dispositivo processual penal que, em tudo e por tudo, replica, às inteiras, o postulado da presunção de inocência e rechaça a hipótese de execução provisória da pena para resguardar, com grau de definitividade e segurança jurídica, um dos maiores direitos da pessoa humana, qual seja, o direito à liberdade e o de recorrer, até final deslinde da controvérsia penal, a fim de reverter eventual injustiça ou antijuridicidade cometida em primeira ou segunda instância de julgamento.
Em que pese revelar-se perfeitamente razoável o reclamo da sociedade leiga acerca do desfecho havido no STF , motivado pelo sentimento de impunidade que se irradia do resultado proferido, o fato jurídico insofismável é que o legislador constituinte originário optou por adotar regra garantista inabalável — no campo dos direitos e garantias fundamentais — segundo a qual ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.
Frise-se que o texto constitucional é de clareza solar, e, respeitado entendimento diverso, não comporta — com honestidade intelectual daqueles que se debruçam de forma isenta sobre o tema — qualquer flexibilização em sua interpretação ou aplicação ao caso concreto.
O resultado do julgamento não poderia mesmo ter sido diferente e o STF teve a oportunidade ímpar de reverter a equivocada e anti-republicana posição jurisprudencial dantes adotada em detrimento do Estado Constitucional Democrático de Direito.
É eloquente — e vale ser reproduzida — a irresignação do ministro Celso de Mello: reflete preocupante inflexão hermenêutica de índole regressista no plano sensível dos direitos e garantias individuais, retardando o avanço de uma agenda judiciária concretizadora das liberdades fundamentais. Que se reforme o sistema processual, que se confira mais racionalidade ao modelo recursal, mas sem golpear um dos direitos fundamentais a que fazem jus os cidadãos de uma república.
Agora, vem à baila a proposta de congressistas para alteração do texto constitucional — por intermédio de emenda à Constituição Federal — com o fito de autorizar a prisão em segunda instância.
As propostas, entretanto, não merecem reflexão maior a fim de considerá-las corretas ou inadequadas do ponto de vista jurídico, na medida em que — com todas as vênias necessárias — cuidam-se de iniciativas impróprias, e, sobretudo, inconstitucionais, por vício insanável que as acometem já em seu nascedouro.
Entrementes, o entendimento favorável à execução provisória da pena — presente o atual cenário constitucional — ganha contornos de populismo político em nítida subversão da ordem jurídica, tornando tábula rasa um dos mais fundamentais mandamentos constitucionais de proteção do indivíduo, em combate ao arbítrio e ao abuso do Estado punitivo: a presunção de não culpabilidade.
Com efeito, o indigitado comando constitucional foi erigido à categoria de cláusula pétrea, na forma do artigo 60, parágrafo 4º, inciso IV da Constituição Federal, ao estabelecer que não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais.
E a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 410/2018, do deputado federal Alex Manente (PPS/SP), que aguarda deliberação na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), promove inaceitável tentativa de mitigar a presunção de inocência enquanto condicionante da execução da sentença penal condenatória ao julgamento de segunda instância, por equivaler à completa aniquilação do referido preceito republicano, ou, na letra do texto constitucional, em sua abolição.
Confira-se a proposta legislativa: “Art. 5º. (…) LVII – ninguém será considerado culpado até a confirmação de sentença penal condenatória em grau de recurso”.
Em igual sentido, vai a PEC 5/2019, em curso no Senado Federal e proposta pelo senador Oriovisto Guimarães (Podemos-PR). Por via transversa e notória burla à sistematização constitucional, também busca eliminar a presunção de inocência, ao inserir o inciso XVI no art. 93 da Constituição Federal, para positivar a possibilidade de execução provisória da pena, após a condenação por órgão colegiado, sem que o preceito guarde, nesse capítulo, qualquer pertinência temática, já que inserida em passagem resguardada à organização do Poder Judiciário.
Não se desconhece que todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, inclusive para alterarem o texto constitucional, a denominar o poder derivado constituinte, tal como previsto nos artigos 1º., parágrafo único e 60, da Constituição Federal.
Contudo, não se pode perder de vista que o exercício desse poder reformador deve observar os termos e limites expressos ou implícitos contidos na Constituição Federal.
O ilustre ministro do STF e doutrinador constitucional Alexandre de Moraes — em que pese ter se pronunciado pela possibilidade da prisão em segunda instância — esgota o tema ao analisar a vedação de alteração das matérias qualificadas como cláusulas pétreas, conforme se extrai do voto proferido na ADI 5058/DF, ao registrar que, “mutatis mutandis”: “O Poder Constituinte derivado está inserido na própria Constituição, pois decorre de uma regra jurídica de autenticidade constitucional e somente conhece as limitações constitucionais expressas e implícitas.
O poder de o Congresso Nacional alterar a Constituição Federal é derivado porque retira sua força do Poder Constituinte originário; subordinado porque se encontra limitado pelas normas expressas e implícitas do texto constitucional, as quais não poderá contrariar, sob pena de inconstitucionalidade; e, por fim, condicionado porque seu exercício deve seguir as regras previamente estabelecidas no texto da Constituição Federal.
Não há dúvidas, portanto, de que, no exercício do legítimo poder constituinte derivado reformador, denominado por parte da doutrina de competência reformadora, o Congresso Nacional pode alterar o texto constitucional, respeitando-se a regulamentação especial prevista na própria Constituição Federal. Entre as limitações expressamente previstas pelo texto constitucional, estão as `cláusulas pétreas´, pois não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes; os direitos e garantias individuais”.
Assim, mostra-se inescapável concluir que a imutabilidade da não culpabilidade somente poderá ser apreciada, votada e implementada por meio de uma nova Constituição, a fim de alterar tão fundamental direito do cidadão, o que se espera, em verdade, nunca ocorra.
*Adib Abdouni é advogado constitucionalista e criminalista
Oscar Vilhena Vieira: A Constituição não permite atalhos
Fez bem o Supremo Tribunal Federal em rever o seu próprio erro
Ao Supremo Tribunal Federal cumpre a difícil missão de guardar a Constituição. Não é sua atribuição corrigir o poder constituinte, por mais que seus ministros discordem de seus dispositivos. A tarefa de corrigir a Constituição só cabe ao Congresso Nacional e, mesmo assim, dentro dos estritos limites estabelecidos pela própria Constituição.
Nesse sentido, mais do que correta a decisão do STF que declarou constitucional o artigo 283 do Código de Processo Penal, uma vez que esse dispositivo, que proíbe a prisão antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, encontra-se em absoluta conformidade com a letra da Constituição, ao determinar que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”.
Ainda que tardia, a decisão do Supremo restabelece o direito dos réus, inclusive do ex-presidente Lula, de aguardar em liberdade o julgamento dos recursos que se encontrem pendentes, pois é isso que determina a Constituição.
Por mais que se discorde da opção de política criminal escolhida pela Constituinte em 1988, o seu significado é simples: enquanto houver a disponibilidade de recursos, a pessoa não dever ser considerada culpada e, salvo em circunstâncias excepcionais, não poderá ser presa. O Supremo apenas confirmou o que está expresso na Constituição.
Esse é, de fato, um modelo bastante problemático. O Congresso Nacional perdeu uma oportunidade de ouro de racionalizar nosso sistema de Justiça em 2011, quando o então presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Cesar Peluso, compareceu ao Senado Federal para propor a chamada PEC dos Recursos.
Como reconhecia o ministro “temos um sistema jurisdicional perverso e ineficiente”, que retarda a prestação de justiça, em função da existência de um modelo recursal irracional.
De um lado, esse sistema prejudica pessoas que, mesmo após terem seus direitos reconhecidos por juízas e tribunais, chegam a aguardar décadas pela manifestação de um tribunal superior ou do próprio Supremo Tribunal Federal, para receber o que lhes é de direito.
De outro lado, o sistema permite que a aplicação da pena daqueles que já foram condenados em primeira e segunda instâncias possa ser procrastinada, favorecendo a percepção de impunidade e muitas vezes incentivando a vingança privada.
Para reverter esse quadro, o ministro Peluso propunha, de maneira engenhosa, reformar a Constituição, transformando recursos especiais e extraordinários em ações constitucionais rescisórias. O efeito dessa mudança seria antecipar a coisa julgada.
Tomada a decisão de segunda instância, a sentença poderia ser executada. A PEC 15/2011 não impediria, no entanto, o direito de acesso aos tribunais superiores ou ao STF, seja por intermédio das novas ações rescisórias ou por remédios constitucionais tradicionais, como o habeas corpus.
A PEC dos Recursos sucumbiu à pressão dos litigantes recorrentes —que fazem do descumprimento da lei e da lentidão da Justiça um bom negócio—, e ao próprio interesse de setores da máquina pública que se viram ameaçados com a possibilidade de ter que cumprir suas obrigações antecipadamente.
O sistema de Justiça brasileiro tem muitas mazelas que precisam ser enfrentadas, mas não se pode aceitar que sejam tomados atalhos constitucionais para sua correção. Por isso, fez bem o Supremo Tribunal Federal em assumir a responsabilidade de rever o seu próprio erro.
*Oscar Vilhena Vieira, professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.
Alberto Aggio: Lula não pacificará o país
A decisão do STF cancelando a prisão em segunda instância realiza uma intervenção radical na conjuntura política. A soltura de Lula e José Dirceu da prisão, condenados a crimes de corrupção, joga o PT novamente no centro da cena política. Quem imaginava que tudo caminhava morosamente com a divisão de três terços (direita, centro e esquerda) deve ter gostado do resultado da decisão do STF. Isso porque agora o PT sai da defensiva. Não sabemos os movimentos de Bolsonaro. Talvez fique na mesma toada, agitando seus cones ideológicos. O centro deve permanecer no mesmo lugar, em busca de uma identidade mais clara e consolidada para um perfil democrático-liberal, mais progressista ou menos, em oposição aos chamados “dois extremos”.
Pelos discursos dos dois próceres petistas atendidos pela decisão do STF, o PT deve radicalizar sua posição, situando-se em oposição a Bolsonaro (quem imaginava outra coisa estava fora do mundo), mas, mais do que isso. Parece que Lula e o PT irão levantar a bandeira da identidade de “esquerda e socialista”. Com isso, Lula e José Dirceu imaginam que podem “retomar o governo”; na linguagem mais direta de Dirceu: “tomar o poder”. Considerando discursos desse tipo, fica claro que a tal teoria dos três terços, feita para ser superada, não encontrará no PT e em Lula seu algoz já que um discurso assim vai distanciar o PT do centro, necessário para a empreitada de retomada do poder.
Com o PT indo mais à esquerda – sabemos que isso é mais retórica do que outra coisa – revela-se que uma das preocupações de Lula é com o Psol, que cresceu significativamente nesse processo. Trata-se, portanto de uma retomada. Não creio que falar em socialismo a essa altura possa atrair Ciro Gomes e o PDT, aferrados a um nacionalismo ancilosado (o mesmo me parece que se pode dizer do PSB). Essa retomada do discurso petista me parece que só pode vingar nos termos e no campo movediço do lulismo. E ai nós ja sabemos como as coisas se movem, juntando maneirismos e malandragem, no limites, a corrupção. Se não for isso, esquece: não haverá condições de ampliar seus apoios.
Muito provavelmente essa esquerda não se unirá, a não ser pela lógica perversa da corrupção. Outros segmentos de esquerda, a democrática e liberal, está fora de qualquer compromisso como esse e fora desse suposto terço, parte da divisão politica e ideologicamente da sociedade brasileira. Ela ja abandonou qualquer veleidade socialista e não voltará atrás. Esses terços imaginários dificilmente se unirão. A situação também é complicada no campo das direitas e das correntes e partidos ao centro. O futuro de todos eles será decidido democraticamente na competição eleitoral.
Uma coisa é clara. Lula imagina equivocadamente que o tempo passou em vão. Sua libertação ajudará a compreender melhor que a teoria dos três terços só faz sentido dentro de uma lógica de irredutibilidade das estratégias políticas. Ela foi imposta por Bolsonaro e isso lhe garantiu até agora a inciativa política; há grandes cientistas sociais que acreditaram nisso. Mas a realidade não é idêntica a esse desejo, o Brasil é mais complexo. A libertação de Lula ajudará a colocar por terra também a tese de que com Lula na prisão o país não encontraria paz. Como se pode ver pelos discursos dos próceres que estão no centro da cena, trata-se de uma sandice, bem ao gosto do Sr. Fernando Haddad.
Lula não pacificará o Brasil. Bolsonaro é a antítese da paz e da democracia. O Brasil precisa encontrar um rumo novo.
El País: Livre, Lula acende esperança de reanimar uma combalida oposição
Ex-presidente discursa à militância e promete fazer nova caravana pelo Brasil com vistas às municipais de 2020. Petista cumpre promessa e bebe cachaça com militantes de vigília
Ainda não marcavam 13h, horário em que a Justiça Federal de Curitiba iniciaria os trabalhos do dia, e os advogados do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva já haviam protocolado por meios eletrônicos o alvará em que pediam a soltura imediata dele. A argumentação era simples: a decisão tomada no dia anterior pelo Supremo Tribunal Federal, de que apenas condenados já sem direito a recursos poderiam ser presos, beneficiava diretamente o líder petista. "Torna-se imperioso dar-se imediato cumprimento à decisão da Suprema Corte", ressaltavam. Do lado de fora da carceragem da Polícia Federal, onde desde 7 de abril de 2018 Lula cumpria sua condenação em segunda instância, uma multidão já se aglomerava desde cedo. Centenas de pessoas de diversas partes do país, petistas e militantes de esquerda —alguns acampados ali há 580 dias—, ansiavam pela promessa feita por Lula ainda no cárcere, em uma entrevista ao EL PAÍS e à Folha em abril. Na saída da prisão, afirmou ele, caminharia até a vigília que o saudou diariamente desde que foi preso e tomaria um gole de cachaça com seus fiéis apoiadores para brindar.
Ao lado de um palco montado ali mesmo na rua para o primeiro discurso do petista em liberdade, a espera já era organizada. Sentadas em cadeiras de plástico, a bancária Sandra Goes, 43 anos, e a funcionária de um supermercado, Lenir Riva, de 58, esperavam havia mais de duas horas a chegada de Lula da fila do gargarejo. Lenir queria uma selfie e já planejava até uma forma de chegar mais perto do ex-presidente. "Será que eu consigo pular essa grade?", brincava ela, apontando para a separação que isolava o palco. Já Sandra pretendia mesmo era escutar o discurso. "Quero muito ouvi-lo. A gente precisa dessa presença dele, do que ele tem a dizer para a militância sobre o que devemos fazer neste país para manter a esperança viva em um momento desses", explicava.
A saída de Lula do cárcere, onde ele entrou seis meses antes da eleição que alçou o ultradireitista Jair Bolsonaro (PSL) ao poder, representava para seus apoiadores não apenas a presença física de um líder, mas a expectativa de um rumo para um partido e para uma esquerda que nos últimos anos não conseguiu formar fortes lideranças capazes de renovação e que a menos de um ano das eleições municipais não conseguiu apontar claramente seus candidatos para as maiores prefeituras do país, a de São Paulo e a do Rio de Janeiro. Um PT que em pouco tempo viu crescer Bolsonaro, com um discurso radical de direita, apoio nas ruas e nas redes sociais antes visto apenas entre o próprio lulismo. Estava ali, representada na figura de um Lula livre, a esperança de uma organização que o ex-presidente tentou manter a partir da cadeia por meio de recados por escrito e das visitas estratégicas que recebia. Foi de lá que ele decidiu, por exemplo, o momento de se retirar da disputa à Presidência —ainda que há muito já fosse claro que sua condenação em segunda instância o impediria de disputar—. Também foi dali que decidiu que Fernando Haddad seria seu substituto e de onde traçou uma estratégia minuciosa de campanha que quase foi vitoriosa —Haddad perdeu para Bolsonaro no segundo turno, mas o PT conseguiu, em meio à onda conservadora, eleger a maior bancada da Câmara.
Foi também daquele prédio que ele elaborou seu plano de agora, o de retomar outra vez a liderança nas ruas do país, em uma oposição frontal a Bolsonaro. Após um período com a família, ele pretende sair pelo Brasil em mais uma de suas caravanas. Quer reorganizar as bases. E, assim, dar início à campanha de 2022, que, como sempre, começa mesmo nos pleitos municipais de dois anos antes —eleger prefeitos é eleger palanques viáveis, algo extremamente necessário diante de um PSL que ganhou força política e dinheiro para campanha, ainda que esteja em crise com sua principal estrela, o próprio presidente Bolsonaro. No caminho de Lula para esse plano, há ainda obstáculos legais e outros vários processos em curso contra ele. O imediato é a Lei da Ficha Limpa: o petista está livre por causa da decisão do Supremo, mas segue inelegível por ter condenação em duas instâncias no caso do triplex de Guarujá —daí que a pressão a partir de agora é para que STF julgue o caso que pode declarar o então juiz Sergio Moro parcial, o que anularia todas as decisões relacionadas.
A decisão do juiz Danilo Pereira Júnior, da 12 Vara Federal de Curitiba, foi feita pública às 16h15 desta sexta-feira. Ele determinava a "interrupção do cumprimento da pena privativa de liberdade" de Lula, com base na decisão tomada no dia anterior pelo STF. Do lado de dentro do prédio da PF, em uma antessala na recepção, parentes do ex-presidente, como a filha Lurian e um neto, esperavam aflitos a chegada dos advogados que acompanhariam o procedimento de soltura. Já do lado de fora, um cordão de militantes do Movimento dos Sem-Terra (MST) abria espaço para um pequeno corredor, por onde pouco mais de uma hora depois Lula passaria em direção ao palco, dando lugar a um empurra-empurra sufocante.
Acompanhado de Haddad e da presidenta do PT, Gleisi Hoffmann, ele subiu ao local e agradeceu nominalmente uma lista enorme de organizadores de sua vigília. "Não importa se estivesse chovendo, não importa se estivesse 40 graus, não importa se estivesse zero grau. Vocês eram o alimento da democracia de que eu precisava", afirmou o ex-presidente. Apresentou publicamente Rosângela da Silva, sua namorada, um romance iniciado dentro da carceragem de Curitiba, e anunciou que se casa em breve. E nos seus cerca de 20 minutos de fala, atacou primeiro a Operação Lava Jato e o "lado podre" do Estado que "trabalham e trabalharam para tentar criminalizar a esquerda, o PT, e o Lula". Mirou contra o Governo de seu opositor direitista, a quem acusou de "mentir pelo Twitter", e prometeu lutar para "melhorar a vida do brasileiro", que "está uma desgraça". Fez ainda críticas às políticas educacionais e à taxa de desemprego atual, dando um indício do caminho de seu discurso nos próximos meses. "Amanhã tem encontro no Sindicato dos Metalúrgicos e, depois, as portas do Brasil estarão abertas para que eu volte a percorrer esse país e discutir com o nosso povo uma saída", disse, confirmando os planos da nova caravana e também sua presença em São Bernardo do Campo, seu berço político na Grande São Paulo, neste sábado, onde deve ter novo evento público.
À militância, que o acompanhava atentamente, conseguiu apenas fazer um afago parcial, já que a multidão e o esquema de segurança montado pelos movimentos sociais o impediam de se aproximar da aglomeração. Após sua fala, desceu pela lateral do palco, onde funcionava uma das estruturas da vigília, com uma cozinha. Abraçou e beijou simpatizantes, que, emocionados, choravam. Recebeu um copo de vidro, com alguns dedos de uma cachaça produzida pelos membros do MST. Brindou com militantes e tomou um gole, passando adiante o copo, que ao final do frenesi ainda deitava sobre um balcão, como um troféu. "O Lula abraçou todo mundo. Chorou. Eu disse que o amava no ouvido dele", comemorava a petista Lúcia Fernandes, 58 anos, que estava ali no exato dia em que o ex-presidente foi preso.
- E ele tomou a cachaça que prometeu?
- Tomou! Olha ali! - diz ela, enquanto busca o copo
- Toma um gole, toma! Olha só, era o copo do Lula!
Bruno Boghossian: Debate sobre prisões no STF é marcado por distorção e terrorismo
Tribunal pode ser obrigado a revisitar prisão em segunda instância nos próximos anos
Ao dar o voto que fechou o placar contra a prisão após condenação em segunda instância, Dias Toffoli deixou uma porta aberta. O presidente do STF contou ter dito a senadores que, apesar de interpretações em sentido contrário, eles poderiam mudar a lei para permitir a execução antecipada das penas.
"Não vejo problema algum em alterar esse dispositivo", afirmou.
O Congresso já discute uma série de medidas que podem alterar o Código de Processo Penal para escrever claramente que um réu pode, sim, ser preso depois de condenação em segundo grau. Caso a lei mude, nenhum ministro do Supremo tem dúvidas de que precisará discutir se esse novo dispositivo estará de acordo com a Constituição.
Se a sessão desta quinta (7) foi vendida como episódio final de uma novela, é certo que o STF deve se preparar para uma série de remakes. As hesitações e gambiarras empregadas pelos ministros nos últimos anos transformaram o veto às prisões antes do esgotamento dos recursos em uma solução provisória.
O terreno de instabilidade foi criado pelo próprio tribunal, que mudou seu entendimento sobre o assunto pela primeira vez em 2009. Sete anos depois, sob clima de festa pelo avanço da Lava Jato, autorizou as prisões antecipadas. Nos últimos meses, os ministros se recusaram a revisitar o tema para fugir das contaminações provocadas pelas condenações do ex-presidente Lula.
A aparente fluidez alimenta a convicção de que as determinações da corte são escritas a lápis. Além do desejo do Congresso de mudar as regras, os ventos tendem a virar também quando a composição do plenário for alterada, nos próximos anos.
Até meados de 2021, dois ministros que votaram contra a prisão em segunda instância deixarão suas cadeiras. Os substitutos de Celso de Mello e Marco Aurélio, que devem ser indicados por Jair Bolsonaro, formarão novas maiorias de ocasião em torno do tema. O tribunal que deveria ser o dono da palavra final se tornou vítima de suas próprias vacilações.
Igor Gielow: Decisão amarra a Lava Jato e cria dilema para Lula Livre
Resta saber se o ex-presidente irá morder a isca do radicalismo jogada por Bolsonaro
Ao longo da discussão acerca da prisão em segunda instância, o número de beneficiados potenciais de uma mudança na jurisprudência variou. Chegou a 190 mil, para ser determinado em 4.895 pelo Conselho Nacional de Justiça.
Mas o fato é que todo o burburinho se deveu apenas a um desses condenados presos: Luiz Inácio Lula da Silva.
O ex-presidente nunca deixou o debate público brasileiro nesses 580 dias entre sua prisão em Curitiba e a decisão desta quinta (7) do Supremo Tribunal Federal.
Tentou forçar uma ilusória candidatura a presidente de forma a viabilizar o poste da vez, Fernando Haddad.
O fez com louvor: o petista chegou ao segundo turno contra Jair Bolsonaro (PSL) e não perdeu de forma acachapante.
Dada a licenciosidade das autoridades com as lideranças do PT, Lula teve amplo tempo para passar suas ordens adiante ao políticos travestidos de advogados de defesa.
Ainda assim, ao restaurar os quatro graus de jurisdição para determinar a prisão de um condenado, o Supremo reinsere Lula como pessoa física na arena política.
Por quanto tempo será, não se sabe, mas certamente o suficiente para embaralhar as cartas de um jogo hoje dominado por Bolsonaro.
A grande incógnita é saber se Lula reagirá com o instinto de quem passou um ano e meio confinado ou se ostentará credenciais de estrategista nessa sua nova fase.
Em público, seu entorno aposta na primeira opção, com a retomada de comícios e caravanas pelo país. Talvez funcione para angariar algum apoio ao PT, sigla que foi dizimada na eleição municipal de 2016 e não tem exatamente grandes expectativas à sua frente no ano que vem.
Mas também pode ser a mordida na minhoca do anzol que Bolsonaro já jogou na água após a aprovação do primeiro turno da reforma da Previdência na Câmara, em julho: a da radicalização.
O presidente recolheu-se ao seu terço fiel do eleitorado e apostou na imagem exacerbada que marcou sua candidatura à Presidência.
Com isso, nada melhor do que um Lula aos berros em palanques para justificar existencialmente o esquema de poder espelhado com sinal trocado que ora está no Planalto.
Apenas uma reedição improvável do “Lulinha paz e amor” de 2002 quebraria essa lógica, desenhada nas últimas semanas com as sugestões da família presidencial e aliados acerca de um suposto cenário de protestos à la Chile no Brasil.
Parece algo exagerado prever que Lula ainda mobilize gente desta forma, dada a anemia dos protestos recentes da esquerda, mas basta um incidente mais grave para que seja dado “casus belli” para uma escalada que envolva a mobilização das Forças Armadas, já insinuada por Bolsonaro.
É tudo o que os fardados da cúpula não querem, e que seria combatido pelo Supremo e pelo Legislativo, um caldo institucional tóxico.
Mesmo sem tal cenário, a dicotomia Lula/Bolsonaro é o que pior poderia acontecer ao centro político, que se debate entre os interesses pontuais de seus principais partidos e uma divisão incipiente entre os nomes do governador João Doria (PSDB-SP) e do apresentador Luciano Huck.
A decisão do Supremo tem outros efeitos, não menos importantes. Um já estava decantado nas decisões mais recentes da corte: é a provável pá de cal na Lava Jato, ao menos na forma com que a operação foi delineada desde seu começo, em 2014.
Primeiro, o Supremo mudou o entendimento com que delações premiadas são usadas nos processos. Agora, mata o pilar da prisão em segunda instância. O fez de forma dividida, mas deixando claro que a pressão da opinião pública sobre o tema arrefeceu.
A Lava Jato obviamente continuará, e o seu legado de intolerância com a corrupção não sairá tão cedo do imaginário público. Apesar de todos os excessos, a operação mudou a forma como políticos de má-fé agem no país.
A decisão desta quinta pode gerar uma sensação de retorno à impunidade, mas não é possível dizer agora que isso irá se materializar numa volta inexorável ao passado.
Para o Supremo, há um grande ônus na vitória de sua ala garantista, enfim colhendo a derrota dos métodos da dita República de Curitiba. Mudar de opinião três vezes em dez anos sobre algo tão básico no direito penal é característica de outro tipo de república, a das Bananas.
É impossível não apontar o casuísmo que acompanha o processo decisório do ente que supostamente garante a segurança jurídica no país.
Para bem ou para mal, contudo, é possível acreditar que o tema ainda voltará à baila num futuro próximo, dada a inconstância que marca a mais alta corte. O que é péssimo para sua vocação de poder moderador dos potenciais conflitos à frente.
Carlos Pereira: A janela de Toffoli
Avizinha-se assim uma janela de oportunidade para que Dias Toffoli possa vir a fazer História
Janelas de oportunidade que mudam o curso da História não se abrem todos os dias. O mais intrigante é que, mesmo sendo raras, a grande maioria dessas oportunidades tende a ser desperdiçada e sociedades parecem ficar aprisionadas a equilíbrios insatisfatórios.
Um elemento crucial e necessário para que janelas de oportunidade sejam efetivamente aproveitadas é a presença de uma liderança. Não me refiro necessariamente a lideranças políticas carismáticas, mas a líderes capazes de compreender a realidade do que se passa no País, galvanizar energias, superar problemas de coordenação e, acima de tudo, ter autoridade moral na proposição de soluções que visem a resolução de impasses políticos e institucionais.
Não muito tempo atrás, a grande maioria dos brasileiros acreditava que as elites políticas, burocráticas e empresariais sempre encontrariam maneiras de escapar de malfeitos. Entretanto, desde o julgamento do mensalão, vimos organizações de controle se fortalecerem e saírem do controle dos seus criadores (políticos), especialmente a partir de 2016 com o entendimento da maioria do Supremo Tribunal Federal (STF) de acatar a execução provisória da pena após a condenação em segunda instância e não somente após o trânsito em julgado. Ocorreu um alinhamento entre o comportamento dessas organizações de controle e a preferência da maioria da população de intolerância à corrupção e de combate à impunidade.
Diante da evidente polarização atual de preferências no plenário do Supremo em relação à interpretação constitucional da execução da pena, existe um risco real de reversão de expectativas. O que está em jogo é o dilema entre eficiência no combate à impunidade e à corrupção versus garantias a direitos individuais de condenados.
É possível analisar a interação estratégica entre os 11 membros da Suprema Corte diante dos seus comportamentos pregressos e/ou preferências já reveladas. Cada “jogador” possui pontos ideais em relação ao início da execução da pena do condenado: segunda instância representa o status quo, transitado em julgado e Superior Tribunal de Justiça (STJ). Assume-se que os ministros agem de forma racional e, portanto, maximizam ganhos quando a decisão da política em questão se aproxima do seu ponto de preferência e diminuem ganhos quando se distancia.
Embora ainda falte colher o voto de quatro ministros, é possível inferir a formação de dois blocos polares, com cinco ministros (Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Roberto Barroso, Luiz Fux e Carmem Lúcia) votando pela manutenção do status quo, segunda instância, e cinco ministros (Marco Aurélio, Rosa Weber, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Celso de Melo ) votando pela mudança da política de início do cumprimento da pena apenas após o trânsito em julgado.
O presidente do STF, Dias Toffoli, que terá a oportunidade de votar por último, já revelou informalmente uma posição intermediária, quando o condenado iniciaria o cumprimento da sua pena após condenação em terceiro grau (STJ). Esta posição mediana (pivô) não é a ideal para nenhum dos dois grupos polares, mas substancialmente melhor do que se alguma dessas posições polarizadas for perdedora. Diante do risco de derrota, é racional esperar a migração de votos de membros de um ou dos dois polos para a posição mediana. O plenário do STF também pode ter o entendimento de que algumas das posições já estariam contidas no voto mediano do Toffoli, configurando assim uma maioria.
Um novo equilíbrio, portanto, pode emergir dessa interação estratégica com a vitória da posição pivô. Avizinha-se assim uma janela de oportunidade para que Dias Toffoli possa vir a fazer História. Será que ele vai aproveitar?
Vera Magalhães: Com voto de Rosa, STF está prestes a rever prisão em 2ª instância
Ministra disse que a Constituição é taxativa ao definir que a presunção de inocência vale até o trânsito final em julgado
Rosa de Minerva. O voto da ministra era aguardado como o grande definidor da controversa, intrincada e novelesca questão do momento do cumprimento da pena de prisão no País. Isso porque, embora sempre tenha votado, no mérito, pela prisão após o trânsito final em julgado, nas últimas análises de casos concretos, como o habeas corpus de Lula em 2018, ela votara no sentido de acompanhar a maioria do colegiado e pela necessidade de se respeitar uma jurisprudência recém-firmada.
Senta que lá vem voto. A ministra se estendeu. Fez um voto pormenorizado, de mais de uma hora e meia, traçou uma cronologia na questão da segunda instância no STF voltando muitas décadas, falou da mais recente mudança de tese, a partir de um voto de Teori Zavascki, e lembrou da distinção que fez entre o julgamento de mérito e dos casos concretos.
Sem interpretação. Por fim, a ministra votou no sentido de que não há interpretação possível neste caso, porque a Constituição explicita o momento do cumprimento da pena. Afirmou que não cabem comparações com outros países, justamente porque nos ordenamentos jurídicos desses países a presunção da inocência não tem a mesma extensão do Brasil. Ela mostrou reconhecer o desejo da sociedade por efetividade da Justiça e fim da impunidade, mas afirmou que a Corte constitucional não pode ignorar a lei e a Carta para fazer a vontade da sociedade.
Com Toffoli. Diante do voto de Rosa, a decisão deverá ficar para o voto de desempate do presidente do STF, Dias Toffoli. Ele deverá decidir pelo trânsito final em julgado, como já se manifestou anteriormente. Resta saber se proporá uma saída intermediária, como já ensaiou no passado, pela qual a prisão se daria após o recurso especial ao STJ - algo que não conta com a simpatia do restante da Corte.
Com o Congresso. Diante da probabilidade de a prisão após segunda instância cair, deve começar uma campanha de movimentos de combate à corrupção para que o Congresso mude a Constituição para fixar a regra. Mas trata-se de uma pauta que não encontra adesão dos políticos, como se sabe.
Sai todo mundo? O STF deve decidir, ao proclamar o resultado do julgamento, o que só ocorrerá daqui a duas semanas, a forma de execução da decisão. O relator Marco Aurélio Mello defendeu um habeas corpus de ofício soltando todo mundo (algo que chegou a fazer por liminar, depois cassada por Toffoli, num recesso do Judiciário). Os demais ministros devem tentar aprovar uma saída mais gradual.
Bruno Boghossian: Mundo político refaz as contas com possível libertação de Lula
Dirigentes partidários temem que discurso de centro seja engolido por radicalização
Os caminhos que se abrem no Supremo para uma possível libertação de Lula acordaram até os políticos mais céticos em relação ao retorno do petista às ruas. Eles sabem que o ex-presidente ainda depende de um conjunto de decisões judiciais para recuperar e manter o direito de ser candidato, mas é consenso que o jogo partidário e eleitoral mudará consideravelmente.
Ainda que não possa voltar às urnas, o petista terá papel de relevo numa esquerda combalida. Na ponta direita furiosa e no desmilinguido centro político, também já existe gente refazendo as contas.
Uma eventual vitória de Lula nos tribunais deve dar fôlego à turma do PT que sustentou a campanha obstinada por sua libertação. Liderada por Gleisi Hoffmann, presidente da sigla, essa ala manteve o discurso quase como bandeira única e, agora, está disposta a colher os frutos.
Os adeptos da doutrina Lula Livre guardam mágoa de aliados que não trataram a defesa do petista como prioridade. Se o ex-presidente estiver disposto a buscar protagonismo num campo de esquerda ainda esvaziado, pode reeditar o choque interno que acabou isolando personagens como Ciro Gomes em 2018.
Na outra ponta do espectro, a direita bolsonarista não consegue disfarçar a satisfação de ver Lula nas ruas novamente.
Encarcerado e tratado como uma ameaça, ele rendeu impulso a Jair Bolsonaro para chegar ao Planalto. De volta ao jogo político, ajudará a aglutinar o eleitorado antipetista de modo contínuo.
A expectativa de reedição dessa polarização causa pânico a grupos políticos que buscaram o centro na última campanha presidencial e fracassaram. Para eles, se Lula e Bolsonaro se encontrarem como antípodas, não sobrará mais espaço.
Quem aposta em Luciano Huck, por exemplo, acha que o global, com jeito de bom moço, pode ser engolido num ambiente radicalizado. Restaria a João Doria gritar bordões antipetistas com mais vigor que Bolsonaro --embora muitos dirigentes duvidem que isso seja possível.
Eliane Brum: Lula livre, sim, mas sem fraudar a história
O PT não contribuirá com a criação de um futuro melhor se seu maior líder seguir insistindo em apagar a memória de Belo Monte
Luiz Inácio Lula da Silva, preso há mais de um ano, deve ser libertado. E isso provavelmente acontecerá, de um modo ou outro. Lula deve ser libertado porque o processo que o colocou na cadeia está povoado por abusos do poder judiciário e despovoado de provas. Como já escrevi neste espaço, a prisão de Lula não mostrou que até os poderosos são presos no Brasil, mas sim que até os poderosos podem ter seus direitos violados no Brasil. O que cada um acha sobre a culpa ou inocência de Lula não importa, o que importa são provas e o cumprimento do rito legal. É isso que nos protege a todos, é isso o que também separa a democracia da ditadura. É fundamental, porém, fazer uma distinção. Como qualquer brasileiro, Lula tem direito à justiça. Mas Lula não tem direito aos seus próprios fatos.
Mais perto da possível libertação, Lula já iniciou sua campanha num país dilacerado por ódios que seu partido também ajudou a produzir. Já anuncia o desejo de viajar pelo Brasil. É uma vontade legítima. Inclusive porque era ele o candidato em primeiro lugar nas pesquisas para a eleição de 2018 e foi impedido pelo judiciário, que decidiu mudar de forma arbitrária os rumos do país. O PT não deve nem pode ser riscado do mapa eleitoral e do debate político do Brasil, como querem alguns grupos. Quem decide se o partido pode representá-los são os eleitores.
O problema que se anuncia é a tentativa de recuperar o espaço perdido pelo partido apagando as contradições do PT no poder. E, principalmente, tentando remover – ou pelo menos contornar – a pedra no meio do caminho chamada Belo Monte. Não vai dar para apagar Belo Monte. Esta pedra é grande demais.
Belo Monte não é um erro, mas o que os povos do Xingu chamam, e isso desde o governo Lula, de “um crime contra a humanidade”. É também o que o Ministério Público Federal chama de “etnocídio”. E, mais recentemente, também de “ecocídio” e de “genocídio”. É ainda onde se desenha aquela que pode se tornar a maior tragédia da Amazônia brasileira: a morte da Volta Grande do Xingu, onde vivem os povos Juruna e Arara, além de ribeirinhos, pela administração predatória da água por Belo Monte.
O autoritarismo destrói um país. Por todos os motivos óbvios. E também porque interrompe o debate público, assim como os movimentos em curso. Em cotidiano de exceção, como já vive o Brasil, as diferenças entre os projetos políticos são borradas em nome do objetivo maior, o de impedir a completa destruição da democracia. O processo de aprimoramento das instituições e de melhoria da sociedade é suspenso e toda a energia é consumida no gesto de bloquear a acelerada corrosão dos direitos.
O Brasil é um presente constantemente interrompido para que as elites econômicas e políticas (e às vezes também intelectuais) possam manter – ou recolocar – o passado. Em geral, o fazem aliando-se aos novos atores que nada querem mudar, apenas ter acesso ao restrito grupo dos que detêm os privilégios de classe, de raça e de gênero. Entre os novos atores deste momento estão, por exemplo, as lideranças evangélicas fundamentalistas.
O autoritarismo mata a potência de uma geração, obrigando-a apenas a reagir
A constante interrupção leva à perda de toda a energia de uma geração de brasileiros na criação do futuro. Barra também o protagonismo de grupos historicamente silenciados que tinham passado a disputar o presente, caso dos negros nos últimos anos. É assim que se mata a potência de um país. Obrigando as pessoas a esgotar suas forças no gesto de fazer barreira para perder menos, sem espaço para criar gestos para avançar mais. É o que o Brasil e outros países governados por déspotas eleitos vivem hoje.
Se o PT foi violentamente atingido pelas manobras autoritárias de forças com as quais fez alianças no passado e pode voltar a fazer nas próximas eleições, como setores do MDB, é também evidente que a truculência do bolsonarismo no poder abriu uma possibilidade para, mais uma vez, o partido operar para apagar suas digitais em crimes cometidos durante os 13 anos no poder. Pessoas que estiveram em governos do PT ou os apoiaram ativamente, nos últimos anos tiveram que encarar a dura realidade de um partido que se corrompeu. Mais recentemente, porém, parecem ter retornado ao estado de autoilusão: os abusos cometidos pelo judiciário na prisão de Lula deu um forte motivo para voltar a se sentirem no lado certo da história e promover o esquecimento dos atos arbitrários do PT. Mais uma vez se ouve de parte da esquerda que não é hora de criticar o PT. Nunca foi hora, como sabemos.
É da essência do maniqueísmo apagar as complexidades. Num país polarizado, o maniqueísmo serve aos dois polos. Ou é todo o mal, ou é todo o bem. A adesão à política pela fé, na qual os eleitores se comportam como crentes, mesmo quando ateus, atinge todo o espectro ideológico do Brasil. Da direita a esquerda.
A fragilidade da democracia brasileira é causada, em grande parte, pela impunidade dos crimes dos agentes de Estado na ditadura. Deste apagamento da memória nasceu uma democracia com alma deformada. Um dos principais objetivos dos grupos no poder, em especial o dos generais, é apagar suas digitais das violências cometidas durante o regime militar (1964-1985). Jair Bolsonaro tem se esforçado para torcer os fatos e reformular o passado ao seu gosto, convertendo torturadores em heróis e violências de Estado em atos de heroísmo. Em geral, governos autoritários investem no apagamento da história como primeiro ato, colocando no lugar sua mitologia. Os estados totalitários do século 20 são aulas completas sobre essa falsificação. É por compreender a extensão dessa violência que parcelas da sociedade brasileira têm se mobilizado para impedir a destruição da história da ditadura.
Já deveríamos ter compreendido o gravíssimo equívoco representado por compactuar com apagamentos em nome de oportunismos, ou, se preferirem palavras mais palatáveis, do pragmatismo político, da estratégia eleitoral, de governabilidades ou como queiram chamar. Já deveríamos ter aprendido que omissões e silenciamentos nos levam a lugares ainda mais sombrios. Deveríamos, mas tudo indica que não.
É triste um país em que os homens públicos querem ser “mitos” – e não homens públicos
Nas entrevistas que Lula tem dado para preparar sua possível saída da prisão, ele deixa claro que seguirá apostando no fortalecimento do próprio mito, inflado agora por uma injustiça. Tem dito a aliados que pretende rodar o Brasil e assumir o papel de “fio condutor da pacificação nacional”. A “pacificação”, palavra que também foi usada por Michel Temer (MDB) no início de seu governo, é palavra recorrente na história do Brasil. Como já testemunhamos, ela tem servido para apagar assimetrias, desigualdades raciais e iniquidades. É a proposta de conciliação sem justiça social. Uma das tragédias do Brasil é a obsessão por “mitos” quando o que precisamos tanto é de um homem ou uma mulher imbuído de espírito público suficiente para colocar o país acima de suas ambições pessoais.
Quando Lula deixar a prisão, estará num Brasil diferente. Com a crise climática se agravando em curso acelerado, a Amazônia vem ganhando rapidamente a centralidade que sempre deveria ter ocupado. Sem floresta em pé – e por floresta se compreende não só árvores, mas todas as vidas, porque tudo ali funciona de forma conectada – não há possibilidade de enfrentar o superaquecimento global. Neste contexto, a desastrosa política dos governos do PT para a Amazônia ficarão mais – e não menos evidentes. Esta política é marcada especialmente por grandes “monumentos à insanidade”, como costuma dizer Antonia Melo, a maior liderança popular do Médio Xingu: as hidrelétricas de Belo Monte, no rio Xingu, Santo Antonio e Jirau, no rio Madeira, e Teles Pires, no rio de mesmo nome.
Belo Monte, o símbolo maior desta política que violou sistematicamente os direitos dos povos da floresta, está programada para ser concluída neste ano. As consequências de sua construção apenas começaram. O pior ainda pode estar por vir, caso o Ministério Público Federal não consiga impedir que a Norte Energia S.A, a empresa concessionária, execute uma administração da água que poderá condenar a Volta Grande do Xingu, onde vivem os povos Juruna e Arara, à morte. Outros povos da região atingida por Belo Monte, os Parakanã, Araweté e Assurini, de recente contato, publicaram um documento em 22 de outubro “exigindo a suspensão da liberação da Usina Hidrelétrica de Belo Monte e um pedido formal de desculpas pelos problemas já causados às etnias”.
Como Lula trata Belo Monte, uma obra que nem a ditadura conseguiu construir devido à resistência dos movimentos sociais e dos povos do Xingu, mas o PT sim, porque traiu seus aliados? Em entrevista à BBC Brasil, no final de agosto, Lula declarou: “Tenho orgulho de ter feito Belo Monte”. E, em outro ponto: “Não tente culpar a Dilma pelo que está ocorrendo em Belo Monte hoje. Cada um de nós é responsável pelo período que governou o país”. Em outubro, numa entrevista ao UOL, Lula afirmou aos jornalistas Flávio Costa e Leonardo Sakamoto: “Eu não sei o que vou fazer quando eu sair daqui, mas eu tinha vontade de voltar ao Xingu, a Belo Monte, eu não conheci Belo Monte. Eu fui lá fazer um debate, mostrar que seria um bem para o desenvolvimento. Se você tem, depois de anos, a informação de que a coisa está desandando lá em Altamira, eu disse isso numa entrevista, é preciso ver o que está acontecendo agora. Se estas pessoas estão cumprindo o acordo feito em 2009, se as pessoas estão cumprindo todas as determinações. Então o que proponho para você é que poderia, até para me ajudar, a procurar os ministros que fizeram o acordo na época e pedir a eles irem junto com você para lá para saber o que não está sendo cumprido”.
Sério. Lula disse isso mesmo. Não há menção de que tenha ficado ao menos levemente ruborizado.
Lula pode começar seu programa de estudos sobre Belo Monte lendo as 25 ações movidas pelo Ministério Público Federal
Caso sua saída da prisão ainda demore um pouco, Lula pode organizar um programa de estudos para se aprofundar sobre as violações ocorridas na construção de Belo Monte durante os governos do PT. Pode começar pelo próprio leilão, arquitetado por ele com a ajuda do amigo e ex-ministro da ditadura Delfim Netto. Ganhou o consórcio formado às pressas, para simular uma disputa, com pequenas empreiteiras sem nenhuma experiência em projetos deste porte. Em seguida, as grandes empreiteiras – as que preferiram não disputar (Odebrecht e Camargo Correa) e a que disputou e perdeu (Andrade Gutierrez) – formaram o Consórcio Construtor Belo Monte. As pequenas também migrariam para este consórcio na sequência. É na construção que está os lucros – e também a propina. Esta parte da história está sendo investigada e documentada pela Operação Lava Jato.
Em seguida, Lula pode ler as 25 ações movidas pelo Ministério Público Federal denunciando todas as violações ocorridas para materializar Belo Monte no Xingu, algumas delas durante o seu próprio governo. Pode seguir seu plano de estudos lendo o livro “A expulsão de ribeirinhos em Belo Monte”, organizado e publicado pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Em 449 páginas, cientistas e pesquisadores de diferentes áreas documentam as atrocidades cometidas e as consequências que vão desde a ameaça de extinção de espécies à destruição da saúde mental das pessoas que foram expulsas de suas terras, ilhas e casas.
Terminado este livro, o presidente que materializou Belo Monte pode aprofundar seu conhecimento sobre o próprio governo e o de sua sucessora, Dilma Rousseff, estudando o Dossiê produzido pelo Instituto Socioambiental, no qual estão narrados como os povos indígenas foram corrompidos pela Norte Energia SA com uma “espécie de mesada de 30 mil reais em mercadorias”, fazendo com que mesmo indígenas de recente contato passassem a comer salgadinhos e refrigerantes em vez de alimentos da sua roça e peixes do rio. Poderá ler inclusive documentos com timbre do Ministério de Saúde do governo de Dilma Rousseff que dizem o seguinte:
“A partir de setembro de 2010 [último ano do governo Lula], com a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, os indígenas passaram a receber cestas de alimentos, composta por alimentos não perecíveis e industrializados. Com isso os indígenas deixaram de fazer suas roças, de plantar e produzir seus próprios alimentos. Porém, em setembro de 2012 [primeiro mandato de Dilma Rousseff], tal ‘benefício’ foi cortado, os indígenas ficaram sem o fornecimento de alimentos e já não tinham mais roças para colher o que comer, o que levou ao aumento do número de casos de crianças com Peso Baixo ou Peso Muito Baixo Para a Idade, chegando a 97 casos ou 14,3%”.
Em outro ponto do documento, o aumento dos casos de “doença diarreica aguda” em 2010 é relacionado à atuação da Norte Energia nas aldeias:
“Em 2010 registramos um aumento considerável, já que numa população de 557 crianças menores de 5 anos ocorreram 878 casos, o equivalente a 157% dessa população ou 1.576,3 para cada 1.000 crianças. (…) Mudanças nos hábitos alimentares com a introdução de alimentos industrializados oriundos de recursos financeiros das condicionantes para construção da hidrelétrica de Belo Monte é outro fator contribuinte para o alto índice existente”.
A desnutrição infantil nas aldeias da região, conforme dados do dossiê, aumentou 127% entre 2010 e 2012. Um quarto das crianças estava então desnutrida. No mesmo período, ainda segundo o dossiê, o atendimento de saúde a indígenas cresceu 2.000% (dois mil por cento) nas cidades do raio de impacto de Belo Monte. A situação é tão aterradora que, em 2014 [ano da eleição de Dilma para o segundo mandato], técnicos da Funai recomendaram a aquisição de cestas básicas para enfrentar a vulnerabilidade alimentar das comunidades. Dito de outro modo: cestas básicas para impedir que indígenas, que antes de Belo Monte tinham autonomia alimentar, morressem de fome ou de doenças causadas pelo consumo repentino e indiscriminado de produtos industrializados, assim como pela interrupção do plantio, pesca e coleta de alimentos, causado pelo ingresso dos mesmo produtos.
Os índices de exploração ilegal de madeira dispararam na área de influência da obra. Na Terra Indígena Cachoeira Seca, uma das afetadas pela usina, foram extraídos 200.000 metros cúbicos de madeira só em 2014 [governo de Dilma Rousseff]. Essa quantidade é suficiente para encher mais de 13.000 caminhões madeireiros. Em 2013, a TI Cachoeira Seca foi a mais desmatada do Brasil. (leia mais aqui).
Uma indígena do povo Araweté disse então ao antropólogo Guilherme Heurich: “As mercadorias são a contrapartida de nossa morte futura”.
Onde estava a Funai naquele momento? Ah, sim. Tinha sido convenientemente enfraquecida na região pelo governo do PT, com fechamento de postos justamente quando era mais necessária.
Na construção de Belo Monte, os governos do PT converteram povos da floresta em pobres urbanos e enviaram a Força Nacional para reprimir greves de trabalhadores
Como Lula está preocupado com a obra que impôs aos povos de Altamira e do Xingu, ele também pode ler os testemunhos dos ribeirinhos constrangidos a assinar com o dedo papéis que não eram capazes de ler, papéis que os condenavam a perder tudo. Quando milhares foram submetidos à “remoção compulsória”, não havia nenhuma assistência jurídica disponível para a população atingida, parte dela analfabeta.
Lula pode ainda refletir sobre como os governos do Partido dos Trabalhadores colocaram a Força Nacional para reprimir as greves dos... trabalhadores. Neste caso, os operários da usina e também as manifestações dos atingidos. Quem sabe Lula siga adiante e investigue como foi possível que a Agência Brasileira de Investigação (Abin) tenha infiltrado, em 2013, um espião no movimento social Xingu Vivo Para Sempre. E, se tiver fôlego, pode rememorar a acidentada evolução das licenças de Belo Monte no Ibama durante os governos do PT, com algumas demissões escandalosas de presidentes que se negaram a assinar permissões inaceitáveis.
A obra é vasta. É impossível se aprofundar na destruição promovida pela “grande obra do PAC” sem acompanhar a explosão da violência urbana provocada por Belo Monte, que transformou Altamira na cidade mais violenta da Amazônia. Assim como a conexão desta violência com o segundo massacre carcerário da história do Brasil, ocorrido em julho deste ano, em que 58 pessoas foram decapitadas ou queimadas vivas, e outras quatro foram executadas no percurso da transferência. É essencial conhecer os efeitos de uma rotina de balas e de mortes sobre as crianças dos “Reassentamentos Urbanos Coletivos”, os bairros construídos pela Norte Energia para empilhar os expulsos por Belo Monte. Há mais, muito mais. Dá para ocupar anos de prisão com horrores.
E então, talvez, Lula possa compreender a frase dita por Dom Erwin Kräutler, bispo emérito do Xingu, em 2012: “Lula e Dilma passarão para a história como predadores da Amazônia”.
A exploração predatória da Amazônia não é ruptura, é continuidade
O Brasil recente pode ser contado por rupturas. Mas pode ser contado também por pelo menos uma continuidade: a exploração predatória da Amazônia como política de Estado. Esta era a política dos governos da ditadura militar. E seguiu sendo a política dos governos da democracia, apesar dos direitos dos povos indígenas garantidos pela Constituição de 1988. Há semelhanças entre a política para a Amazônia desenvolvida pela ditadura e a política para a Amazônia implementada pelos governos do PT – de Lula, acelerada a partir da saída de Marina Silva do governo, a Dilma.
Com Bolsonaro, a exploração predatória atingiu níveis incomparáveis. Em velocidade inédita, ela é executada pela estratégia de desproteção da floresta e pela recusa à obrigação constitucional de demarcar as terras indígenas. O bolsonarismo tenta desfazer inclusive o que foi feito de positivo pelos governos anteriores. O resultado já pode ser visto antes mesmo do final do primeiro ano de governo, com a explosão do desmatamento e dos incêndios que assombraram o mundo.
Sobre a Amazônia, parece não haver polarização. Estão todos afinados. Dilma inaugurou Belo Monte explodindo de orgulho pouco antes do impeachment, Bolsonaro prometeu abrilhantar a cerimônia em que será ligada a última turbina, os militares de antes e os de agora invocam a fake news da ameaça à soberania nacional para seguir explorando a floresta e, apenas algumas semanas atrás, Lula declarou-se orgulhoso do que os moradores do Xingu chamam de Belo Monstro.
A Lava Jato tem muitos significados. Sempre critiquei seus flagrantes abusos, assim como o comportamento inaceitável do então juiz Sergio Moro. Ele e o procurador Deltan Dallagnol são os maiores inimigos da Lava Jato. Por conta de sua falta de limites e da sua vaidade continental, comprometeram também o trabalho dos procuradores sérios da Lava Jato, que desnudaram como funcionava o esquema de corrupção entre partidos e empreiteiras no país e botaram na cadeia milionários que até então tinham a impunidade como direito de classe. Entre os trabalhos sérios em curso está o desvendamento do esquema de corrupção que garantiu a construção de Belo Monte contra todas as violências visíveis a olho nu. Esta violação do Estado de direito é definida por Thais Santi, procuradora federal em Altamira, de “o mundo do tudo é possível”.
Lula ironiza quem pede a ele e ao PT autocrítica. Acha que não deve nenhuma explicação a quem o colocou no poder pelo voto acreditando no discurso da ética feito pelo partido desde a sua formação. Devemos entender então que o projeto que se mostrou em toda a sua imensa destruição em Belo Monte segue sendo a proposta do partido para a Amazônia. Se Lula almeja se alçar a “pacificador” do Brasil, deve ter uma frase em mente: “Se a paz não for para todos, não será para ninguém”.
Não haverá paz na Amazônia sem justiça. Não permitiremos o apagamento da memória. Não esqueceremos. E não deixaremos esquecer.
*|Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Brasil, Construtor de Ruínas, Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, meus desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum/ Instagram: brumelianebrum
Bernardo Mello Franco: O Supremo na mira das milícias virtuais
O STF voltou à mira das milícias virtuais. Agora a pressão é de caminhoneiros bolsonaristas, que ameaçam invadir a Corte se não gostarem do resultado de um julgamento
O ministro Marco Aurélio Mello tocou no assunto ao seu estilo: com ironia. Ao iniciar o voto de ontem, ele mencionou os vídeos em que caminhoneiros bolsonaristas ameaçam invadir o STF.
“Recebi no WhatsApp que se estaria reforçando a rampa aqui do Supremo, porque teríamos caminhão subindo...”, disse, com um sorriso no rosto.
Em tom mais grave, outros ministros também reclamaram do bombardeio virtual dos últimos dias. É uma campanha orquestrada, com métodos testados na disputa eleitoral de 2018.
O decano Celso de Mello identificou, nas novas ameaças à Corte, a “atuação sinistra de delinquentes que vivem da atmosfera sombria e covarde do submundo digital”. Acrescentou que esses grupos perseguem “um estranho e perigoso projeto de poder”, incompatível com o regime democrático.
Há três décadas no Supremo, o ministro disse que o Brasil passa por um momento “extremamente delicado”, em que é assombrado por “espectros ameaçadores, surtos autoritários e manifestações de grave intolerância que dividem a sociedade civil”. Não foi a primeira vez que ele alertou para tentativas de intimidação do Judiciário na “nova era”.
A nova onda de pressões tenta emparedar os ministros contrários à prisão de réus condenados em segunda instância. Isso não impediu que os favoráveis à regra atual também protestassem contra a agressividade dos ataques.
Para Alexandre de Moraes , o STF tem sido alvo de um bombardeio que mistura ameaças, discursos de ódio e fake news. Ele reclamou de uma “pregação fundamentalista” que prevê o apocalipse antes de julgamentos importantes. “De cada decisão judicial, dependeria o sucesso ou a ruína da nação”, disse.
A ofensiva dos caminhoneiros contra o Supremo é liderada por Ramiro Cruz Júnior, que acusa o tribunal de tentar “soltar bandidos no atacado”. Ele ostenta proximidade com a família Bolsonaro e tentou se eleger deputado pelo PSL. Foi recebido pelo presidente em 17 de abril, segundo registros oficiais do Planalto.