STF
Merval Pereira: Ponto final
Poder Moderador só existiu na Constituição de 1824 e restou superado com Constituição Republicana, diz Barroso
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luis Roberto Barroso deu ontem o primeiro pronunciamento oficial da Corte negando a função de Poder Moderador das Forças Armadas. Ao não dar seguimento a mandado de injunção que pedia a regulamentação do artigo 142 da Constituição, utilizado por seguidores de Bolsonaro para justificar uma eventual intervenção militar em caso de ameaça à democracia, o ministro Barroso aproveitou para reforçar formalmente o que já havia sido dito por organizações da sociedade civil, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), e pelo Congresso.
Agindo dessa maneira, Barroso replicou a atitude do juiz John Marshall, da Suprema Corte dos Estados Unidos, o primeiro a definir, em 1803, a capacidade da Suprema Corte de fazer o controle constitucional das leis, no caso mais famoso do constitucionalismo mundial.
Em uma discussão sobre a nomeação de um juiz feita pelo presidente anterior, o juiz Marshal decidiu que a lei em que se baseava a nomeação era inconstitucional e, portanto, ele não poderia ser nomeado. Ao mesmo tempo em que afirmava o poder da Suprema Corte de determinar a constitucionalidade das leis, que até aquele momento não tinha esse papel, não criava um conflito entre Poderes.
Aqui também, ao definir que o artigo 142 não requer regulamentação, Barroso formalizou um entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o tema, encerrando a discussão. Barroso marca posição referindo-se ironicamente a um “terraplanismo constitucional” dos que interpretam a Constituição erroneamente, e afirma que qualquer tentativa de usar medidas extraordinárias sem seguir os trâmites constitucionais configura crime de responsabilidade.
“Nos quase 30 anos de democracia no Brasil, sob a Constituição de 1988, as Forças Armadas têm cumprido o seu papel constitucional de maneira exemplar: profissionais, patrióticas e institucionais. Presta um desserviço ao país quem procura atirá-las no varejo da política”, afirmou Barroso.
Na sua decisão, ele ressalta que “o Poder Moderador só existiu na Constituição do Império de 1824 e restou superado com o advento da Constituição Republicana de 1891. Na prática, era um resquício do absolutismo, dando ao Imperador uma posição hegemônica dentro do arranjo institucional vigente. Nas democracias não há tutores”.
Para Barroso, “nenhum elemento de interpretação – literal, histórico, sistemático ou teleológico – autoriza dar ao artigo 142 da Constituição o sentido de que as Forças Armadas teriam uma posição moderadora hegemônica. Interpretações que liguem as Forças Armadas “à quebra da institucionalidade, à interferência política e ao golpismo chegam a ser ofensivas”, diz Barroso.
Depois de fazer um apanhado histórico sobre as diversas constituições do Brasil, desde a de 1824 que definiu o papel moderador do Imperador, até a de 1988, Barroso define que “finalmente o Brasil fez sua transição para um Estado Democrático de Direito. Nessa medida, submeteu o poder militar ao poder civil, e todos os Poderes à Constituição”.
Barroso lembra que, desde então, “passaram-se mais de 30 anos, dois impeachments presidenciais, uma intervenção federal, inúmeras investigações criminais contra altas autoridades (inclusive contra Presidentes da República), sem que se tenha cogitado jamais da utilização das Forças Armadas ou de um inexistente poder moderador”.
Todas as crises institucionais experimentadas pelo país, ao longo dos governos democráticos anteriores foram solucionadas sem rupturas constitucionais e com respeito ao papel de cada instituição – e “não se pode afirmar que foram pouco relevantes”, afirma Barroso. “Portanto, a menos que se pretenda postular uma interpretação retrospectiva da Constituição de 1988 à luz da Constituição do Império, retroceder mais de 200 anos na história nacional e rejeitar a transição democrática, não há que se falar em poder moderador das Forças Armadas”.
Míriam Leitão: Bolsonaro divulga falsa interpretação de decisão do STF sobre a pandemia
É falsa a versão de que o STF afastou o presidente do combate à pandemia. Jair Bolsonaro tem repetido essa interpretação distorcida sobre a decisão do Supremo, que definiu o papel de cada ente federativo. O presidente tem responsabilidade no combate à crise sanitária, mas não está cumprindo.
O Supremo, consultado por estados e municípios, esclareceu que a Constituição diz com todas as letras que a Saúde é um direito de todos e uma responsabilidade compartilhada entre União, estados e municípios. Cada um deles tem um papel a cumprir. A corte definiu que as decisões cotidianas, como o funcionamento do comércio, se dão em nível local. Mas isso não exime a União e o presidente de suas obrigações, obviamente.
Na sua conta no Twitter, o presidente escreveu esta semana: “Lembro à Nação que, por decisão do STF, as ações de combate à pandemia (fechamento do comércio e quarentena, p.ex.) ficaram sob total responsabilidade dos Governadores e dos Prefeitos.” Logo depois, saiu uma mensagem no Twitter, espalhada por robôs: “só para lembrar: STF afastou Bolsonaro do controle da Covid, dando poder a governadores e prefeitos.” Foi tão imediata a transmissão dessa mensagem que confirmou como funciona a comunicação do presidente nas redes, impulsionada pelo gabinete do ódio.
O conteúdo também é falso. O STF não afastou o presidente do combate à pandemia. O Supremo estabeleceu os limites da responsabilidade compartilhada entre União, estados e municípios, porque assim estabelece a Constituição.
Toda a preocupação do presidente, desde o início da crise sanitária, é saber como a atuação dele vai ser interpretada durante a campanha de 2022. Jair Bolsonaro fala isso abertamente. Na segunda-feira ele tratou como o maior problema do país nesse momento as manifestações contra o seu governo.
A situação é muito grave para ser tratada assim. É evidente que o maior problema atual é a pandemia, que já matou mais de 38 mil pessoas até aqui.
O esforço inicial do presidente foi para jogar o custo da crise econômica em cima de governadores e prefeitos. Agora o foco é distorcer a decisão do STF. A realidade é que a situação seria muito pior sem as medidas de restrição tomadas por governadores e prefeitos.
O STF não afastou o presidente das responsabilidades na Saúde, mas ele continua se omitindo o tempo todo. Bolsonaro é o presidente de uma nação que enfrenta uma crise grave, com esse grau de letalidade. Ele foge das suas obrigações de presidente. Passa o tempo todo administrando a versão dos fatos, para que possa usá-la eleitoralmente em 2022. É só com isso que se preocupa Jair Bolsonaro. Isso é impressionante. A situação é grave demais para ser tratada com essa leviandade.
Na terça-feira, o presidente chegou a dizer algo extremamente estapafúrdio. Bolsonaro falou que ninguém no Brasil morreu por falta de respirador ou de leito de UTI, e que no futuro se descobrirá que alguns morreram por não receberem hidroxicloroquina. Ele continua obcecado, incapaz de ver a realidade. É evidente que pessoas morreram por falta de UTI e de respiradores, como mostram os veículos de comunicação. Todos vimos. De novo, o presidente constrói uma versão falsa dos fatos.
Bernardo Mello Franco: O ovo da serpente
Quando um general tentou emparedar o STF às vésperas da eleição, Celso de Mello lembrou a metáfora do ovo da serpente. Agora ele atualizou o alerta: o ovo “parece prestes a eclodir”
Quando o general Villas Bôas tentou emparedar o Supremo às vésperas da eleição presidencial, Celso de Mello foi o único ministro a protestar. Não é coincidência que ele seja, agora, a principal voz contra o cerco bolsonarista à Corte.
Em abril de 2018, o então comandante do Exército disparou um tuíte em tom de ameaça. Insinuou uma reação armada caso o tribunal concedesse habeas corpus a um pré-candidato ao Planalto.
O decano se levantou contra a interferência indevida. “Insurgências de de natureza pretoriana, à semelhança da ideia metafórica do ovo da serpente, descaracterizam a legitimidade do poder civil instituído e fragilizam as instituições democráticas”, afirmou.
Contra o voto de Celso, o Supremo negou o habeas corpus. A decisão satisfez o general e facilitou a eleição do candidato preferido dos militares.
Dois anos depois, o decano voltou a usar a metáfora sobre a ascensão do nazismo. Em mensagem privada aos colegas, ele advertiu que o ovo da serpente “parece estar prestes a eclodir no Brasil”. “É preciso resistir à destruição da ordem democrática”, escreveu.
O ministro advertiu que “intervenção militar, como pretendida por bolsonaristas e outras lideranças autocráticas que desprezam a liberdade e odeiam a democracia, nada mais significa, na novilíngua bolsonarista, senão a instauração, no Brasil, de uma desprezível e abjeta ditadura militar”.
Celso encerrou o alerta com quatro pontos de exclamação, mas ainda há quem finja que não ouviu.
Em 1999, o então deputado Jair Bolsonaro revelou seu plano para o Brasil: “Só vai mudar, infelizmente, quando partirmos para uma guerra civil aqui dentro. E fazendo o trabalho que o regime militar não fez. Matando uns 30 mil (…) Se vai morrer alguns inocentes? Tudo bem, tudo quanto é guerra morre inocente”.
Ontem o país ultrapassou as 30 mil mortes pelo coronavírus. Horas antes, o capitão declarou: “Eu lamento todos os mortos, mas é o destino de todo mundo”.
Marco Aurélio Nogueira: Pessimismo paralisante da sociedade civil se rompeu
As ruas não são mais território exclusivo dos apoiadores do presidente. As manifestações do último domingo, puxadas por torcidas organizadas de futebol, a começar da Gaviões da Fiel, inauguraram uma nova fase na vida política nacional. Representam a ampliação da resistência ao bolsonarismo e do isolamento do presidente, que se vê cada vez mais enfurnado em Brasília.
As manifestações não tiveram densidade de massa. O isolamento social impediu. A batalha é desigual, porque os negacionistas não conhecem barreiras sanitárias e contam com o apoio simbólico do governo, recursos logísticos e mensagens do gabinete do ódio.
Paralelamente, passaram a circular manifestos endossados por centenas de milhares de cidadãos, intelectuais e artistas. Diferentes setores da sociedade civil somam sua voz à dos ministros do STF, os grandes jornais estampam diariamente sua indignação, surgem movimentos inéditos de aproximação entre partidos até há pouco separados por divergências complicadas. Tudo mostra que o diálogo e a reunião dos democratas parecem ter encontrado um desaguadouro promissor.
O quadro ainda é impreciso. Não há nele uma via de mão única. O bolsonarismo continua vivo. Bem ou mal, ocupa o poder federal, onde acamparam segmentos das Forças Armadas que lhe têm fornecido respaldo e batem continência para o capitão. O governo tem buscado erguer no Congresso Nacional uma base de sustentação, preocupado com sua sobrevivência. O apetite guloso do Centrão, com seus próceres desprovidos de maior dignidade ou respeito constitucional, alimenta o governo mas também o impede de funcionar.
Há muito combustível para a expansão do protesto cívico e o reagrupamento dos democratas.
Começou a se romper o pessimismo paralisante em que a sociedade civil se encontrava. O cerco ao autoritarismo avança. Não é um trabalho simples. Ele requer combatividade e paciência, metas claras e apoios, ligação entre a defesa da vida, a recuperação da economia e o reforço da democracia.
*É professor titular de teoria política da Unesp
Eliane Cantanhêde: A boa notícia
Há resistência, senso de dever e responsabilidade. O Brasil nunca será uma Venezuela
Para quem imagina, ou teme, que tudo está perdido, eis a boa notícia: as instituições e os setores responsáveis da sociedade se movem contra a escalada que vai de impropérios imbecis a ameaças perigosas. Não há reuniões secretas pela madrugada, apenas a velha e boa troca de impressões, informações e perplexidade, à luz do dia. Em plena pandemia, todos conversam freneticamente e há uma saudável resistência democrática no País.
O primeiro passo é contar a verdade, desmontar a versão de que o presidente Jair Bolsonaro é a vítima e que os palavrões e absurdos de 22 de abril foram “desabafo” de um homem perseguido com sua família, amigos e aliados. Afinal, quem ameaça quem? Quem ataca e quem é vítima? Quem precisa de um “basta, pô!”? Certamente, quem faz discurso em atos que se apropriam das cores e símbolos nacionais, com o QG do Exército ao fundo, para atacar a democracia e a ordem constituída.
E não é de hoje. Quem disse que “basta um soldado e um cabo para fechar o Supremo”? Faz apologia de “rupturas”? Comanda o “gabinete de ódio”? Insiste em intervir em PF, Coaf, Receita? Desafia até protocolos universais de saúde em atos contra o Legislativo e o Judiciário?
O senso de dever e responsabilidade uniu os desiguais do Supremo, pôs as cúpulas do Congresso e de partidos de barbas de molho, mexeu com o instinto democrático da mídia, reanimou velhas associações de belo passado e presente inerte e a até a discreta Sociedade Brasileira de Psiquiatria deu um grito pela democracia. A Igreja Católica anda mais quieta do que a história exige, mas as entidades judaicas acusam indignação com o uso de Israel em vão. Cresce a consciência do que se passa no País, cresce a resistência.
As Forças Armadas não passam ao largo disso. Nelas pululam dúvidas, discordâncias, o temor de quebra de uma imagem exemplar. Em nome do que? Do falso dilema entre defender Bolsonaro dos próprios fantasmas ou ser devoradas por dragões comunistas imaginários que estão sob cada cama, ministério, instituição? Louve-se o silêncio dos comandantes de Exército, Marinha e Aeronáutica. O general Augusto Heleno tentou consertar sua frase sobre “consequências imprevisíveis” e o vice Hamilton Mourão descartou golpes e aventuras militares com desprezo, ironia.
No artigo “O militar surtou”, no Estadão, Manuel Domingos Neto, ex-vice-presidente do CNPq e ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED), lembra a presença decisiva das FA na engenharia, topografia, desenho, infraestrutura, artes, ciência, história, matemática, veterinária, logística, aeronáutica. E provoca: para hoje os militares se imiscuírem com terraplanistas, criacionistas, inimigos da razão? Contra a ciência e as pesquisas? Artigos assim servem de boia para militares que querem distância de fake news e golpes.
O mais objetivamente grave da reunião de 22 de abril foi o presidente encarnar Hugo Chávez: “Eu quero todo mundo armado. Povo armado jamais será escravizado”. Não é bravata. Partiu de quem já condecorou e empregou familiares de líder de milícias, derrubou portarias do Exército sobre armas e multiplicou munições nas ruas, enquanto mete as polícias no bolso. Como ficam as FA se milicianos armados tentarem invadir o Supremo, as polícias lavarem as mãos e o circo da democracia pegar fogo? É melhor prevenir do que remediar.
Em 31/03/2019, no texto “Construir, não destruir”, descrevi o que há de comum entre os projetos do capitão Bolsonaro e do coronel Chávez de alimentar as milícias e espancar Judiciário, Legislativo e mídia para instalar suas crenças e delírios de poder. O Brasil, porém, jamais será uma Venezuela. Nem pela direita, nem pela esquerda. Há resistência e é à luz do dia.
Eros Roberto Grau: A tripartição dos Poderes e a democracia
Qualquer insurgência contra o STF é afronta à ordem e à paz social, prenuncia autoritarismo
Os momentos que estamos a viver cá no Brasil, a Terra da Santa Cruz, levam-me a breve reflexão em torno do tema da separação entre Legislativo, Executivo e Judiciário. Separação resultante de tripartição de um todo. Todo que, no entanto, não pode ser despedaçado, pois o Estado é um só, a chamada separação dos Poderes prestando-se unicamente a permitir que atue em plena coerência com os princípios e regras da democracia.
A pequena frase de Charles de Gaulle tudo diz: a autoridade do Estado é indivisível! Antes dele, Hegel, ao afirmar que o Estado distribui sua atividade entre vários Poderes, porém de modo que cada um deles seja, em si mesmo, uma porção da totalidade, de um todo único. O Estado é uma totalidade. Quando se fala da diversidade de eficácia dos Poderes, de sua ação e sua eficiência – diz ele –, é necessário não incorrermos no erro de considerar as coisas como se cada Poder estivesse lá abstratamente, por si próprio. Os três são momentos do conceito de Estado. É primorosa a lição de Carlos Maximiliano ao afirmar que – como no corpo do homem – no Estado não há isolamento de órgãos, mas especialização de funções.
Permito-me ir além, recorrendo ao que Kelsen ensina: o que se refere sob o nome de “poder estatal” é a validez de uma ordem jurídica. Daí que a ideia de uma partição dessa validez é absurda, a suposição do funcionamento isolado de três Poderes sendo insustentável. Não é possível supormos que essa trindade – Legislativo, Executivo e Judiciário – não constitua uma unidade.
A organização estatal em funções torna viável, aprimorando-o, seu funcionamento. O Legislativo produz as leis, o Executivo as aplica e o Judiciário decide. Todos como que vestem um manto de autoridade não porque detenham poderes. Autoridade é o saber o que se deve fazer, serenamente. Os romanos chamavam-na de auctoritas. Por isso todos nós a eles devemos respeito e acatamento. Uma das tarefas primordiais do Estado moderno é a produção de uma ordem jurídica que garanta certeza e segurança jurídicas. Sem elas não haverá como vivermos em liberdade.
Ontem interrompi o que até este ponto vinha escrevendo e agora, 24 de maio, leio no Estadão das minhas manhãs a primeira das Notas & Informações, O Estado paralelo de Bolsonaro. Lá estão afirmados pontos que tenho como extremamente relevantes, incluído o de que, em reunião no mês de abril, ministros defenderam a prisão de magistrados que, em obediência à Constituição, tomaram decisões contra o governo. Mais, investiram contra atos de prefeitos e governadores que, seguindo recomendações de autoridades de saúde, impuseram quarentena contra a pandemia de covid-19. Delinquentes seriam os que respeitam a lei e o bom senso, o que resulta da concepção de que este ou aquele dos três Poderes não seria de todo conformado pela Constituição. Um deles, o Executivo – pasmem! – estaria acima de tudo e de todos! O que, na ponta de tudo, conduz à criação de um Estado paralelo ao Brasil que cá está onde estamos. Estado paralelo que investe contra isso e aquilo, até mesmo contra governadores que impõem quarentena em defesa da vida e ministros do Supremo Tribunal Federal.
Ainda que tudo o que desejava afirmar em defesa do Estado Democrático de Direito lá esteja, na primeira das Notas & Informações da edição de 24 de maio do Estadão, enquanto e como membro aposentado do Poder Judiciário insisto em que, se pretendermos viver honestamente, contribuindo para o bem de todos, será indispensável acatarmos, com dignidade, suas decisões. Não porque elas façam justiça. Pois é certo que, como dizia Kelsen e tenho reiteradamente repetido, a justiça absoluta só pode emanar de uma autoridade transcendente, só pode emanar de Deus. Temos de nos contentar, na Terra, com alguma justiça simplesmente relativa, que deve ser vislumbrada em cada ordem jurídica positiva e na situação de paz e segurança por esta mais ou menos assegurada. Os juízes são servos da Constituição e das leis, servos de um sistema de normas jurídicas que se presta a assegurar um mínimo de calculabilidade e previsibilidade na prática das relações sociais.
Qualquer insurgência contra essa face do Estado que o Supremo Tribunal Federal é afronta a ordem e a paz social, prenuncia vocação de autoritarismo, questiona a democracia, desmente-a, pretende golpeá-la. Por isso é necessário afirmarmos, em alto e bom som, o quanto de respeito e acatamento devemos ao Poder Judiciário e em especial, hoje e sempre, ao Supremo Tribunal Federal. Sobretudo porque – repito – ele não surpreende por sua independência. O Estado é indivisível.
A soberania popular, força que o constitui, permite apenas que ele distribua dentro de si as suas funções. Por conta disso quaisquer ações deste ou daquele dos três Poderes, avançando sobre outro, afronta não apenas sua tripartição, mas a democracia. Ao fim de tudo, se chegarem aonde pretendem, seremos vistos como pobres, tristes, coitados habitantes da Terra da Cruz!
*Advogado, professor titular aposentado da Faculdade de Direito da USP, foi ministro do Supremo Tribunal Federal
Hélio Schwartsman: Supremo tem o direito de errar por último
Democracia é o regime dos erros sucessivos
Faz bem o Supremo Tribunal Federal em impor limites a Jair Bolsonaro e a seus asseclas. Eles já deram repetidos sinais de que, deixados livres, não se deteriam diante de nada em seu intento de transformar o país em uma monarquia terraplanista.
A trupe bolsonarista tem o estranho dom de desmoralizar tudo de que se aproxima. Em alguns casos, o movimento é voluntário, como se vê nos esforços do grupo para erodir instituições como Legislativo, imprensa e o próprio Judiciário.
Em vários outros, a perversão não é pretendida, mas fruto de incompetência. É disso que foram vítimas a saúde pública, as perspectivas para a economia, que só pioram, e a própria Presidência da República, rebaixada a enredo de filme pastelão na reunião ministerial a que tivemos acesso por decisão do STF.
Institucionalmente, o ideal seria que fossem a PGR ou o Congresso a cortar-lhes as asinhas. Como Aras e Maia se acovardam, só resta mesmo o STF. Daí não decorre que o processo ocorra sem asperezas.
O chamado inquérito das fake news, que atinge em cheio a máquina de propaganda bolsonarista, surgiu como um teratoma, que desafia as melhores práticas do direito e caminha perigosamente perto de criminalizar opiniões. Ainda assim, é um expediente legal e válido. Por quê? Porque o STF diz que é.
De forma um pouco cínica, dá para definir a democracia como o regime dos erros sucessivos. O primeiro a errar são os eleitores, que tendem a escolher desqualificados para governá-los. Em seguida, vêm o Executivo, que invariavelmente faz enormes besteiras, o Legislativo, que só piora as coisas, e, por fim, o Judiciário, detentor da “ultima defaecatio”.
A democracia funciona porque assegura a paz social. E a paz social só é possível quando todos os agentes concordam que a palavra final nas disputas é a do STF. Na democracia, não existe hipótese de desobedecer ao Supremo. É ele que tem o direito de errar por último.
Merval Pereira: Caneta sem tinta
Os membros do Supremo riscaram uma linha de onde não admitirão passar os desmandos do presidente e seus seguidores
O presidente Bolsonaro conseguiu cimentar uma união interna no Supremo Tribunal Federal (STF) que já vinha sendo formada no cotidiano da Corte diante dos riscos à democracia desenhados pela retórica agressiva dos militantes bolsonaristas, em manifestações avalizadas pelo próprio presidente, e em atitudes agressivas das milícias, digitais ou não, contra seus membros.
Para além desse sentimento até mesmo de autopreservação, não fosse a ameaça à democracia, os ataques ao decano do STF, ministro Celso de Mello, tornaram-se exemplares da falta de limites desses militantes, que o decano classificou de “bolsonaristas fascistóides”.
Celso de Mello, aliás, já previa os problemas que a radicalização política poderia causar à democracia no país. Em 2018, com problemas de saúde que o impediam de se locomover normalmente, pensou em se aposentar. Começou mesmo uma conversa sobre seu substituto, e indicou indiretamente ao presidente Michel Temer que se sentiria feliz se a advogada-geral da União, Grace Mendonça, fosse indicada para sua vaga.
No final do ano, com a polarização política acirrada na campanha presidencial, ele avisou a Grace que continuaria até o final de seu período, e entrará na compulsória por fazer 75 anos, em novembro.
A operação de busca e apreensão da Polícia Federal de quarta-feira, que tanto incomodou o presidente Bolsonaro, estava prevista há pelo menos um mês, e só não foi realizada antes devido à pandemia, como noticiei na minha coluna “Golpe frustrado”, de 22 de abril.
Como já havia a perspectiva de que Bolsonaro estava tentando interferir na Polícia Federal na saída do então ministro da Justiça Sérgio Moro, o ministro Alexandre de Moraes determinou que fosse mantida a mesma equipe da PF que trabalhava no caso há um ano. Com isso, evitou que a operação pudesse ser inviabilizada por questões burocráticas ou vazamentos com viés político.
Os membros do Supremo riscaram uma linha de onde não admitirão passar os desmandos do presidente e seus seguidores. Em consequência, as duas novas tentativas do governo de reverter decisões do Supremo têm chances próximas de zero de vingar, tanto o habeas corpus a favor do ministro Abraham Weintraub, quanto o pedido de fim do inquérito sobre fake news feito pelo Procurador-Geral da República, Augusto Aras.
Há uma jurisprudência firmada de que o tribunal não deve receber pedido de habeas corpus contra atos de seus ministros. Quanto ao inquérito, mesmo os que, a princípio, consideraram que era uma demasia do presidente Dias Toffoli, hoje entendem que os fatos descobertos nas investigações justificam sua existência, indo muito além da auto defesa que parecia ser o objetivo inicial.
Trata de ataques à democracia. Além do mais, iniciado de maneira equivocada, esse inquérito foi colocado nos eixos muito devido às críticas que recebeu. O ministro Alexandre de Moraes comanda as investigações, e não julgará, o PGR Aras tem conhecimento delas e foi atendido na tese de que os deputados não deveriam ser alvos de busca e apreensão em suas residências.
A fala do presidente Bolsonaro ontem de manhã foi reveladora de seus intentos, mas ele não tem meios legais para afirmar que “acabou”, se referindo à ação da PF autorizada pelo ministro Alexandre de Moraes contra as fake News. Não há nada que ele possa fazer contra o STF, que, como disse Rui Barbosa, tem o direito de errar por último.
É preocupante que ele não aceite limites que a democracia impõe, queixando-se de que sua caneta não tem tinta. Não imagino que tenha algum tipo de apoio fora dessas milícias digitais para tomar qualquer providência fora da lei. Vários militares, inclusive o vice-presidente, Hamilton Mourão, reafirmaram ontem que não há possibilidade de golpes militares. Os comandantes das Três Armas não são tão condescendentes quanto seus colegas da reserva com relação às extravagâncias políticas do presidente Bolsonaro. Enquanto ficar na retórica, e não houver nenhuma medida prática para desautorizar o STF, vamos viver nesse clima de tensão permanente. Para parar o STF, nem mesmo mandando o soldado e o cabo, como disse o filho 03 Eduardo, para fechá-lo.
Eliane Brum: Brasil sofre de fetiche da farda
Sem superar os traumas da ditadura, parte das instituições e da imprensa se comporta como refém diante do Governo militar liderado por Bolsonaro, demonstrando subserviência e alienação dos fatos
O bolsonarismo revelou em todo o seu estupor um fenômeno cujos sintomas podiam ser percebidos durante a democracia, mas que foram apenas timidamente diagnosticados. Vou chamá-lo de “fetiche da farda”. Trata-se de uma construção mental sem lastro na realidade que faz com que algo se torne o seu oposto no funcionamento individual ou coletivo de uma pessoa, um grupo ou mesmo de um povo. O mecanismo psicológico guarda semelhanças com o que é chamado de “Síndrome de Estocolmo”, quando a vítima se alia ao sequestrador como forma de suportar a terrível pressão de estar subjugada a um outro que claramente é um perverso, seguidamente imprevisível, do qual depende a sua vida na condição de refém. O fetiche da farda tem se mostrado em toda a sua gravidade desde o início do Governo de Jair Bolsonaro e, durante o mês de maio, tornou-se assustador: mesmo à esquerda e ao centro, os militares são descritos como aquilo que os fatos provam que não são ― nem foram nas últimas décadas ―, e tratados com uma solenidade que suas ações ― e suas omissões ― não justificam.
O fetiche da farda não é uma curiosidade a mais na crônica política do Brasil, já repleta de bizarrices. O fenômeno molda a própria democracia e está determinando o presente do país. Criou-se uma narrativa fantasiosa de que, no Governo Bolsonaro, os militares são uma “reserva moral”, uma “fonte de equilíbrio” em meio ao “descontrole” de Bolsonaro. O debate se dá em torno de o quanto os generais seriam capazes de conter ou não o maníaco que ajudaram ― e muito ― a botar no Planalto.
Categorizou-se o Governo em “alas”, em que existiria a “ideológica”, composta pelo chanceler Ernesto Araújo e outros pupilos do guru Olavo de Carvalho, e a “ala militar”, entre outras, forjando assim uma fantasmagoria de que os militares no Governo não tivessem ideologia e que a palavra “militar” já estivesse qualificada em si mesma e por si mesma. A cada flatulência do antipresidente, a imprensa espera ansiosamente a manifestação da “ala militar”. Não pelo que efetivamente são e representam os militares, mas porque seriam uma espécie de “oráculo” do presente e do futuro.
Colunistas por quem tenho grande respeito, ao se referir às Forças Armadas, penduram nelas adjetivos como “honrosas” e “respeitáveis”. Quando algum dos generais diz algo ainda mais truculento do que o habitual afirmam que está destoando da tropa, porque as Forças Armadas supostamente se pautariam pela “honra” e pela “verdade”. Ao longo do Governo desenhou-se uma imagem dos militares como algo próximo dos “pais da nação” ou “guardiões da ordem”, e tudo isso confundido com a ideia de que seriam também uma espécie de pais do incorrigível garoto Bolsonaro.
Como é possível? Qual é o mecanismo psicológico que produz essa mistificação em tempos tão agudos? O fenômeno é fascinante, não estivesse nos empurrando para um nível ainda mais fundo do poço sem fundo.
Bolsonaro não é uma anomalia das Forças Armadas, mas sim seu fiel produto
Tenho escrito desde o início do Governo, e mesmo antes, que Bolsonaro não é uma anomalia das Forças Armadas, algo que deu errado e que nega a sua origem. Ao contrário. Desde sua gênese, ele é tanto o produto quanto a expressão daquilo que os militares representam no Brasil das últimas décadas ― ou possivelmente em toda a história republicana do país. Bolsonaro contém toda a deformação do papel e do lugar dos militares numa democracia. (Leia em Mourão, o Moderado).
Bolsonaro é o garoto de classe média baixa que adorava fardas e viu no Exército uma possibilidade de ganhar posição e importância. Como a história mostrou, entendeu tudo certinho. Sua trajetória é muito bem contada no livro O cadete e o capitão: a vida de Jair Bolsonaro no quartel (Todavia), do jornalista Luiz Maklouf Carvalho, morto por câncer em 16 de maio. Na obra, o repórter mostra, a partir de rigorosa pesquisa nos autos, como o julgamento de Bolsonaro por planejar colocar bombas em quartéis ignorou provas inequívocas. O Superior Tribunal Militar absolveu-o num julgamento constrangedor, desde que ele deixasse a corporação. Bolsonaro assim o fez, já eleito vereador do Rio de Janeiro com o voto de seus colegas, que depois o reelegeriam também como deputado federal durante os quase 30 anos que passou no Congresso. (Leia em Por que Bolsonaro tem problemas com furos).
Bolsonaro existe politicamente e está no poder porque a cúpula militar absolveu um membro da corporação que trabalhava na execução de um plano terrorista para chamar a atenção para uma reivindicação salarial. Tivesse sido condenado pelo que de fato era e fez, a história seria outra. Foi a impunidade que os militares seguiram autorizados a cultivar, em função de seus interesses corporativos, mesmo após a redemocratização, que gestou o personagem Bolsonaro.
Ele, que tanto fala em impunidade, é produto da impunidade que supostamente critica. Já está mais do que claro que, para Bolsonaro, seus filhos e seus amigos, a impunidade é a própria razão de ser do poder. Responsabilização é para os outros. Não tenho informação para afirmar que aprendeu essa lição com seus pais, mas há informação suficiente para afirmar que a aprimorou com seus superiores. Se um plano terrorista não é motivo suficiente para condenar alguém, então nada é.
Durante todos os seus anos como parlamentar, Bolsonaro sempre defendeu a ditadura (1964-1985), não só normalizando o sequestro, a tortura e a morte de civis, mas defendendo que os militares deveriam ter matado “pelo menos uns 30 mil”. Votou pelo impeachment de Dilma Rousseff homenageando o único torturador reconhecido pela Justiça como torturador, o coronel facínora Carlos Alberto Brilhante Ustra. E naquele momento lançou simbolicamente a sua candidatura ― e mais uma vez foi beneficiado pela impunidade garantida tanto pelos seus pares como pelo judiciário brasileiro.
A candidatura de Bolsonaro tinha por vice um general, Hamilton Mourão, que em várias ocasiões expressou sua vocação golpista, inclusive durante a campanha. Não é possível afirmar ou não que Bolsonaro foi eleito devido ao apoio de uma parcela estrelada de militares à sua campanha, mas é possível afirmar que esse apoio foi importante e deu legitimidade a Bolsonaro. Em troca, ele militarizou o Governo, que hoje tem nove ministros militares e quase 3 mil militares ocupando o segundo escalão. E crescendo. Bolsonaro tornou possível que os militares voltassem ao poder num país em que ainda há mais de duas centenas de corpos de pessoas desaparecidas pela ação criminosa do Governo dos generais durante o regime de exceção.
Bolsonaro e os generais que o sustentam não são feitos de matéria diferente. Não há uma e outra coisa. É a mesma coisa e o mesmo projeto de poder. Por que razão foi feita essa dissociação mental é tema para historiadores e sociólogos. Talvez mais ainda para a psiquiatria e para a psicanálise. Bolsonaro é criatura do militarismo brasileiro. E não como o monstro de Frankenstein, que na obra de ficção de Mary Shelley foi renegado pelo criador. Não. Bolsonaro é o rebento bem sucedido que foi estimulado e apoiado para virar o presidente do Brasil e então redimir seus pais inconformados, que queriam não só voltar ao poder, mas também eliminar a mancha histórica de assassinos e ditadores.
A perigosa operação mental que dissocia a imagem dos militares de seus atos
Mais grave que a dissociação entre Bolsonaro e os generais de sua entourage, porém, é a dissociação entre o que os militares efetivamente fizeram e fazem no poder ― e a forma como essa ação é descrita e convertida em imagem pública. Não é necessário analisar todo o período republicano, desde 1889. Se olharmos apenas para as últimas décadas, em 1964 os militares deram um golpe na democracia. Tiraram do poder um presidente eleito democraticamente. João Goulart era vice-presidente até 1961. Com a renúncia de Jânio Quadros, assumiu a presidência. E então veio o golpe. Jango, como era chamado, viveu no exílio até a sua controvertida morte.
Os militares tomaram o poder pela força, num golpe clássico, e permaneceram no poder pela força por 21 anos, com o apoio de parte do empresariado nacional. Em dezembro de 1968, com o Ato Institucional número 5, hoje amplamente revivido como ameaça explícita nos discursos dos bolsonaristas, o Governo de exceção endureceu. O AI-5 eliminou o que ainda restava dos instrumentos democráticos e inaugurou a época mais violenta do regime, tornando o sequestro, a tortura e a morte de opositores instrumentos de Estado, executados por agentes do Estado.
Durante esse período tenebroso, há amplas provas e depoimentos mostrando que, além dos milhares de adultos, vários deles mulheres grávidas, pelo menos 44 crianças foram torturadas (leia em Aos que defendem a volta da ditadura). Uma delas, Carlos Alexandre Azevedo, o Cacá, torturado quando tinha 1 ano e oito meses de vida, não suportou as marcas psicológicas e se suicidou em 2013, depois de uma existência muito penosa. Há famílias de brasileiros que ainda não conseguiram encontrar os cadáveres dos mais de 200 desaparecidos pela ditadura. São pais, mães, irmãos e filhos que há décadas procuram um corpo para sepultar. “A Ponta da Praia”, para onde Bolsonaro ameaçou mandar os opositores em discurso durante a campanha de 2018, era um desses lugares de tortura e de desova de civis no Rio de Janeiro.
Durante a ditadura militar, a imprensa foi censurada; filmes, livros e peças de teatro foram proibidos; as universidades sofreram intervenções; milhares de brasileiros foram obrigados a viver no exílio para não serem mortos pelo Estado. Durante a ditadura, houve ampla corrupção nas obras públicas, como há farta bibliografia para comprovar. Foi também durante a ditadura que as grandes empreiteiras, que mais tarde estariam nas manchetes pelo esquema de corrupção conhecido como “mensalão”, cresceram, multiplicam-se e locupletaram-se em obras megalômanas do “Brasil Grande” e em seus esquemas nos Governos militares.
A ditadura torturou e matou milhares de indígenas. As “grandes obras” na Amazônia, que mais tarde seriam conhecidas como “elefantes brancos” do regime, foram construídas por essas empreiteiras sobre cadáveres da floresta e sangue de seres humanos. A ditadura militar inaugurou o desmatamento como projeto de Estado e tornou o extermínio dos indígenas uma política ao ignorar sua existência na propaganda oficial da Amazônia, como no slogan “terra sem homens para homens sem terra”. O Exército promoveu alguns dos mais cruéis massacres da história, como o dos Waimiri Atroari, que quase foram dizimados nos anos 1970.
Como é possível que alguém que viveu ou estudou esse período possa tratar a crescente ocupação militar do Governo Bolsonaro como algo remotamente semelhante a uma “reserva moral” ou a uma “fonte de equilíbrio” ou a um “exemplo de honradez”? Sério? Além do fetiche da farda devemos investigar um possível estresse pós-traumático no fenômeno. Ou talvez uma parcela dos brasileiros tenha tanto medo que o horror se repita que distorça o que enxerga porque a realidade alcançou o nível da insuportabilidade.
Alguns vão afirmar, como têm afirmado, que os militares hoje no poder, diferentemente de seus antecessores e mestres, são amantes da democracia. Qual é o lastro nos fatos para fazer tal afirmação? Há inúmeros exemplos de comportamentos golpistas por vários dos personagens do militarismo, começando pelo general Eduardo Villas Bôas, uma mistura de conselheiro e fiador do atual Governo, e terminando no vilão de quadrinhos chamado Augusto Heleno, que se houver justiça um dia responderá pelo que as tropas brasileiras comandadas por ele fizeram no Haiti. Cité Soleil, a maior favela de Porto Príncipe, é um nome que provoca tremores ao ser pronunciado em alguns círculos. Mourão, por sua vez, antes de se tornar vice-presidente, já era uma metralhadora giratória de declarações golpistas.
Em qual momento do Governo Bolsonaro os militares deram um exemplo de respeito à democracia? Basta examinar um episódio seguido do outro. A relação entre crescimento dos militares e aumento das manifestações golpistas é diretamente proporcional. O número de militares só aumenta e o Governo só piora seu nível de boçalidade, de autoritarismo e também de incompetência. Tudo isso culmina no momento atual, no qual Jair Bolsonaro se tornou o vilão número um da pandemia e os brasileiros passaram a ser recusados até nos Estados Unidos de Donald Trump. E o que temos hoje? A militarização da Saúde. Dois ministros civis, médicos, recusaram-se a ceder à pressão de Bolsonaro para usar cloroquina, medicamento sem eficácia científica comprovada para tratar de covid-19. Deixaram o Governo. Bolsonaro colocou então um militar como ministro da Saúde e conseguiu empurrar a cloroquina, jogando com a saúde de 210 milhões de pessoas. Em vez de quadros técnicos, com experiência na área, na crise sanitária mais séria em um século, o Brasil transforma o Ministério da Saúde num quartel do Exército.
Antes da pandemia, o Governo militar de Bolsonaro provocava o horror do mundo pela destruição acelerada da Amazônia. Com a covid-19, os alertas apontam que o desmatamento explodiu. É visível que os grileiros se aproveitam da necessidade de isolamento daqueles que sempre combateram suas ações, seus pistoleiros e suas motosserras colocando seus corpos na linha de frente.
E o que temos hoje? A militarização das ações de fiscalização ambiental na Amazônia. O Ibama e o ICMBio passaram a ser subordinados ao Exército, como numa ditadura clássica. Na primeira investida, segundo relatório obtido pela Folha de S. Paulo, mais de 90 agentes em dois helicópteros e várias viaturas foram mobilizados para uma operação no Mato Grosso contra madeireiras e serrarias que terminou sem multas, prisões ou apreensões. O Ibama havia sugerido outro alvo na região que, segundo fiscais, contava com fortes evidências de ilegalidades. Foi ignorado. O recém-criado Conselho Nacional da Amazônia, comandado por Mourão, tem 19 integrantes: todos militares.
A realidade mostra os grileiros atuando com desenvoltura só vista na ditadura, todos eles apoiadores entusiásticos de Bolsonaro e dos militares no poder. Invadem, destroem e pressionam pela legalização do roubo de áreas públicas de floresta, legalização anunciada pela MP da grilagem de Bolsonaro, no final de 2019, e agora pelo PL da grilagem em discussão no Congresso. O projeto dos militares para a Amazônia é o mesmo da ditadura e todos nós já sabemos como acaba. Ou, no caso, como continua.
Se alguém ainda pudesse ter alguma dúvida sobre o caráter dos militares no governo, o show de horrores exposto na reunião ministerial de 22 de abril escancarou o nível do generalato que lá está. O vídeo da reunião, apresentado por Sergio Moro como prova de que Bolsonaro tentou interferir na Polícia Federal, teve o sigilo retirado pelo ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal. Só ser conivente com aquela atmosfera e com aqueles pronunciamentos já seria uma overdose de desonra capaz de fazer uma pessoa com níveis medianos de honestidade pessoal vomitar por dias. Mas, não. Os militares são patrocinadores da meleca toda de baixíssimo nível intelectual e moralidade abaixo de zero. A reunião ministerial expõe um cotidiano de desrespeito à democracia em ritmo de boçalidade máxima. Não daria para aturar o nível de estupidez daqueles caras nem no boteco mais sórdido.
A deformação da democracia instalada nas últimas três décadas tem as digitais dos militares
A qualidade da democracia que o Brasil obteve entre o final dos anos 1980 e o impeachment de Dilma Rousseff (PT), em 2016, é resultado das negociações que costuraram o fim da ditadura e a redemocratização do país. Diferentemente de outros países que amargaram ditaduras militares, como a Argentina, o Brasil não julgou os crimes do regime de exceção. Assim, assassinos, torturadores e sequestradores a serviço do Estado seguiram impunes, ocupando funções públicas e ganhando salários públicos. Suas vítimas podiam encontrá-los tanto no elevador como na padaria da esquina como na escola dos filhos, e encontros macabros como estes aconteceram mais de uma vez.
Mesmo após a redemocratização, o Brasil seguiu também tolerando a anomalia que é uma polícia militar. Hoje, parte dela se transformou em milícia, controlando e explorando comunidades pobres, nas periferias das cidades. No Rio de Janeiro, onde as milícias e o Estado se confundem, Bolsonaro e sua família já provaram ter relações íntimas com alguns milicianos famosos, uma das razões pelas quais o presidente tanto quer controlar a Polícia Federal. O assassinato de Marielle Franco, vereadora do PSol no Rio de Janeiro, segue não solucionado há mais de 800 dias, com indícios de envolvimento de milícias próximas de Bolsonaro e seus filhos.
Outra parte dos policiais militares tem se tornado cada vez mais autônoma, respondendo apenas a si mesma. A recente greve de PMs no Ceará revelou a gravidade desse fenômeno. Em 2017, o cenário já tinha ficado evidente na greve dos PMs do Espírito Santo, quando a população se tornou refém das forças de segurança do Estado.
A polícia militar tem seu DNA cravado no genocídio da juventude negra e pobre das favelas, em massacres de presos como o do Carandiru, em 1992, e em chacinas de camponeses como o de Eldorado dos Carajás, em 1996. Nos protestos de junho de 2013, a ação violenta da polícia militar contra os manifestantes tornou-se visível também para uma parcela da classe média brasileira.
É claro que há policiais militares honestos, competentes e bem intencionados. Mas não é uma questão apenas da qualidade dos indivíduos ― e sim da incompatibilidade entre um regime democrático e uma polícia militarizada atuando junto aos cidadãos.
A democracia instalada no Brasil sempre tolerou tanto os abusos das polícias, civil incluída, quanto o genocídio do negros e dos indígenas, e isso mesmo durante os Governos de centro-esquerda de Lula e de Dilma Rousseff (PT). Essa mesma democracia pós-ditadura convive com as torturas nas prisões e as condições torturantes das prisões superlotadas de jovens negros, hoje morrendo também por covid-19.
Em parte, a democracia brasileira é deformada porque não foi capaz de julgar os crimes da ditadura e eliminar as excrescências da ditadura, mantendo uma relação de temerosa subserviência com os militares. A mesma que hoje faz o país inteiro esperar a manifestação desses generais no poder, como se dependesse do humor deles cumprir a lei ou não, apoiar ou não o golpismo, manter ou não a democracia. Claramente as elites, uma parcela da imprensa incluída, se comporta como se fosse normal que os militares tivessem a última palavra sobre o destino da democracia no Brasil, como se fosse natural um tipo de manchete como as que têm destacado os humores verde-oliva como se fossem o oráculo de Delfos.
É subserviência embrulhada em liturgia e travestida de respeito. Não são os militares que precisam “enquadrar” Bolsonaro, algo que já ficou provado que não podem nem querem fazer. São as instituições democráticas que precisam enquadrar os militares e botá-los no seu lugar. E todas as instâncias de poder, imprensa incluída, têm de parar de se curvar como se fosse levar uma botinada na testa a qualquer momento. Vejo camponeses pobres e desamparados na Amazônia enfrentarem os fardados com muito mais firmeza. No final do ano passado testemunhei uma liderança comunitária enfrentar de peito aberto um coronel armado de fuzil que queria censurar seus cartazes durante uma audiência pública em Altamira. Ele disse que não admitia uma cena como aquela porque o Brasil ainda era uma democracia. E não admitiu. Isso é dignidade.
Em artigo na Folha de S. Paulo de 24 de maio, o cientista político Jorge Zaverucha mostrou o quanto “a forte presença militar no Estado reflete a fragilidade da democracia no Brasil”. Mesmo a Constituição de 1988, a carta-magna que marcou a retomada do processo democrático depois da ditadura, foi solapada pela subserviência aos militares, determinada pelo entendimento de líderes constituintes como Ulysses Guimarães de que não seria possível retomar a democracia sem tais concessões. Ainda que seja possível eventualmente concordar com as dificuldades do momento, houve mais de três décadas para que os autoritarismos sobreviventes fossem deletados, como foi feito em países vizinhos, mas nada disso foi levado adiante no Brasil. Nesse sentido, em alguns momentos a democracia pareceu uma concessão dos generais ― e não uma conquista da sociedade civil, o que é péssimo para a cidadania.
O artigo 142 da Constituição determina que as Forças Armadas “são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. Como é possível, questiona o pesquisador Jorge Zaverucha, se submeter e garantir algo simultaneamente? E, citando o filósofo italiano Giorgio Agamben: “O soberano, tendo o poder legal de suspender a lei, coloca-se legalmente fora da lei”.
Para pesquisadores do período, como Jorge Zaverucha, a elite brasileira “não possui um ethos democrático”. Ela aposta, desde o princípio, em um governo democrático eleitoral, mas não em um regime democrático. “No Brasil, as Forças Armadas deixaram o Governo, mas não o poder”, afirma o cientista político. E, hoje, como qualquer um é capaz de constatar, voltaram também ao Governo.
E agora?
A ambiguidade do artigo 142 da Constituição resulta nesses dias em ambiguidade alguma. Claramente gente demais se comporta no país como se os militares não apenas estivessem fora da lei, mas teriam o direito de estar fora da lei. A ambiguidade da Constituição, no que se refere ao papel das Forças Armadas, se desfez na prática dos dias. Guardadas as exceções, o cotidiano mostra que em todas as instituições e também em uma parcela da imprensa há predominância de lambe-botas de generais, como se a ditadura nunca tivesse acabado. Se faz obrigatória a pergunta: a democracia então começou? Votar a cada eleição é suficiente para fazer um país ser considerado democrático?
O fetiche da farda pode nos levar a muitos caminhos de investigação. Tem qualquer coisa mais prosaica, também, de homenzinhos que gostam da mística da masculinidade, a estética da testosterona pelo uso de armas e pelo monopólio do uso da força costuma ficar em alta em momentos de grande insegurança. Quando leio a carta dos militares de pantufa em solidariedade a Augusto Heleno, o ameaçador-mor da República, parece mesmo que eles acreditam serem, como arrotam, os guardiões da honra. Que se ponham no seu lugar. “Chega” dizemos nós.
Nosso dinheiro paga suas aposentadorias e a reforma da Previdência deles foi de filho para pai. Quem esses homens pensam que são para ameaçar o Supremo Tribunal Federal, a instituição? São funcionários públicos aposentados e não ungidos por nenhum deus para decidir o destino de ninguém, muito menos de um país. Tampouco foram formados por “SAGRADA CASA” nenhuma, como ostentam em caixa alta, confundindo conceitos básicos. Se depois de mais de 30 anos de democracia temos que aguentar esse tipo de declaração golpista daqueles que deveriam estar servindo à democracia é porque a democracia que o Brasil conseguiu fazer derrete.
Ao apoiar Bolsonaro, os generais queriam muito fraudar a história do golpe de 1964, garantir que a lei de anistia, de 1979, nunca fosse reformada, e se assegurar de que os crimes cometidos durante a ditadura seguissem impunes. Quando Bolsonaro tentou festejar o 31 de março, data do golpe militar, como efeméride patriótica, no primeiro ano do seu mandato, houve protestos de diferentes áreas da sociedade. O problema, porém, era muito mais grave. E o risco, muito maior.
A fraude da história está se dando na prática, na subjetividade que constitui cada um, na naturalização dos militares determinando destinos, proferindo ameaças e colocando-se acima da lei. Essa é a pior fraude, porque se infiltra nas mentes, altera os comportamentos e se converte em verdade. Fica cada vez mais evidente que a ditadura nunca saiu de nós, porque ao deixarmos os assassinos impunes, seguimos reféns dos criminosos que nos subjugaram por 21 anos.
Não vejo no mundo um país mais desafiado que o Brasil. Precisa lutar contra uma pandemia com um perverso no poder que contraria todas as leis sanitárias, que está levando o país ao pódio em número de casos e de mortes por covid-19, que está destruindo a Amazônia, da qual depende o futuro de todo o planeta, como se realmente não houvesse amanhã, e que está convertendo os brasileiros em párias globais. Ao mesmo tempo, o Brasil tem que restaurar a democracia que nunca se completou e, em plena crise, vestir as pantufas nos generais que foram infectados pela febre messiânica do poder e do autoritarismo.
Na penúltima vez que os generais estivaram no poder, deixaram um rastro de desaparecidos, torturados e mortos por assassinato. Isso sem contar a inflação explodindo e a corrupção vicejando. Na atual, deixarão um rastro de dezenas de milhares de mortos por covid-19, um número que poderia ser consideravelmente reduzido tivesse o governo seguido as normas sanitárias da Organização Mundial da Saúde, mantivesse no Ministério da Saúde um quadro técnico composto por profissionais experientes em saúde pública e epidemiologia e estivesse concentrando todos os seus melhores esforços para construir um plano consistente para enfrentar a pandemia. Poderão ainda, caso se mantenha o atual ritmo de destruição, levar a floresta amazônica ao ponto de não retorno. Abraçados, claro, com os vendilhões do Centrão, no que já é chamado de Centrão Verde-Oliva.
Lamento. Mas ou desdobramos a espinha agora ou peçam desculpas aos seus filhos porque seus pais são, como diria elegantemente Bolsonaro, uns bostas.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago). Site: elianebrum.com | Email: elianebrum.coluna@gmail.com | Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum
William Waack: Para onde levam os inquéritos
Onde hoje mora o perigo para Bolsonaro não é no Congresso, é no STF
Onde hoje mora o perigo para Bolsonaro não é no Congresso, é no STF. E não é no inquérito que resultou das acusações do ex-juiz e ex-ministro Sérgio Moro ao sair do governo. É no inquérito das fake news, também no Supremo, que começou há mais de um ano atirando nos “procuradores de Curitiba” como principais suspeitos de articulações contra o STF e acabou acertando no esquema bolsonarista de pressão e propaganda que, suspeita-se, é articulado em parte desde o Palácio do Planalto.
Não cabe aqui discutir todos os aspectos jurídicos relacionados ao inquérito, que começou impondo censura a órgãos de imprensa (logo derrubada), corre em sigilo e transforma o STF em investigador e juiz ao mesmo tempo. Integrantes da corte acham que o tal inquérito virou uma metralhadora giratória nas mãos do ministro Alexandre de Moraes – o mesmo se ouve na PGR, que foi contra, depois a favor, e agora contra de novo, mas são coisas que ninguém admite em público.
Em outras palavras, o mundo correto jurídico acha o inquérito abominável, porém ainda mais abominável o que representam as redes bolsonaristas. Uma vez que essa ação dirigida pelo Supremo tem como alvo quem se organizou para destruir a institucionalidade, o inquérito é amplo o suficiente para, eventualmente, levar a uma acusação política grave, além de criminal contra seus alvos. Difícil de calcular são as consequências do tipo de ambiente que provoca.
Os alvos da vez são personalidades das redes bolsonaristas, empresários amigos do presidente e parlamentares que o apoiam. Na lista figura também um ministro, o da Educação, que deverá ser ouvido pelo que disse na já célebre reunião ministerial do dia 22 de abril não no inquérito relacionado a Moro, mas no inquérito das… fake news contra o Supremo. No Legislativo o mesmo inquérito do Supremo reforça uma CPMI para apurar… fake news nas eleições.
Outra voz que ganhou destaque nos últimos dias, a do empresário Paulo Marinho, ex-adepto convertido em inimigo do presidente, também deve ser incluída no que o TSE tem investigado, via corregedoria (considerada mais contundente pelos especialistas) como abuso de poder econômico e político nas eleições de 2018, incluindo disparos em massa de mensagens em redes sociais e, claro, fake news.
Por um lado, o empenho dos atingidos por operações da PF deflagradas por Alexandre de Moraes em caracterizar os ministros do STF como meros adversários políticos, fora o resto, vai em boa parte ao encontro do que pensam militares graúdos que manifestam (tão somente nos bastidores) descontentamento com os rumos gerais do governo, mas não escondem a fúria com o que consideram ingerência indevida do Judiciário nos negócios do Executivo. A reação ao STF forja um tipo de “união”.
Por outro, o que as redes bolsonaristas em geral e o presidente em particular conseguiram com os sucessivos ataques às pessoas dos ministros foi levar o STF a uma inusitada convergência de posturas entre ministros divididos por querelas pessoais ou pelas sérias dúvidas quanto ao inquérito das fake news. Em outras palavras, em que pesem as divergências internas, a resposta do STF tem sido mais institucional do que “pessoal”.
Os ministros do STF reiteram em uníssono que o Judiciário está sendo atacado pelos que não aceitam fiscalização ou limitação de poderes, não respeitam o pacto federativo, interferem em órgãos do Estado (como Polícia e Receita Federal) por motivos pessoais ou políticos, agem contra a saúde pública ao desrespeitar critérios técnicos e científicos no combate ao coronavírus, desprezam a educação e mobilizam setores do eleitorado contra instituições como Legislativo e Judiciário. Em resumo, Jair Bolsonaro.
Nos bastidores do mundo do direito em Brasília admite-se que não surgiram até aqui evidências contundentes para basear eventual denúncia da Procuradoria que “automaticamente” encurtaria a permanência de Jair no Planalto. Tal desfecho só poderia surgir de um julgamento político no Congresso, reitera-se. É exatamente o que um grupo dentro do STF espera conseguir.
Alberto Aggio: 'Bolsonaro é o responsável por essas mortes provocadas pela Covid-19'
Em entrevista para o Papo Com Cabeça, o professor titular de história da UNESP/Franca, Alberto Aggio, responsabiliza o governo Bolsonaro pelo aumento exponencial das mortes, nos últimos dias, por Covid-19, ao minimizar a gravidade do vírus e ao trazer instabilidade política ao país, confrontando governadores e demitindo ministros
Permitam-me iniciar a introdução desta entrevista com uma explicação sobre o blog. Este blog tem como objetivo fazer entrevistas com atores diversos de nossa sociedade, como esportistas, políticos, intelectuais e entre outras pessoas que direta ou indiretamente tornam-se notáveis pelas suas ações em nosso meio social. Este blog, notadamente, também possuí um viés mais liberal, e procura compartilhar noticias que se aproximem desta corrente. Entretanto, não é um espaço fechado, pelo contrário, é um lugar que procura trazer o pensamento antagônico para se abrir ainda mais o leque do debate.
Dito isso, na semana passada, entrevistei o professor e doutor de história da UNESP/Franca, Jean Marcel, um intelectual reconhecidamente liberal. Nesta semana, trago uma entrevista que pode ser um contraponto em relação ao que tivemos com o professor Jean. O entrevistado da vez para o Papo Com Cabeça, é o também professor e doutor de história da UNESP/Franca, Alberto Aggio, intelectual de centro-esquerda e grande especialista do pensamento gramsciano.
Aggio se destaca no cenário intelectual por sua incisiva defesa pela democracia. Para o professor, a conquista da democracia no Brasil, após o regime militar, “foi muito custosa e difícil”. Por isso, ao ser indagado se Bolsonaro representava um risco ao campo democrático, Aggio foi enfático: “o governo Bolsonaro fez uma opção estratégica pelo confronto e isso gera uma sensação de ameaça e insegurança permanentes em relação à manutenção da democracia”.
No auge da crise sanitária do Covid-19, não poderíamos deixar de discorrer sobre o assunto e como Aggio analisa as ações do governo Bolsonaro frente ao problema. Para o professor, o presidente brasileiro é o grande responsável pela instabilidade política no país, pela extensão do número de contaminados e pelo aumento do número de mortes, que ultrapassa a casa dos 22 mil mortos. “Bolsonaro minimiza a epidemia, confronta governadores e prefeitos, mantem os ataques à mídia, demite dois ministros da saúde e outro que é símbolo da luta contra a corrupção”, avalia Aggio.
Ainda nesta entrevista falamos sobre Democracia Liberal, Social Democracia, Liberalismo e outros assuntos que envolvem nosso dia a dia social e político. Confiram!
Como você avalia o governo Bolsonaro, antes da crise, e agora na forma como está lidando com o Covid-19?
Alberto Aggio - O governo Bolsonaro é resultado de uma eleição legítima, uma rotina em qualquer democracia. Contudo, desde o início, o presidente se pauta por uma estratégia de “destruição” de tudo o que o país construiu nos últimos 30 anos, ou seja, tudo que vem do processo de democratização assentado na Constituição de 1988. Bolsonaro diz que seu objetivo é acabar com a “esquerda”. Na sua versão, com as instituições sociais, politicas e culturais que deram curso à democratização do País. É um equívoco. A democratização foi compartilhada para além da esquerda. Com essa concepção, Bolsonaro expressa a visão da ala mais reacionária do regime militar (1964-1985), aquela que quer repor um regime autoritário por meio de mecanismos democráticos. A estratégia de Bolsonaro é a do confronto. Ele não governa, é um ativador de tensões que busca construir inimigos, muitas vezes imaginários (como a exumação do comunismo como ameaça). Ele instaura um clima de ameaça, afastando-se da ideia basilar de que numa democracia há adversários e não inimigos que precisam ser eliminados. É uma dinâmica que não pode ser parada só pode ir adiante. É o que chamei em um artigo de “guerra de movimento” (https://blogdoaggio.com.br/isso-e-bolsonaro/). A “obra de destruição” que busca Bolsonaro não pode ser realizada em apenas um mandato. Por isso, seu horizonte é a reeleição. Quando vem a crise sanitária provocada pelo coronavírus, tudo fica mais crispado pois suas consequências, principalmente econômicas, ameaçam sua reeleição. O que faz então Bolsonaro? Minimiza a epidemia, confronta governadores e prefeitos, mantem os ataques à mídia, demite dois ministros da saúde e outro que é símbolo da luta contra a corrupção, apoia e vai a manifestações públicas que pedem o fechamento do STF e do Congresso, ou seja, radicaliza sua “guerra de movimento”. O resultado é a queda de popularidade nas pesquisas. Começa-se a se falar em impeachment. Bolsonaro é obrigado a rever, pelo menos em parte, a estratégia de confronto. Move-se em direção ao Centrão no intuito de constituir uma base parlamentar para evitar o impedimento. É aí que estamos: incerteza, insegurança, preocupação com a continuidade da democracia no Brasil e com a licitude dos recursos públicos uma vez que, como disse Sérgio Abranches, Bolsonaro visa formar com o Centrão não uma “coalizão de governo” mas uma “colusão”, ou seja, um arranjo para enganar (http://www.fundacaoastrojildo.com.br/2015/2020/05/19/sergio-abranches-bolsonaro-em-modo-defesa/). Se o governo se sustenta na “ala ideológica” de extrema-direita mais a dos militares, agora Bolsonaro dá passos em direção a um campo que contradiz o seu discurso de campanha contra a alegada “velha política”, promovendo um claro “estelionato eleitoral”. Mas pode bloquear o impeachment, que é o objetivo da operação.
As mortes no Brasil estão crescendo, no entanto, proporcionalmente, por milhões de habitantes, estamos atrás de muitas nações desenvolvidas. Ou seja, mesmo países como Inglaterra, Espanha, Itália etc., não souberam lidar da melhor forma com o vírus. Neste ponto, você não acha que existe uma tentativa da oposição política e parte mídia em responsabilizar o governo Bolsonaro por um problema que tem sido difícil combater até mesmo nas nações mais avançadas?
A.A. Não, não acho. Embora o enfrentamento da pandemia seja complicado porque se trata de algo desconhecido, não creio nem que o Brasil esteja se saindo melhor que países europeus, nem que a mídia atue contra o governo Bolsonaro. O exemplo europeu (e chinês, antes) mostra que a quarentena foi obrigatória, uma imposição, e não uma escolha. Os países europeus, agora, estão saindo dela enquanto o Brasil está entrando na pior fase, com o aumento expressivo do número de mortos. Cabe a pergunta: quem seria o principal responsável no combate à epidemia no Brasil? O governo Bolsonaro, quem mais seria? O Ministério da Saúde deveria fazer a mediação dos entes federativos para enfrentar a epidemia. Mas Bolsonaro atacou de saída os governadores que tinham que dar respostas imediatas à enfermidade. Criticou Mandetta quando o ex-ministro, em meados de março, esteve em São Paulo reunido com o governador João Doria discutindo providências diante da pandemia. Foi Bolsonaro quem politizou o combate a epidemia da Covid-19. Pensou que iria prejudicar sua reeleição, se sentiu ameaçado. Bolsonaro não fez outra coisa senão atrapalhar as ações da saúde, abandonando qualquer relação positiva com os governadores e prefeitos. Jamais convocou o país para juntos – congresso, sociedade civil, mídia, etc. –, enfrentar a epidemia. Ele não acredita nas indicações científicas, não aceita o isolamento social e se fixou obcessivamente nas supostas virtudes da cloroquina para curar os contaminados. Minimizou as mortes com o patético “E daí?”. Estimulou seus apoiadores a irem às ruas defender a volta ao trabalho, adotando a estratégia de opor economia e vida. E mais: na dantesca reunião de 22 de abril (como corretamente a definiu Vera Magalhães (https://gilvanmelo.blogspot.com/2020/05/vera-magalhaes-o-inferno-de-dante.html), Bolsonaro propôs um decreto para armar a população com o suposto intuito de enfrentar decisões de dirigentes eleitos democraticamente a respeito do isolamento social. E aqui estamos, ultrapassando a casa dos 22 mil mortos e isso vai se acelerar. Bolsonaro é sim o responsável por essas mortes provocadas pela Covid-19. Seria dele que os brasileiros deveriam esperar liderança, apreço e convicção na ciência além de compaixão nesse momento tão difícil. Mas ele só ofereceu deboche, desorientação e morte.
Aggio, a economia brasileira é marcada pela informalidade, milhares de pessoas não possuem nem CPF para receber o auxílio emergencial. Nossa realidade é bem distinta dos países mais avançados que permitem ações mais restritas quanto o isolamento social. Como lidar com essa situação na qual as pessoas necessitam, como diz o jargão popular, de vender o almoço para garantir a janta?
A.A. - Esse país conseguiu criar um “cadastro único” para os mais pobres receberem mensalmente as várias bolsas, desde FHC, e o bolsa família. Não conseguiria fazer algo similar nessa situação de emergência? É uma “desculpa deslavada”, como se diz popularmente. Isolamento social não é coisa de rico, como o discurso bolsonarista quer fazer crer. Inclusive, nenhum prefeito ou governador propôs isolamento total (lockdown). Atividades essenciais continuam a operar e por isso se fala que o ideal seria um isolamento entre 50% e 70%; ninguém falou em 100%. Claro que existem dificuldades, mas onde elas existem, como na favela Paraisópolis, em São Paulo (quer um lugar onde tenha mais pobreza e necessidades?), os moradores se organizaram para se ajudar e garantir algum isolamento. Recentemente se inaugurou um hospital de campanha na área para atender aquela população. E de Bolsonaro veio o quê? A noção de “isolamento vertical”, que é uma falácia: imagina-se que confinando os grupos de risco (idosos e quem tem comorbidades) se diminui o contágio e possíveis complicações. Isso não é verdade. As pessoas que convivem com eles levam o vírus para dentro das casas. Além disso, no Norte do país, no Amazonas, está morrendo gente jovem de coronavírus; perto de 40% ou mais não são de grupo de risco. Os problemas da pandemia podem ser enfrentados com solidariedade, ciência e espirito público. Mas isso o governo Bolsonaro parece que não carrega como uma de suas virtudes, se é que em alguma.
Aggio, embora Bolsonaro fale grandes bobagens e possua algumas ações que flertam com a ditadura brasileira, como ter comparecido em um movimento de rua que pedia a volta do AI-5, vemos que os poderes legislativo e judiciário continuam agindo de forma independente, nossas instituições parecem preservadas e a opinião pública livre e independente para se manifestar. Mediante ao que escrevi acima, para você, o governo Bolsonaro representa uma ameaça à democracia brasileira? Se sim, por que?
A.A. - Como eu disse acima, o governo Bolsonaro fez uma opção estratégica pelo confronto e isso gera uma sensação de ameaça e insegurança permanentes em relação à manutenção da democracia. As instituições da democracia só continuam funcionando em função de atores políticos, sociais e culturais que dão vigor a elas. Bolsonaro não apenas diz bobagens. Ele dirige e orienta ações contra a democracia. Vide suas posições em relação à imprensa (creio que não preciso mencioná-las), ao meio ambiente, à cultura, ao patrimônio histórico, às universidades, etc.. Está claro que é um governo extremista de direita, nada liberal e que atenta contra direitos básicos que estão da Constituição. Pior, ele isola o país internacionalmente, faz com que a sociedade regrida em inúmeras pautas civilizatórias e humanistas que tínhamos avançado em termos sociais e culturais, como as dimensões de gênero, a questão da violência, da solidariedade, da laicidade do Estado, etc. Uma das marcas de Bolsonaro é o seu antiintelectualismo e isso faz com que todo o governo seja impactado por essa visão. Contra a Constituição de 1988, Bolsonaro retira (ou expulsa) do Estado a sociedade organizada, que é um dos elementos de sua desoligarquização, ou seja, da ampliação do próprio Estado, pela via da democracia. Com Bolsonaro, a democracia está bloqueada e regride. E isso gera uma sensação de retrocesso que é sentida no conjunto da sociedade. Não é atoa que ele despenca nas pesquisas e mantem seu apoio apenas no núcleo mais radical, que o apoia cegamente.
Existem elementos suficientes que justifiquem um possível pedido de impeachment? Caso existam, você acredita que ele possa ocorrer?
A.A. - Inúmeros especialistas em direito constitucional já disseram que sobram elementos para o impedimento de Bolsonaro. Em geral, os crimes contra o decoro lideram a lista. Tentar utilizar, por exemplo, a Polícia Federal para defender a família e os amigos é prevaricação, ou seja, é mais do que intervenção, o que já é inconstitucional. Manter um sistema de informações privado (que não se sabe muito bem o que é) está fora das atribuições constitucionais de um presidente da República, é um outro exemplo. Contudo, a questão é política, antes de tudo. Olhando a situação com as lentes de hoje, creio que não existe maioria suficiente na Câmara dos Deputados para avançar um processo de impeachment. Lançá-lo poderia reforçar Bolsonaro ao invés de enfraquece-lo. A operação realizada em direção ao Centrão surtiu efeito. Por outro lado, a crise sanitária e a necessidade de isolamento social impedem que o sentimento de desencanto com o governo transborde para as ruas numa contestação massiva. Penso que a ameaça de existência ou de criação de uma “milícia armada” dentre os apoiadores de Bolsonaro é outra coisa preocupante. Ambos os fatores definem muito da situação complicada para o impeachment, em termos políticos. O processo de crime comum que seria encaminhado pela PGR ao STF, aparentemente mais rápido, tem outros obstáculos. É difícil dizer hoje por onde esse processo irá ser encaminhado ou se será encaminhado.
Aggio, em 2018 você participou do Ato do Polo Democrático Reformista, um movimento de políticos e intelectuais de centro que, naquela ocasião de eleições, visava combater os chamados extremos, Bolsonaro e o PT. Em recente artigo (https://gilvanmelo.blogspot.com/2020/05/mathias-alencastro-vida-e-morte-da.html), Mathias Alencastro, doutor em Ciência Política por Oxford, disse que na Europa partidos políticos, até de diferentes vertentes, têm se unido para combater o extremismo de direita, citando a “Geringonça” de Portugal. Pois bem, em 2018 e trazendo para os dias atuais, se os partidos de centro, e até mesmo o Polo Democrático Reformista, estavam tão preocupados em “salvar” a democracia dos considerados extremos, por que não houve uma união entre os nomes e partidos democráticos de centro, como Ciro, Alckmin e Marina?
A.A. - É difícil responder a isso. É claro que cada opção eleitoral feita deve se responsabilizar por suas consequências. Creio que houve muitos erros de encaminhamento e de opções. Havia um clima muito desfavorável à política. Eu mesmo escrevi sobre a antipolítica como um caldo de cultura antidemocrático naquela conjuntura. E todos nós perdemos. Mas mesmo assim, continuamos preocupados em “salvar” a democracia. A sua conquista no Brasil foi muito custosa e difícil. É justo que nós a defendamos. É verdade que na Europa existiram articulações que impediram, em alguns países, a ascensão da extrema-direita ao poder. Na Itália isso é bastante claro. Matteo Salvini imaginou que poderia conquistar “plenos poderes”, mas fez uma manobra desastrada que abriu a possibilidade de retirá-lo do poder. É um caso especifico. Na Espanha houve uma espécie de renascimento do PSOE e o Podemos, depois de muitas reviravoltas, moveu-se para uma aliança de “governo de esquerdas” e o VOX (extrema-direita) foi anulado. Creio que a Geringonça, em Portugal, pelas informações que tenho, nunca foi uma coalisão eleitoral e sim uma colisão de governo. Hoje ela não existe mais. Mas em Portugal, a extrema-direita é fraquíssima.
Você enxerga a necessidade de uma união dos partidos para vencer Bolsonaro e/ou o PT, assim como colocou Mathias Alencatro?
A.A. - Mais do que união de partidos, creio que será necessário unir todos os democratas, da direita à esquerda, para vencer Bolsonaro. O PT não está no governo. Ele já foi derrotado. O PT representa setores importantes das classes populares, mas não é um sujeito democrático confiável, além de ter um passivo terrível no que se refere à corrupção e ao aparelhamento do Estado. Além de uma liderança ancilosada, que é o Lula. O problema do Brasil hoje é Bolsonaro e não o PT, que está em declínio, enfraquecido, embora tenha alcançado um bom desempenho nas majoritárias de 2018. De qualquer forma, a sociedade reconhece a polarização entre Bolsonaro e o PT. O problema é superar esse reconhecimento, indicar que a situação hoje é outra. Bolsonaro nos leva para o precipício. O vídeo revelando a reunião ministerial de 22 de abril é pavoroso, nos enche de vergonha, demonstra que o Brasil precisa ultrapassar o erro de 2018 e voltar a pensar em novas possibilidades, novas lideranças, que sejam capazes de unir o país e voltar a pensar no seu futuro.
Aggio, quando você vê a ascensão de grupos denominados de extrema direita no mundo, como um todo, você acredita que isso é parte da democracia, dar voz a pluralidade de ideias políticas, ou você analisa como uma ameaça ou crise “DA” democracia liberal?
A.A. - Essa extrema-direita que está aí é iliberal. Foi Viktor Orban, primeiro ministro da Hungria, que criou a expressão “democracia iliberal” para caracterizar esse movimento. D. Trump e J. Bolsonaro a representam à sua maneira e em seus países. Isso é público e insofismável. Essa corrente política é contra o pluralismo que caracteriza a democracia liberal que conhecemos. Contradita também as diversas correntes do liberalismo democrático que vicejou no final do século XX nos países mais avançados e que ainda está aí. Essa extrema-direita é visceralmente contra a democracia como civilização. A ascensão da extrema-direita não é resultado do pluralismo, justamente o contrário, é resultado de uma fragilidade e de equívocos que permitiram que isso ocorresse. A virtude da democracia aponta para a ampliação da emancipação humana e não para um projeto de individualismo exacerbado e de guerra de todos contra todos. Penso que o crescimento dessas forças políticas expressa uma crise da e na democracia ocidental; uma coisa não exclui a outra, como pensam alguns. E se prende a conflitos políticos e econômicos da nossa contemporaneidade e não a batalhas ideológicas simplesmente. É um problema que tem que se abordado pela política e não pela gramática da ideologia.
Admitindo a radicalidade desses extremos, qual autocritica que os democratas liberais poderiam fazer e quais mudanças poderiam realizar para contornar este cenário?
A.A. - Creio que autocrítica devemos fazer todos, pois perdemos eleitoral e politicamente. Mas devemos continuar a defender a democracia. Estamos num momento defensivo e para melhor defendê-la é preciso também avançar. A democracia não é um sistema ou regime político que possa existir sem uma defesa intransigente dos seus princípios e valores: liberdade, emancipação, deveres e direitos, compromisso político, institucionalidade, transparência, justiça social, etc… Dois pontos são importantes. Primeiro, pensar a democracia como complexidade. Ela não se materializa, não se concretiza, não se torna real, a partir da simplificação, uma visão branco e preto, com todas as perversões do pensamento binário. Essa visão da política, no nosso caso, leva rapidamente para as ideias sempre estúpidas de um “salvador da pátria” ou de um “mito” que muitos seguem cegamente. Segundo, que a democracia só se vitaliza, só avança com “mais democracia” ou, em outros termos, democratizando a democracia. Essa é uma formulação presente nos liberais progressistas que se aproxima bastante de formulas progressistas da esquerda democrática, socialdemocrática e reformista.
Aggio, a analista econômica, Renata Barreto, em artigo para o InfoMoney, disse para “não confundirmos o modelo nórdico com socialista”. Durante o artigo, ela discorre que apesar das altas taxas de impostos cobradas pelo governo, a Dinamarca, por exemplo, tem várias características de um país liberal. Pois bem, este debate Liberalismo versus Social Democracia ainda existe? Os países nórdicos são, de fato, sociais democratas?
A.A. - Tem que se olhar o liberalismo do ponto de vista histórico. Lembro que Harold Lask, historiador inglês, dizia, que o socialismo seria uma consequência natural da aplicação do liberalismo. Muito pouca gente sabe que o liberal G. Mazzini, um dos líderes da unificação italiana e o comunista K. Marx, publicavam seus escritos pela mesma editora londrina, por volta de 1846/48, a “Northern Star”, que se notabilizou pelos debates sobre democracia e o movimento operário às vésperas das revoluções de 1848. Os socialdemocratas que, no final do século XIX, começaram a participar das eleições e ascenderam ao governo em países que cada vez mais se tornavam democracias liberais, como E. Beirstein e K. Kautsky, foram criticados como liberais e traidores de classe. Por conta deles e de outros, passou-se a se falar em “socialismo liberal”. Veja, são exemplos históricos que anulam a versão de que há uma contradição antagônica entre liberalismo e socialdemocracia. O liberalismo é uma concepção de mundo enquanto a socialdemocracia foi e é uma política de massas no contexto do Estado Ampliado. Para finalizar, a noção de “regulação” nasce nos países nórdicos com os socialdemocratas entre as duas guerras e era uma alternativa tanto ao fascismo quanto ao comunismo nos anos 30. Não há dúvida que os países nórdicos são socialdemocratas e que o liberalismo não seja algo estranho àquela construção histórica. O que é certo é que eles não permanecerão congelados historicamente.
O nacional desenvolvimentismo petista trouxe grandes prejuízos ao Brasil, sem falar do grande “projeto” de corrupção descortinado pela Lava-Jato. Depois do petismo, do excesso de Estado e funcionalismo público, temos visto muitas pessoas (inclusive eu) defendendo menos Estado e mais mercado. Como você avalia as ideias liberais, hoje até mais representadas pelo Partido Novo e pelo ministro Guedes, na sociedade brasileira como um todo?
A.A. - Veja, o PT não adotou o nacional-desenvolvimentismo durante todo período dos seus governos. O primeiro governo Lula e o último de Dilma são completamente distintos nesse sentido. A questão da hipertrofia do Estado em nossa história é muito anterior a isso. O nosso estatismo forma parte de uma espécie de tradição que nos acompanha deste a colonização portuguesa, se acentuou no Império e não pode ser excluída de nenhuma fase de nossa história republicana. O regime militar foi ao mesmo tempo estatista e liberal, dando vazão aos apetites empresariais no período do chamado milagre brasileiro (1968-1973), o tal “espirito animal” ou “selvagem” do empresariado a que se referia Delfim Neto, ex-ministro da Fazenda do regime militar. Contudo, nos dias de hoje, pensar de forma apartada e até oposta os conceitos de Estado e mercado talvez não faça mais sentido e nem seja produtivo. O pensamento neoliberal quer mantê-los apartados. Mas não tenho dúvidas que as ideias liberais no Brasil vão muito além das referências ao partido Novo ou a Paulo Guedes. Aconselho a se visitar as páginas de um grande jornal liberal, O Estado de São Paulo, para ver como uma das mais importantes linhagens do nosso liberalismo avalia o país sob Bolsonaro. Por outro lado, há diversos liberais que pensam de forma independente e são muito críticos tanto ao Novo e mais ainda ao Guedes, um neoliberal que, formado em Chicago e inspirado no caso chileno do período pinochetista, distancia-se da tradição das linhagens mais importantes e relevantes do liberalismo aqui no Brasil, que podem ir de Pedro Malan, Bolivar Lamounier até Monica de Bolle e Elena Landau, para citar apenas alguns da boa cepa que esse país já produziu.
Para encerrar, falando em projeto de poder para o Brasil e frente a este debate de mais ou menos Estado, o que você considera ser essencial para o nosso país mediante toda a nossa realidade socioeconômica?
A.A. - Este talvez seja um tema para uma outra entrevista de tão complexo que é elaborar um projeto aqui, em poucas linhas. De qualquer forma, creio que temos que ultrapassar essa situação terrível que estamos vivendo, acossados por uma pandemia e submetidos à deriva que nos é imposta por um governo como o de Bolsonaro. Temos que resgatar a nossa capacidade de diálogo, de nos atualizarmos ao mundo e de olharmos para as nossas particularidades enquanto país que se modernizou carregando inúmeros déficits que expressam a nossa dramática desigualdade bem como nossa miséria cultural e moral, sérios obstáculos à democracia. Não há salto a ser dado nem “fuga para frente” a ser seguida, como se pensou no passado. O nosso destino está dado aqui e agora. Esse é o desafio.
Elio Gaspari: Uma reunião patética
Chega a ser um exercício pedagógico, sobretudo num tempo de horas vagas
A leitura da transcrição da patética reunião do ministério de Jair Bolsonaro exige algum tempo, mas chega a ser um exercício pedagógico, sobretudo num tempo de horas vagas. Descontem-se os palavrões (37). Esqueçam-se as tolices (um dos maganos dizendo que o pico da epidemia parecia ter passado). Deixem-se de lado os delírios presidenciais. Sobra o quê? O ministro da Economia, Paulo Guedes, dizendo que leu o economista inglês John Maynard Keynes no original, insistindo nas suas “reformas estruturantes” e colocando duas propostas na mesa.
A primeira foi criativa, caso inédito de colocação do maoísmo a serviço dos cânones da universidade de Chicago. Ele propôs uma mobilização de jovens para que se formassem como aprendizes. Quantos? “Duzentos mil, trezentos mil”. Nas suas palavras: “O cara de manhã faz calistenia, canta o hino, bate continência”, ajuda a abrir estradas e “aprende a ser cidadão”. O doutor lembrou que a “Alemanha fez isso na reconstrução”. Em 1945 a Alemanha estava destruída e faminta, mas deixa pra lá.
Afora a ingenuidade dessa proposta de militarização do andar de baixo, Guedes expôs outra avenida para o progresso e novamente inspirou-se na Ásia. Nas suas palavras:
“O problema do jogo lá… nos recursos integrados [provavelmente ele disse “resorts”]. Tem problema nenhum. São bilionários, são milionários. Executivo do mundo inteiro. O cara vem, é… fazem convenções … olha, a … o … o turismo saiu de cinco milhões em Cingapura pra 30 milhões por ano. (…) Macau recebe 26 milhões hoje na … na China. Só por causa desse negócio. É um centro de negócios. É só maior de idade. O cara entra, deixa grana lá que ele ganhou anteontem, — ele deixa aquilo lá, bebe, sai feliz da vida. Aquilo ali num … atrapalha ninguém. Aquilo não atrapalha ninguém. Deixa cada um se foder. (…) O presidente fala em liberdade. Deixa cada um se foder do jeito que quiser. Principalmente se o cara é maior, vacinado e bilionário. Deixa o cara se foder, pô! Não tem … lá não entra nenhum, lá não entra nenhum brasileirinho”.
No meio de uma epidemia e de uma recessão, o ministro da Economia oferece a legalização da jogatina em resorts turísticos. Esse é um velho sonho de Bolsonaro, desde sua conversão à ideia pelo magnata americano Sheldon Adelson, dono de resorts em Las Vegas, Cingapura e Macau. De fato, nos cassinos de Adams, “brasileirinho” não entra. Guedes conhece o Rio de Janeiro. Ele ganha um mês de férias em Macau se realmente acredita que alguém operará um cassino por lá sem que o crime organizado (e a milícia) entrem na operação. Sem cassinos, três governadores do Estado foram para a cadeia e um continua lá. (Na China, o hierarca que ocupou cargos equivalentes à presidência da Petrobras e ao Gabinete de Segurança Institucional está trancado).
O aspecto patético da reunião presidida por Bolsonaro é que ela não leva a lugar nenhum. E não leva porque o presidente não tem a menor ideia do que fazer, salvo sair por aí arrumando brigas.
Alô, alô Faria Lima
Um trecho das falas de Paulo Guedes, para a turma do papelório pensar na vida.
“Ô presidente, esses valores e esses princípios e o alerta aí do Weintraub é válido também, como seu… sua evocação é que realmente nós estamos todos aqui por esses valores. Nós tamos aqui por esses valores. Nós não podemos nos esquecer disso. Nós podemos conversar com todo mundo aqui, porque é o establishment, é porque nós precisamos dele pra aprovar coisa, mas nós sabemos que nós somos diferentes. Nós temos noção que nós somos diferentes deles”.
O Centrão no FNDE
Jair Bolsonaro prometeu governar com a boa vontade daquilo que chamava de “bancadas temáticas”. Nem ele, que acredita em “resfriadinho”, acreditava nisso. O deputado Alceu Moreira (MDB-RS), presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária avisava: “Quem disser que sabe qual é o resultado que esse novo modelo produzirá, de duas uma: ou é adivinho ou está mentindo”. Deu-se o inevitável e a “nova política” do capitão desembocou num acordo com o velho centrão. Nem sempre o inevitável precisa ser tóxico, os governos anteriores mantiveram padrões variáveis de moralidade nas suas negociações com essa bancada de interesses difusos, mas Bolsonaro exagerou. No primeiro toma-lá-dá-cá entregou o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas. No segundo, terceirizou uma diretoria do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, entregando-a ao chefe de gabinete da liderança do Partido Liberal, onde reina o inesgotável Valdemar Costa Neto. Com um caixa de R$ 55 bilhões o FNDE não é coisa que possa ficar dando sopa.
Em menos de dois anos do governo de Bolsonaro, esse fundo já teve três presidentes e vida acidentada. Com pouco mais de uma semana, em janeiro de 2019, descobriu-se que uma mão invisível havia mudado um edital, permitindo a inclusão de publicidade nos livros didáticos. A burocracia explicou-se dizendo que “houve um erro operacional no versionamento”. O que é isso, não se sabe. Em agosto passado o FNDE publicou um edital para a compra de 1,3 milhão de computadores, notebooks e laptops para a rede pública de ensino. Coisa de R$ 3 bilhões. A Controladoria Geral da União sentiu cheiro de queimado. E não era para menos, 355 escolas receberiam mais laptops que seu número de alunos. Uma delas, em Itabirito (MG) receberia 30.030 laptops. Como tinha 255 alunos, disso resultaria que cada um deles receberia 117 pequenos computadores.
O edital foi suspenso, o presidente do FNDE foi trocado e a peça foi revogada. Pouco depois,sem qualquer aviso, caiu o segundo gestor do fundo. O que seria um caso clássico de bom funcionamento dos órgãos de controle da máquina do Estado, tornou-se também um exemplo da falta de transparência de um governo que faz uma nova política. Ninguém sabe quem botou o jabuti no edital de agosto.
O ministro da Educassão, Abraham Weintraub, perdeu a oportunidade de lustrar sua biografia. Em vez de sugerir a prisão de ministros do Supremo, poderia ter mostrado o caminho da Procuradoria à turma que concebeu o edital do FNDE.
Brazil?
De um empresário que opera internacionalmente:
"Do jeito que vai a reputação do Brasil pelo mundo afora, daqui a pouco eu só conseguirei ser atendido pelas secretárias eletrônicas".
Eremildo, o idiota
Eremildo é um idiota e não acredita em denúncias.
A única coisa que ele não entende é por que os Bolsonaro demitiram Fabrício Queiroz e sua filha Nathalia.
Tendo demitido o chevalier servant os Bolsonaro não deveriam ter se interessado pela sua defesa.
Proeza
O governo do Rio conseguiu uma proeza: antecipou os escândalos em torno da construção dos hospitais de campanha e adiou suas inaugurações.