STF

Fernando Schüler: O Supremo é o editor da sociedade?

Foi exatamente contra a ideia do 'Estado editor' que surgiu o conceito moderno de liberdade de expressão

Foi interessante assistir ao ministro Dias Toffoli, nesta semana, em um debate promovido pelo site Poder 360, expondo com clareza seus pontos de vista sobre temas de censura e liberdade de expressão hoje em pauta no país.

O ministro foi taxativo: “A Constituição veda de modo absoluto a censura prévia”. E concluiu: “Aquilo que ainda não foi tornado público pode vir a público e a pessoa vai arcar com suas consequências […] pode emitir sua ideia, seja ela qual for. Até de defender o nazismo, até de defender o fechamento do Supremo”.

Dito isto, era óbvia a pergunta pendurada no ar: e os cidadãos banidos das redes sociais, no inquérito das fake news? Isto é, impedidos previamente de dizer as coisas que poderiam lhes trazer “consequências”. O que dizer?

O ministro sugeriu uma distinção: uma coisa seria proibir a “expressão” de um indivíduo; outra seria proibi-lo do uso de “veículos” para se expressar. Nesta lógica, os bloqueados não teriam perdido sua liberdade. Apenas não poderiam fazê-lo no Facebook ou no Instagram. Poderiam publicar panfletos, imaginei, mas ninguém aventou a hipótese.

Ato seguinte, o ministro sugeriu uma analogia entre os bloqueios e as prisões preventivas. Privação do direito de ir e vir seria muito mais grave do que perda da liberdade intelectual ou de expressão. Por que então deveria chocar mais as pessoas “meia dúzia de redes sociais paradas do que 200 mil pessoas presas provisoriamente?”

De minha parte, só vejo uma resposta a esta questão: choca por que é algo que não está na lei, muito menos na Constituição. Não importa que se trate de prisão ou banimento do Twitter. Choca é o desrespeito a um princípio, que é um bem para uma sociedade democrática.

O ministro foi além. Depois de se referir ao fato de que toda empresa de comunicação tem seu editor, explicou que “nós, enquanto Judiciário, enquanto Suprema Corte, somos editores de um país inteiro, de uma nação inteira, de um povo inteiro”.

Eugênio Bucci estava no debate e, com sua gentileza habitual, lembrou que sociedades não funcionam como empresas de comunicação. Estas pertencem ao mundo privado e podem demitir o funcionário a partir de juízos de valor. Caberia, porém, a uma instituição de Estado fazer o mesmo? Isto é, “eleger valores que definem a circulação de conteúdos”?

Eis aí a questão central: sociedades abertas precisam de um “editor”? Sociedades que se definem precisamente pela diversidade de visões de mundo e por um desacordo fundamental sobre o erro e o acerto, o falso e o verdadeiro?

A resposta a esta pergunta está no próprio nascimento da ideia moderna de liberdade de expressão. Foi para defender o fim do direito à censura prévia de livros que o poeta inglês John Milton, no coração da revolução inglesa, escreveu sua “Areopagítica”.

Em 1644 eram os livros. Hoje são redes e blogs. A questão fundamental é a mesma. Deveríamos presumir, perguntava Milton, que aqueles que censuram “dispõem da graça da infalibilidade, acima de todos nessa terra”? Era exatamente contra a ideia do Estado editor que John Milton se batia.

Estas questões pareciam estar resolvidas há muito tempo. De uma hora para outra, a coisa mudou. Vamos nos tornando um país em que a defesa da liberdade de expressão vai surgindo como um exercício perigosamente retórico e seletivo. E estranhamente capaz de assustar as pessoas.

País em que se aceita acriticamente o retorno da “absolutamente vedada” censura prévia. A lógica do “você não fala mais nada, seja bom, seja mau, seja verdade, seja mentira”, como bem lembrou o professor e amigo Marco Sabino.

Os crimes cometidos na internet devem ser punidos, na forma da lei, e é saudável que se discuta mecanismos de proteção das instituições frente às novas tecnologias. O Congresso, neste exato momento, se dedica a esse debate.

Nada disso, porém, admite a tutela do Estado sobre a opinião. Ainda lembro do orgulho que todos sentimos quando a ministra Cármen Lúcia lembrou canções de sua infância para dizer que o “cala a boca já morreu”. Sugiro não ressuscitá-lo.

*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.


Hélio Schwartsman: Estamos, afinal, numa República

Determinação de Alexandre de Moares impõe um veto prévio a mensagens independentemente do conteúdo

A pedidos, escrevo sobre o bloqueio de contas de bolsonaristas em redes sociais determinado pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF. Evitei o assunto até aqui por considerá-lo desimportante. Sei que é uma idiossincrasia minha, mas, na condição de alguém que não participa de nenhuma rede social, o banimento do WhatsApp não me emociona.

Moraes exagerou. Não dá para afirmar que ele tenha silenciado os bolsonaristas, já que estes seguem livres para dizer o que quiserem por qualquer outro meio que não as plataformas citadas no despacho. Mas a determinação do magistrado é ampla demais, pois impõe um veto prévio a mensagens independentemente de seu conteúdo.

Pior do que isso é a própria existência do chamado inquérito das fake news, em que o STF atua ao mesmo tempo como vítima, autoridade policial e juiz. É a definição mesma de teratogenia judiciária. Mas, como na democracia quem tem sempre a última palavra em questões legais é o STF, não nos resta senão aceitar suas decisões mesmo que delas discordemos.

Quanto ao mérito, sempre advoguei por uma versão forte da liberdade de expressão. Filosoficamente, considero a abordagem dos norte-americanos, que aceitam até manifestações nazistas, racistas, homofóbicas, mais consistente do que a noção de democracia militante dos alemães, que se dispõem a criminalizar tudo o que soe como um ataque às instituições. Não vejo como distinguir ataques verbais de críticas contundentes, das quais as democracias precisam para aprimorar-se.

Daí não decorre, é claro, que o STF ou qualquer outra parte deva aceitar passivamente as agressões promovidas pelo gabinete do ódio. Até por serem burros e descuidados, bolsonaristas frequentemente incidem em crimes como os de ameaça e calúnia. É a esses tipos, na forma em que podem ser acionados por qualquer cidadão, que os ministros deveriam recorrer. Estamos, afinal, numa República.


Pablo Ortellado: Receio de regular mídias sociais favorece o status quo

Celeridade da lei das fake news não permite pactuar as regras, mas regulação da moderação de conteúdo segue necessária

As regras que orientam o funcionamento das mídias sociais estão outra vez no coração do debate político. A regulamentação do seu funcionamento é um dos maiores desafios das políticas públicas e é efetivamente cheia de riscos —mas a inação, com a manutenção do status quo, é pior.

Há duas questões que são o cerne do problema. A primeira é que a liberdade de expressão, basilar para o funcionamento de uma democracia, às vezes entra em choque com outros direitos, como o direito das minorias, o direito à honra ou o direito à saúde. E esses direitos precisam ser equilibrados.

A segunda questão é que, na ausência de uma regulação pública, prevalece o autorregramento do setor privado, o que o jurista americano Lawrence Lessig imortalizou no slogan "code is law", ou seja, quem escreve o código do serviço regula o seu funcionamento.

Esse imbroglio está no centro do debate, tanto sobre as ações de moderação e fechamento de contas pelas plataformas de mídia social como sobre o PL das fake news. Em ambos os casos, há o argumento, que vem ganhando adesão, de que não se deve olhar para os conteúdos, mas para os comportamentos, aplicando medidas punitivas mais duras apenas para quem usa contas falsas ou tenta manipular os algoritmos.

Essa saída é boa apenas para as empresas, que desviam assim o foco do enorme poder que exercem sobre a moderação do debate público. Afinal, há vários conteúdos impróprios que circulam nas plataformas e que não vêm acompanhados do chamado "comportamento inautêntico". Nem sempre quem veicula discurso de ódio, por exemplo, se faz passar por outrem.

Se decidirmos então que é preciso olhar para os conteúdos, vamos ter que pactuar as regras do debate democrático. Se é bem verdade que a celeridade que os presidentes das casas legislativas impuseram à tramitação do projeto de lei das fake news não permite fazer agora essa pactuação com o devido cuidado, isso não significa que ela não precisará ser feita no futuro.

O processo de moderação de conteúdos nas mídias sociais precisa ser regulado.

Não podemos deixar que empresas privadas, agindo segundo regras inteiramente próprias e sem nenhuma supervisão, excluam, rotulem ou diminuam o alcance de postagens ou suprimam contas. Talvez seja preciso ir além e mitigar ou eliminar os incentivos que as plataformas oferecem para discursos delirantes, inflamatórios e divisivos.

Intervir nisso é perigoso e delicado, mas depois de tudo o que vivemos —da ascensão da extrema direita ao negacionismo da Covid— manter o status quo não deveria mais ser uma opção.

*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.


Ricardo Noblat: Não passará!

Ação de Bolsonaro foi só para afagar seus seguidores

Dá-se como certo entre ministros do Supremo Tribunal Federal ainda de férias que eles recusarão o pedido do presidente Jair Bolsonaro e da Advocacia-Geral da União (AGU) para suspender o bloqueio nas redes sociais de contas usadas por bolsonaristas de relevo para a publicação de fake news.

E por uma simples razão: a AGU, segundo dois ministros ouvidos por este blog no fim da última semana, advoga em favor dos interesses do governo, não dos interesses do presidente da República. E o governo nada tem a ver com o bloqueio das contas. Não eram contas do governo, tampouco do presidente.

Certamente a AGU deve ter sido pressionada por Bolsonaro a agir assim. Ele precisava dar uma satisfação aos seus parceiros, mostrar que um comandante não abandona soldados feridos em meio a uma batalha.
Outros parceiros dele, que não foram atingidos pelo bloqueio de contas, saíram em defesa do seu gesto.

Recentemente, ocorreu algo parecido com o ministro André Mendonça, da Justiça, que ao tomar posse se disse “um servidor fiel” de Bolsonaro. Mendonça entrou no Supremo com um pedido de habeas corpus para tirar do inquérito das fake news o então ministro Abraham Weintraub, da Educação.

O pedido foi considerado “uma bizarrice” jurídica por ministros do Supremo. E, por isso, rejeitado. Mendonça é forte candidato à vaga que se abrirá no Supremo até novembro com a aposentadoria do ministro Celso de Mello, o decano da Corte. Está empenhado em agradar Bolsonaro desde agora.

Depois da pílula do câncer e da cloroquina, o próximo passo de Bolsonaro

Fé e bons negócios
Não será surpresa para este blog se o presidente Jair Bolsonaro, a pretexto de qualquer coisa ou de nada, comece a duvidar dos efeitos das vacinas que vierem a ser lançadas para deter o avanço do coronavírus. Não o fará contra uma eventual vacina “made in the USA”, avalizada por seu ídolo Donald Trump. Mas até contra ela estará à vontade para se lançar caso Trump não se reeleja.

Nada de estranho haverá nisso. Os que duvidam da eficácia de vacinas chegam a milhões no mundo, muitos deles por motivos religiosos. Bolsonaro deve sua eleição, em parte, ao voto religioso, principalmente o evangélico. Natural, pois, para quem, como ele, batizou-se no rio Jordão interessado em ganhar apoios, que se rebele contra a aplicação de vacinas em quem prefira não tomá-las.

De resto, Bolsonaro não pensa em renunciar à sua devoção à cloroquina, da qual virou um presidente garoto propaganda. Deve ter lá suas razões confessáveis e outras não. A mais inocente delas seria o fato de que obrigou o Exército a produzir milhões de caixas da droga e agora tem de desová-las a qualquer custo. Mas essa não foi a primeira vez que ele apostou errado em um remédio.

Um dos únicos três projetos que Bolsonaro conseguiu aprovar em quase 30 anos como deputado federal foi o que regulamentou a produção de fosfoetanolamina sintética, conhecida como “pílula do câncer”. Embora jamais tenha provado sua eficácia em testes, a pílula ganhou fama após ser distribuída durante 20 anos pelo químico Gilberto Orivaldo Chierice, da Universidade de São Paulo.

Em 2016, na tentativa de melhorar sua relação com o Congresso, a então presidente Dilma Rousseff sancionou o projeto de autoria de Bolsonaro. Logo depois, porém, por 6 votos contra 4, a pílula do câncer foi proibida pelo Supremo Tribunal Federal. Sim, parte do Supremo é capaz de acreditar em milagres. Mais da metade dos seus atuais integrantes foi cliente do falso médium João de Deus.

Uma vez eleito presidente, Bolsonaro voltou a cobrar que o Supremo reveja sua decisão. “Não dá para esperar”, disse ele à época. Ignorância apenas? Ou mais um sinal de desprezo pela Ciência em linha com uma fatia expressiva dos seus devotos? Ou Bolsonaro apenas antevê mais uma oportunidade de fazer bons negócios? Não se sabe. Possivelmente jamais se saberá.


Vera Magalhães: Boca torta

Fumar o mesmo cachimbo autoritário de Bolsonaro não vai contê-lo

O maior risco às democracias hoje, como se sabe, não são golpes ou revoluções, mas a corrosão lenta, gradual e metódica de seus pilares por parte daqueles (governantes, partidos, legisladores, juízes, procuradores) que deveriam zelar pela sua preservação.

Com um governo como o de Jair Bolsonaro, de propensão abertamente autoritária, opaca e antidemocrática, o risco é diário, inclusive nas ações que outras forças (Poderes, instituições, grupos políticos) tomam para tentar contê-lo.

Diz o dito popular que o uso do cachimbo deixa a boca torta. O expediente de recorrer a artifícios legais e a medidas extremas sob o pretexto de conter ilegalidades ou extremismos alheios acaba igualando a todos num fumacê perigoso e atentatório às liberdades.

Na mesma semana, um ministro do Supremo Tribunal Federal determinou o banimento de bolsonaristas das redes sociais sob a justificativa de que é necessário conter crimes de ódio, um levantamento mostrou o recorde de ações da Polícia Federal baseadas na Lei de Segurança Nacional e foi revelada uma investigação secreta do serviço de inteligência do governo Bolsonaro contra integrantes de grupos antifascistas. Se isso é plena vigência do Estado Democrático Direito, o que seria atentar contra ele?

Quando o plenário do STF chancelou, por 10 votos a 1, o tentacular inquérito das fake news estavam subjacentes dois entendimentos: 1) mesmo aqueles ministros que viam abusos no procedimento o engoliram porque reconheciam a necessidade de dar uma resposta à escalada golpista de Bolsonaro e seus apoiadores; 2) a partir dali, o feito seria “saneado”, e suas ações, mais transparentes.

Depois de alguns dias de calmaria, o relator, Alexandre de Moraes, determinou nesta semana uma das medidas mais radicais entre várias tomadas por ele no âmbito desse procedimento que já censurou a imprensa, vasculhou casa de internautas e colocou gente na cadeia.

É evidente que há indícios de crimes encobertos sob o manto da liberdade de expressão sendo cometidos nas redes sociais, e que isso vem de uma teia muito bem estruturada, principalmente financeiramente. Mas a decisão de Moraes não evidencia quais são esses crimes ao determinar a retirada do ar das contas do fã-clube bolsonarista.

Em mais de três páginas são expostos tuítes dos atingidos pela medida. Há ali memes, bravatas, bobagens, desinformação e incitação a manifestações, mas é difícil sustentar que haja cometimento de crimes. Ainda mais sem o link essencial para configurar a tese que está em apuração: que empresários financiam destruição de reputações, influenciam em resultados eleitorais, custeiam treinamento de extremistas e manifestações pelo fechamento do STF e do Congresso.

Esses todos são crimes evidentes e tipificados, e há indícios de que tenham sido cometidos, mas precisam estar demonstrados. Há um caminho para isso: quebras de sigilos primeiro, a obtenção de dados de empresas em seguida (o ministro diz na decisão que solicitou informações ao WhatsApp e fez o mesmo com a auditoria do Facebook que baniu perfis inautênticos) e, depois, o cruzamento dessas informações.

O que há na decisão de Moraes são organogramas atribuídos a laudos periciais da PF que qualquer nerd de redes sociais faz a partir da análise de interações: quem usa qual hashtag, quem segue e compartilha quem, quem dita o discurso. O “siga o dinheiro” não chega nem perto de ser demonstrado ali, nem os crimes efetivos.

Todo democrata do Brasil quer ver a sanha golpista e os crimes de responsabilidade de Bolsonaro contidos e investigados e, caso não cessem, interrompidos pelos sistemas constitucionais. Mas fumar o mesmo cachimbo que ele até a boca entortar não é o caminho para que isso seja feito.


Ricardo Mendonça: O recuo da militância virtual bolsonarista

Alexandre Moraes não se intimidou com os memes e as ameaças

Na manhã de 28 de maio, na porta do Alvorada, um enfurecido Jair Bolsonaro disse a repórteres e a uma pequena plateia de simpatizantes que “ordens absurdas não se cumprem”. O tom da voz foi aumentando. “Não teremos outro dia igual ontem. Chega! Chegamos num limite”, advertiu. Teve até palavrão. “Acabou, p…! […] Acabou! Não dá para admitir mais a atitude de certas pessoas individuais.”

A irritação era em relação a uma operação da Polícia Federal deflagrada na véspera: Buscas e apreensões em endereços de 17 bolsonaristas suspeitos de financiar e disseminar informações falsas pela internet. Não houve prisões naquela ocasião. Entre os alvos estavam os empresários Luciano Hang (Havan) e Edgard Corona (Smart Fit e Bio Ritmo); os blogueiros Allan dos Santos e Bernardo Kuster, donos de perfis muito populares na extrema-direita; e o ex-deputado federal Roberto Jefferson, o chefão do PTB que foi condenado no mensalão e, mais recentemente, ressignificado no bolsonarismo.

O “certas pessoas individuais” da bronca presidencial era o ministro Alexandre de Moraes, do STF, não citado nominalmente. Relator do inquérito que apura produção de “fake news” e ameaças à corte, foi ele que autorizou as buscas do dia 27.

Numa conversa sobre a mesma operação, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) foi ainda mais explícito que o pai. Falando sobre a hipótese de uma ruptura institucional, disse que não era mais uma questão de saber “se” a cisão iria ocorrer, mas “quando”.

A claque bolsonarista captou os recados e, nos dias seguintes, pareceu bastante à vontade para manter o padrão usual de comportamento nas redes e nas ruas. Muitos debocharam do Supremo. Uma deputada aliada pediu o impeachment de Moraes. Um dos blogueiros alvo chamou o ministro do STF de “moleque” e “criminoso” em novo vídeo. Reunidos semanas depois nos arredores da corte, um grupo atacou a instituição com fogos de artifício.

Algo, porém, mostrou-se muito errado na apoplética advertência de Bolsonaro. Para o bolsonarismo, houve, sim, outro dia como o 27 de maio. E não foi só um. Foram três com as mesmas características.

Em 15 de junho, em nova operação, a PF prendeu a bolsonarista Sara Giromini, conhecida como Sara Winter, líder de um grupo armado de extrema-direita que fazia um estranho acampamento em Brasília. No dia 16, Moraes atendeu pedido da Procuradoria-Geral da República e determinou a quebra do sigilo bancário de dez deputados bolsonaristas e um senador. São personagens de um segundo inquérito no STF, o que apura organização de atos antidemocráticos. Nesse ato foram mais 21 mandados de busca, alguns contra figuras que já haviam sido visitadas pela PF dias antes. No dia 26 foi a vez da prisão do blogueiro Oswaldo Eustáquio, um dos mais ativos e ousados bolsonaristas da rede.

O fato de ter existido uma segunda rodada de buscas nesse campo, e desta vez com prisões, mostra que: 1) O ministro Alexandre de Moraes não se intimidou com memes, xingamentos, insinuações e ameaças após a primeira operação; e 2) Bolsonaro estava blefando quando afirmou que não haveria outro dia como aquele - ou, mais revelador ainda, não teria obtido respaldo de outras forças para tentar incapacitar o Supremo Tribunal Federal.

Os dias seguintes à segunda leva de buscas foi bem diferente na orbe bolsonarista. À coluna, o pesquisador David Nemer, antropólogo da Universidade da Virginia (EUA) que monitoria 1.874 grupos do WhatsApp de apoio ao presidente, disse ter apurado uma queda de até 30% no fluxo diário de mensagens. “O tom também baixou muito”, notou Pablo Ortellado, professor da USP que estuda o tema. Não surgiram mais notícias de zombaria contra o STF. E o blogueiro que havia chamado Moraes de “moleque” e “criminoso” foi flagrado apagando vídeos antigos de seu canal no YouTube.

“Vários correram para apagar vídeos e tuítes”, afirma a antropóloga Letícia Cesarino, pesquisadora de novas mídias da UFSC. “Foi algo inédito nesse ambiente. Uma queima de arquivos. Estão vendo que não estão mais imunes.”

STF e PF não são as únicas frentes de pressão contra a cibermilitância do presidente. Há duas semanas o Facebook derrubou uma rede de contas e perfis inautênticos que se dedicava a desinformar e a fazer ataques coordenados. As mais de 80 contas e páginas retiradas do Face e do Instagram nem eram as maiores do campo bolsonarista, mas a ação teve impacto político relevante por mostrar que eram ligadas a integrantes do gabinete da Presidência, aos filhos de Bolsonaro e ao PSL.

Outro pedregulho está no Twitter. O recém-criado perfil “Sleeping Giants” Brasil dedica-se a desmonetizar canais, sites e blogs identificados como os mais descarados difusores de notícias falsas.

Em apenas dois meses mobilizou mais de 450 empresas a remover anúncios de alguns dos principais portais de apoio do presidente (calcula-se no meio que os chamados “ads” automatizados chegam a render mais de R$ 20 mil por mês a propagadores de notícias falsas).

Há ainda a CPI das “fake news” no Congresso - pronta para ganhar força conforme diminuem as restrições da pandemia - e um projeto de lei sobre o tema que, embora criticado com argumentos defensáveis, criaria restrições a operários da desinformação.

Não parece exagero dizer que a militância radicalizada das redes seja um dos principais alicerces de sustentação política de Bolsonaro. Os outros são os militares, os evangélicos e, de um tempo para cá, os recém-contratados partidos e congressistas do Centrão.

Na internet, nenhum outro político do Brasil tem ou teve aparato similar a seu dispor. Na comparação com a concorrência, os bolsonaristas da rede sempre ganharam em escala, linguagem, velocidade, motivação e virulência. Como jamais havia ocorrido desde a campanha de 2018, essa militância virtual sofreu abalos. Sob inédita pressão, deu alguns passos para trás.

Irão voltar? É uma questão de “se” ou de “quando”?


Bernardo Mello Franco: Carteirada no Senado

O pronto-socorro do doutor Dias Toffoli voltou a fazer milagres no recesso. Ontem o presidente do Supremo impediu uma operação que mirava o senador José Serra. A Polícia Federal tentou recolher documentos no gabinete do tucano, mas foi barrada na portaria.

Toffoli atendeu a uma reclamação do presidente do Senado, Davi Alcolumbre. Eleito com a promessa de renovar a Casa, ele se empenhou na blindagem do colega. Antes de recorrer ao Supremo, ligou para um delegado da PF e pediu que o mandado de busca e apreensão não fosse cumprido. A carteirada funcionou.

Alcolumbre não falou francês, mas seu telefonema lembra a atitude do desembargador que se recusava a usar máscara em Santos. Irritado com a multa, o magistrado ofendeu os guardas que faziam seu trabalho. O presidente do Senado não precisou humilhar ninguém. Apenas usou o poder para evitar o cumprimento de uma ordem da Justiça Eleitoral.

Pouco depois, Toffoli suspendeu de vez a operação. O ministro afirmou que o mandado de busca padeceria de “extrema amplitude”. Por isso, haveria “risco potencial” de a PF apreender documentos ligados à atividade parlamentar do senador.

Na linguagem do futebol, o juiz Toffoli apitou “perigo de gol”. Sua decisão sugere que os agentes poderiam encontrar provas de crimes cometidos por Serra no exercício do mandato. Nesta hipótese, o senador estaria protegido pelo foro privilegiado.

É uma linha de raciocínio curiosa. No ano passado, o Supremo enviou o caso do tucano para a primeira instância. Argumentou-se que as suspeitas de caixa dois não tinham relação com o mandato de senador. Agora o presidente da Corte diz que o juiz eleitoral não poderia ordenar a busca no gabinete. O foro privilegiado não valia, mas voltou a valer.

Como o tribunal está em recesso, o Ministério Público não tem a quem recorrer. Responsável pelo plantão judiciário, Toffoli decidirá tudo sozinho até o início de agosto. Quando a folga suprema acabar, a operação de busca terá deixado de fazer sentido. Se havia algo a ser encontrado no gabinete de Serra, não haverá mais.


Eliane Cantanhêde: Sócio no fracasso

Gilmar Mendes errou feio ao usar ‘genocídio’, mas acertou no diagnóstico e no alerta

Apesar de frágil, sempre por um fio, a trégua entre os três Poderes ia bem até ser ameaçada pela declaração impetuosa do ministro do Supremo Gilmar Mendes, de que “o Exército se associou ao genocídio” ao intervir no Ministério da Saúde e assumir a política negacionista do presidente Jair Bolsonaro na pandemia. Foi um deus nos acuda no governo, na Defesa e nos comandos de Exército, Marinha e Aeronáutica. Porém, o ministro do STF errou feio nos termos, mas acertou no diagnóstico.

O que realmente irritou as Forças Armadas foi o uso da expressão “genocídio” – na definição do Houaiss, “extermínio deliberado, parcial ou total, de uma comunidade, grupo étnico, racial ou religioso” –, que define o crime mais grave do direito internacional, remete ao Holocausto e à morte de 6 milhões de judeus. É despropósito unir Exército e genocídio e não há, tecnicamente, como usar o termo para a ação de Bolsonaro na pandemia, por mais condenável que ela seja.

Assim, a irritação dos militares é compartilhada por magistrados e civis até de oposição, que elogiam a resistência firme do Supremo às investidas de Bolsonaro e às ameaças golpistas de seus filhos e seguidores, mas criticam Gilmar Mendes por “ter ultrapassado o limite”. Lembram que a palavra de um ministro do Supremo tem a força de uma sentença e os excessos vulgarizam, tiram peso, relevância e solenidade da função, que deve servir de reflexão para a Nação.

Dito isso com todas as letras, não se pode negar que Gilmar Mendes não errou nos fatos, no conteúdo. Há um evidente desmonte do Ministério da Saúde, inadmissível em tempos normais e trágico durante uma pandemia avassaladora. Sem ministro há 60 dias, entregue a um general intendente da ativa e entupida de militares que nunca viram uma curva epidemiológica, a Saúde foi jogada na mesma vala do MEC e da Cultura.

A tática de Bolsonaro é clara: anular o ministério, usar um cumpridor de ordens e uma legião de batedores de continência para impor suas decisões mais estapafúrdias e fazê-los lutar contra a ciência, isolamento social, máscaras e bom senso, enquanto faz propaganda da cloroquina, que não é comprovadamente eficaz para a covid-19, mas tem efeitos colaterais que podem ser graves. O próprio paciente Bolsonaro se submete a eletrocardiogramas duas vezes ao dia. Se não é perigoso, por que essa “histeria”?

Para Gilmar Mendes, tudo isso é parte da estratégia de Bolsonaro: esperar o fundo do poço, com quase dois milhões de contaminados, mais de 70 mil mortos, economia esfacelada, empresas quebradas e alguns milhões de desempregados a mais, para jogar a culpa em governadores, prefeitos e no Supremo – que determinou que Estados e municípios não são obrigados a cumprir o que o governo federal manda.

Assim, o termo “genocídio” foi agressivo e apelativo, mas Gilmar Mendes alertou para a manobra de Bolsonaro de usar militares para jogar seus erros e a própria culpa nos outros. Tanto é verdadeiro que a Defesa aumentou a pressão para o general Eduardo Pazuello, interino da Saúde, para passar para a reserva. Ele prefere ficar na ativa e sair da Saúde. A ver.

O ex-ministro Henrique Meirelles, atual secretário de Economia de São Paulo, destrói a manobra de Bolsonaro com uma única frase impecável: “O que afeta a economia é a pandemia, não as medidas para combater pandemia”. Bolsonaro deixou a pandemia correr solta, sem coordenação nacional, sem dar exemplo. A história poderia ser outra, com menos mortes e saída mais rápida. A economia não sofreria tanto. Só falta agora Bolsonaro dizer que não tem nada a ver com isso. Tem tudo a ver e, quanto antes o Exército se descolar do fracasso, melhor.


José Casado: Hora do toque de retirada

Forças Armadas se meteram numa confusão institucional

Pode-se criticar o tom do comentário, mas o juiz Gilmar Mendes tem razão na essência da crítica ao envolvimento das Forças Armadas, sobretudo o Exército, na anarquia governamental de Jair Bolsonaro.

O erro original foi cometido na campanha de 2018, quando o então deputado, ex-capitão paraquedista, informou ao Forte Apache — o QG do Exército em Brasília— sobre o plano de saltar da planície política para o topo do poder no Planalto.

Um dia, talvez, seja resgatada a memória das conversas e a extensão do respaldo do comando do Exército ao candidato. Sabe-se que nem tudo obedeceu ao protocolo, mas há reconhecimento da eterna gratidão do beneficiário em discurso: “Obrigado, comandante (Eduardo) Villas Bôas. O que nós já conversamos morrerá entre nós. O senhor é um dos responsáveis por (eu) estar aqui.”

O generalato sabe o que fez nas quatro estações eleitorais de 2018 ao abstrair o passado do ex-capitão, preso e processado por anarquia pelo Exército 33 anos antes, por um plano de bombas na Vila Militar, no Rio.

O projeto era reescrever o passado, a história do regime militar de 1964, numa nova hegemonia fardada, com aumento do orçamento total (de 1,5% para 2% do PIB). Permitiu-se a Bolsonaro enquadrar o governo numa moldura militarista e transformar as Forças Armadas em peças do seu jogo predileto, a confusão institucional. É eloquente a imagem do comício no portão do Forte Apache, com o presidente incitando aliados que pediam o fechamento do Congresso e do Supremo.

O resultado está na ocupação da Saúde, com laboratórios militares (R$ 520 milhões para produzir 1,2 milhão de doses de cloroquina) engajados na politização de um vírus, moldada para a campanha de reeleição.

Pode-se ver exagero do juiz Gilmar Mendes ao dizer que “o Exército está se associando a esse genocídio” (o desgoverno na pandemia). Se há crime — no caso, gravíssimo — será revelado em breve. Nada oculta o óbvio: as Forças Armadas se meteram numa confusão institucional com Bolsonaro. É hora do toque de retirada.


Andrea Jubé: O papo reto de Jorge e Eduardo Bolsonaro

Alexandre Ramagem deve ser nomeado de novo para a PF, diz Jorge Oliveira

O ministro em quem Jair Bolsonaro mais confia é um dos que mais desperta a desconfiança de seus apoiadores. Para aplacar essa resistência, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) conversou no sábado com o ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Jorge Oliveira, em seu canal no YouTube, com mais de 602 mil inscritos.

Em meio a uma relação tensa com o Supremo Tribunal Federal (STF), Bolsonaro não quer sofrer mais baixas entre seus seguidores depois que indicar Jorge Oliveira para a vaga do ministro Celso de Mello, que se aposentará em novembro.

De perfil discreto e afável no trato, Oliveira construiu pontes com ministros do STF, como o presidente Dias Toffoli e o ministro Gilmar Mendes. Mas se esse perfil moderado favorece o diálogo com outros poderes, em contrapartida, desagrada os bolsonaristas, que preferem estilos mais radicais, como o ex-ministro Abraham Weintraub.

Durante a conversa, Jorge afirmou que o delegado Alexandre Ramagem pode ser nomeado de novo para o cargo de diretor-geral da Polícia Federal (PF). “Há possibilidade”, admitiu.

Segundo o ministro, assim que o inquérito que apura o suposto desvio de finalidade na indicação de Ramagem, baseado na denúncia do ex-ministro Sergio Moro, for concluído, “não haverá óbice” para um novo ato de nomeação de Ramagem. Ele disse acreditar que o desfecho do inquérito, que é relatado pelo decano Celso de Mello, “ocorrerá em breve”. A nova prorrogação da investigação acaba no fim do mês.

Jorge destacou que a decisão do ministro Alexandre de Moraes sobre Ramagem não contestou a qualificação do delegado para comandar a PF, porque apenas suspendeu, e não impediu a sua nomeação. “Foi apenas uma prudência para suspender a posse” até o esclarecimento das acusações do “ministro da Justiça anterior”.

Fica nítido o cuidado em omitir o nome de Sergio Moro, que por ironia, foi o primeiro convidado de Eduardo em seu canal no YouTube. “É uma honra receber aqui o ministro que se tornou mais do que referência em combate à corrupção, e também uma referência de caráter”, disse o filho de Bolsonaro na estreia do programa há cinco meses.

Num espaço voltado principalmente à base bolsonarista, Jorge afirmou que o relacionamento do governo com o STF “é o melhor possível”.

O ministro ressaltou que Bolsonaro sempre respeitou as instituições. Argumentou que embora o presidente seja acusado de gestos arbitrários, disputou nove eleições em sua trajetória, e antes de tomar posse na Presidência, visitou todos os tribunais superiores e se colocou à disposição dos ministros.

“Há uma inconformidade com as atitudes dele [Bolsonaro], mas temos no regime democrático as formas de nos inconformarmos, e hoje o diálogo é muito bom”, acrescentou. “Aos poucos a gente vai conseguindo governar”.

No intuito de afinar a relação de Jorge com os apoiadores do presidente, Eduardo pediu que ele falasse sobre a longa relação de amizade de sua família com os Bolsonaros. O ministro lembrou que seu pai, o capitão Jorge Francisco, foi assessor do então deputado Jair Bolsonaro por 20 anos, até falecer em 2018. E ele trabalhou durante anos nos gabinetes de Bolsonaro e de Eduardo, até a eleição presidencial.

Ao fim, Eduardo disse para os internautas que ali estava “certamente um dos principais ministros, a pessoa que está diariamente com o presidente”. Reforçou: “Se vocês virem o presidente com a cara abatida, de farol baixo porque teve um dia cansativo, saibam que ele vai estar ao lado aqui do Jorge Oliveira”.

Até o fechamento desta coluna, o programa tinha mais de 49 mil visualizações e mais de 1,2 mil comentários. Reproduzo alguns deles, que demonstram as restrições de bolsonaristas a Jorge Oliveira:

“Tem muito duas caras no governo infelizmente” (LR)

“Sinto muito, Eduardo, mas não consigo acreditar nesse ministro” (IS)
“Esse Jorginho não me parece que está do lado do JB! Ele tá mais pra progressista e oba-oba. Não serve pra ser conselheiro do presidente” (ACA)

“Jorge, Ramos, Braga Neto e o Mendonça, nós conservadores não apoiamos, estão apagando a luz do Bolsonaro” (MA)

“Eduardo, me perdoa, mas nesse Jorge não dá pra acreditar” (VD)
“Gosto desse sr Jorginho aí não, deputado. I’m sorry.” (MM)

Veto
Geólogo de formação, o empresário Marco Stefanini, fundador e CEO Global do Grupo Stefanini, que atua em 41 países, adverte que antes de destruir a pinguela, o governo precisa construir a ponte.

Apontada como a 5ª empresa brasileira mais internacionalizada, segundo o ranking da Fundação Dom Cabral, a Stefanini insere-se no setor de Tecnologia da Informação (TI), um dos 17 atingidos pelo veto de Jair Bolsonaro à prorrogação da desoneração da folha de pagamento até 2022.

Marco Stefanini diz que o veto contradiz o discurso do presidente que, no início da pandemia, afirmou que era preciso se preocupar com a saúde, mas também com a economia e o aumento do desemprego.

Se o Congresso não derrubar o veto, o setor de TI deixará de contratar 400 mil profissionais de alta qualificação em três anos, e pode perder até 150 mil dos atuais empregos formais. “Estamos falando de meio milhão de empregos altamente qualificados”, ressaltou.

A Stefanini tem 14 mil empregados no Brasil. O empresário lembra que a desoneração da folha de pagamento começou pelo setor de tecnologia, que era dominado pela “pejotização”. O subsídio reverteu esse quadro e viabilizou um aumento de 20% nas contratações com carteira assinada no setor.

O CEO da Stefanini contesta a alegação do governo de que a desoneração da folha de alguns setores compromete a isonomia no mercado. “Eu entendo que eles querem medidas mais transversais do que setoriais, só que na prática antes de destruir, você tem que construir”.

Ele compreende que o governo busque um modelo mais amplo, mas pondera que numa situação de pandemia, com empresas fechando, não dá para aguardar a reforma tributária. “O bom é inimigo do ótimo, o mundo não é perfeito, e a manutenção da desoneração neste momento é o que faz menos mal”.


O Estado de S. Paulo: Ministro da Defesa avalia reação a fala de Gilmar sobre 'genocídio'

Ministro da Defesa diz que estuda medidas contra o magistrado, que afirmou, sábado, que o Exército está associado a ‘genocídio’ na Saúde

Tânia Monteiro e Rafael Moraes Moura, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - O ministro da Defesa, general Fernando Azevedo, disse ao Estadão que avalia junto aos comandantes das Forças Armadas e à Advocacia-Geral da União (AGU) medidas que podem ser tomadas em reação ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes. Anteontem, Gilmar disse que o Exército está se associando a um “genocídio”, em referência à crise sanitária instalada no País em meio à pandemia de covid-19, agravada pela falta de um titular no Ministério da Saúde.

Azevedo afirmou estar “indignado” com o que ele considera serem “acusações levianas” do ministro do Supremo.

Há 59 dias sem um titular na Saúde, o País já acumula mais de 71,5 mil óbitos e 1,8 milhão de contaminados. Depois das saídas dos médicos Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich, o general Eduardo Pazuello – militar da ativa especializado em questões logísticas – assumiu interinamente o ministério.

Foi na gestão de Pazuello que o Ministério da Saúde mudou a orientação sobre o uso da cloroquina, passando a recomendar o medicamento desde o início dos sintomas do novo coronavírus. A droga, no entanto, não tem a eficácia comprovada pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Atualmente, ao menos 20 militares, sendo 14 da ativa, ocupam cargos estratégicos no Ministério da Saúde.

Azevedo afirmou que “está avaliando junto com os comandantes de força a situação, considerando todos os aspectos”. Os comandantes e Azevedo passaram o domingo conversando por telefone para traçar uma estratégia de reação à fala de Gilmar. Não está descartada a possibilidade de o governo acionar a própria Justiça para cobrar uma retratação de Gilmar.

O ministro da Defesa já trabalhou no STF como assessor especial do presidente da Corte, Dias Toffoli. A primeira reação a Gilmar veio no próprio sábado, com a divulgação de uma nota em que o Ministério da Defesa afirma que as Forças vêm “atuando sempre para o bem-estar de todos os brasileiros” e elenca uma série de medidas que têm mobilizado militares, como barreiras sanitárias e ações de descontaminação.

Gilmar não quis se manifestar ontem sobre a reação dos militares. Em sua conta pessoal no Twitter, o ministro disse que não se furta a “criticar a opção de ocupar o Ministério da Saúde predominantemente com militares”. “A política pública de saúde deve ser pensada e planejada por especialistas, dentro dos marcos constitucionais. Que isso seja revisto, para o bem das FAs (Forças Armadas) e da saúde do Brasil”, escreveu.

O ministro também aproveitou as redes sociais para elogiar a figura do Marechal Rondon (1865-1958), conhecido por ter defendido a criação do Parque Nacional do Xingu. “No aniversário do projeto que leva o nome de Rondon, grande brasileiro notabilizado pela defesa dos povos indígenas, registro meu absoluto respeito e admiração pelas Forças Armadas Brasileiras e a sua fidelidade aos princípios democráticos da Carta de 88”, escreveu.

Gilmar tem pontes com as Forças Armadas. Em junho, se encontrou com o general Edson Leal Pujol, comandante do Exército, em plena crise entre o Planalto e o Judiciário.


Eliane Cantanhêde: Cobra naja e tubarões

Aliança com PGR para devassa na Lava Jato ameaça união do Supremo pela democracia

O Supremo Tribunal Federal (STF) está de parabéns por liderar a resistência democrática com posições firmes que por vezes extrapolaram alguns limites, mas, no conjunto, foram decisivas para inverter os ataques e, assim, “cortar as asinhas” e “baixar a bola” do Executivo e de bolsonaristas assanhados, loucos por golpes e aventuras. Mas a união exemplar do Judiciário no primeiro semestre pode não se repetir no segundo.

Quando estão em jogo a democracia, arroubos do presidente, ameaças dos meninos do presidente, bravatas de ministros do presidente e ataques virtuais ou reais de seguidores do presidente, o Supremo se une, é um monobloco. Decisões e manifestações do presidente Dias Toffoli, do decano Celso de Mello e do relator das fakenews, Alexandre de Moraes, são acatadas, em geral, por unanimidade. Mesmo com críticas e muxoxos nos bastidores.

Saindo da esfera democrática, porém, emergem ideologias, idiossincrasias, divergências e velhos rancores. O que detona isso? Toffoli tomar partido da Procuradoria Geral da República (PGR) contra a Lava Jato. Ao determinar que as Forças Tarefas de Curitiba, Rio e São Paulo entreguem todos os seus arquivos à PGR, incluindo dados financeiros de 38 mil cidadãos, Toffoli não só autoriza a devassa na Lava Jato e dá excesso de poder ao procurador geral Augusto Aras como reabre as feridas no Supremo.

Exemplo: Gilmar Mendes vota com Luiz Roberto Barroso e Edson Fachin contra ação de golpistas no prédio do STF, máquinas de moer reputações na internet, acusação de interferência política na Polícia Federal e ameaças de “basta”, “ruptura”, “consequências imprevisíveis” e de “não cumprir ordens”. Com Lava Jato, a coisa muda de figura.

No fim do recesso do Judiciário, em agosto, vem o julgamento da liminar monocrática de Toffoli a favor da PGR de Aras e contra a Lava Jato de Sérgio Moro, Deltan Dallagnol e forças-tarefa, num movimento combinado para implodir a operação por “excessos”. Aí… Gilmar vai para um lado, Barroso e Fachin para outro. Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio se aliam para cá, Luiz Fux e Carmen Lúcia, para lá.

O clima político desanuviou com o silêncio e a reclusão do presidente, primeiro por cálculo político, depois pelo teste positivo. A covid-19 tem agora o efeito da facada na campanha: esconder e proteger Bolsonaro de Bolsonaro. Mas a guerra continua. Cerco aos militantes das fakenews, inclusive no Planalto e no Congresso. Prende-e-solta de Fabrício Queiroz entremeado com depoimentos do Zero Um. Devastação do ambiente. Saúde sem ministro. O pastor Milton Ribeiro, quarto ministro polêmico da Educação. Quanto tempo o “paz e amor” resiste?

E o clima quente do Judiciário será também no Superior Tribunal de Justiça (STJ), depois do habeas corpus do presidente João Otávio Noronha para tirar Queiroz da prisão e premiar a mulher dele, Márcia Aguiar, que fugiu da polícia. Noronha tem um caso de “amor à primeira vista” com Bolsonaro (nas palavras do próprio Bolsonaro), está de olho em uma vaga no STF e argumentou que Márcia precisa cuidar do marido! Um marmanjo que vivia de festas, churrascos e cerveja em Atibaia! E as presas pobres que têm filhos largados e agora fora das escolas?

Assim, o segundo semestre promete. Supremo com Lava Jato, STJ com Queiroz e Márcia, Congresso com projeto das fake news e prisão após segunda instância, Planalto com Ricardo Salles, Ernesto Araújo e Milton Ribeiro. A covid-19 contamina, mata, destrói empresas e empregos e cria cicatrizes num País já tão machucado. Brasília não é mais a cidade das cobras e lagartos, mas das cobras Naja e de tubarões em aquários. Ambos, Najas e tubarões, proibidos. O resto, não. É parte da paisagem.