STF
Carlos Ayres Britto: Projeto de lei sobre ‘fake news’
Artigo 10.º do PL 2.630 é o que me parece mais vistosamente destoante da Constituição
É de percepção geral o fenômeno das fake news. Fake news como notícias falsas, literalmente. Ainda que tal desencontro com a verdade não seja total. Ou aconteça por modo tão completamente voluntário quanto apenas em parte, ou até mesmo sem nenhum ingrediente subjetivo de parceria com a inverdade. De toda maneira, notícias falsas que se espalham instantaneamente e em escala planetária, porquanto formatadas sob essa revolucionária forma de mensageria em rede que toma o nome técnico de “comunicação de dados”.
Compreensível, pois, que se pressione o Estado para editar leis de enfrentamento eficaz desse recorrente fenômeno. É o pano de fundo do Projeto de Lei número 2.630, em tramitação pela Câmara dos Deputados e sob a ementa de “Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet”. A exigir a lembrança de que boa parte dos temas ali tratados tem o seu regime jurídico diretamente estabelecido pela Constituição da República. Logo, um regime que não pode deixar de se pôr como obrigatório parâmetro para toda e qualquer lei de escalão infraconstitucional.
Essa advertência começa pela necessidade de se entender o que não sejam fake news. Por ilustração, elas não correspondem às categorias constitucionais da liberdade de “manifestação do pensamento” e da “expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação”. Tampouco mantêm identidade com o direito de “acesso à informação”. Antes frustram o direito de todos ao mais livre acesso a um tipo veraz de informação, pois somente ele é que se põe como direito fundamental (por isso que bem de personalidade). E quanto à tarefa de dizer em que as fake news consistem, é preciso ver se elas já se encaixam nesse ou naquele molde legal de infração penal. Ou se é possível tomá-las como hipótese de incidência de um novo ilícito. Mais ainda, importa saber se a perpetração de fake news expõe o(s) seu(s) agente(s) à vedação de protagonizar futuras e distintas relações de internet. O que, data venia de entendimento contrário, me parece juridicamente descabido.
São aspectos que, junto a muitos outros de idêntica relevância – a partir do caráter jurídico totalmente privado das relações de internet -, não têm como ser dissecados num breve artigo de jornal. Por isso me limito a pinçar do projeto em causa todo o artigo 10.º, que me parece mais vistosamente destoante da Constituição. É que ele instaura um regime de rastreamento sobre as pessoas naturais que termina por lhes recusar os direitos fundamentais à “intimidade” e à “vida privada” (inciso X do artigo 5.º). Vida privada num plano intersubjetivo ou social, vida privada num plano espacial ou geográfico. Além de submetê-las a um tipo de investigação que, por independer do caso concreto e da apuração das coisas em autos oficiais, ignora os pressupostos também diretamente constitucionais da investigação criminal e da instrução processual penal.
Deveras, penso que esse artigo 10.º inverte as coisas. Investigação criminal e instrução processual penal não se instauram senão documentalmente. Assim como não são abertas a partir do nada. Ambas pressupõem a ocorrência de algo sinalizador, em sua materialidade, de infração penal. Algo já abstratamente definido como ilícito penal e a ser apurado quanto à respectiva materialidade. Isso na perspectiva da identificação do respectivo autor. Um só autor, ou mais de um, contanto que essa coautoria seja passível de quantificação ou determinação numérica. Não em aberto, porque, senão, a essa indeterminação subjetiva passa a corresponder uma permanente situação de suspeita criminal sobre todo mundo e um Estado-polícia por definição. Como se a máxima de que “o preço da liberdade é a eterna vigilância” (Thomas Jefferson) não fosse cunhada a favor dos particulares e contra ele mesmo, Estado. Não o contrário.
Claro que não se está a desconhecer o vínculo funcional entre o combate às fake news e a concreção do bem jurídico fundamental da “segurança pública”. Ainda assim, que esse imbricamento se faça a partir do recorte que o artigo 144 da Constituição já fez quanto a dois literais sujeitos jurídicos: de uma banda, o Estado; de outra, as pessoas privadas. O Estado como sujeito que tem o “dever” de assegurar à população tal segurança; as pessoas privadas como titulares do direito ao desfrute desse bem da vida e também como responsáveis pela respectiva prestação. Sem que a lei possa baralhar as duas categorias jurídicas, pois o substantivo “dever” é conatural à figura do Estado mesmo. Estado que tem como uma das suas justificativas existenciais a permanente desincumbência desse específico dever, justamente.
Já a responsabilidade, o seu significado técnico é de colaboração ou ajuda ou auxílio. Sem constituir-se numa das próprias razões de ser das pessoas privadas. Pelo que a lei não pode forçar os particulares a fazer as vezes do poder público. A se colocar no lugar dele. Mais uma advertência que fica.
EX-PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAl (STF)
Bernardo Mello Franco: A sorte do Zero Um
Flávio Bolsonaro tem muitos problemas, mas não pode reclamar da sorte. Desde 2018, o Ministério Público acumula provas contra o senador. Os investigadores acreditam que ele montou uma organização criminosa para desviar dinheiro da Assembleia Legislativa do Rio. As suspeitas só aumentam, mas uma sucessão de manobras e percalços impede que o caso vá adiante.
No ano passado, a investigação foi paralisada duas vezes pelo Supremo Tribunal Federal. No plantão de janeiro, o ministro Luiz Fux trancou o inquérito a pedido da defesa. O Zero Um ainda não havia tomado posse, mas alegava ter direito ao foro privilegiado em Brasília. No mês seguinte, o ministro Marco Aurélio cassou a liminar e mandou o caso de volta à primeira instância.
No plantão de julho, o ministro Dias Toffoli jogou outra boia para o primeiro-filho. Ele aceitou a tese de que um relatório do antigo Coaf teria sido compartilhado sem autorização judicial. O documento mostrava a movimentação milionária nas contas de Fabrício Queiroz, segurança e motorista de Flávio. Também registrava depósitos em espécie para o Zero Um, que costuma pagar contas e comprar imóveis em dinheiro vivo.
Em dezembro, o Supremo concluiu que não havia nada de errado no envio de informações ao MP. O ministro Toffoli retificou o voto e passou a apoiar o compartilhamento de dados. Entre a liminar e o julgamento, o senador ganhou um refresco de quatro meses e meio.
Em junho passado, a polícia prendeu Queiroz e o MP fez saber que Flávio seria acusado de peculato, organização criminosa e improbidade administrativa. Às vésperas da denúncia, os desembargadores Paulo Rangel e Monica Tolledo voltaram a suspender o caso. A dupla entendeu que o Zero Um tinha direito a foro privilegiado no Tribunal de Justiça do Rio. A blindagem protege os deputados estaduais, cargo que ele deixou de ocupar ao virar senador.
Na quinta-feira, o tribunal informou que o MP perdeu o prazo para recorrer contra a regalia. Na sexta, uma reportagem da “Folha de S.Paulo” informou o motivo. A procuradora Soraya Gaya, que já elogiou Jair Bolsonaro nas redes sociais, acessou a intimação sem avisar os colegas. Com isso, a doutora antecipou a contagem do prazo em três dias. Agora ela será alvo de uma sindicância.
A sorte de Flávio é tamanha que chega a transbordar para Queiroz. Em julho, ele saiu da cadeia graças a um habeas corpus do presidente do Superior Tribunal de Justiça, João Otávio de Noronha. Generoso, o ministro estendeu o benefício à mulher do ex-PM, que estava foragida e não integra o grupo de risco da Covid-19.
Na quinta-feira, uma notícia voltou a preocupar os Bolsonaro. O ministro Felix Fischer cassou a liminar de Noronha e determinou a prisão do casal. Marido e mulher já esperavam o camburão quando foram salvos por um habeas corpus de Gilmar Mendes. O juiz do Supremo teve uma noite e tanto na sexta-feira. Além de salvar Queiroz, ele participou de uma live com dirigentes do MST. Depois de anos de pregação contra os sem-terra, ouviu João Pedro Stédile chamá-lo de “nosso ministro”.
Merval Pereira: Dallagnol na mira
Dando seqüência à tentativa de desconstruir a Operação Lava-Jato, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) julgará na terça-feira casos envolvendo o procurador Deltan Dallagnol, coordenador da Lava-Jato em Curitiba. Não são os primeiros, nem serão os últimos casos, pois ao longo de seu trabalho à frente da força-tarefa de Curitiba Dallagnol já teve cerca de 50 reclamações disciplinares contra si, a maior parte vinda de investigados e réus e seus aliados.
Apenas duas delas, e sempre por opinião, mereceram advertências. Por isso, é estranho que na reunião de terça exista a possibilidade de afastamento cautelar devido a um procedimento disciplinar por remoção compulsória por interesse público, impetrado pela senadora Katia Abreu, investigada pela Lava-Jato. Até hoje, foram poucos os afastamentos a bem do interesse público, e ambos por questões totalmente diversas das que Dallagnol está sendo acusado.
Um por trabalho ineficiente em defesa do consumidor, e outro por assédio moral e outras faltas funcionais. Ambos ao fim de um processo em que houve possibilidade de o acusado apresentar sua defesa, não de maneira cautelar. O afastamento cautelar de Dallagnol feriria de morte a garantia de inamovibilidade de integrantes do Ministério Público, o que afetaria a independência do órgão e levaria uma insegurança funcional nos demais membros do órgão investigador, que ficariam expostos à retaliações políticas.
Outro que apresentou Processo Administrativo Disciplinar (PAD) contra Dallagnol foi o senador Renan Calheiros, que pede sua punição por ter defendido a votação aberta para a eleição da presidência do Senado, afirmando que a eleição de Calheiros seria prejudicial ao combate à corrupção. O plenário do CNMP já rejeitou a mudança da caracterização da fala como atividade político-partidária, e negou o afastamento cautelar de Dallagnol pedidos ainda em 2018.
O relator é Luiz Fernando Bandeira de Mello, braço-direito de Renan Calheiros no Senado, onde atua até hoje como secretário-geral da Mesa Diretora. Por essa relação, um grupo de senadores pediu que ele fosse considerado suspeito para relatar os casos. Vários deles já foram julgados em outras reclamações disciplinares e considerados legítimos, como as palestras remuneradas que Dallagnol deu, ou o acordo da força-tarefa com a Petrobras envolvendo a restituição bilionária de multa paga nos Estados Unidos e que ficaria no Brasil com a criação de uma fundação para combate à corrupção.
Uma fundação polêmica, que acabou anulada pelo Supremo, mas, alega a defesa de Dallagnol, aprovada por diversos órgãos como uma solução jurídica legítima. Além disso, há uma questão técnica importante, que pode inviabilizar o julgamento.
O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) é composto por 14 membros, e é preciso maioria absoluta para aprovar uma remoção por interesse público. No momento, no entanto, existem somente 11 conselheiros em atividade, pois três indicações estão paradas no Senado para aprovação, o que desequilibra a composição do Conselho, pois o Ministério Público fica sub representado.
Há, portanto, uma discussão preliminar que deve ser enfrentada no julgamento de terça-feira: sem sua representação integral, o CNMP pode julgar uma ação dessa envergadura, raramente usada para punir procuradores? A não nomeação de dois representantes do Ministério Público por questões internas do Senado, como a paralisação dos trabalhos devido à pandemia, não é motivo para adiar a decisão? Há ainda a posição do Procurador-Geral da República, Augusto Aras, que abriu guerra declarada contra a Operação Lava-Jato.
Nas votações anteriores, os procuradores sempre tiveram o voto do Procurador-Geral da República, o que não é garantido desta vez. Todas essas circunstâncias formam um quadro que indica, no mínimo, que o julgamento desta terça-feira não está organizado dentro dos melhores padrões, e pode levar insegurança a todos os membros do Ministério Público.
O procurador Deltan Dallagnol é a face mais exposta da Lava-Jato em atividade em Curitiba. O interesse público é o fortalecimento do combate à corrupção, que fica fragilizado se do julgamento sair uma decisão que cheire a mais uma ação contra a Operação Lava-Jato.
RPD | Reportagem | Covid-19 destrói vidas e deixa povos indígenas em risco de ‘apagão cultural’
Ao todo, doença já matou 658 indígenas no país; entidades cobram controle de invasores e apontam falta de atenção do governo
Cleomar Almeida
“Quando morre um cacique, a comunidade perde um líder. Quando morre um mestre e um ancião, é um livro cheio de informações que se fecha para sempre”. No início do mês, a frase do neto do cacique Raoni Metuktire, Patxon Metuktire, repercutiu na internet em honra à vida e história do líder do Alto Xingu, Aritana Yawalapitit, de 71 anos, que morreu por complicações da Covid-19. Entre os povos indígenas, os efeitos da doença são ainda muito maiores, já que a falta de atenção à saúde e proteção deles os deixam ainda mais vulneráveis à destruição de vidas, mitos, línguas e tradições milenares.
Levantamento da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) registrou 658 indígenas mortos e ao menos 23.712 infectados pelo novo coronavírus até o dia 11 de agosto. No total, são 148 povos atingidos pela doença, que, segundo a entidade, chega às aldeias principalmente por meio das rodovias e profissionais de saúde que não vivem nas comunidades. Não há monitoramento de acesso aos territórios tradicionais para fazer testagem das pessoas, como caminhoneiros, que trafegam nas estradas do país, além de garimpeiros e madeireiros ilegais que invadem os territórios indígenas para devastar a floresta.
Ao todo, 900 mil indígenas vivem em todo o país. Nos territórios, cada morte provoca um apagão sobre a cultura milenar, já que anciãos servem como autoridades morais, conselheiros espirituais e detentores de conhecimento e memória para os povos indígenas.
Cacique desde os 19 anos e um dos líderes mais antigos e respeitados do Alto Xingu, Aritana Yawalapitit era um dos últimos falantes da língua yawalapiti, do tronco linguístico aruak, e conhecido por lutar pela defesa dos povos indígenas, principalmente pela preservação das terras conquistadas. Ele ficou internado por duas semanas após ser contaminado pelo novo coronavírus. Morreu em Goiás, em 5 de agosto, no mês em que é celebrado o Dia Internacional dos Povos Indígenas. O líder havia sido transferido de Mato Grosso.
“Perdemos um dos maiores guerreiros da nossa família. Foi referência dentro da aldeia e fora. Sua história rompeu fronteiras. Perdemos um grande líder Yawalapiti. Nós, Kamayuras, estamos de luto”, desabafou Jeff Kamayura, primo de Aritana, nas redes sociais.
Mortes também geram desorientação para as populações originárias, como também é o caso dos 14 mil habitantes da comunidade Munduruku, que vivem nos Estados do Pará, Amazonas e Mato Grosso. No total, a Covid-19 já matou 12 integrantes desse povo; 11 deles eram idosos.
“Quando vamos descansar nossos corações? Meu tio cacique Vicente Saw Munduruku; meu pai Amâncio Ikõ Munduruku; Arcelino Dace Munduruku; Francidalva Saw Munduruku; cacique e professor Martinho Boro Munduruku. E agora mais um, o professor Bernardo Akay Munduruku. Tem sido dias difíceis para nosso povo!”, escreveu Arlisson Ikon Biatpu Munduruku, em uma rede social.
Efeito devastador
Entre os indígenas, a morte de líderes provoca impacto devastador em comunidades inteiras. Vai além da dor de familiares e amigos, como é o caso de Amâncio Ikõ Munduruku. Em 1998, ele foi um dos fundadores da Associação Indígena Pariri, que atua em defesa dos direitos desses povos. Além disso, Amâncio encorajou o cacique Juarez Saw a retomar território ancestral da etnia, que depois se tornaria a Terra Indígena Sawre Muybu/Daje Kapap Eïpi.
Lideranças indígenas dizem que se tornaram ainda mais suscetíveis ao novo coronavírus em razão do desmonte de políticas públicas realizado pelo governo do presidente Jair Bolsonaro, visto como uma ameaça aos povos nativos, que também lutam pela proteção ao meio ambiente. O cacique Raoni Metuktire, conhecido pelos coloridos cocares de plumas e o grande disco inserido no lábio inferior, vem intensificando as denúncias de ataques contra os povos indígenas no Brasil por parte de Bolsonaro.
Ícone da luta pela conservação da Amazônia, Raoni afirmou à imprensa que Bolsonaro quer “se aproveitar” da pandemia para impulsionar projetos de ameaça aos povos indígenas, que têm histórico de vulnerabilidade a doenças externas. Ele recebeu alta, no dia 25 de julho, após ficar internado durante uma semana por causa de infecção intestinal. Sua mulher, Bekwyjkà Metukire, morreu, em 23 de junho, depois de sofrer acidente vascular cerebral.
As perdas indígenas provocam uma série de consequências para a organização social dos povos e para o conjunto das relações deles com seus territórios e os demais segmentos da sociedade brasileira, de acordo com a coordenadora executiva da Coordenação das Organizações dos Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Nara Baré.
“É fundamental que o Brasil não indígena perceba que também sofrerá com as perdas desses povos, seja por toda a influência da cultura indígena na formação da cultura nacional, seja pela relevante contribuição que o modo de vida dessas populações oferece à manutenção do equilíbrio ambiental do país”, afirmou.
Resistência e socorro
Em todos os biomas, em especial na Amazônia, as terras indígenas são palco de resistência à destruição do meio ambiente, o que, segundo Nara, “os posiciona como verdadeiros guardiões das florestas”. O movimento indígena informa que instalou, na região, mais de 100 Unidades de Atendimento Primário Indígena (Uapi) e denuncia a falta de apoio e atenção do governo brasileiro.
Em todo o país, movimentos e organizações indígenas se mobilizam, por meio da internet, em busca de doações de produtos e fundos para comunidades e aldeias, mais vulneráveis a infecções respiratórias. O objetivo é amparar as famílias para diminuir o impacto do novo coronavírus na vida dessas pessoas.
A Fundação Nacional do Índio (Funai) diz que já investiu R$ 26 milhões em medidas de combate ao novo coronavírus e que reforçou ações de prevenção em parceria com a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). O órgão também informa que atua para garantir a segurança alimentar e higiene de famílias indígenas, com distribuição de cerca de 500 mil cestas básicas e quase 62 mil kits de higiene pessoal e limpeza.
De acordo com a Fundação, foram realizadas “ações de vigilância e monitoramento territorial”. O órgão informa, ainda, que participa de 271 barreiras sanitárias para impedir a entrada de não indígenas em aldeias, contabilizando 151 ações de fiscalização em 63 terras demarcadas para coibir “extração ilegal de madeira, garimpo e pesca predatória.”
Fonte: Comitê Nacional de Vida e Memória Indígena/Articulação dos Povos Indígenas do Brasil
Aumenta tensão entre governo e líderes indígenas
A tensão entre os povos indígenas e o governo brasileiro tem aumentado cada vez mais. No dia 7 de agosto, o embaixador do Brasil na Organização dos Estados Americanos (OEA), Fernando Simas Magalhães, vetou a participação da coordenadora executiva da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Nara Baré, para falar na reunião do seu Conselho Permanente, durante a 3ª Semana Interamericana de Povos Indígenas, e da Comemoração do Dia Internacional dos Povos Indígenas.
Nara iria informar ao Conselho Permanente e outros convidados da sessão os impactos da Covid-19 entre os povos indígenas e como as organizações e comunidades estão combatendo o vírus por sua iniciativa própria. O presidente da Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie), Jaime Cargas, também teve sua participação cancelada.
O secretário-Geral da OEA, Luís Almagro Lemes, admitiu os impactos do novo coronavírus principalmente entre os povos nativos. “A Covid19 exacerbou a vulnerabilidade dos mais necessitados. Hoje, quando começamos a 3ª Semana dos Povos Indígenas, devemos reconhecer a frágil condição em que estão os povos indígenas e convocar a todos a levar em consideração suas necessidades no mundo pós-coronavírus”, disse, em suas redes sociais.
“A postura da OEA e de seus membros, principalmente o Brasil, não condiz com o discurso do secretário-geral da OEA, em que afirma que quer nos escutar e fazer algo pelos povos indígenas, mas impede uma liderança amazônica de se pronunciar perante os membros da organização”, afirma Kleber Karipuna, liderança da Coiab, em nota de repúdio publicada no site da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
Fundada em 1948, a OEA é o mais antigo organismo regional do mundo. Foi originada na União Internacional das Repúblicas Americana (1889-1990), com o objetivo de promover relações pacíficas nas Américas. O governo brasileiro não se pronunciou sobre o episódio.
‘Índios não vão se acabar’, diz antropólogo
Ex-presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), o antropólogo Mércio Pereira Gomes, diz se preocupar com a morte de indígenas, mas ressalta que esses povos não serão extintos por causa da doença. “O que estamos sentindo hoje é o perigo de os velhos desaparecerem e, por isso, lamentamos muito. Estamos preocupados com essa perda das fontes de moral, de conhecimento tradicional e de mitos, que guardavam os mais velhos”, afirmou. “Entretanto, acredito que os índios segurarão essa doença. Não vão se acabar”, disse.
Gomes é autor do livro Os Índios e o Brasil (304 páginas, editora Contexto), que, em sua primeira edição, anunciou a sobrevivência dos povos indígenas na década de 1980 e que analisa o crescimento deles no país. Em entrevista à revista Política Democrática Online, ele ressalta que a questão indígena é de nacionalidade. “Os indígenas formam a raiz da nacionalidade brasileira”, pondera.
O autor lembra que, em 1955, o antropólogo Darcy Ribeiro, que foi diretor do Museu do Índio, afirmou que esses povos somavam 100 mil pessoas e estariam em declínio. “Em 1988, eu disse que índios eram 300 mil e em crescimento”, ressaltou Gomes, explicando que a população indígena não vai acabar no Brasil. “Os índios sobreviveram, cresceram mais de 10 vezes, em população, desde 1950”, asseverou.
Nem por isso o governo deve se eximir de sua responsabilidade de proteção e garantia dos direitos dos povos indígenas, na avaliação de Gomes. “É preciso que o governo fique mais atento e consiga usar sua estrutura médica e sanitária, com redobrada atenção, para que essa fase de mortes acabe e os índios voltem de novo a respirar com alegria e determinação em suas vidas”, acentuou. “Os velhos importam. No caso dos índios, há conhecimento na sua própria alma”, destacou.
Merval Pereira: Pensamento (a)crítico
A nota técnica da Controladoria Geral da União (CGU) que restringe atuação dos servidores públicos nas redes sociais, mesmo em caráter pessoal, é mais um avanço do governo Bolsonaro sobre as liberdades individuais. Fere a liberdade de expressão e transgride o Pacto Internacional sobre Direito Civis e Políticos, do qual o Brasil é signatário desde 1990.
A relativização do direito ao pensamento crítico e à liberdade de expressão do agente público está resumida em uma frase: “deve-se verificar se tais direitos não comprometem a reputação do órgão em que estão vinculados, quer desrespeitando ou expondo a instituição, quer praticando atos incompatíveis com os normativos éticos”.
Os deputados Alessandro Molon, do PSB, e Tabata Amaral, do PDT, estiveram ontem na CGU com os ministros Wagner Rosário e Augusto Heleno (GSI) para pedir a revogação da medida, que já está sendo questionada no Supremo Tribunal Federal (STF).
Logo no início das conclusões, há a afirmativa que resume a ópera: “a divulgação pelo servidor de opinião acerca de conflitos ou assuntos internos, ou de manifestações críticas ao órgão ao qual pertença, em veículos de comunicação virtuais, são condutas passíveis de apuração disciplinar”.
Isso quer dizer, perguntou Molon, que um pesquisador do ministério da Saúde não pode criticar a orientação para uso de cloroquina no combate à Covid-19? Essa mesma atitude estaria enquadrada no “descumprimento do dever de lealdade” ressaltado pela nota técnica. Mas lealdade a quem, à Saúde Pública ou ao ministro da vez?
A professora da Universidade de Brasília (UnB) Laura Schertel Mendes, doutora em direito privado pela Universidade Humboldt de Berlim, com tese sobre proteção de dados na Alemanha, entende que a Nota Técnica da CGU “apresenta problemas sérios de constitucionalidade, ao violar a liberdade de expressão do servidor público”, pois determina que a Administração Pública Federal deverá adotar medidas disciplinares contra servidores que se manifestem em redes sociais de forma contrária ao órgão ao qual está subordinado.
Voltando-se à presença e à manifestação de servidores públicos em redes sociais e ambientes virtuais, mesmo que privados e sem qualquer relação com a atividade pública por ele desempenhada, a nota técnica representa “clara violação da liberdade de expressão do servidor público, dado que a Constituição Federal lhe assegura o direito à livre manifestação, à filiação partidária e ao exercício pleno de atividade política, sem qualquer limitação nos moldes previstos pela orientação da CGU”.
A professora Laura Schertel identifica “caráter intimidatório” na nota técnica, podendo até mesmo “configurar censura prévia”. Além disso, ela vê possível “um nefasto efeito colateral dessa orientação disciplinar, que é a inibição do agente público de expor suas críticas à atuação do órgão e, até mesmo, denúncias sobre ilegalidades no trato da coisa pública, o que viola os princípios da transparência e da publicidade da Administração Pública”.
O advogado Ronaldo Lemos, especialista em tecnologia e midias sociais, destaca que essas proibições contidas na nota técnica da CGU ferem o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, do qual o Brasil é signatário, especialmente o artigo 19, que diz:
1 - Ninguém poderá ser molestado por suas opiniões.
2 - Toda pessoa terá direito à liberdade de expressão; esse direito incluirá a liberdade de procurar, receber e difundir informações e idéias de qualquer natureza, independentemente de considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro meio de sua escolha.
3 - O exercício do direito previsto no parágrafo 2 do presente artigo implicará deveres e responsabilidades especiais. Conseqüentemente, poderá estar sujeito a certas restrições, que devem, entretanto, ser expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para:
a) assegurar o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas;
b) proteger a segurança nacional, a ordem, a saúde ou a moral públicas.
Uma nota técnica não tem o poder de revogar um tratado internacional, e uma divergência quanto a uma medida governamental não parece alcançada pelas ressalvas acima.
Merval Pereira: Os onze
Dois temas da maior gravidade foram enviados esta semana para o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), sem que seus relatores quisessem decidir monocraticamente. O ministro Edson Fachin (foto), mesmo mantendo sua decisão de negar acesso à Procuradoria-Geral da República aos bancos de dados da Operação Lava-Jato, decidiu levar à decisão colegiada a palavra final.
Também o ministro Gilmar Mendes preferiu enviar para o plenário do STF a decisão da ação do PTB que pretende impedir interpretações que permitam a reeleição para as presidências do Senado e da Câmara dos Deputados na mesma legislatura, proibida pela Constituição.
A atitude dos dois não tem sido a tônica das decisões dos ministros do Supremo, que não por acaso são chamados de “ilhas”, o que significa que cada ministro é um Supremo, os “onze supremos”, no título do livro dos especialistas Joaquim Falcão, Diego Arguelles e Felipe Rocondo.
As decisões monocráticas, quando um dos ministros decide sozinho, têm sido majoritárias nos últimos anos no Supremo Tribunal Federal (STF), a ponto de ter atingido em 2017, segundo estudo do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a marca de 89,8% das mais de cem mil decisões daquele ano. A criação das 1ª e 2ª Turmas, cada uma com cinco ministros, foi uma tentativa bem sucedida de desobstruir o fluxo de processos, mas não o suficiente.
Essa prática tem uma razão básica, o excesso de processos que chegam ao Supremo todos os anos, mais de cem mil, para espanto de outros ministros de Cortes Supremas, como a dos Estados Unidos, que decide por conta própria quais os casos que vai rever desde que, em 1925, para evitar o congestionamento de processos, foi editado um ato nesse sentido.
A média de processos aceitos na Suprema Corte americana é de cerca de 200 por ano, nada além disso. Outra diferença fundamental: a Suprema Corte dos Estados Unidos só decide em colegiado, e em reuniões secretas.
Também nos Estados Unidos, cujo sistema judicial nos serve como parâmetro, 97% dos processos criminais são solucionados através de negociação entre promotor público e advogado de defesa, sem interferência de um juiz (“plea bargaining”). Aqui, a Câmara dos Deputados rejeitou na Comissão de Constituição e Justiça a implantação do sistema proposto pelo então ministro da Justiça e Segurança Pública Sérgio Moro.
Com isso, o Supremo continuará sobrecarregado até mesmo com casos criminais, que podem chegar à última instância. Ao contrário, a Câmara aprovou proposta do ministro Alexandre de Moraes que possibilita a negociação e a não persecução penal em crimes mais leves. No debate sobre o excesso de atribuições do Supremo, já houve mesmo a proposta de criação de um novo tribunal superior apenas para tratar de casos criminais, como o mensalão e o petrolão. Mas não prosperou.
A questão das decisões monocráticas tornou-se também um caso político, com a crescente crítica, como a de Bolsonaro contra decisões individuais “de certas pessoas”, referindo-se ao ministro do Supremo Alexandre de Moraes, que autorizara uma ação da Polícia Federal contra apoiadores do presidente acusados de espalharem notícias fraudulentas pelos meios digitais.
Existe até mesmo em tramitação na Câmara uma proposta de emenda constitucional (PEC) que define que as decisões liminares em ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs) só podem ocorrer pela maioria absoluta dos membros do Supremo Tribunal Federal (STF), isto é, seis votos dos 11, proibindo as decisões monocráticas. Outra proposta tenta limitar o número de decisões monocráticas que cada ministro poderá tomar durante o ano.
Os dois casos enviados ao plenário tratam de questões delicadas politicamente, e a decisão colegiada é a melhor solução para o STF assumir como instituição.
Correção
Na coluna de domingo, o terceiro parágrafo continha, por engano meu, uma informação errada. Como estava escrito imediatamente acima, o Brasil não é o segundo país com o maior número de mortos por milhão de habitantes, mas o segundo maior em números absolutos.
Luiz Sérgio Henriques: Simão Bacamarte e a política nacional
O balanço do impacto de grandes operações judiciárias, como a Lava Jato, sobre o sistema partidário é, no mínimo, inquietante. Alguns dos seus aspectos mais problemáticos já foram ressaltados e outros mais virão com o tempo, mas é fato que operações inicialmente focadas em questões específicas, ainda que graves, ampliaram-se em demasia, conferiram um veio salvacionista aos principais atores, tomados por uma espécie de complexo de Simão Bacamarte, o qual, como se sabe, pretendia encerrar no manicômio de Itaguaí todos os que, a seu juízo, tinham comportamento desviante. Os resultados não foram lá muito animadores e o Bacamarte terminou encerrando-se na Casa Verde, depois de livrar a multidão de internados.
Não devemos esperar desfecho análogo: nenhum dos personagens da grande confusão brasileira, independentemente de culpas, se encaminhará por vontade própria até o manicômio. Nem entre os aprendizes de Bacamarte nem entre seus pacientes forçados surgirá espontaneamente uma avaliação serena de erros e exageros, parcialidades de julgamento e desvios reais de comportamento, de modo que, ainda no rescaldo daquelas operações, seremos obrigados a retomar pacientemente o ofício de trabalhar as duras vigas de madeira que constituem a política, de acordo com a lição clássica.
Deixemos provisoriamente de lado pequenos e grandes bacamartes; a eles voltaremos outras vezes, com particular ênfase na escolha política desastrada que fizeram na única circunstância em que efetivamente não podiam errar, a saber, na eleição de Jair Messias Bolsonaro e nas decisões judiciais que direta ou indiretamente a favoreceram. E reconheçamos, de cara, que o paciente – o sistema partidário – não estava bem das pernas (e da cabeça) quando sobre ele se abateram as acusações dos procuradores e o martelo dos juízes. Personalismo e fragmentação excessiva eram males que deformavam o funcionamento daquele sistema, para não mencionar o problema crônico – e longe de ser resolvido – das relações entre dinheiro e política, financiadores e campanhas, empresas e administradores públicos, com o atalho para o enriquecimento desonesto.
O personalismo tem múltiplas facetas e não será fácil reduzi-lo a proporções mais razoáveis. Partidos, entre nós, costumam ser empreendimentos individuais, “movimentos” que se estruturam em função de uma determinada candidatura presidencial e muitas vezes com ela desaparecem. Raramente são agrupamentos estáveis, com capacidade de expressar demandas da sociedade, selecionar grupos dirigentes ao longo do tempo, propor uma relação mais ou menos coerente entre valores e política. Nestes trinta anos de vigência da Carta de 1988 perderam-se ocasiões interessantes – não sabemos se para sempre – de um enraizamento mais definido de partidos como o PFL/DEM, que poderia ter sido expressão de uma necessária direita democrática; ou como o PSDB, embrião de uma boa socialdemocracia que, sem no entanto ter implantação sindical, se reduziria crescentemente a uma federação de “notáveis”; uma federação, de resto, facilmente desafiada e batida, à esquerda, pelo PT, cuja implantação mais forte acabaria por associar as características mais problemáticas do partido “orgânico” e da liderança carismática, tornando-se assim um partido poucas vezes capaz de pensar além de si mesmo e das suas conveniências mais imediatas.
A fragmentação, de certo modo, não foi um traço inteiramente endógeno do sistema. Natural que, após o regime autoritário, com sua ação arbitrária no sentido de dissolver os três grandes partidos da democracia de 1946 – e, obviamente, manter a proscrição dos partidos comunistas –, soprasse um vento libertário. O exagero aqui consistiu em confundir o direito à livre associação no terreno da sociedade e o direito de acesso às casas legislativas e aos fundos públicos, a ser regido por algum mecanismo mínimo de desempenho eleitoral. A intervenção “exógena” do STF, em 2006, adiou a adoção das cláusulas de barreira, que teriam dado – como começaram a dar já em 2018 – o pontapé inicial para o enxugamento e a racionalização da presença dos partidos na cena parlamentar.
A cada ato legislativo que se proponha regular os mecanismos partidários e eleitorais cabe fazer, a nosso juízo, um conjunto de perguntas intimamente relacionadas: tal ato contribui, ou não, para atenuar o grau de personalismo dos partidos e da política? Ainda que a médio prazo ele favorece a ação de forças centrípetas, impedindo que atores individuais e coletivos, semelhantes entre si, exerçam furiosamente o narcisismo das pequenas diferenças? Que regras até mesmo corriqueiras, como a da famosa “janela de transferências” às vésperas de cada pleito, podem ser aperfeiçoadas – e por certo endurecidas – para que tantos políticos “não mudem de partido como quem muda de camisa”, segundo o lugar comum que trazemos na ponta da língua? O presente mecanismo de financiamento público das campanhas será o Santo Graal finalmente encontrado ou ainda é preciso imaginar formas complementares, que necessariamente supõem limite, transparência e accountability para não se transformarem em atividades que transcorrem nas sombras?
É preciso reconhecer que estes e outros problemas não foram coerentemente formulados e menos ainda equacionados pelos políticos e partidos que dirigiram a democracia brasileira nos primeiros trinta anos do novo ordenamento constitucional. Ao contrário, foram muitas vezes varridos para debaixo do tapete, e o custo desta omissão paga-se em termos de desprestígio dos parlamentos, dos partidos e da ação política. No vácuo assim criado surgiram os salvadores da pátria – de toga, beca ou farda, tanto faz. Com os resultados calamitosos que sempre ocorrem depois que se desmoraliza a ciência dos bacamartes, a mágica dos ilusionistas e a aura mítica dos liberticidas.
Hélio Schwartsman: A Lava Jato morreu?
A correção dos excessos da força-tarefa não pode se transformar num movimento pró-impunidade
Nós gostamos de xingar corruptos e amaldiçoar a corrupção, mas ela é a segunda melhor forma de organização da sociedade. É obviamente menos eficiente do que um sistema no qual tudo funcione direitinho, segundo regras impessoais previamente estabelecidas, mas é superior a um regime no qual empreendimentos e a prestação de serviços possam ser bloqueados apenas pelo capricho de autoridades ou, ainda pior, um no qual as “concorrências” e outras disputas se resolvam à bala. É por ser razoavelmente eficaz —e lucrativa para gente influente— que é tão difícil acabar com ela.
A Lava Jato foi uma tentativa de fazer com que o Brasil passasse do estágio da corrupção disseminada, que marca os países menos desenvolvidos, para um em que ela fosse mais contida. É um objetivo importante, que foi em alguma medida cumprido. Bilhões de reais desviados foram restituídos aos cofres públicos e dezenas de políticos e empresários, que já nos acostumáramos a ver como intocáveis, foram julgados e condenados.
Não há, porém, como defender os erros cometidos pela força-tarefa de Curitiba e pelo ex-juiz Sergio Moro, que, em várias ocasiões, desvirtuaram a interpretação da lei para alcançar seus propósitos condenatórios. Penso que há elementos para anular algumas das sentenças do braço curitibano da operação.
É preciso, porém, muito cuidado para que a necessária correção dos excessos da Lava Jato não se transforme num movimento pró-impunidade. A situação de delicado equilíbrio em que vivíamos no último ano, em que um STF dividido arbitrava as questões ora para um lado, ora para outro, pode ter sido rompida agora que a Procuradoria-Geral da República passou a combater mais abertamente a Lava Jato.
O Brasil já desperdiçou tantas oportunidades que é muito possível que não consigamos mais escapar à chamada armadilha da renda média. Espero que o mesmo não ocorra em relação à corrupção.
Bruno Boghossian: Moro terá dificuldades para preservar capital político até 2022
Futuro eleitoral do ex-juiz depende quase exclusivamente do destino da Lava Jato
O palanque de Sergio Moro anda meio bambo. O divórcio com Jair Bolsonaro lançou o ex-juiz na arena eleitoral de maneira precoce, como adversário do presidente que o levou a Brasília. Sem os holofotes da toga e do governo, seu futuro político agora depende quase exclusivamente do destino da Lava Jato.
A revisão dos excessos cometidos em Curitiba e o embate dentro do Ministério Público Federal sobre os rumos da operação definirão os caminhos de Moro até 2022. O ex-juiz pode escolher se apresentar como vítima de um conluio para enfraquecer o combate à corrupção, mas deve ter dificuldades para cantar nessa única nota pelos próximos dois anos.
As críticas feitas por Augusto Aras aos trabalhos da Lava Jato reforçam uma trilha que Moro começou a percorrer no dia em que deixou o governo. Alinhado a Bolsonaro, o procurador-geral que tenta impor limites aos investigadores se torna um atalho para acusar o presidente de tentar desmantelar a operação.
O lance do ex-juiz, nesse caso, seria empurrar Bolsonaro para o córner do establishment político, ao lado dos neoaliados do centrão e de opositores do lavajatismo no Supremo. Moro tentaria roubar do ex-chefe o rótulo antissistema, mas ainda precisaria explicar por que jurou fidelidade a um presidente que jamais se interessou em demonstrar compromisso com o combate à corrupção.
Do outro lado do ringue, há outras incertezas. O debate sobre a atuação de Moro nos processos contra Lula pode levar à anulação de condenações do ex-presidente e torná-lo um potencial candidato na próxima campanha. O ex-juiz seria um inimigo natural do petista, mas precisaria disputar o mesmo eleitorado que Bolsonaro já conquistou em 2018 e poderá cativar de vez com a máquina do governo nas mãos.
Ainda que Moro tenha se tornado um dos personagens mais populares do país, seu capital político acumulado pode se desvalorizar com certa rapidez nos próximos anos. Até hoje, o ex-juiz que usou a Lava Jato como vitrine não aprendeu a ser vidraça.
El País: Ataques à Lava Jato pavimentam caminho ao julgamento decisivo de Sergio Moro no STF
Corte beneficia Lula ao excluir de seu processo delação de Palocci divulgada por ex-juiz em 2018. Coalizão antilavajatista sonha em barrar candidaturas de ex-magistrado e Dallagnol
Afonso Benites e Carla Jiménez, El País
A Lava Jato vive um annus horribilis em 2020, atordoada por decisões na Suprema Corte, e uma campanha ostensiva do procurador-geral Augusto Aras contra os métodos da operação, sob as graças do Planalto. O mau agouro respinga na figura do ex-juiz e ex-ministro Sergio Moro, personagem que mais encarnou a cruzada anticorrupção que sacudiu o Brasil e alguns países da América Latina desde 2014. Hoje, para boa parte do meio jurídico, ele personifica a deterioração da Justiça e dos ritos democráticos. Em um dos lances mais recentes desse revés, na última terça-feira, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal tomou uma decisão a favor do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), condenado duas vezes por Moro por corrupção e lavagem de dinheiro.
Os ministros da Corte entenderam que a delação do ex-ministro Antonio Palocci, divulgada por Moro na semana prévia à eleição em primeiro turno de 2018, não poderia ser incluída nos processos contra o ex-presidente, o que pode anular ao menos um processo contra Lula em Curitiba. Nas palavras do ministro Gilmar Mendes, a divulgação parecia ter “sido cuidadosamente planejada pelo magistrado para gerar verdadeiro fato político na semana que antecedia o primeiro turno das eleições presidenciais de 2018”. Também concederam aos defensores acesso ao acordo de leniência da empreiteira Odebrecht. “O Supremo reconheceu algumas de nossas queixas. Uma delas é a de que essa foi uma condenação política. Outra, de que não tínhamos acesso a tudo o que precisávamos para fazer a defesa”, diz o advogado de Lula, Cristiano Zanin.PUBLICIDADE
Partiu da defesa do ex-presidente petista, no final de 2018, o recurso no Supremo pela suspeição de Moro que anularia as sentenças proferidas contra o ex-presidente Lula. São processos que correram em Curitiba, como o caso do triplex do Guarujá, pelo qual o ex-presidente já cumpriu parte da prisão, o caso do sítio de Atibaia, e um terreno para o Instituto Lula que teria sido aceito, segundo Palocci, em acordo com a Odebrecht. Dentre os argumentos da defesa, estão a parcialidade do ex-juiz, escancarada depois de aceitar o cargo de ministro da Justiça do Governo Bolsonaro. A ação foi encorpada com as revelações do The Intercept Brasil sobre as comunicações estreitas entre Moro e procuradores de acusação do ex-presidente, que reforçam a leitura de parcialidade.
O jogo virou, celebram inimigos da Lava Jato, embora o destino da operação — e das decisões de Moro — esteja longe de ser definida. A decisão de terça-feira virou uma prévia de um julgamento previsto para ocorrer nas próximas semanas no qual será analisada também pela segunda turma a parcialidade de Moro, o ex-juiz que por um ano e quatro meses foi ministro da Justiça de Bolsonaro. Os cinco juízes decidirão se Moro tinha interesses particulares na condenação de Lula. Dois deles já proferiram seus votos contra a tese da defesa do ex-presidente: Edson Fachin e Cármen Lúcia. Outros dois, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski sinalizaram que acatarão a tese. O voto de minerva deve ser o de Celso de Mello, o decano da Corte.
A pancada do Supremo esta semana sobre o que pareciam intocáveis —Moro e a Lava Jato— vem numa sequência de golpes que passa também pelo descolamento do presidente Bolsonaro da febre lavajatista. Justamente depois de ter sido eleito sob a bandeira anticorrupção da mais longeva operação contra a corrupção no Brasil, que levou para o banco dos réus dezenas de empresários, doleiros e políticos. Moro dividiu com Bolsonaro o seu troféu na Lava Jato, a prisão de Lula, e reforçou a base eleitoral do presidente.
As máscaras, entretanto, caíram em abril quando Moro pediu demissão do cargo de ministro da Justiça, e Bolsonaro passou a hostilizar sua figura e, com apoio de seu aliado na PGR, Augusto Aras, a própria operação que ajudou a elegê-lo. Começou com Bolsonaro limitando os poderes de Sergio Moro no Ministério da Justiça, enfraquecendo os mecanismos de combate à corrupção, tentando interferir na Polícia Federal e acusando seu antigo subordinado de agir mais politicamente do que em defesa do Governo. Moro se demitiu, posou de vítima e atacou o chefe, o que resultou em um inquérito no STF contra ambos. Até 2018, quando aceitou ser ministro, Moro era a principal cara da operação. Idolatrado por parte da população nas ruas e assediado por partidos políticos para uma candidatura. Agora, entre bolsonaristas, é chamado de traidor e vê uma clara tentativa de limitação de sua atuação na seara política.
Enquanto isso, no Congresso, há uma intensa discussão, com apoio do Governo, para se aprovar um projeto de lei que obrigue juízes e membros do Ministério Público a cumprir uma quarentena de oito anos para poderem se candidatar à cargos eletivos. A ideia é tirar Moro e o procurador Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa do Paraná, do tabuleiro político de 2022. O ex-juiz é um dos presidenciáveis, enquanto que o procurador é apontado como um possível nome ao Senado.
“É lamentável que em meio a uma pandemia nossa preocupação seja com essa quarentena, não com a sanitária”, disse o cientista político Leandro Consentino, professor do Insper. “Não podemos super-empoderar promotores, endeusar juízes. Isso é perverso para o sistema de Justiça”, diz o advogado Marco Aurélio de Carvalho, ferrenho defensor da quarentena aos egressos do MP e da Justiça. Apoiador da Lava Jato, o procurador e presidente do Instituto Não Aceito Corrupção, Roberto Livianu, diz que a quarentena deveria valer também para outras carreiras, como defensores públicos, policiais e oficiais das Forças Armadas. “A quarentena é uma salvaguarda de profunda relevância, mas não essa. Porque é seletiva”, diz Livianu. Ele ainda questiona o longo prazo. “Um crime de homicídio tem pena de seis anos. Deixar um juiz, um promotor oito anos impossibilitado de disputar uma eleição é mais do que uma punição”.
A mão de Aras
Na semana passada, foi a vez do procurador-geral da República, Augusto Aras, abrir uma série de ataques à Lava Jato, quando insinuou em live com advogados do Grupo Prerrogativas, formado por críticos da operação, que os procuradores de Curitiba, liderados por Deltan Dallagnol, tinham uma “caixa de segredos” com dados de mais de 38.000 pessoas. Em junho ele enviou a subprocuradora-geral da República Lindôra Araújo a Curitiba para que ela obtivesse todos os arquivos que constavam do banco de dados da força-tarefa. Recebeu um não. Recorreu ao Supremo e conseguiu, em julho, uma decisão a seu favor das mãos do presidente da Corte, José Antônio Dias Toffoli. Era o período de recesso judiciário. Mas assim que as férias dos ministros acabaram, o relator da Lava Jato no STF, Edson Fachin, revogou a decisão de seu colega e determinou que os dados ficassem onde estavam.
“É uma afronta. Procuradores e promotores têm independência funcional. Eles não estão subordinados ao PGR”, reclama o procurador Roberto Livianu. Outro movimento de Aras que pode interferir nas apurações da Lava Jato e de outras forças-tarefa é a criação de um órgão central de combate à corrupção. Batizado de Unidade Nacional de Combate à Corrupção e ao Crime Organizado (Unac), seu coordenador seria subordinado ao PGR. “Centralizar essas investigações é pedir para que o combate dê errado. Há um alto risco de interferência política nas apurações”, alerta Livianu.
O argumento da interferência política, porém, é o mesmo que se voltou contra a Lava Jato depois da ida de Moro para o Governo Bolsonaro na sequência da liberação da delação de Palocci às vésperas da eleição, e das revelações do The Intercept Brasil. Aos poucos, firma-se um debate vocalizado recentemente pelo ministro Gilmar Mendes sobre a relação entre a operação comandada em Curitiba e o atual Governo, que já demonstrou inúmeros arroubos golpistas e desprezo pela democracia. “A Lava Jato é a mãe do bolsonarismo”, lançou Gilmar Mendes, numa entrevista em maio deste ano. A pressa em fazer justiça quebrou rituais jurídicos e atropelou acordos internacionais do Brasil, acusam as vozes de defesa dos investigados na operação, que começam a somar algumas vitórias. “A Lava Jato criou uma engrenagem, inventou um mecanismo de opressão judicial, de assassinato de reputações, para trucidar investigados, com concentração de competência”, diz o advogado criminalista Fabio Tofic, que integra o Grupo Prerrogativas. “A competência foi afirmada com ataques ao Direito e a tribunais superiores que ousassem ir contra eles. Nasceu ali o embrião de agressão ao próprio sistema, e o ataque às instituições”, completa.
Tofic é um dos autores do Livro das Suspeições, obra lançada neste final de semana que coloca o ex-juiz como um agente que colabora com o desgaste da democracia e as agressões ao Supremo que tomaram o país. Num momento de ataque às instituições democráticas no mundo inteiro, a Lava Jato fica vulnerável, posta numa trincheira oposta ao que preconizava quando nasceu.
Vera Magalhães: Passando a boiada
Bolsonaro e seus soldados estão fazendo de bico fechado aquilo que alardearam com gravadores ligados na reunião dos círculos do inferno
Não se pode dizer que quem permaneceu no governo depois da dantesca reunião ministerial de 22 de abril não seguiu as ordens do chefe.
Escancarar a questão das armas, dar acesso a Jair Bolsonaro a relatórios de inteligência, criar um serviço de arapongagem paralelo e “passar a boiada” na desregulamentação ambiental prescindindo do Congresso. Foi tudo dito, sem medir as palavras. Está tudo sendo feito.
André Mendonça ganhou o lugar de Sérgio Moro pela sua lealdade ao presidente e agora terá de explicar ao Supremo Tribunal Federal e ao Congresso se e com que intenção mandou produzir dossiês sobre funcionários públicos, acadêmicos e sabe-se lá mais que supostos “adversários” do presidente.
Parlamentares como Alessandro Molon (PSB) e Randolfe Rodrigues (Rede) também acionam o STF e apresentam projetos de decreto legislativo para que Bolsonaro explique um decreto que mexe na estrutura da Abin e cria um Comitê de Inteligência Nacional destinado a planejar, coordenar e implementar ações de “enfrentamento de ameaças à segurança e à estabilidade do Estado e da sociedade”. Vago e amplo o suficiente para virar um SNI bolsonaresco.
O silêncio de Bolsonaro e seus malabarismos com emas e caixas de cloroquina deram a alguns incautos a impressão de que ele teria se moderado. O capitão e seus soldados, no entanto, estão apenas fazendo de bico fechado aquilo que alardearam com gravadores ligados na reunião dos círculos do inferno.
CONGRESSO
Sem Maia, plano de reeleição de Alcolumbre perde força
Rodrigo Maia (DEM-RJ) pode esperar a insistência de Davi Alcolumbre, seu correligionário e presidente do Congresso, para que embarquem juntos na tentativa de aprovar uma Proposta de Emenda à Constituição para que possam se reeleger em fevereiro do ano que vem. Maia repetiu que não quer novo mandato (o quarto consecutivo) na segunda-feira no Roda Viva. Mas, diante de um pedido de Alcolumbre e diante de um apelo de que seria o único nome de “consenso” em partidos agora fragmentados, não faria esse “sacrifício”? Dividir o blocão pode ter sido uma jogada de mestre para não deixar nenhum nome ganhar musculatura.
NO PALANQUE
Eleição municipal será 'teste' do poder de voto do auxílio emergencial
Ninguém no Congresso ou mesmo no governo tem ilusões de que será possível simplesmente interromper o auxílio emergencial quando se encerrar a sua prorrogação, neste mês. Já se discutem novos valores e novas regras para a concessão de um valor decrescente, que ajude as famílias num momento em que a pandemia ainda come solta e a economia está longe de se recuperar.
Mas a principal razão a ditar a sobrevida da transferência de renda é político-eleitoral. Vitaminado após o “banho de povo” da ida ao Nordeste, Jair Bolsonaro não vai desmamar de uma vez esse novo eleitor potencial.
Quer testar o efeito do auxílio nas eleições municipais e seu potencial de beneficiar candidatos aliados do Planalto, para projetar o efeito que uma turbinada na transferência direta de recursos, seja pelo tal Renda Brasil ou como venha a se chamar o programa, pode ter em 2022, quando precisará de todo combustível que puder estocar para se reeleger.
Merval Pereira: A orelha de Bolsonaro
A obsessão do presidente Jair Bolsonaro por informações dos serviços de inteligência faz com que se espalhe pela administração federal uma tendência à bisbilhotice que nos aproxima perigosamente de um estado policial.
Nada explica, a não ser esse ambiente, a existência de uma lista de funcionários públicos considerados “antifascistas”, isto é, opositores do governo, elaborada por uma tal de Secretaria de Operações Integradas (Seopi). Na maioria professores e policiais.
Além de implicitamente admitirem que são fascistas, os que organizaram a lista consideram que servidores públicos têm um dever de lealdade ao governo a que servem. Não é à toa que a Controladoria Geral da República editou recentemente uma norma técnica que proíbe servidores de usarem as redes sociais para críticas a medidas do governo.
Comentários que possam gerar “repercussão negativa à imagem e credibilidade à instituição” merecerão punição administrativa. Isso quer dizer que, além de estarem sujeitos a uma censura nas redes sociais que utilizam em nome pessoal, os funcionários públicos também não se sentirão seguros para utilizarem os canais internos de reclamação.
Esse clima de espionagem foi ampliado por um decreto editado na sexta-feira ampliando não apenas os quadros da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), mas o escopo de sua atuação com a criação de um Centro de Inteligência Nacional que reunirá os órgãos do Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin).
Esses movimentos todos respondem à exigência do presidente Bolsonaro naquela fatídica reunião ministerial do dia 22 de abril de ter um sistema de informações que não o deixe desprotegido. Vai daí, ao que tudo indica, o ímpeto com que o Procurador-Geral da República, Augusto Aras, se jogou na guerra contra a Operação Lava-Jato, pretendendo centralizar em seu gabinete todas as informações que foram coletadas nos últimos cinco anos de investigações e denúncias.
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello definiu bem a situação: compartilhamento tem que ter objeto específico, senão vira devassa. O jurista Joaquim Falcão, em live promovida pelo jornal Valor Econômico, chamou a atenção para o fato de que o governo Bolsonaro pretende neutralizar órgãos que têm autonomia funcional garantida pela Constituição, como o Ministério Público e a Polícia Federal que, por sinal, foi o primeiro a sofrer uma interferência direta do presidente da República que está sob investigação do Supremo.
Não tendo podido nomear o amigo de sua família, delegado Alexandre Ramagem, para a chefia da Polícia Federal, Bolsonaro trocou seu comando, provocando a saída de Sérgio Moro do ministério da Justiça, e agora ampliou as atribuições da Abin, aumentando o poder de Ramagem nesse universo, e na unificação dos serviços de informações do governo.
Esses movimentos só comprovam o acerto do STF ao barrar a transferência de dados das companhias telefônicas na integralidade para que o IBGE pudesse fazer pesquisas para o censo neste ano de pandemia. A relatora, ministra Rosa Weber, disse que a medida provisória “não apresenta mecanismo técnico ou administrativo apto a proteger os dados pessoais de acessos não autorizados, vazamentos acidentais ou utilização indevida”.
Foi seguida por 10 dos 11 ministros do STF. O ministro Lewandowski chamou a atenção para o fato de que a maior ameaça ao regime democrático hoje é a crescente possibilidade de que governos autoritários, de qualquer tendência ideológica, tenham acesso a dados pessoais dos cidadãos. Escrevi aqui a favor desse compartilhamento, mas vejo hoje que fui ingênuo. Não estava em análise ali a idoneidade e seriedade do IBGE como instituição, mas um governo que não é confiável.
Há na Sicília uma caverna que o pintor Caravaggio denominou de Orelha de Dionisio, não apenas por seu formato, mas principalmente pela lenda que diz que o tirano Dionisio I de Siracusa usava a caverna como prisão política dos dissidentes e, devido à acústica perfeita, ficava sabendo dos planos dos opositores.
Bolsonaro tem no Palácio da Alvorada uma imensa escultura azul em forma de orelha, que será leiloada num gesto nobre pela primeira-dama Michelle em benefício de associações que cuidam de pessoas com problemas auditivos.
Talvez Freud explique.