STF
El País: Ação do Exército na Amazônia é questionada no STF e reabre tensão com militares
Partido Verde questiona papel das Forças Armadas na região, que teve mais desmatamento e deixou de lado o Ibama. General Heleno ataca Carmen Lúcia e Mourão defende militares na selva até 2022
Carla Jimenéz, El País
“A selva nos une”, tuitou o vice-presidente Hamilton Mourão, neste dia 5, quando se celebra o dia da Amazônia no Brasil. Mas suas palavras não encontraram eco na realidade brasileira num momento que um campo de batalha se abre contra a gestão do Governo na região. Desde maio, o mesmo Mourão conduz as operações Verde Brasil na área, com apoio das Forças Armadas, para coibir queimadas e delitos ambientais em geral. Mas a legalidade da ação dos militares foi questionada na Suprema Corte pelo Partido Verde no dia 30 de agosto, diante do aumento do desmatamento na floresta amazônica, levantando ainda a desconfiança de que o Governo pode ter agentes que informam desmatadores sobre as operações de fiscalização em curso. O pedido pede a suspensão dos atos normativos do Exército, o que na prática é paralisar a operação Verde Brasil.
Na quinta-feira, 3, a ministra do Supremo Carmen Lúcia solicitou “com urgência e prioridade, informações ao presidente da República e ao ministro da Defesa sobre os dispositivos legais questionados, a serem prestadas no prazo máximo de cinco dias”. Na sequência, serão pedidas manifestação da Advocacia Geral da União e da Procuradoria-Geral da República. Coube ao ministro do Gabinete de Segurança Institucional, o general Augusto Heleno, expressar sua irritação e reavivar atritos públicos de membros do Governo com a Corte, ao escrever: “A ministra Carmen Lúcia, do STF, acolheu ação de um partido político e determinou que o presidente e o ministério expliquem o uso das Forças Armadas, na Amazônia. Perdão, cara Ministra, se a Sra conhecesse essa área, sabe qual seria sua pergunta: “O que seria da Amazônia sem as Forças Armadas?” O vice-presidente Mourão já havia se manifestado sobre o assunto nesta sexta, 4, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, dizendo que o pedido da ministra “é mais um uso político do STF”. O tuíte de Heleno veio neste sábado completar a provocação, e colocar as redes sociais no fla-flu de sempre, depois de uma aparente trégua do Governo Bolsonaro com os demais poderes.
O cabo de guerra sobre a Amazônia, um bioma de 4,2 milhões de quilômetros quadrados, ganha a cada dia novas camadas sob a gestão do presidente Jair Bolsonaro. Com a crítica permanente no exterior sobre a condução da política ambiental – e a ameaça de reduzir investimentos no país por isso —, Bolsonaro colocou o vice-presidente a cargo da proteção da floresta, principalmente depois das queimadas em agosto de 2019, quando o Brasil virou alvo de críticas no mundo inteiro. Ali nasceu a primeira Operação Brasil, que ficou dois meses [agosto a setembro] na região para controlar focos de incêndios e delitos ambientais.
O desmatamento, porém, não cedeu em 2020, e em abril os alertas para queimadas e desmatamentos na Amazônia Legal cresceram 63,7%, o que levou o Governo a editar um decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), que prevê o uso das Forças Armadas para proteger a floresta. Nasceu assim a Operação Verde Brasil 2, ao custo de 60 milhões de reais, que duraria, em princípio, dois meses. Embora ambientalistas tenham reconhecido o esforço do Governo de chegar antes de novas altas de queimadas no segundo semestre, o plano foi visto com desconfiança pelo custo alto previsto – maior que o orçamento anual do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama), responsável pela fiscalização e redução do desmatamento até então — e pela falta de articulação conjunta.
Mourão reforça que a ação visa dar apoio aos órgãos de fiscalização, como o próprio Ibama e o Instituto Chico Mendes (ICM-Bio). “É apoio logístico e de segurança ao trabalho das duas instituições, que não têm pernas para cumprirem suas tarefas na Amazônia”, disse ele ao O Estado de S. Paulo. A posição do vice-presidente é vista com bons olhos por quem está em campo, mas os ruídos permanecem nesta que é uma área extremamente sensível para os brasileiros e para o mundo que combate o aquecimento global e depende de florestas, como a Amazônia, em pé. “Queremos e precisamos do trabalho com as outras Forças. Mas cada um tem que entrar com sua especialização. A especialização do Exército é logística, risco operacional. Nós temos prática em montar operações e ações contra infratores ambientais”, disse ao repórter Gil Alessi, sem se identificar, um fiscal que atua no instituto há mais de dez anos. Mourão ainda fez um mea culpa em sua entrevista ao dizer que o Governo errou ao sair da floresta em setembro ao final da operação Brasil 1. “Se tivéssemos permanecido no terreno desde o ano passado, teríamos números melhores para apresentar. Essa é a mea culpa que faço”, disse. Entre maio e agosto o número de queimadas foi praticamente o mesmo que o de 2019, nesse mesmo período, ainda que em agosto tenha havido uma redução de 5%. Mas este ano, as queimadas chegaram forte inclusive ao bioma do Pantanal, no centro oeste do país.
As convergências, porém, acabam se esvaindo com o Governo de um lado sob pressão com a imagem desgastada pelas dificuldades em concluir o trabalho, e ambientalistas de outro vendo-se ignorados. Na ação do PV na Corte, o partido menciona relatos de agentes de fiscalização que revelam falta de colaboração. “Criaram uma operação que concorre para o desmonte da política ambiental brasileira”, relata a arguição do PV, que menciona ainda uma ação do Ibama do dia 6 de agosto, vazada para os que seriam alvo de fiscalização. A Polícia Federal acompanhava há semanas uma operação ilegal de garimpo no Pará, mas foram proibidos a seguir a pedido de um militar. “Houve divulgação do áudio encaminhado para o grupo de WhatsApp denominado ’Garimpeiro não é bandido’, alertando sobre a presença dos agentes do Ibama naquele dia 6 de agosto na região. O autor do áudio foi identificado e confirmou que a informação foi repassada por funcionário do Governo Federal”, diz o recurso, citando reportagem divulgada no programa Fantástico.
O alerta no áudio, no caso, foi feito por Josias, um indígena urbanizado, favorável ao garimpo, que tem contato com “uma pessoa” no Governo, como ele mesmo admite na reportagem. São indígenas como ele que são mencionados por Mourão ou Bolsonaro quando o assunto é a Amazônia, e a construção de uma cadeia de atividade econômica na região. “A gente tem de entender as ansiedades da comunidade indígena. Eles não podem continuar segregados, afastados do século XXI. Precisam ter renda própria e não podem viver de esmola do Estado”, disse o vice-presidente. A leitura, porém, não leva em conta os diferentes estágios de integração dos indígenas num país com mais de 300 povos diferentes, incluindo isolados e outros que se negam a se aculturar, porque entendem a floresta como seu meio de vida, e de respeito aos seus ancestrais, que sobrevivem na mata desde antes do Brasil ser descoberto em 1500.
Folha de S. Paulo: À frente do STF, Toffoli impôs freios à Lava Jato e acumulou polêmicas
Ministro conclui gestão marcada por inquérito das fake news e crises entre os Poderes; Fux assume dia 10
Matheus Teixeira e Júlia Chaib, da Folha de S. Paulo
Dois anos depois de tomar posse como presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), o ministro Dias Toffoli encerra o mandato no comando da corte em 10 de setembro com uma gestão marcada por polêmicas.
No cargo, Toffoli abriu o inquérito das fake news, impôs reveses à Lava Jato, pautou o julgamento que levou à soltura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e se aproximou do atual presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
De um lado, foi criticado por ter adotado medidas que procuradores e integrantes do Judiciário consideraram arbitrárias.
A instauração de investigação sobre disseminação de notícias falsas contra ministros do Supremo sem provocação da PGR (Procuradoria-Geral da República) e a decisão que lhe deu acesso a dados sigilosos de mais de 600 mil pessoas no caso do Coaf são alguns dos exemplos nesse sentido.
Por outro lado, no entanto, integrantes de tribunais superiores e líderes do Congresso atribuem ao ministro um papel importante para manter a normalidade institucional diante da ofensiva de Bolsonaro contra o STF e o Legislativo.
As críticas a Toffoli começaram já no discurso de posse por ter proposto um pacto entre os três Poderes, que devem ser independentes entre si de acordo com a Constituição.
Quando assumiu o comando do Supremo, em 13 de setembro de 2018, o presidente da República era Michel Temer (MDB), e Toffoli manteve boa relação com o Executivo.
Foi depois de muita negociação com o emedebista que Toffoli garantiu uma vitória para a magistratura, mas que também foi alvo de duras críticas: o chefe do Executivo sancionou o aumento de 16,38% para os integrantes do Supremo.
Como o subsídio da corte é o parâmetro para os demais salários do funcionalismo público, a medida teve efeito cascata e elevou o teto salarial constitucional de R$ 33,7 mil para R$ 39,2 mil.
Como parte do acordo, no mesmo dia da sanção o ministro Luiz Fux, que agora assume a presidência no lugar de Toffoli, revogou a própria decisão que concedia auxílio-moradia a todos os juízes do Brasil.
Com a troca de comando na Presidência da República, as críticas à relação de Toffoli com o governo aumentaram ainda mais.
O ministro se aproximou de Bolsonaro e foi cobrado internamente por ter demorado a responder aos ataques do presidente, que chegou a criticar diretamente ministros do STF e a ameaçar descumprir ordens judiciais.
A presença de Bolsonaro nos atos antidemocráticos em frente ao QG do Exército em Brasília, no dia 19 de abril, por exemplo, não foi alvo de repreensão de Toffoli, enquanto colegas criticaram publicamente o episódio.
Em 9 de junho, após esquentar o clima entre os Poderes, porém, Toffoli deu a declaração mais enfática contra o presidente: "Algumas atitudes têm trazido uma certa dubiedade, e essa dubiedade ela impressiona e assusta a sociedade brasileira".
Na entrevista coletiva à imprensa em que fez um balanço de sua gestão no STF, porém, o ministro voltou a botar panos quentes e disse que nunca viu uma ação de Bolsonaro contra a democracia.
Em um gesto em direção a Bolsonaro, Toffoli chegou a suspender investigação contra o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) no caso da suposta "rachadinha", que apura se o filho do presidente liderou um esquema de desvio de salários dos servidores quando era deputado estadual no Rio de Janeiro.
A decisão beneficiou Flávio, mas teve um impacto muito maior: Toffoli mandou paralisar todas as apurações do país que tivessem como base dados do Coaf, órgão de inteligência financeira, sem autorização judicial.
O ministro sempre procurou desempenhar um papel de apaziguador nos inúmeros desentendimentos, muitos deles públicos, entre Bolsonaro e líderes do Congresso ou mesmo integrantes do STF.
Enquanto mantinha boa relação com o presidente, porém, Toffoli partiu para cima da rede de disseminação de notícias falsas contra membros da corte. A forma usada para dar uma resposta aos ataques ao Supremo, contudo, não foi bem recebida, nem no mundo jurídico nem no político.
O ministro instaurou de ofício, ou seja, sem provocação da PGR, o inquérito das fake news. Além disso, indicou o ministro Alexandre de Moraes para ser o relator do caso sem realizar sorteio, como ocorre geralmente.
Ministros criticaram publicamente a ação de Toffoli, mas o ponto fraco da sua gestão, mais tarde, virou seu grande trunfo. A então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, chegou a defender que fosse anulada a investigação.
A ampliação dos ataques ao Supremo empreendidos pela militância bolsonarista mudou o cenário.
Prova disso é que o ministro evitou levar uma ação do partido Rede Sustentabilidade contra a instauração do inquérito com medo de sofrer uma derrota no plenário, mas, um ano e três meses depois pautou o julgamento do caso.
E, por 10 a 1, a corte declarou o inquérito constitucional. Na entrevista em que se despediu da presidência, Toffoli classificou a instauração da investigação como a decisão mais difícil de sua gestão no comando da corte.
Ele diz que a ação foi acertada e afirma que os ataques diminuíram em mais de 80% após o início das apurações.
As derrotas à Lava Jato também marcaram sua gestão. Ainda em março de 2019, o Supremo decidiu que casos de corrupção e lavagem de dinheiro associados ao crime de caixa 2 deveriam sair da Justiça Federal e ser remetidos à Justiça Eleitoral.
Em outro momento, o STF mudou a regra das delações e determinou que os réus delatores devem entregar alegações finais antes dos delatados. A medida levou à anulação da condenação do ex-presidente da Petrobras e do Banco do Brasil Aldemir Bendine.
O ministro também aproveitou a troca de comando na PGR para fazer uma dobradinha com Augusto Aras, atual procurador-geral, em uma ofensiva contra a Lava Jato.
Como no recesso o presidente da corte responde pelo tribunal, em 9 de junho deste ano Toffoli deu provimento a um pedido da Procuradoria para que fosse determinado o compartilhamento de todos os dados da operação com a cúpula da PGR.
A decisão foi considerada ampla demais. Na volta das férias, o ministro Edson Fachin revogou a ordem do colega.
Apesar das críticas de procuradores e membros do Judiciário, Toffoli manteve relação estreita com a cúpula do Congresso e ministros de outros tribunais, além de associações.
Esses atores veem como marca de Toffoli o estilo conciliador e atribuem a ele o arrefecimento das diversas crises entre os Poderes protagonizadas ao longo do governo Bolsonaro.
O presidente da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Felipe Santa Cruz, lembra que Toffoli enfrentou uma série de crises institucionais. "Acho que ele foi muito capaz nessa tarefa [de tentar pacificar as relações]."
A presidente da AMB (Associação de Magistrados Brasileiros), Renata Gil, também elogia a interlocução de Toffoli com os outros Poderes e ressalta as iniciativas do ministro à frente do CNJ (Conselho Nacional de Justiça).
"A gente conseguiu evoluir muito, tanto no Supremo como nos tribunais, com relação a processos eletrônicos, inteligência artificial. Ele desenvolveu sistemas em parceria com tribunais, que aceleram as execuções fiscais."
PRINCIPAIS MOMENTOS DE TOFFOLI À FRENTE DO STF
POSSE
13.set.18 Toffoli toma posse como presidente do STF, prega harmonia e propõe um pacto entre os três Poderes para tirar o Brasil da crise
PLANALTO
24.set.18 Assume a presidência da República pela primeira vez durante viagem do então presidente Michel Temer (MDB) a Nova York para participar da Assembleia Geral da ONU
FAKE NEWS
14.mar.19 Alvo de ataques de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro, ministro instaura inquérito para investigar fake news contra magistrados da corte. A abertura de investigação sem pedido da PGR é criticada, assim como a escolha, sem sorteio, Alexandre de Moraes para relatar do caso
FLÁVIO
16.jul.19 A pedido do senador Flávio Bolsonaro, Toffoli determina a suspensão de investigações criminais que usassem dados detalhados de órgãos de controle sem autorização judicial. Na prática, paralisa investigação do MP-RJ contra Flávio. Em novembro, o plenário do tribunal reviu a decisão
SEGUNDA INSTÂNCIA
7.nov.19 O STF reforma entendimento que permitia a execução de pena após decisão de segunda instância. O ex-presidente Lula é solto
DADOS SIGILOSOS
14.nov.19 A Folha revela que Toffoli teve acesso a dados sigilosos de mais de 600 mil pessoas após intimar a Receita e o Coaf a lhe enviarem todos os relatórios de inteligência e representações fiscais feitos nos últimos três anos. Quatro dias após a reportagem, o ministro reviu a própria decisão
FIM DAS RESTRIÇÕES
9.mai.20 Supremo derruba restrições à doação de sangue por homens gays
BOLSONARO
9.jun.20 Após ataques de Bolsonaro ao STF, Toffoli repreende de maneira mais enfática comportamento do presidente da República: “Algumas atitudes têm trazido uma certa dubiedade, e essa dubiedade impressiona e assusta a sociedade brasileira”
FOGOS
14.jun.20 Manifestantes lançam fogos de artifício contra a sede do STF. Toffoli pede à Polícia Federal e à PGR medidas contra o ataque
Bruno Boghossian: Toffoli absolveu BolsonaroToffoli absolve Bolsonaro e passa verniz democrático numa conduta delinquente
Só faltou oferecer um troféu ao presidente por ainda não ter dado um golpe de Estado
Na última semana, Jair Bolsonaro e Dias Toffoli fizeram uma dobradinha. Questionado sobre críticas feitas por ministros do STF a seus ataques à democracia, o presidente protestou. “Eu queria que essas pessoas apontassem um ato meu, uma ação antidemocrática. Só isso, mais nada”, disse, na quinta-feira (3).
“Quando é que eu tentei censurar a mídia?”, emendou Bolsonaro. Ele deve se lembrar do dia em que disse ter vontade de encher de porrada a boca de um repórter que perguntou o motivo dos depósitos de R$ 89 mil na conta da primeira-dama, mas essa é outra história.
Horas depois, Toffoli decidiu absolver o colega do Planalto. Ao fazer um balanço de sua gestão, na manhã seguinte, o presidente do Supremo disse nunca ter visto “nenhuma atitude contra a democracia” partindo de Bolsonaro e seus ministros.
Toffoli poderia ter ficado no papo do equilíbrio institucional ou até repetido a propaganda sobre seus esforços para reduzir a tensão entre os Poderes. Mas o chefe do Judiciário preferiu passar um verniz democrático numa conduta delinquente.
Bolsonaro é o presidente que, irritado com um punhado de decisões do STF, passou a divulgar uma teoria segundo a qual as Forças Armadas poderiam fechar o tribunal.
Ele também já ameaçou descumprir decisões da corte e disse que não aceitaria determinações de seus ministros. “Acabou, porra!”, gritou o democrata depois que a Polícia Federal acordou extremistas que apoiam o governo nas redes sociais.
Quanto aos ministros do governo, Toffoli deve ter esquecido que a Esplanada tem integrantes que falam com despreocupação sobre a edição de um novo AI-5 e gente que promete “consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional” quando se vê sob a mira do tribunal.
Com certo orgulho, Toffoli afirmou ter feito o presidente “compreender que cabe ao Supremo declarar inconstitucionais determinadas normas”. Só faltou oferecer um troféu a Bolsonaro por ainda não ter dado um golpe de Estado.
Bernardo Mello Franco: Só Toffoli não viu
Existem figuras que não veem e figuras que não querem ver. Quando chamou o golpe militar de “movimento de 1964”, o ministro Dias Toffoli não padecia de cegueira histórica. Estava distorcendo os fatos para agradar Jair Bolsonaro, então favorito na eleição presidencial.
Toffoli deixa o comando do Supremo Tribunal Federal na próxima quinta-feira. Em sua gestão, o governo atacou e ameaçou a Corte de forma inédita desde o fim da ditadura. O ministro fingiu não perceber o que ocorria. Calou-se diante das ofensas e se comportou como um aliado do capitão.
A Constituição afirma que os Poderes devem funcionar de forma independente e harmônica. Toffoli ignorou a independência e radicalizou na harmonia. Chegou a se outorgar um certo “papel moderador”, a pretexto de “oferecer soluções em momentos de crise”. A oferta só serviu à família presidencial, que encontrou proteção jurídica nas horas de aperto.
No início do mandato de Bolsonaro, o presidente do Supremo anunciou um “pacto” entre Poderes. Ele se voluntariou a favor de reformas que poderiam ter sua legalidade questionada no tribunal. Um despropósito que irritou ministros mais preocupados com a autonomia da Corte.
Em julho de 2019, Toffoli suspendeu as investigações sobre o senador Flávio Bolsonaro, suspeito de desviar verbas na Assembleia Legislativa do Rio. A canetada aliviou o Zero Um e paralisou centenas de outros inquéritos que usavam dados da Receita e do antigo Coaf.
O refresco ajudou o primeiro-filho a escapar da polícia e do Ministério Público do Rio. Enquanto Flávio aproveitava a blindagem de Toffoli, seu amigo Fabrício Queiroz se escondia na chácara do advogado do clã.
Em 20 meses no poder, Bolsonaro fez quase tudo para minar a autoridade do Supremo. Ofendeu ministros, ameaçou descumprir decisões e participou de manifestações que pediam o fechamento da Corte. Em maio, o deputado Eduardo Bolsonaro declarou que uma “ruptura” era apenas questão de tempo. Seu pai sugeriu o mesmo em falas públicas e reuniões privadas.
Diante do silêncio de Toffoli, o decano Celso de Mello liderou a defesa do Judiciário. Em mensagem enviada aos colegas, ele descreveu a ofensiva autoritária e avisou que o “ovo da serpente” parecia “prestes a eclodir no Brasil”. O presidente do Supremo desprezou o alerta e manteve a linha colaboracionista. Há cinco dias, ele voltou ao Planalto para uma cerimônia que prometia levar cabos de fibra ótica à Região Norte. Seu discurso estava afinado com a propaganda do governo.
Na sexta, o ministro usou uma entrevista coletiva para enaltecer a própria gestão e se gabar do “diálogo intenso” com o chefe do Executivo. “De todo o relacionamento que tive com o presidente Jair Bolsonaro e com seus ministros de Estado, nunca vi diretamente da parte deles nenhuma atitude contra a democracia”, disse.
O golpe passou na janela, e só Toffoli não viu.
Eliane Cantanhêde: De retrocesso em retrocesso
Sem Lava Jato e com ‘fiscais do Messias’, logo chegaremos a 1980. Viva o Centrão!
Além da pandemia, que parece arrefecer, mas já matou mais de 125 mil brasileiros, o Brasil convive neste momento com ameaças a vários alvos bem definidos: Lava Jato, reforma administrativa, ministro Paulo Guedes e liberalismo do governo, vacinação em massa contra a covid-19 e preços de alimentos. Pairando sobre tudo isso, um mesmo fantasma que insiste em rondar o País: retrocesso.
O cerco à Lava Jato une a esquerda de Lula à direita de Bolsonaro, PGR, ministros do Supremo, cúpula e líderes do Congresso e parte da mídia, com tudo caminhando para um gran finale de efeitos explosivos: o julgamento sobre a suspeição do ex-ministro Sérgio Moro nas condenações do ex-presidente Lula, que passaria de réu a vítima e de preso a candidato.
O aperitivo foi quando a Segunda Turma do STF, por empate, que é pró-réu, anulou as condenações do Banestado e depois sustou ação penal contra o ministro do TCU Vital do Rêgo. A sobremesa, em cascata, será quando os advogados entrarem aos montes com recursos (que já devem estar prontos) pedindo “isonomia” para os seus presos e condenados.
“Se estava tudo tão errado assim na Lava Jato, vamos ter de soltar o Sérgio Cabral e devolver o dinheiro, mansões, lanchas, joias e diamantes do Sérgio Cabral?”, adverte um ministro do próprio Supremo, refletindo um temor que cresce na opinião pública na mesma rapidez com que caem os instrumentos e agentes da Lava Jato.
Já a reforma administrativa, que nove entre dez autoridades reconhecem como “fundamental”, mas só de boca para fora, está sem pai e sem mãe. O presidente Jair Bolsonaro, que trancou a proposta por dez meses, não quer e vai querer cada vez menos mexer com o funcionalismo – ou qualquer coisa que possa ameaçar sua reeleição em 2022. E Paulo Guedes e Rodrigo Maia, ambos fortemente a favor da reforma, romperam bem na hora decisiva.
Ex-Posto Ipiranga e ex-superministro, Guedes promete muito, entrega pouco, perdeu as graças do presidente, rompeu com a ala forte do governo e agora se mete numa briga juvenil com o homem-chave das reformas e do seu futuro no governo. E de um jeito ridículo. Proibir seus secretários de conversar com o presidente da Câmara?! Bem, Maia apresentou uma reforma da própria Câmara e foi cuidar da reforma tributária. Guedes que se vire. Com quem? Não se sabe.
E que tal ter na Presidência alguém que usa o cargo para fazer propaganda de um medicamento sem comprovação científica em nenhuma parte do mundo e para desestimular o uso obrigatório da vacina para livrar o País da maldição da covid-19? Por quê? Porque ele governa o Brasil misturando seus achismos com conselhos de terraplanistas que apostavam em no máximo 2.100 mortos. Já chegam a 125 mil, mas Bolsonaro continua firme com eles.
A última do presidente é apelar para o “patriotismo” dos donos de supermercados para segurar os preços. É evidente que a disparada dos preços já começou, em função de pandemia, dólar, estoques da China. E que o governo não tem ideia do que fazer. Além de apelar a empresários, talvez seja hora de orar. Milhões de pessoas sem emprego, com alta de preços de arroz, feijão e óleo… Boa coisa isso não dá.
Como alertou o colega José Fucs, é a volta aos anos 1980. A polícia (ou o Exército?) laçando bois no pasto, “fiscais do Messias” prendendo gerentes nos supermercados ao som do Hino Nacional. Nada com liberalismo, tudo com populismo e perfeitamente de acordo com cegueira ideológica, meio ambiente, Educação, saúde, política externa, cultura, inclusão, respeito à divergência, combate à corrupção e… censura quando se trata de Flávio Bolsonaro. De retrocesso em retrocesso, logo chegaremos a 1980. E viva o Centrão.
Demétrio Magnoli: Avanço da doutrina racialista para a representação política golpeia a soberania popular
Benedita da Silva e Luís Roberto Barroso tratam o acesso a cargos parlamentares como uma carreira
"Estaremos do lado dos que querem escrever a história do Brasil com tintas de todas as cores." O ministro Luís Roberto Barroso anunciou, por essa frase capciosa, a pretensão dos altos tribunais de tutelar os partidos políticos e os eleitores, determinando uma distribuição racial dos fundos públicos eleitorais.
O inevitável avanço da doutrina racialista para a esfera da representação política golpeia o conceito de soberania popular, pilar da democracia.
A discussão jurídica nasceu de um pedido aos tribunais da deputada Benedita da Silva (PT-RJ), pelo estabelecimento de cota de 30% de "candidaturas negras" em cada partido. Barroso disse "não", argumentando que só o Congresso tem a prerrogativa de legislar.
Mas, como é de seu feitio, prontificou-se a legislar de outro jeito, no mesmo rumo racialista, gerenciando o caixa dos partidos com vistas a um "equilíbrio racial".
As leis de cotas raciais para ingresso nas universidades apoiam-se na justificativa da promoção social de grupos excluídos. As cotas raciais dividem os estudantes de escolas públicas segundo a cor da pele, alavancando ressentimentos que nutrem o racismo. O consenso partidário formado em torno delas destina-se a mascarar a ruína do ensino público, raiz da desigualdade de oportunidades no umbral das universidades. Quando a raça chega ao terreno do voto, o racialismo retira sua máscara, exibindo a face que precisava ocultar.
Benedita e Barroso tratam o acesso a cargos parlamentares como o ingresso na universidade —ou seja, como uma carreira. A política é definida, aí, como profissão: meio de ganhar a vida e produzir patrimônio.
"Escrever a história do Brasil com tintas de todas as cores" significa, para eles, alçar "negros" a empregos bem remunerados. O problema do raciocínio é que, no fim, a seleção desses "profissionais" depende dos eleitores. Que tal, então, dirigir a mão que digita o voto para o lugar "certo"?
Os programas pioneiros de cotas raciais nas universidades foram introduzidos em 2003. Seus defensores alegavam, à época, que o expediente seria provisório, esgotando-se no horizonte de dez ou, no máximo 20 anos. Hoje, quase duas décadas depois, não só esqueceram-se do prazo limítrofe como engajaram-se na introdução de cotas raciais na pós-graduação e na administração pública.
A fraude da vontade popular na esfera eleitoral também caminhará por etapas. A primeira, em curso, define a distribuição de fundos de campanha. Numa segunda, cotas "raciais" dentro dos partidos. A conclusiva, pelo estabelecimento de cotas raciais nos próprios órgãos legislativos. No Líbano, a representação parlamentar é repartida segundo linhas sectárias, com a divisão de cadeiras entre cristãos, sunitas e xiitas. No Brasil, a lógica racialista aponta para uma divisão entre as "raças oficiais" —isto é, basicamente, entre "brancos" e "negros", pois os autodeclarados "pardos" já foram administrativamente suprimidos do universo legal.
A "voz dos negros" deve ser ouvida —eis a tradução conceitual da frase de Barroso. Os "negros", porém, participam de diferentes partidos, exprimindo ideologias diversas. Quem é a "voz dos negros"? Benedita, que é uma "voz de Lula", ou Sérgio Camargo, uma "voz de Bolsonaro"? A racialização dos órgãos legislativos nada tem a ver com a "voz dos negros". Expressa a voz das elites brasileiras que recobrem, com uma mão de tinta fresca, o racismo institucional praticado pelas polícias e a exclusão social de pobres de todas as cores.
A política é o campo dos valores, das visões de mundo —não das raças. A "voz dos negros" exigiria a constituição de um Partido Negro. Os arautos do racialismo não vão criá-lo, pois sabem que seriam rejeitados inclusive pelo eleitorado não branco. A estratégia deles é tutelar o voto por meio de leis restritivas da soberania popular.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Reinaldo Azevedo: STJ e STF inaugurarão a execução sumária na política? Fascistoides ganham!
Sob o pretexto de se combater a corrupção a ferro e fogo, o Brasil foi se tornando um país arreganhadamente despudorado.
Ficamos sabendo — e é fato — que o governo Bolsonaro intensifica seu lobby junto ao Superior Tribunal de Justiça para que a Corte Especial que vai avaliar o recurso da defesa de Wilson Witzel endosse o seu afastamento cautelar, imposto, monocraticamente, pelo ministro Benedito Gonçalves.
Atentem para uma questão importante: o problema não está apenas no fato de a decisão ser monocrática. Se o STF decidiu, em 2017, que um governador pode ser afastado sem prévia autorização da Assembleia — o que é um erro —, está mantida, no entanto, a exigência de que haja ao menos a aceitação da denúncia — o que tornaria o governador réu. E ele ainda não é réu porque nem sequer foi ouvido.
Não se constrói democracia sólida assim. O que se tem é bagunça.
A defesa recorreu, claro!, à Corte Especial do STJ contra a decisão. A coisa deve ser votada na quarta-feira. Até onde se sabe, vai endossar a decisão de Gonçalves. "Ah, aí a coisa não será mais monocrática, então!" Não resolve nada, minhas caras, meus caros! Um governador eleito diretamente está sendo retirado do cargo sem nem ainda ser réu; sem que o próprio STJ tenha apreciado a denúncia. E não se pode tomar o endosso a uma liminar como sinônimo de denúncia aceita.
Há algo de errado num país em que é mais fácil tirar do cargo um governador do que um deputado estadual.
Sim, um deputado estadual está submetido à jurisprudência do Supremo que vale para parlamentares federais: enquanto conservar o mandato, não pode ser submetido a medidas cautelares que impeçam o livre exercício do mandato sem a concordância da Assembleia. Que sentido faz impor a um governador uma sanção antecipada como essa?
A defesa também recorreu ao STF para derrubar a liminar. A decisão cabe ao presidente da Corte, Dias Toffoli. Ele deu 24 horas para o STJ se manifestar e depois igual prazo para a PGR — cuja resposta já sabemos. Vale dizer: só vai decidir depois da votação da Corte Especial, cujo resultado é conhecido de antemão.
Vamos ver o que fará Toffoli se a Corte Especial endossar a decisão de Benedito. Um caminho é considerar o recurso prejudicado porque o que se pedia era a derrubada de decisão monocrática, que monocrática não será mais. Nesse caso, a defesa de Witzel deverá voltar ao Supremo com outro recurso, cuja natureza precisa ser estudada.
Insista-se: o governador Wilson Witzel nem sequer foi denunciado. "E por que não se denuncia logo?" Porque se está ainda na fase da investigação. Não houve tempo.
Deixo aqui uma questão para reflexão: se, do concerto entre STJ e STF resultar uma decisão em que um governador de Estado pode ser afastado do cargo com base em declarações de um delator, sem nem ao menos ter sido ouvido e antes que tenha se tornado réu — já que não existe a denúncia —, então teremos as cortes superiores investindo no baguncismo.
Tanto pior quando se sabe que uma dessas cortes, o STJ, está sob o cerrado assédio do Poder Executivo.
Os dois tribunais vão inaugurar a fase da execução sumária para políticos?
Quem ganha?
Os fascistoides.
Elio Gaspari: A Casa de Rui Barbosa não merece isso
Quem é o cachorro da Suprema Corte Cachorral?
A Casa de Rui Barbosa merece respeito. O repórter Lauro Jardim revelou o teor de uma mensagem de sua presidente, Letícia Dornelles.
Nela, dizia o seguinte: “Sua excelência, o ilustre ministro Cachorro, da Suprema Corte Cachorral, prepara habeas corpus para seus nobres colegas cachorrinhos poderem latir em paz. Liberdade de expressão cachorral.”
Ainda não se sabe a qual “cachorro” do Supremo Tribunal ela se dirigia. Sabe-se que a senhora foi nomeada pelo ministro Osmar Terra, comendador da Ordem da Covid, médico e ex-secretário de Saúde do Rio Grande do Sul, famoso por ter previsto, em abril passado, que o coronavírus mataria, no máximo, duas mil pessoas no Brasil. Já matou 120 mil.
A presidente da Casa de Rui é uma carta do baralho bolsonarista na qual estiveram um ministro da Educação para quem “brasileiro viajando é um canibal, rouba coisas nos hotéis”. Foi sucedido por outro que chamou os ministros do Supremo de “vagabundos”. Na Secretaria de Cultura o bolsonarismo colocou um cidadão que entrou no cargo parafraseando Joseph Goebbels, o ministro da Propaganda de Hitler. Para seu lugar foi a atriz Regina Duarte, que infelicitou sua biografia com uma entrevista na qual relativizou os assassinatos praticados durante a ditadura.
Na Educação e na Cultura, o bolsonarismo mostra a diferença entre o conservadorismo e o atraso. A Casa de Rui foi dirigida de 1939 a 1993 pelo historiador Américo Jacobina Lacombe. Era um conservador da cepa de Hélio Vianna. Trabalhava em cima de arquivos e, assim, deu corpo ao acervo da Casa que dirigiu. Em 1964, quando nos comícios gritava-se “Reforma agrária na lei ou na marra”, ele assinou um manifesto contra a edição de uma “História nova” pelo Ministério da Educação. Criticava-a porque era esquerdista, mas também porque era ruim. Meses depois, o governo de João Goulart foi deposto, e o marechal Castello Branco assumiu a Presidência. Ele era cunhado de Hélio Vianna que, como Lacombe, havia militado no movimento integralista, uma contrafação nacional do fascismo italiano. Nenhum dos dois associou-se ao terror cultural do regime. (Por justiça, diga-se que o próprio Castello Branco condenava os excessos que se praticavam.) Eram todos conservadores, mas não eram atrasados, muito menos ignorantes.
Aquilo que hoje se chama de Nova Direita tem um dente envenenado com a cultura e outro com o Poder Judiciário. Quando os bolsonaristas investem contra o Supremo Tribunal, ecoam as táticas dos húngaros de Viktor Orbán e dos poloneses do partido Lei e Justiça. Ambos detestam também a imprensa, mas essa é outra conversa. A raiva bolsonarista, como a da presidente da Casa de Rui, vem dessa raiz, mas a senhora Letícia não percebeu que a Casa que dirige tem o nome do patrono dos advogados brasileiros.
No mês passado completou um ano a publicação de um edital do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação que pretendia gastar R$ 3 bilhões na compra de 1,3 milhão de computadores, laptops e tablets para escolas da rede pública. Um colégio que tem 255 alunos receberia 30.030 laptops. A Controladoria-Geral da União apontou esse vício e vários outros. O edital foi cancelado.
Até hoje não se sabe quem botou o jabuti na árvore.
Folha de S. Paulo: Fachin diz que eleição coloca em disputa projeto autoritário a outro alinhado à Constituição
Sem citar Bolsonaro, ministro do STF e do TSE criticou ataques ao processo eleitoral, comparando-os a um 'habeas corpus preventivo para contaminar o resultado'
O ministro Edson Fachin, do STF (Supremo Tribunal Federal), afirmou que as duas próximas eleições vão colocar em disputa dois projetos: um que ele chamou de autoritário, e outro, ligado à “agenda de 88”, em referência ao ano de promulgação da Constituição.
“Creio que a sociedade brasileira precisa se preparar para fazer uma escolha entre essas duas agendas e esses dois projetos. E isso, na via da democracia deliberativa, se dará em 2022”, disse Fachin em transmissão ao vivo nesta segunda-feira (31), promovida pelo programa Violações e Retrocessos, coordenado por acadêmicos de direito da UFPR (Universidade Federal do Paraná).
Ao longo de sua manifestação, o ministro —que também é vice-presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral)— descreveu o que caracterizaria esse projeto que se contrapõe ao campo democrático.
“Uma agenda em raízes de elogio à ditadura civil-militar, uma agenda, portanto, de mentes autoritárias, de menosprezo à democracia, de menosprezo a questões vitais, como meio ambiente, povos indígenas, quilombolas", disse.
"De uma agenda que mistura o nome de Deus com negócios do Estado e uma agenda que tem uma política armamentista, que desrespeita as instituições democráticas, que ofende a imprensa, que escolhe inimigos externos e que busca, entre outras coisas, o controle da educação e do ensino”, acrescentou.[ x ]
Questionado sobre reportagem da revista Piauí, que relatou que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) teria manifestado intenção de intervir no Supremo, Fachin disse que não comentaria o fato político. Mas mencionou o livro “Como as Democracias Morrem”, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, sugerindo que o autoritarismo pode se manifestar sem a necessidade de um golpe.
“Eu estou nesse time, ou seja, naqueles que leem porque é importante ter informação de qualidade, para saber que é possível, sim, criar isso o que podemos chamar de endoautoritarismo, ou seja, manter-se um verniz democrático e, por dentro as instituições serem corroídas a tal ponto de que o hospedeiro, que é a democracia, seja destruído pelo parasita, que é o autoritarismo”, disse.
Em seguida, em reação ao autoritarismo, Fachin enfatizou a necessidade de “produzir confiança” no processo eleitoral e na Justiça Eleitoral, além, de sobretudo, se estabelecer o compromisso de respeitar a decisão manifestada nas urnas.
“O primado da democracia não é apenas que o processo deliberativo da consulta popular se realize, mas é que todos se comprometam a respeitar essa estrutura simbólica que se forma ao fim desses processos."
Sem citar Bolsonaro, o ministro criticou ataques feitos ao processo eleitoral, comparando-os a um “habeas corpus preventivo para contaminar o resultado”.
“Por isso, soa inadmissível que até mesmo quem tenha saído vencedor nas urnas venha a questionar a credibilidade da Justiça Eleitoral. Soa inadmissível que presidentes de outros países, como se lê nos noticiários, por antemão já estão colocando em dúvida o processo eleitoral, caso obviamente necessitem desta forma atípica de habeas corpus preventivo para contaminar o resultado”, disse.
Fachin também foi questionado sobre a reforma trabalhista, aprovada em abril de 2017. Na avaliação do ministro, as alterações efetivadas pelo Congresso durante o governo de Michel Temer (MDB) não se configuraram em “retrocessos”, mas em “violação à Constituição”.
“Eu já deixei em vários julgamentos do Supremo Tribunal Federal que eu entendo que, a rigor, diante da Constituição e de direitos sociais fundamentais, não há, exatamente, retrocesso. O que há é violação da Constituição. O que se chama de retrocesso é pular para fora da Constituição. E, portanto, boa parte dessas alterações legislativas vão de encontro à Constituição e não tiveram a minha compreensão, porque eu jurei defender a Constituição, não jurei defender as minhas convicções pessoais”, disse Fachin.
Em julho, também em live promovida pelo programa Violações e Retrocessos, de acadêmicos da UFPR, Temer havia afirmado que ministros do seu governo inflaram perspectivas de geração de postos de trabalho com a reforma trabalhista.
Antes da aprovação, o então ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, havia estimado a geração de 6 milhões de empregos. Outro ministro da época, Ronaldo Nogueira, titular da pasta do Trabalho, estimou que ao menos 2 milhões de vagas seriam criadas em dois anos.
“O nosso ministro Meirelles e Ronaldo Nogueira exageraram nas suas previsões. Eles estavam pautados pela ideia, que na verdade é muito comum aqui no Brasil, que é o seguinte: quando você produz uma lei no Brasil, no dia seguinte, o céu é azul, você não tem desemprego, você não tem insegurança”, disse Temer.
Cristina Serra: No STF, o 'legado' de Toffoli
Diálogo entre Poderes pressupõe altivez, e a simples percepção de tutela militar é anomalia
O mandato do ministro Dias Toffoli na presidência do STF termina nos próximos dias deixando um enigma. Por que ele teve dois generais da reserva no cargo de “assessor especial” no seu gabinete? O primeiro foi Fernando Azevedo e Silva, por indicação de ninguém menos que o então comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, o general “influencer”.
Villas Bôas foi quem, na véspera do julgamento do pedido de habeas corpus do ex-presidente Lula, no STF, em abril de 2018, fez ameaças numa rede social dizendo que o Exército repudiava a “impunidade” e que estava “atento às suas missões institucionais”. O STF rejeitou o pedido de Lula por 6 x 5, ele foi preso, bem, o resto você sabe.
Azevedo ficou dois meses no cargo e saiu para ser ministro da Defesa do candidato vencedor na disputa presidencial. Para a vaga, Toffoli acolheu outro general bolsonarista, Ajax Porto Pinheiro. Num vídeo, durante a campanha de 2018, em meio a raciocínios tortuosos, Pinheiro fala dos perigos do comunismo e diz que, se o PT voltasse ao poder, o Exército seria “a principal vítima”. Desconhece-se a contribuição do general ao Judiciário, ao custo mensal de R$ 12.940 para o contribuinte.
Indicado por Lula em 2009 para o STF, Toffoli fez um grande esforço para se distanciar da esquerda e mostrar-se confiável aos militares. Antes de assumir a presidência, num exercício de contorcionismo semântico e impropriedade histórica, chegou a dizer que preferia chamar o golpe de 1964, que instaurou 21 anos de ditadura no Brasil, de “movimento de 64”.
Há quem interprete a contratação dos generais como uma tentativa de manter canais abertos com as Forças Armadas em tempos turbulentos. Se foi esse o intuito, mostrou-se malogrado. O Supremo vive sob ataque, e o próprio Bolsonaro já quis dar um golpe e substituir os 11 ministros. Diálogo entre Poderes pressupõe altivez. Tutela militar —ou a simples percepção dela— é uma anomalia a ser evitada. Não é um legado do qual se orgulhar.
Vera Magalhães: Corrida da toga
Vale tudo em nome das cadeiras que vão vagar no Supremo Tribunal Federal
Com o protagonismo ainda maior adquirido pelo Supremo Tribunal Federal em tempos de revisão da Lava Jato e de freios nos arreganhos autoritários de Jair Bolsonaro, foi desencadeada uma bizarra corrida pelas duas cadeiras de ministros que vão vagar no intervalo de um ano. Vale tudo para demonstrar lealdade ao presidente e ser digno da canetada da sua Bic.
Pelo menos três atores têm sido pródigos em mostrar serviço na expectativa de serem premiados com a cobiçada toga. A briga pelos lugares dos “Mellos”, Celso e Marco Aurélio, tem produzido decisões em que o direito é torcido e retorcido, com graves consequências políticas e institucionais.
O procurador-geral da República, Augusto Aras, nomeado por Bolsonaro ao arrepio da lista tríplice e à revelia dos seus pares, é um deles. A última da PGR sob seu comando foi produzida pelo seu vice, Humberto Jacques de Medeiros: o parecer favorável ao foro privilegiado retroativo para Flávio Bolsonaro no caso Fabrício Queiroz.
Medeiros também tem expectativas com a “corrida da toga”: se for Aras o agraciado agora em novembro, são grandes as chances de Bolsonaro designá-lo para o seu lugar.
O fundamento para aliviar a barra de Flávio contrasta com o que o próprio Medeiros usou em outra recente decisão polêmica: a de que requisitar documentos da Lava Jato de Curitiba. Agora ele argumentou que Flávio pode ter seu caso levado para o TJ do Rio porque a decisão do STF em contrário não era vinculante. Na outra, pegou um precedente aleatório para justificar a requisição de dados, sem evocar a necessidade de “aderência”. Um direito para cada ocasião.
Aras deu parecer contrário a buscas e apreensões contra bolsonaristas no inquérito do STF. Agora, no caso Wilson Witzel, o Ministério Público Federal pediu o afastamento de um governador e ele foi acatado por um ministro do STJ de forma monocrática.
Qual a linha da PGR? Depende da circunstância e do alvo?
O próprio STJ, aliás, virou palco auxiliar da corrida pela vaga no tribunal mais prestigiado. Basta lembrar do “canto do cisne” de João Otavio de Noronha na presidência da Corte: mandar Fabrício Queiroz para a prisão domiciliar por uma liminar no meio do recesso. Noronha é outro que tem a expectativa de ser agraciado por Bolsonaro.
Mais próximo do presidente está o ministro da Justiça, André Mendonça, que se transformou em tudo aquilo que Bolsonaro queria que Sérgio Moro fosse, mas o ex-juiz não quis.
A Advocacia-Geral da União, que ele chefiava antes, continua sendo uma subsidiária de sua linha de trabalho, e a pasta da Justiça virou um misto de advocacia particular do presidente e agência de espionagem de seus inimigos, em procedimento para o qual a maioria dos ministros do STF passou uma reprimenda, mas aliviou a barra do postulante a colega.
E aí há um aspecto importante: os 11 ministros do Supremo têm dado sinais ambíguos quanto à defesa da institucionalidade e aos freios necessários aos demais Poderes e a outros órgãos do sistema de Justiça.
Contêm o presidente, mas usam expedientes no mínimo duvidosos para isso. Repreendem os excessos da Lava Jato, mas seguem tomando decisões monocráticas que chocam a sociedade porque vão na contramão do esperado combate à impunidade. Defendem a liberdade de imprensa, mas abrem um precedente ao evocar a Lei de Segurança Nacional para punir ativistas – dando a senha para Mendonça fazer o mesmo com um jornalista.
O grau de degradação de todas as instâncias da vida nacional que Bolsonaro produziu com sua Presidência tóxica em um ano e 8 meses dará trabalho de corrigir. O sistema de Justiça não passará incólume a essa deliberada estratégia de destruição. Sob a complacência, quando não participação ativa, de muitos dos seus atores.
Merval Pereira: O julgamento
Ao ler que Cristiano Zanin, o advogado do ex-presidente Lula, está cobrando do Supremo Tribunal Federal (STF) uma decisão “o mais breve possível” sobre o habeas-corpus que pede a suspeição do ex-juiz Sérgio Moro nos julgamentos que condenaram Lula, sendo notório que a Segunda Turma está desfalcada do ministro Celso de Mello por questões de saúde, fiquei com a sensação de que o advogado está querendo aproveitar-se da circunstância para conseguir a anulação das condenações.
É sabido que dois ministros da Segunda Turma, Edson Fachin e Carmem Lucia, já votaram a favor de Moro, restando agora apenas mais dois votos, os de Gilmar Mendes e Lewandowski, que já deram indicações do que pensam ao anular um julgamento de anos atrás no processo do Banestado, considerando Moro parcial.
O frequente empate na Segunda Turma tem favorecido os réus, como manda a jurisprudência, e Zanin está disposto a aproveitar essa brecha para, enfim, conseguir anular as condenações de Lula, o que o tornaria novamente ficha-limpa, permitindo que se candidate à presidência em 2022.
Lembrei-me, então, de uma palestra que o escritor Deonísio da Silva fez num ciclo sobre Guimarães Rosa da Academia Brasileira de Letras (ABL) em 2018, sob o título “O julgamento de Zé Bebelo e a Lava-Jato”, sobre o romance “Grande Sertão, Veredas”. Deonísio Silva compara Lula a Zé Bebelo e Moro a Joca Ramiro:
“Zé Bebelo está quase derrotado, comanda nove homens e quando seu bando conta com apenas três, Riobaldo, para salvar a vida do ex-chefe e ex-aluno, grita “Joca Ramiro quer este homem vivo”.
Sem saída, Zé Bebelo descarrega a arma no chão antes de ser preso e, quando os inimigos tiram-lhe o punhal, ele diz: “Ou me matam logo, aqui, ou então eu exijo julgamento correto legal”.
Diante de Joca Ramiro imponente, montado em cavalo branco, Zé Bebelo a pé, rasgado e sujo, requer: “Dê respeito, sou seu igual”. Ouve de Joca Ramiro: “se acalme, o senhor está preso”.
É quando toda a jagunçada vai para a Fazenda Sempre-Verde. Zé Bebelo, de mãos amarradas, é conduzido em cima de um cavalo preto, na rabeira da tropa. Relata Deonísio Silva:
“Réu em inusitado julgamento no pátio da Fazenda Sempre-Verde, o jagunço letrado Zé Bebelo, salvo por Riobaldo, seu ex-professor, conduz o próprio julgamento. No insólito tribunal, os juízes são outros cangaceiros, liderados pelo grande chefe Joca Ramiro, todos sob o olhar misterioso de um jagunço que é jagunça: Reinaldo/ Diadorim.
A Lava a Jato pode inspirar outra leitura deste curioso episódio de Grande Sertão: Veredas, em que o sertão é assim definido: “Sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado!” E mais: “onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade.”
“O Brasil também já foi assim. E agora chegamos à encruzilhada onde tribunais superiores estão decidindo se continuará assim ou se mudará. Fazendo as vezes de um Sérgio Moro do sertão, o jagunço Joca Ramiro, conhecido por sua lealdade e senso de justiça por todos os cangaceiros, tem diante de si um réu audacioso, solerte e a seu modo leal e sagaz.
“Zé Bebelo é um réu que dirige o julgamento, fixa limites de suas penas e traça as condições para cumpri-la: receber montaria, escolta, água e comida na viagem para Goiás, onde promete fixar-se, deixando de combater os ex-companheiros de luta, como vinha fazendo até ali. Mas se consegue obrar todos estes feitos é porque Joca Ramiro é um juiz ainda mais sagaz do que o réu.” E sobrevém o desfecho: Zé Bebelo é libertado sob condições que o próprio réu impõe.”
Julgar o habeas-corpus de Lula sem a Segunda Turma completa, como pretende o advogado Cristiano Zanin, seria uma afronta. O mais provável é que o ministro Gilmar Mendes espere a volta dos trabalhos presenciais, no próximo ano, quando o STF já terá o novo componente da Corte. A composição final das Turmas pode sofrer alterações, pois o novo ministro, que deveria assumir o lugar de Celso de Mello, pode ser deslocado para a Primeira Turma para não ter que enfrentar um julgamento tão difícil.
O atual presidente do STF, ministro Dias Toffoli, deve ir para a Primeira Turma no lugar de Luis Fux, que assume a presidência em setembro. Haverá uma disputa interna para saber quem será o quinto membro da Segunda Turma.
Correção
Na coluna de ontem utilizei a forma “enebriar”, quando o correto é a atual “inebriar”. Na versão digital foi corrigido