STF

Míriam Leitão: Os recados da posse de Fux

‘Baruch Hashem’, disse Luiz Fux ao encerrar um discurso que teve muitos recados institucionais. O som da música “Shalom” ocupou de forma inesperada o ambiente do Supremo Tribunal Federal. Fux é filho de um imigrante que veio para o Brasil fugindo do nazismo. É o primeiro judeu a assumir a presidência da mais alta corte do país. “O Estado é laico, mas a paz é uma necessidade”, explicou o ministro ao anunciar a música. Houve vários outros sinais do tempo. Os cumprimentos foram suspensos, os convidados eram poucos e estavam distanciados, as autoridades usavam máscaras em cabines de acrílico, e as primeiras palavras do novo presidente foram em homenagem às vítimas do coronavírus. “Esta página triste e devastadora da nossa história.”

O presidente Jair Bolsonaro ouviu Fux dizer que a intervenção do Judiciário precisa ser minimalista. Deve ter gostado, porque acha que o STF tem entrado em questões próprias do Executivo. “STF não é o oráculo, não detém o monopólio das respostas”, disse Fux e pediu que não houvesse tanta judicialização da política. Ao mesmo tempo, atravessou o discurso inteiro lembrando as virtudes da democracia.

O presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, fez discurso breve e forte. Elogiou Dias Tóffoli. “Soube reagir quando os ataques — virtuais e reais — ao Supremo Tribunal Federal tentaram solapar a autonomia do Poder Judiciário, constranger a independência dos juízes e ferir a democracia brasileira.” Filho de desaparecido político, cuja memória Bolsonaro atacou, Santa Cruz contou que a OAB se reuniu duas vezes nos últimos 18 meses em atos “em defesa dessa Corte e da Constituição”. Falou do direito ao meio ambiente e do combate a todo tipo de discriminação.

Fux, ao lembrar avanços recentes consagrados pelo STF, falou que o tribunal trabalhou pelo “resgate das identidades historicamente vulneráveis, reconhecendo direitos dos povos indígenas e dos afrodescendentes nas ações afirmativas em prol das minorias étnicas, legitimou as uniões estáveis homoafetivas e paternidades socioafetivas, rechaçou a trans e a homofobia e validou a Lei Maria da Penha”. Em qualquer outro momento, pareceria a natural comemoração de avanços civilizatórios, mas ao lado de Bolsonaro as palavras soavam como aviso de que a sociedade brasileira já escolhera os valores da aceitação das diferenças e do respeito às identidades. Ele falou em “altivez” do tribunal.

A transição no STF se dá num tempo muito difícil. Na escalada da pandemia, o presidente participou de atos que pediam o fechamento do Supremo. Na reunião ministerial cujo teor foi divulgado pela decisão do ministro Celso de Mello houve pedido de prisão dos ministros do STF, que foram definidos como “vagabundos”. Bolsonaro fez ameaças diretas à Corte em seus gritos matinais na porta do Alvorada. Ontem, contudo, estava de máscara e por algumas horas ouviu os elogios ao tribunal e a exaltação dos valores da liberdade, diversidade e democracia. “O mandamento da harmonia entre os Poderes não se confunde com contemplação e subserviência”, afirmou Fux.

Outro recado do discurso de Fux foi sobre o combate à corrupção. “Não mediremos esforços para o fortalecimento do combate à corrupção, que ainda circula de forma sombria em ambientes pouco republicanos em nosso país. Como no mito da caverna de Platão, a sociedade brasileira não aceita mais o retrocesso à escuridão e, nessa perspectiva, não admitiremos qualquer recuo no enfrentamento da criminalidade organizada, da lavagem do dinheiro e da corrupção”.

O STF dos próximos dois anos será diferente. Primeiro, porque o ministro Celso de Mello, que foi decano pleno, com senioridade e senso de urgência na defesa institucional, está saindo. Segundo, porque até meados do ano que vem o tribunal terá dois indicados de Bolsonaro. No seu plano de gestão, Fux colocou em primeiro lugar “a proteção dos direitos humanos e do meio ambiente”. Isso enquanto a Amazônia e o Pantanal ardem, e o governo nega que isso esteja acontecendo.

A posse de ontem exibiu a dissonância no país. O ministro Marco Aurélio Mello, o decano presente, lembrou a Bolsonaro o básico, “o senhor foi eleito por 57 milhões de votos mas é presidente de todos os brasileiros”. Bolsonaro nunca entendeu esse papel.


Maria Cristina Fernandes: O tatame minado de Fux

Operação expõe teia de relações entre escritórios e tribunais

O Ministério Público Federal estendeu um grande tatame para a posse de Luiz Fux na presidência do Supremo Tribunal Federal. A operação de ontem é a maior a envolver as relações entre escritórios de advocacia e gabinetes de tribunais superiores em Brasília. A denúncia desfia tráfico de influência e exploração de prestígio, ferramentas com as quais, há décadas, se desmonta o combate à corrupção.

Derivada da delação do ex-presidente da Fecomercio, a denúncia, que envolve 26 advogados, expõe como essa teia operou a favor da manutenção do cartório do Sistema S por meio de triangulações montadas pelo ex-governador Sérgio Cabral.

Faixa vermelha e preta de jiu-jitsu, Luiz Fux já foi feito de refém num assalto a seu apartamento de Copacabana em 2003, quando ainda estava no STJ. A partir de hoje, é esta teia de interesses que tentará fazer do ministro, prisioneiro.

A presença do advogado do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na mesma operação que também alvejou o ex-advogado do presidente Jair Bolsonaro sugere que a esquerda montou na cavalgada anti-Lava-Jato sem olhar os dentes. O bom discurso de Lula no dia da pátria não rima com uma retaguarda jurídica que mora no mesmo prédio dos maiores doleiros de São Paulo.

Entre a defesa de Lula e Bolsonaro estende-se uma lista de advogados, entre os quais, filhos de ministros e ex-ministros que ascenderam ao STJ e ao TCU com o apoio de lideranças que, desde o governo José Sarney, personificam, em revezamento, o Centrão.

O momento político é favorável aos denunciados. O ataque a advogados, num momento em que a democracia está nas cordas, sempre poderá ser traduzido como parte do arbítrio. Dois desfechos já são dados como prováveis. O primeiro é uma liminar do ministro Gilmar Mendes. O outro é um embate entre o procurador-geral da República, Augusto Aras, com aquela que era a única, no lavajatismo, que escapara das ofensivas contra Curitiba e em São Paulo.

Escolhido para relatar a primeira das ações da Lava-Jato do Rio, Gilmar Mendes hoje é o destino natural de todas aquelas que se originam daquela perna da operação. Some-se aí a relatoria da ação do foro do senador Flávio Bolsonaro e é possível aquilatar o poder do ministro face ao presidente da República e sua família.

Com a ação de ontem, a este poder acresça-se aquele sobre a teia de relações denunciadas pelo MP. São interesses que extrapolam o mandato de Bolsonaro. Entra presidente, sai presidente, eles estão sempre lá. Não por acaso, o último ministro a se confrontar com eles, Joaquim Barbosa, que só recebia advogados de uma parte na presença daqueles da outra parte, teve duros embates com Gilmar Mendes.

Fragilizado, ao tomar posse, por investigações que o envolviam e que acabariam por ser o motivo original do inquérito das “fake news”, Toffoli buscou abrigo sob a toga de Gilmar. O resultado é que o ministro deixa a presidência do tribunal menor do que entrou.

Cometeu dois erros capitais, o de ter suspendido o acesso da Lava-Jato aos dados do Coaf e de ter franqueado a Aras os dados da Lava-Jato do Paraná. Em ambos os casos, foi derrotado pelos colegas.
Enquanto Toffoli cumpria a pauta à risca e se congraçava cada vez mais com o presidente da República, a ponto de ter apagado da memória todas as afrontas perpetradas por Jair Bolsonaro contra a democracia, Gilmar se aproximava da esquerda, na condição de paladino do Estado de direito e crítico da militarização do governo.

Uma das medalhas de reconhecimento foi a participação, a convite do Movimento dos Sem-Terra, de uma plenária virtual com camponeses.
O dueto dificilmente se repetirá com Fux. Primeiro lugar no concurso para a magistratura, presidente da comissão de juristas que, junto com o Congresso, reformou o Código de Processo Civil, Fux não se intimida no debate técnico em plenário.

Se Gilmar Mendes tem a Lava-Jato do Rio na mão, Fux é relator de um dos mais importantes processos do Mato Grosso, do ex-governador Silval Barbosa. Dificilmente, porém, o embate se encaminhará para os vínculos de um e do outro com seu Estado natal.

Os votos pró-Lava-Jato de Fux deixam claro que não há composição possível com o trio formado por Gilmar, Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli. Restaria, então, à trinca de ministros, neutralizá-lo. A reforma administrativa corrobora com essa estratégia. Depois de Executivo e Legislativo encamparem a ideia, restaria ao Judiciário enfrentar o tema que causa desconforto para um ministro, como Fux, ferrenho defensor do auxílio-moradia de juízes.

Em contrapartida, o ministro terá o poder de pauta. A partir de sua posse, é possível que Edson Fachin, relator da Lava-Jato do Paraná, sinta-se estimulado a levar mais as votações para o plenário, uma vez que o ministro tem perdido todas na Segunda Turma desde a convalescença do ministro Celso de Mello. Restaria ao trio as decisões monocráticas e os pedidos de vistas, recurso contra o qual Fux não terá como se insurgir visto que foi um dos ministros que dele mais se valeu ao longo dos dois últimos anos.

Desconhece-se a estratégia de Fux para enfrentar a onda anti-Lava-Jato, mas é previsível que, quaisquer que sejam seus recursos, a pauta ficará amplamente desfavorecida com a troca de Celso de Mello, em novembro, e de Marco Aurélio Mello, em julho.

A ordem de votos, se hoje ainda favorece a Lava-Jato, jogará contra com Fux na presidência. Como os novos entrantes votam antes, quando a vez chegava aos “garantistas”, o placar, frequentemente, já estava 1 (Alexandre de Moraes) a 5 (Edson Fachin, Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux e Cármen Lúcia).

Aquele que entrar, muito provavelmente, abrirá o placar contra a Lava-Jato porque esta é a vontade do presidente que patrocinará sua indicação. O jogo deve ficar equilibrado até que, efetivamente, esteja garantido a partir de julho. A operação de ontem dá redobradas chances para Aras conseguir uma das cadeiras, estrangulando a força-tarefa do Rio.

Quem quer que entre no tribunal o fará sob bombardeio, condição que, a exemplo de Toffoli, o deixará à mercê do abrigo de Gilmar Mendes. A partir de julho de 2021, o ministro será o decano do tribunal, condição simbólica de prestígio que lhe dará redobrada força.

A não ser que esconda um golpe secreto neste tatame tão minado, Fux poderá se dar por vitorioso com um empate.


Bernardo Mello Franco: Fux terá que escolher

A despedida de Dias Toffoli resumiu bem sua gestão à frente do Supremo. Enquanto os ministros da Corte faziam os salamaleques de praxe, Jair Bolsonaro adentrou o plenário cercado de aliados. Sem aviso e sem cerimônia, o capitão se refestelou numa poltrona e passou a acompanhar os discursos.

Não foi o único momento constrangedor da tarde. Indicado por Bolsonaro, o procurador Augusto Aras comparou o presidente do Supremo às flores do Cerrado. “No auge da seca, os ipês nos dão o melhor de si, embelezando a relva ressequida”, filosofou. Em nome da OAB, o advogado Marcus Vinicius Furtado Coêlho disse que a coragem é a “característica central” de Toffoli. Essa ninguém poderia imaginar.

Mais cedo, em visita ao Congresso, Toffoli já havia recebido uma curiosa homenagem do presidente do Superior Tribunal de Justiça. “Todo poder emana do povo. E o Toffoli é povo, o Toffoli é poder”, afirmou o ministro Humberto Martins. O senador Davi Alcolumbre identificou no presidente do Supremo a “coragem dos grandes líderes”. Imodesto, Toffoli concordou com tudo e descreveu sua própria gestão com as palavras “independência” e “altivez”.

Convidado a discursar no Supremo, Bolsonaro relembrou a colaboração do ministro com seu governo. “Até nos surpreendeu na sua capacidade de antecipar problemas e apresentar a solução antes mesmo que fosse procurado”, elogiou. Pareceu uma referência à canetada que suspendeu, por cinco meses, as investigações contra o primeiro-filho Flávio Bolsonaro.

Toffoli dará lugar a Luiz Fux, que toma posse hoje. O ministro vai comandar o Supremo até setembro de 2022. A múltiplos interlocutores, ele tem prometido descolar o tribunal dos interesses do Planalto. Ontem o capitão sugeriu o contrário ao cometer uma indiscrição e reproduzir uma conversa entre os dois. “Vossa Excelência falou pra mim: o que eu precisar do STF, assim como eu tive com Dias Toffoli, terei também com Vossa Excelência”, contou.

Pelo visto, o novo presidente do Supremo precisará escolher alguém para desapontar.


El País: Casos de censura à imprensa no Brasil expõem clima de “degradação da liberdade”

Decisões costumam ser revistas pelo STF, mas são indicativo de “judicialização da política”, dizem especialistas. Globo, Portal GGN, revista ‘Crusoé’ e TV RBS foram alvo de censura este ano

Nas últimas semanas, uma série de decisões judiciais amordaçou veículos de imprensa após ações movidas por integrantes da classe política ou do mercado financeiro. O caso mais recente envolveu o parecer da juíza Cristina Serra Feijó, do Tribunal de Justiça do Rio. Na sexta-feira ela proibiu a TV Globo de exibir documentos ou trechos de peças relativas à investigação do caso das rachadinhas no gabinete do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), que à época era deputado estadual. Trata-se de um caso de censura prévia, vedada pela Constituição Federal. Alguns dias antes, o Judiciário fluminense também determinou que o portal GGN retirasse do ar uma série de reportagens sobre o banco BTG Pactual. Em um contexto no qual o próprio presidente Jair Bolsonaro ataca veículos de imprensa e ameaça jornalistas que criticam sua gestão ou que abordam assuntos incômodos, especialistas alertam para um clima de “degradação” do ambiente de liberdade de expressão e de imprensa no país.

Quando uma reportagem é barrada pela Justiça antes mesmo de ter sido publicada, “quem perde é a sociedade. A censura prévia é sempre uma violação da liberdade de expressão e imprensa”, afirma Marcelo Träsel, presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Ele destaca que, nos casos mencionados, ocorre ainda um “prejuízo de informações de interesse público, que ao serem ocultadas deixam a sociedade sem acesso a fatos fundamentais para monitorar atividades de um governante, empresa ou representante público”. No caso da investigação envolvendo Flávio, por exemplo, se a imprensa tivesse sido proibida de divulgar documentos do caso desde o início não se saberia que a primeira-dama Michelle Bolsonaro recebeu 89.000 reais em depósitos feitos pelo ex-assessor Fabrício Queiroz, ligado a milicianos. Os Bolsonaro negam ter cometido qualquer crime, mas o Planalto ainda não explicou porque Michelle recebeu mais valores do que a devolução de um empréstimo, sem comprovante ou declaração no imposto, que o presidente diz ter feito ao ex-assessor.

Se no curto prazo a população fica sem informações relevantes, Träsel destaca também prejuízos no horizonte distante. “Esse tipo de decisão degrada o ambiente público e a liberdade de expressão de uma maneira geral. Se não é revertida em instâncias superiores, mesmo a longo a prazo, isso tem um efeito ruim”, afirma. Ele diz que geralmente nestes casos o Supremo Tribunal Federal tende a derrubar as decisões de primeira instância de censura prévia.

Estes movimentos do Judiciário contra a imprensa precisam ser entendidos em um contexto maior, de “judicialização da política no Brasil”, afirma André Augusto Salvador Bezerra, juiz e pesquisador da Universidade de São Paulo. “É um fenômeno mundial, e tem atingido temas sensíveis para os valores democráticos”, diz. Para o magistrado, “a judicialização da política nunca deve ser comemorada, pois ela é sintoma de anomalia no sistema político: ou ele não está funcionando direito ou está com problemas de legitimidade”. Ele cita como um dos primeiros casos deste movimento as decisões jurídicas que obrigavam o poder público a fornecer medicamentos para tratamento do HIV. “Começou como garantia de direitos —o que já aponta anomalia do sistema, uma vez que os Governos deveriam garantir estes remédios para a população fora dos tribunais—, e se espalhou para praticamente todas as esferas”, diz. “Por isso nosso sistema democrático tem um tribunal constitucional: para que ele dê um basta quando entender que a Constituição foi desrespeitada”, conclui.

Mas nem sempre o STF age com a velocidade esperada. Um caso emblemático de censura e morosidade do Judiciário envolveu o clã Sarney e o jornal O Estado de São Paulo, que teve uma reportagem censurada a pedido de Fernando Sarney, filho do ex-presidente, por 3.327 dias. O ministro Ricardo Lewandowski derrubou em 2018, após nove anos de silêncio, a decisão de primeira instância da Justiça do Distrito Federal e Territórios. O caso em questão dizia respeito à publicação de gravações obtidas no âmbito da Operação Boi Barrica que apontavam para ligações entre Sarney e a contratação de parentes e afilhados políticos por meio de atos secretos.

Nem Bezerra nem Träsel, da Abraji, acreditam que a censura a veículos de imprensa piorou sob o Governo Bolsonaro. Ambos apontam para a existência de uma “pluralidade do Judiciário”, o que ajudaria a deixar os casos de censura prévia restritos a uma parcela menor de juízes.

Censura à Globo, GGN, RBS e Crusoé

A ação que censurou a Globo na semana passada foi movida pela defesa de Flávio Bolsonaro. No entendimento da magistrada que deferiu o pedido, como o processo corre em segredo de Justiça a divulgação dos dados comprometeria “sua imagem [de Flávio] no cenário político” e seria “potencialmente lesiva à sua honra”. O senador comemorou a censura nas redes sociais: “Não tenho nada a esconder e expliquei tudo nos autos, mas as narrativas que parte da imprensa inventa para desgastar minha imagem e a do presidente Jair Messias Bolsonaro são criminosas”.

Já no caso do GGN, a Justiça afirmou que as matérias publicadas não poderiam “causar danos à imagem de quem quer que seja”. O juiz Leonardo Grandmasson Ferreira Chavez afirma que “pelo conjunto da obra [do GGN]” parece haver uma “campanha orquestrada para difamar o banco, cuja imagem é “patrimônio sensível para seus acionistas”. Contrariando a jurisprudência da Corte, o ministro do STF Marco Aurélio Mello manteve a decisão do juiz do Rio que censurou o GGN. Os advogados do portal informaram que vão recorrer, mas ainda não existe data para que o plenário do Tribunal discuta a questão.

O próprio STF, no entanto, também pode agir de forma corporativa. No ano passado houve um caso de censura que partiu da própria Corte: o ministro Alexandre de Moraes ordenou que se retirasse do ar uma reportagem da revista Crusoé que envolvia o presidente do Tribunal, Antonio Dias Toffoli, e o delator Marcelo Odebrecht. Em seu despacho, Moraes ainda chamou a matéria de “fake news”, acusação refutada pela publicação.

Em junho deste ano, outro caso de censura prévia, desta vez envolvendo a TV RBS. O juiz Daniel da Silva Luz, do Rio Grande do Sul, concedeu decisão liminar proibindo a veiculação de uma reportagem sobre concessão irregular do abono emergencial.

A Associação Nacional de Jornais (ANJ) se manifestou por nota sobre o caso da Globo, e afirmou que a decisão é inconstitucional: “A ANJ espera que a decisão inconstitucional da juíza seja logo revogada pelo próprio Poder Judiciário”. A reportagem tentou sem sucesso entrar em contato com os juízes mencionados.


Murillo Camarotto: Fogo no Parquet

Ascensão de Moro deixou Lava-Jato ao relento institucional

A tempestade perfeita chegou de vez ao parquinho da Lava-Jato. Em pouco mais de dois meses, o cenário, que já era difícil, se aproximou perigosamente da implosão, na esteira de uma sequência de reveses sofridos pelas forças-tarefa. Entre os dissabores mais recentes, a demissão coletiva dos responsáveis pela investigação em São Paulo. Dias antes, o principal ícone do grupo, Deltan Dallagnol, abdicou da República de Curitiba envolto em punições disciplinares.

A deterioração, é verdade, começou mais cedo. Integrantes das forças-tarefa reconhecem em reserva que o pecado capital foi a ascensão do superjuiz Sergio Moro a superministro de Jair Bolsonaro. Ao topar a mudança para Brasília, Moro teria empurrado sobre a Lava-Jato uma nuvem de desconfiança antes circunscrita a petistas inconformados e políticos abertamente fisiológicos.

À derrocada lavajatista também contribuiu o vazamento das mensagens trocadas entre Moro e os procuradores, mas foi a ruidosa saída do ministro da Justiça que degringolou o quadro. Para os procuradores envolvidos na investigação, a forma escolhida para sair de cena aumentou bastante o rol de inimigos poderosos da Lava-Lato.

“A partir do momento em que o Moro se torna um potencial adversário eleitoral do presidente, ele expõe a Lava-Jato a ataques, ‘fake news’ e todo o tipo de prática típica do modus operandi bolsonarista”, disse um procurador.

O respaldo político definhou ainda mais com a aliança entre Bolsonaro e o Centrão - que se arrepia só de ouvir falar em combate à corrupção. “Tirando um ou outro parlamentar, hoje quase toda a classe política está contra, da esquerda à direita”, completa o mesmo procurador.

Quando se olha para o outro lado da Praça dos Três Poderes, o contexto também é de desalento. Há duas semanas, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a parcialidade de Moro em um processo referente ao Banestado e anulou a sentença. A decisão sinaliza que condenações impostas ao ex-presidente Lula podem caminhar para o mesmo fim.

Importante lembrar que esse resultado só foi possível devido ao empate na votação da turma, desfalcada do decano Celso de Mello. Os procuradores, ainda assim, avaliam que o STF poderia ter adiado os julgamentos mais polêmicos até o quórum estar completo ou mesmo ter permitido que outro ministro participasse, garantindo o desempate.

Apesar de a posse do ministro Luiz Fux na presidência da Corte ser vista com bons olhos pelos procuradores, a possibilidade de Dias Toffoli ser incorporado à Segunda Turma é um contraponto de peso correspondente - ou maior.

Dentro de casa, a conjuntura é mais alarmante. O termo parquet, que em tradução livre poderia ser definido como “cercadinho”, remete às origens do Ministério Público, na França Antiga. Naquela época, os chamados “procuradores do rei” ocupavam uma área apartada nos tribunais.

A existência de um “procurador do rei” é justamente o que tira o sono da Lava-Jato. A escolha de Augusto Aras por Bolsonaro - por fora da lista tríplice - foi um mau presságio que se materializa no dia-a-dia. Em Curitiba, São Paulo e no Rio, investigadores têm convicção de que o procurador-geral da República trabalha para, no mínimo, desmontar o conceito conhecido de força-tarefa.

A estratégia passa pelo estabelecimento de uma hierarquia na estrutura do MPF, algo impensável para a maioria absoluta dos procuradores e sua sacrossanta autonomia funcional. O traço mais marcante do plano é a criação da Unac, um órgão central, baseado em Brasília, para onde deverão convergir todas as informações colhidas nas investigações dos Estados.

Além da Lava-Jato, o MPF conta hoje com outras 22 forças-tarefa ativas, que investigam das queimadas na Amazônia ao desastre de Brumadinho. O esvaziamento de uma investigação conjunta passa principalmente pela retirada da exclusividade dos integrantes, que ficam obrigados a acumular outras funções. Na força-tarefa de São Paulo, uma procuradora terá que cuidar de uma comarca no do Mato Grosso do Sul.

“Se ele tiver sucesso, acabou o Ministério Público como conhecemos desde 1988”, salientou outro procurador.

O estrangulamento do apoio administrativo é mais um procedimento denunciado. Demissionários da força-tarefa paulista lembram que tiveram que pagar do bolso as passagens aéreas para um encontro - “muito improdutivo” com Aras.

Nem mesmo a OAB é vista como trincheira aliada. A crise com a entidade é resultado dos anos de queixas de criminalistas aos inegáveis abusos da Lava-Jato. Nessa seara, quando instados a praticar a autocrítica tão cobrada de seus alvos, especialmente do PT, os procuradores respiram fundo.

Até admitem que “power points”, palestras remuneradas, entrevistas e conduções coercitivas passaram do ponto. Argumentam, contudo, que decisões difíceis tiveram que ser tomadas sob grande pressão, e que a perseguição sofrida é reflexo dos acertos, e não dos erros. Alguns também culpam a Polícia Federal de ter “botado pilha” na espetacularização. “A PF gosta de show”, costumam dizer.

Em meio à maior crise nos seus quase seis anos, a Lava-Jato ainda tem muito o que fazer. Com a prisão recente de Dario Messer, o “doleiro dos doleiros”, a força-tarefa do Rio está apenas começando uma devassa no setor financeiro. As primeiras impressões são de que os grandes bancos foram lenientes ou falharam muito nas políticas de compliance. Cerca de 3 mil offshores em mais de 50 países já estão mapeadas. “Um mundo. De dezenas e dezenas de bilhões”, garante um investigador.

O ministro Teori Zavascki costumava dizer que, na Lava-Jato, “cada vez que você puxa uma pena, vem uma galinha inteira”. Se considerado somente o que já está dito em delações premiadas, é trabalho para mais alguns anos. Resta saber se a operação terá algum respaldo institucional ou se vai voltar para o “cercadinho”.


Rosângela Bittar: A cartada decisiva

A configuração do Supremo será peça fundamental nas decisões envolvendo o PT

A posse de Luiz Fux na presidência do Supremo Tribunal Federal, amanhã, inaugura o processo de decisões judiciais do longo e tenso calendário eleitoral brasileiro, o da sucessão presidencial de 2022. No alto da lista de providências está a aprovação do grid de candidaturas e, nele, a dúvida na escuderia PT: estará ou não sob a direção de Luiz Inácio Lula da Silva?

A configuração do Supremo será peça fundamental nas decisões que darão vantagem ou desvantagem ao Partido dos Trabalhadores. A ascensão de Fux é uma desvantagem. Na divisão do STF, o novo presidente se alinha à Lava Jato e é titular absoluto no grupo dos punitivistas, em oposição aos garantistas. Entre os primeiros, estão os juízes que passam por cima de regras e adotam a máxima de que, para situações excepcionais, decisões excepcionais. Já os garantistas têm na letra da lei o seu único compromisso.

Na Segunda Turma do STF, no entanto, onde se julgará, ainda sem data marcada, o habeas corpus impetrado por Lula arguindo a suspeição do então juiz Sérgio Moro nas decisões que o tornaram inelegível, o PT enxerga uma vantagem. Tanto se o ministro Celso de Mello reassumir seu posto no STF antes da aposentadoria, em novembro, quanto se não voltar.

Celso teria comunicado a alguns colegas que sexta-feira, dia 11, estará no trabalho. O PT torce para que o decano participe da decisão sobre Lula. Relembra que, ao julgar caso semelhante em processo do Banestado, em que também foi questionada a imparcialidade de Sérgio Moro, Celso de Mello foi veemente ao admitir a falta de isenção do juiz. Agora, a argumentação seria ainda mais densa que a anterior.

Considerando a semelhança das situações, os políticos apostam num placar de 3 a 2 a favor de Lula (Celso, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski contra Edson Fachin e Cármen Lúcia).
Mas, se o decano não voltar, o PT também conta vitória, pois o empate de 2 a 2 favorecerá Lula.

A nova composição do Supremo é um teorema que inclui a discussão sobre a substituição do ministro Celso de Mello, o que pode tirar a vantagem do PT em casos futuros, de recursos, por exemplo. O novo ministro será, com certeza, fiel ao presidente Jair Bolsonaro. Mesmo rompido com Moro e unido ao Centrão, grupo implicado na operação anticorrupção, o presidente não deve capitular: contra a Lava Jato, sim, mas sempre e principalmente contra Lula.

Em pronunciamento pelas redes sociais, no 7 de Setembro, Lula apresentou uma verdadeira plataforma eleitoral em que foi do combate à pobreza à restauração da democracia. Mas se dispensou de declarar-se candidato, por ser óbvio: se conseguir o voto favorável do Supremo, ninguém lhe tira a candidatura.

Se, ao contrário, não se livrar da condição de ficha-suja, aí terá de enfrentar uma situação que o PT não admite, por enquanto: a preparação de outro candidato.

Aí, nesta fase, tudo passará a depender da segunda configuração política crucial para o partido, a das eleições municipais, essenciais para a disputa presidencial de 2022. Nas capitais do Sudeste, mas, sobretudo, em São Paulo, onde o candidato petista patina, nem sequer tem candidato a vice e está flechado à esquerda, ao centro e à direita.

Para se precaver da repetição deste quadro a nível federal, o PT, discretamente, trabalha dois nomes: o governador Rui Costa (Bahia) e o ex-prefeito Fernando Haddad (São Paulo).

Por enquanto, Haddad tem uma vantagem: foi candidato em 2018 e seus 45 milhões de votos não são um recall desprezível. Mas a cúpula do partido não o filtra bem: mesmo lulista, é considerado independente demais do partido.

Quanto a Rui Costa, sua principal vantagem é a capacidade de articular uma grande coligação centro-liberal, que já experimenta com êxito na Bahia. Bom gestor, criativo e ousado, falta-lhe ganhar visibilidade nacional.


Merval Pereira: Nos bastidores

A mudança da composição da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), palco de julgamentos sensíveis como o da parcialidade do juiz Sérgio Moro, que pode beneficiar Lula e vários outros condenados pela Lava-Jato, e o do filho do presidente, o senador Flávio Bolsonaro, sobre o foro em que seu processo sobre a “rachadinha” na Assembléia Legislativa do Rio será julgado, já está sendo negociada nos bastidores.

Sendo o mais provável que o ministro Celso de Mello (foto), que se aposenta no último dia de outubro, não reassuma seu posto por falta de condições de saúde, a Segunda Turma deveria normalmente ser composta pelo novo ministro indicado pelo presidente Bolsonaro para substituí-lo, mas há obstáculos.

Alega-se que ele já entraria tendo pela frente um caso politicamente delicado, o de Lula, e outros em que poderia se declarar impedido, como o do filho do presidente que o indicou. Se acontecer isso, que muitos ministros consideram apenas um pretexto, a troca seria feita com algum membro da Primeira Turma.

A prioridade seria do ministro Marco Aurélio Mello, o mais antigo na Corte, mas ele recusará pela segunda vez. Continua afirmando: “Não mudo de camisa”. Está na Primeira Turma desde 2002, quando deixou a presidência do STF. O ministro Dias Toffoli, que vai para a Primeira Turma no lugar de Luis Fux, que assumirá a presidência na quinta-feira, poderá, por antiguidade, escolher mudar de turma, e não será a primeira vez que o fará.

Em março de 2015, os ministros da Segunda Turma estavam incomodados com a falta do quinto nome do grupo, pois havia sete meses que esperavam pela definição da presidente Dilma sobre o novo indicado ao STF para substituir o ministro Joaquim Barbosa, que se aposentara. Toffoli acabou eleito presidente da Turma substituindo Teori Zavascki, cujo mandato terminaria em maio daquele ano, e herdou os processos do presidente. Edson Fachin, nomeado em lugar de Barbosa, foi para a Primeira Turma.

Também houve outra troca, quando morreu o ministro Zavascki, que era o relator da Lava-Jato na Segunda Turma. O ministro Alexandre de Moraes, que o substituiu, foi para a Primeira Turma, e Fachin prontificou-se a ir para a Segunda Turma, acabando como relator da Lava-Jato, escolhido por sorteio.

Atribui-se ao ministro Gilmar Mendes a negociação que levou Fachin para a Segunda Turma, da mesma maneira que agora ele estaria manobrando para levar Toffoli para lá. Fachin passou a votar ao contrário de Gilmar na maioria das vezes.

Se o ministro Dias Toffoli escolher ir para a Segunda Turma, voltará a enfrentar as críticas sobre sua própria parcialidade, como no julgamento do mensalão. Por ter sido advogado do PT, Toffoli foi pressionado para julgar-se impedido, mas não admitiu. Agora estará diante de um problema mais diretamente ligado ao ex-presidente Lula, pois votando pela parcialidade Moro estará permitindo que o ex-presidente se candidate em 2022.

Como tem sido considerado um “traidor” pelos petistas, especialmente por ter se aproximado do presidente Jair Bolsonaro neste seu mandato, estará em um impasse. Mas, ao mesmo tempo, o ministro Toffoli, deixando a presidência, poderá encontrar na importância de sua presença na Segunda Turma a manutenção de um prestígio político.

Caso Toffoli não aceite, o que, apesar de tudo é improvável, o próximo da lista é o ministro Luis Roberto Barroso, que não deve aceitar por estar às voltas com a eleição municipal como presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Como a ministra Rosa Weber é a presidente da Primeira Turma, restaria o ministro Alexandre de Moraes.

Mais uma vez a judicialização da política leva o Supremo Tribunal Federal (STF) a ser o definidor da disputa presidencial de 2022. O julgamento da parcialidade de Moro deve acontecer no primeiro trimestre do próximo ano, quando as reuniões presenciais tiverem sido retomadas, e deve ter influência decisiva na armação do xadrez político-eleitoral.

Lula tendo condições de disputar a eleição, a esquerda brasileira terá que se reorganizar, seja em torno dele, como já sugeriu o governador Flavio Dino, ou se contrapondo a ele, como pretende até o momento Ciro Gomes do PDT.

Esse golpe na Operação Lava-Jato deverá forçar uma definição do ex-juiz Sérgio Moro como alternativa à polarização Lula x Bolsonaro. E teremos ainda no próximo ano a provável definição de Luciano Huck. Será um ano animado, se a pandemia deixar.


Eliane Cantanhêde: STF, Rio e Bolsonaros

Com Luiz Fux, pode haver situação insólita: presidente do STF abstendo-se de julgar

Enquanto as pessoas se aglomeram irritantemente em praias, bares e festas, a pandemia parece arrefecer, mas ainda é ameaçadora, e o foco está em três frentes que confluem mais e mais na mesma direção: a família Bolsonaro, o Rio (a capital e o Estado) e o Supremo Tribunal Federal. Os três têm um encontro marcado nesta quinta-feira, quando muda o comando do STF.

O presidente Jair Bolsonaro e dois dos seus filhos, o senador Flávio e o vereador Carlos, têm base eleitoral do Rio, estão às voltas com investigações variadas e agora podem comemorar à vontade: estão com a faca e o queijo na mão, junto com o governador interino Cláudio Castro, o prefeito Marcelo Crivella e, consta, toda a estrutura de poder.

E assim vão caindo, um a um, os empecilhos para o domínio dos Bolsonaro no Rio. O Coaf apresentou ao Brasil um cidadão chamado Fabrício Queiroz? Despacham-se o Coaf para o Banco Central e o Queiroz para a casa do advogado da família. O ministro Sérgio Moro se recusava a trocar as cúpulas da PF nacional e no Rio? Que então Moro tivesse, e teve, “a dignidade de se demitir”. A Receita importunava a base evangélica do presidente, muito forte no Rio? Nada que uma boa conversinha não resolvesse.

Sobrou o governador Wilson Witzel, que surfou na onda bolsonarista em 2018 e depois pulou fora, deixando um rastro classificado como “muito grave” pelo Ministério Público e pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Foi fácil afastá-lo, como foi cooptar o vice Cláudio Castro, que também tem seus probleminhas com o MP e precisa desesperadamente da mãozinha do governo federal para se equilibrar no cargo de Witzel. Com Crivella já andava tudo numa boa. Só faltava uma juíza qualquer censurar a publicação das investigações contra os filhos. Não falta mais.

E o que vai acontecer com o Rio? Ninguém tem ideia, mas fica aquela dolorosa sensação de vaso quebrado que não tem jeito. Todos os ex-governadores estão ou foram presos, o atual está afastado, a cúpula da Assembleia caiu, a do Tribunal de Contas ruiu como castelo de cartas. Resultado: a crise é moral, ética, social, de segurança, política, econômica e financeira. Por onde começar?

Todo esse caldeirão cai necessariamente no Supremo, onde nesta quinta-feira a presidência sai de Dias Toffoli e vai para o carioca Luiz Fux. Toffoli entrou na Corte como o maior petista-lulista e sai da presidência como o principal, talvez único, aliado de Bolsonaro. Fux assume como o maior aliado da Lava Jato, mas com um constrangimento: as naturalmente fortes ligações com o Rio, um Estado conflagrado.

Ministros de tribunais já têm relação especial com seus Estados, onde conhecem todo mundo, são bajulados pelos Poderes e admirados pela sociedade, frequentam solenidades públicas e festas particulares. No caso de Fux, com duas peculiaridades: por temperamento, mas não só, ele tem interlocução e simpatias em toda parte e é juiz de carreira no Rio, como Witzel. O ministro, aliás, foi primeiro de turma.

Logo, não está descartada uma situação bastante insólita: o presidente do Supremo se abster em julgamentos que dizem respeito ao Rio, muitos deles intrincados com os Bolsonaro. Já deve haver quem colecione fotos de almoços, jantares, festas, tentando conexões maldosas. Fotos não dizem nada, em especial para homens públicos, que a toda hora são chamados para um clique, mas Fux não é chegado a falsos heroísmos e preza o velho e bom “à mulher de César, não basta ser honesta, é preciso parecer honesta”. O direito diz que, na dúvida, pró réu. Neste caso, pró abstenção.

FOICE E MARTELO: Por que tanta gente é anticomunista, se nem tem mais comunista?


Hélio Schwartsman: Réquiem para a Lava Jato

Não vejo como afastar a suspeita de que apoio de Bolsonaro nunca passou de uma farsa

Em 1972, Richard Nixon, talvez o mais anticomunista de todos os presidentes americanos, fez uma visita à "China vermelha" que marcou a retomada de relações diplomáticas entre Washington e Pequim, após 25 anos de isolamento. A viagem consagrou a expressão "It took Nixon to go to China" (foi preciso Nixon para ir à China), que designa situações em que só políticos muito identificados com alguma tese podem ir contra ela sem pagar um preço exorbitante.

"Mutatis mutandis", a metáfora se aplica a Bolsonaro no esvaziamento da Lava Jato. Só o candidato que tomara carona na operação para eleger-se poderia voltar-se contra ela sem sofrer um enorme desgaste por isso. Ironicamente, foi sob Bolsonaro, e não sob o PT ou o centrão, que se estancou a sangria, se é lícito usar a expressão imortalizada por Romero Jucá.

Não estou, obviamente, afirmando que a Lava Jato ocorreu sem máculas. Como sempre ocorre nesse tipo de movimento, houve abusos que devem ser corrigidos. Penso que há elementos que justificam nulidades parciais em alguns casos, mas receio que estejamos prestes a cair no extremo oposto, pondo a perder os bons serviços prestados pela operação.

Como já disse aqui, pagaremos um mico internacional se tentarmos devolver para os bancos suíços o dinheiro repatriado, a fim de que seja restituído às contas dos ex-condenados. Apesar das coisas erradas, a Lava Jato teve o inegável mérito de desbaratar esquemas bilionários de corrupção e de condenar até então intocáveis empresários e políticos do primeiro escalão.

Há uma diferença importante entre Nixon e Bolsonaro. A aproximação com a China não significou uma traição às ideias anticomunistas do americano. Ele quis explorar as desavenças entre Pequim e Moscou, pois julgava a URSS um inimigo mais poderoso. No caso de Bolsonaro, não vejo como afastar a suspeita de que seu apoio à Lava Jato nunca passou de uma farsa.


José Casado: Privilégios e impunidade

Disputa pelo foro privilegiado reflete o espírito de casta

Judiciário e Ministério Público perderam a bússola em disputas pelo foro privilegiado —mecanismo institucional que, para muitos, simplifica a rota da impunidade para poucos. Tem tribunal estadual anulando decisão do Supremo e procurador em luta contra procuradores, para garantir tratamento especial a políticos suspeitos de crimes comuns.

Há 55 mil agentes públicos nesse cercadinho judicial. Rio, Bahia e Piauí abrigam 11 mil privilegiados. A lista vai do presidente da República a vereador; de senador a reitor de universidade; de juiz a delegado.

Semanas atrás, o Tribunal de Justiça do Rio deu a regalia a um filho do presidente, Flávio Bolsonaro, político notório pelo talento para lucrar muito, várias vezes e rapidamente.

Era deputado estadual quando comprou uma quitinete na Prado Júnior, em Copacabana. Revendeu-a 60 semanas depois com o extraordinário lucro de 292%. A valorização na área havia sido de 11% (índice FipeZap). Fez mais 18 negócios assim na Barra, Botafogo e Laranjeiras.

Personagem do inquérito sobre rachadinhas e lavagem de dinheiro na Assembleia do Rio, o ex-deputado reivindicou no STF o foro privilegiado de senador. O juiz Marco Aurélio Mello rejeitou. Ele apelou ao tribunal estadual, que inovou. Deu-lhe o privilégio e transformou em letra morta a decisão do Supremo.

Procuradores do Rio recorreram contra a inovação da Justiça fluminense. Entrou em campo o procurador-geral, Augusto Aras, como relatou a repórter Bela Megale. Aras acha que o filho do presidente merece ficar longe do juízo de primeira instância. Agora, o procurador-geral batalha para derrotar os procuradores do Rio no Supremo. Quer ver rejeitada a decisão de Mello, que foi baseada na jurisprudência do próprio STF.

Há uma lógica de poder nessa aparente anarquia institucional — a de que alguns são mais iguais que outros. A disputa pelo foro privilegiado reflete o espírito de casta no serviço público: 80% dos beneficiários estão no Judiciário e no Ministério Público, mostra estudo de João Cavalcante Filho e Frederico Lima, consultores legislativos.


Míriam Leitão: O ministro que não viu o visível

Jair Bolsonaro, no dia 28 de maio, amanheceu querendo dar ordens ao Supremo Tribunal Federal. Foi quando ele berrou na porta do Alvorada aquele ultrajante “acabou, porra”. O que o irritara era a decisão do ministro Alexandre de Moraes de expedir mandados de busca em endereços de empresários e blogueiros amigos do governo, investigados pela suspeita de ameaçar ministros do STF, disseminar fake news e financiar crimes digitais. “As coisas têm um limite. Não dá para admitir mais atitudes de certas pessoas”, disse o presidente. Era uma ameaça ao Judiciário e, portanto, à democracia. Mas Dias Toffoli não viu.

“De todo o relacionamento que tive com o presidente Jair Bolsonaro e com seus ministros de Estado, nunca vi da parte dele nenhuma atitude contra a democracia”, disse Dias Toffoli. O ataque descrito acima fora contra o inquérito que o próprio Toffoli abrira. Um dos seus filhos, o deputado Eduardo Bolsonaro, postou que era preciso uma “atitude enérgica” do presidente, acrescentando que não era uma questão de “se” mas “quando” ocorreria uma ruptura. O presidente continuou: “Repito, não teremos outro dia igual a ontem. Chega. Chegamos ao limite. Estou com as armas da democracia nas mãos”. Era uma ameaça, mais uma, mas Dias Toffoli não viu.

Bolsonaro atacou a imprensa de todas as formas, como naquele 23 de agosto em que diante da pergunta de um repórter deste jornal disse que queria “encher sua boca de porrada”. Era o valentão, cercado de seguranças e de imunidades presidenciais, fazendo ameaças físicas a um profissional no exercício da profissão. Não foi o primeiro ataque. Ele escolheu alguns jornalistas para ofender, injuriar e caluniar. Ameaçou também órgãos de imprensa que não o bajulam. Editou uma MP dizendo que o objetivo dela era prejudicar o jornal “Valor”. De variadas formas ele ameaçou a liberdade de expressão, um dos pilares da democracia. Isso também Toffoli não viu.

O presidente participou de passeatas antidemocráticas. Muitas. Foram domingos consecutivos em que, aproveitando-se do distanciamento social que mantinha em casa tantos brasileiros, convocou seus apoiadores. Eles foram com faixas pedindo o fechamento do Congresso, do Supremo e uma intervenção militar “com Bolsonaro e AI-5”. Numa delas foi para a frente da sede do Exército em Brasília e discursou aos brados para a multidão:

“Acabou a patifaria. Não queremos negociar nada, agora é o povo no poder”. Disse que as Forças Armadas estavam com eles. Em outro domingo, sobrevoou a multidão num helicóptero da Força Aérea com o ministro da Defesa a bordo. Usar as Forças Armadas para intimidar é subversão da ordem democrática. Todas aquelas manifestações foram um ataque explícito à democracia. Nem isso, contudo, o ministro Dias Toffoli viu.

O presidente fez ameaças em postagens e em declarações ao ministro Celso de Mello, disse que não respeitaria ordem judicial e publicou numa de suas redes que a decisão do ministro de divulgar o vídeo da reunião ministerial poderia ser enquadrada como abuso de autoridade passível de prisão. O ministro fez bem ao divulgar o vídeo porque nessa reunião claramente se conspirou contra as instituições. Integrantes do governo pediram prisão de ministros do Supremo, o presidente disse que era preciso armar a população para resistir às ordens dos governadores, e citou o artigo 142 da Constituição que, segundo interpretação canhestra que endossava, permitiria a intervenção militar. O presidente postou um vídeo repulsivo em que ele é um leão atacado por hienas e uma delas era o STF. O decano Celso de Mello reagiu. Soltou uma nota dizendo que “o atrevimento presidencial parece não encontrar limites” e lembrou que o presidente desconhecia o princípio da separação dos poderes. Ainda bem que tivemos os olhos de Celso de Mello, porque Dias Toffoli nada viu.

Houve nestes um ano e oito meses homenagens a ditadores, como Stroessner e Pinochet, que nos constrangeram no exterior, exaltação da ditadura, endosso a textos apócrifos claramente golpistas, disseminação de fake news. Bolsonaro colocou em dúvida o processo eleitoral brasileiro, dizendo que houve fraude na última eleição sem apresentar qualquer prova. Nada disso o presidente do STF viu. E tudo era tão visível.


Carlos Pereira: A Justiça como arma política

A influência do Judiciário na política é fruto da escolha dos próprios políticos

Têm sido cada vez mais frequentes reclamações e críticas acerca da proeminência do Judiciário brasileiro, especialmente da sua Suprema Corte. Muitos afirmam que esta tem extrapolado a sua atuação, não apenas invadindo a seara de outros Poderes, mas também constrangendo de forma exacerbada a atuação dos políticos. Alegam também que a existência de decisões judiciais em direções opostas sobre temas semelhantes, não só proferidas pelo colegiado, mas especialmente de forma monocrática, tem supostamente acarretado insegurança jurídica.

A crescente influência do Judiciário na política não é um fenômeno brasileiro nem tampouco fruto de voluntarismos unilaterais de juízes ou mesmo de jacobinismos. Na realidade, é produto da escolha dos próprios políticos. Ou seja, o espaço que o Judiciário opera é definido politicamente.

De acordo com Ran Hirschl (The Political Origins of Judicial Empowerment Through Constitucionalization: Lessons from Four Constitutional Revolutions, 2000), essa influência é um fenômeno global. Em países cuja constituição garante direitos fundamentais e atribui ao Judiciário o poder de rever a constitucionalidade de atos de outros Poderes, verificou-se um aumento considerável da influência do Judiciário nas prerrogativas do Legislativo e do Executivo. Diante dos riscos de os interesses minoritários serem esmagados por uma maioria episódica, o empoderamento do Judiciário se tornou um imperativo.

O incremento na judicialização de políticas fez com que o jogo democrático dependesse cada vez mais da posição do Judiciário. A Justiça, na realidade, se transformou em uma espécie de arma política utilizada estrategicamente pelos próprios políticos.

José Maria Maravall (The Rule of Law as a Political Weapon, 2003) propõe três condições para que esse fenômeno ocorra. A primeira quando Executivos constitucionalmente fortes são majoritários no Legislativo ou conseguem formar coalizões. Nesse caso, o Parlamento teria poucas condições de responsabilizar e controlar o governo de plantão, tornando-se menos relevante. O confronto político seria assim transferido para o terreno do Judiciário. Haveria incentivos políticos para que a oposição minoritária embarcasse em uma estratégia de judicialização da política.

A segunda condição se daria quando a oposição aceita a derrota nas eleições na expectativa de se tornar governo no futuro próximo, mas novamente é derrotada nas eleições subsequentes. Mesmo com menores esperanças de se tornar vencedora com as regras do jogo atual, a oposição não parte para saídas autoritárias, mas utiliza o ativismo judicial como instrumento de competição política.

A última condição aconteceria quando o governo de plantão é minoritário e vulnerável no âmbito eleitoral. O governo teria assim incentivos para se valer do ativismo judicial para consolidar seu poder e enfraquecer a oposição. A expectativa do governo de ser vitorioso no futuro sob as atuais condições de competição é inferior à de ganhar após a politização do Judiciário. Evidentemente, essa estratégia depende de o governo encontrar apoio dentro do Judiciário.

No Brasil, as condições institucionais para uma maior interferência do Judiciário na política estão presentes desde a Constituição de 1988. Mas foi com a consolidação e amadurecimento de sua democracia que esse fenômeno ganhou maior intensidade e relevância. Pois, como disse Toqueville, “o poder arbitrário de magistrados em regimes democráticos é ainda maior do que a de seus colegas em regimes despóticos”.

Por maior que seja a insatisfação que a interferência do Judiciário na política gere em parte dos políticos e da sociedade, esse fenômeno tem se mostrado extremamente resiliente ou quase irreversível. Apenas em momentos de crise aberta que exigem refundação, mudanças dessa magnitude conseguem ser implementadas. Mas é preciso lembrar que um enfraquecimento do Judiciário também teria consequências negativas e, portanto, que não existe solução ótima.