STF
Celso Rocha de Barros: Se o risco à democracia era baixo, Toffoli pode ter encorajando os golpistas
Ex-presidente do STF nunca foi à guerra pelas instituições como fez, por exemplo, Celso de Mello
A passagem de Dias Toffoli pela presidência do STF foi característica de uma época de democracia em crise. À medida que mais bastidores dos últimos anos forem revelados, os historiadores debaterão que papel o ministro teve na gestão dessa crise.
Se as coisas estavam tão degeneradas que foi necessário ao presidente do STF costurar um acordão, Toffoli desempenhou um papel importante. Afinal, acordão ainda é melhor do que golpe. Mas se o risco à democracia era baixo, Toffoli pode ter piorado as coisas encorajando os golpistas com concessões.
O que é claro é que Toffoli nunca aceitou o risco de tornar-se um mártir da democracia, nunca foi à guerra pelas instituições como fez, por exemplo, Celso de Mello. Sua estratégia foi a acomodação com a ameaça bolsonarista, com uma exceção importante, que também é controversa.
Os analistas que defendem a tese do "risco zero" para a democracia precisam começar sua explicação com o seguinte: o que o general Fernando Azevedo e Silva estava fazendo como assessor do presidente do STF durante a campanha de 2018? Quantos generais já haviam ocupado essa posição?
Que tipo de assessoria ele prestava a Toffoli? Não é relevante que, naquela eleição, Lula estivesse a uma decisão do STF de poder ser candidato? Não é relevante que, com Lula fora do páreo, o favorito fosse o candidato dos militares? Quando Toffoli mentiu que 1964 não foi um golpe, mas um "movimento", isso não tinha nenhuma relação com a provável vitória de Bolsonaro? É normal que Azevedo e Silva tenha saído do lado de Toffoli para o Ministério da Defesa de Bolsonaro? Alguém é capaz de me apresentar uma eleição transcorrida em uma democracia consolidada em que algo semelhante tenha ocorrido?
Na semana passada, Toffoli declarou que nunca havia visto Bolsonaro ameaçar a democracia. Talvez tenha visto apenas risco de "movimentos" como o de 1964.
Mas, se não viu nada, sua passagem pela presidência do STF foi um absoluto desastre: se Bolsonaro não representava risco à democracia, as decisões de Toffoli sobre o Coaf, por exemplo, que beneficiaram Flávio Bolsonaro, foram, além de juridicamente erradas, desnecessárias à defesa da democracia.
Eu acho que o risco de golpe foi real. Acho que as instituições deveriam ter enfrentado Bolsonaro de frente. Mas se eu, que sempre alertei para o risco de golpe, mesmo assim o tiver subestimado, se um confronto direto tivesse como resultado provável a vitória dos golpistas, talvez Toffoli tivesse razão.
De qualquer forma, a exceção nessa estratégia de acomodação, o inquérito das fake news, funcionou. Em um artigo para o site de notícias jurídicas Jota, o jornalista Felipe Recondo lembra que o inquérito "revelou seu poder de dissuasão e deu ao cenário político-institucional de Brasília algum grau de normalidade e racionalidade".
O inquérito também foi alvo de muitas críticas por juristas respeitáveis. Novamente: se ajudou a evitar um golpe, valeu a pena.
Mas se fizemos esse tipo de cálculo —acordão ou golpe, inquérito heterodoxo ou golpe— a democracia andou bem mal. Resta torcer para que Fux navegue águas mais tranquilas, mas esteja disposto a reagir se as tentativas de intimidação —como a visita surpresa à despedida de Toffoli— continuarem. Haja jiu-jítsu.
*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).
Luiz Fux: Mensagem ao cidadão brasileiro
Poder Judiciário deve contas à sociedade
Honra-me servir o nosso país como presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça pelos próximos dois anos, após mais de 40 anos de vida pública, tendo percorrido todos os degraus da carreira da Magistratura.
O sentimento de dever público é redobrado neste momento de soerguimento da vida nacional, em meio a uma pandemia que levou por ora mais de 130 mil vidas humanas, testando a capacidade de resiliência dos brasileiros e de nossas instituições como nunca na história contemporânea, e nos imbuindo de solidariedade para com as vítimas e seus familiares.
O meu sentir, como cidadão e como juiz, é que a nossa Constituição sairá mais fortalecida desta crise. Como o mais importante documento do povo brasileiro, ela permanece a âncora do Estado Democrático de Direito e a bússola que guia as nossas aspirações de presente e de futuro.
À frente do STF, preservaremos a sua função precípua como instituição de jurisdição maior, defendendo a Constituição e conjurando das nossas deliberações temas afeitos aos demais Poderes. Meu norte será a lição mais elementar que aprendi no exercício da Magistratura: a deferência aos poderes Executivo e Legislativo no âmbito de suas competências, combinada com a altivez e vigilância na tutela dos direitos fundamentais.
Com efeito, o STF não detém capacidade institucional — nem é o legítimo oráculo — para todos os dilemas morais, políticos e econômicos de uma nação. Tanto quanto possível, os poderes Legislativo e Executivo devem resolver interna corporis seus conflitos e arcar com as consequências políticas de suas decisões. Reduzir a judicialização excessiva da política requer um compromisso coletivo que se revela fundamental para a autoridade de Constituição.
Por outro lado, se cabe ao Judiciário guiar-se pelas virtudes passivas, não podemos abrir mão da independência judicial atuante por um ambiente político probo. De forma harmônica e litúrgica, em diálogo permanente com os demais Poderes, o Judiciário não hesitará em proteger as minorias e a liberdade de expressão, bem como em preservar a democracia.
Calcada nessas premissas, nossa gestão compreenderá cinco eixos, todos alinhados aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da ONU. São eles: 1) proteção dos direitos humanos e do meio ambiente; 2) incremento da segurança jurídica conducente à otimização dos negócios; 3) combate à corrupção, ao crime organizado e à lavagem de dinheiro, com a consequente recuperação de ativos; 4) acesso à justiça digital; e 5) fortalecimento da vocação constitucional do STF.
A vocação constitucional do STF merecerá especial atenção nos próximos dois anos, porquanto não se justifica que sejamos a Corte Suprema que mais julga processos no mundo. Em 2019, foram 115.603 processos julgados, em contraposição aos 70 casos julgados pela Suprema Corte americana. Julgar muito não significa necessariamente julgar bem. Destarte, o fortalecimento do sistema de precedentes permitirá a redução dos processos que chegam desnecessariamente ao STF.
Outrossim, as excelentes gestões que me antecederam criaram as bases para consolidarmos a Revolução Digital do Poder Judiciário, o que nos permitirá desenvolver soluções criativas e baratas, porém com alto impacto estrutural, em direção a um acesso à justiça digital. O STF caminha para se tornar a primeira Corte Constitucional 100% digital do planeta, com perfeita integração entre inteligência artificial e inteligência humana. Nas demais instâncias, entre outras iniciativas, criaremos varas virtuais e incentivaremos soluções alternativas de conflitos em plataformas eletrônicas.
A tecnologia também será instrumento para aprimorar o sistema de combate à corrupção e de recuperação de ativos. Ampliaremos parcerias estratégicas com organismos nacionais e internacionais e adequaremos o país às recomendações do Grupo de Ação Financeira Internacional, mecanismos essenciais para o ingresso do Brasil na OCDE.
Por outro lado, não basta um Poder Judiciário tecnológico e eficiente, se os direitos básicos do cidadão não forem protegidos e concretizados pelas decisões judiciais. Nessa perspectiva, o destinatário central do nosso trabalho diário será o cidadão brasileiro. O exercício da judicatura requer a consciência de que o Poder Judiciário deve contas à sociedade e de que a autoridade de nós, juízes, repousa na crença de cada brasileiro em que as nossas decisões decorrem de um exercício imparcial e despolitizado de alteridade.
Daqui em diante, é hora de pouco falar e muito agir, sempre com um olhar otimista e propositivo sobre o Poder Judiciário. As boas mudanças são geracionais. Por vezes, elas não ocorrem no tempo e no ritmo desejados. No entanto, ao lado dos 18 mil juízes brasileiros, inicio esta jornada sem a ilusão de conceber que em dois anos teremos resolvido todos os problemas do Poder Judiciário, mas com a motivação infinita de empreender transformações positivas no modo de fazer a justiça em nosso país. Não há milagres nem subterfúgios. O motor da história é olhar para frente, sempre com prudência, diálogo, senso de realidade e consciência de que devemos honrar e preservar os ideais de futuro que a Constituição do Brasil prometeu.
*Luiz Fux é presidente do Supremo Tribunal Federal
Janio de Freitas: Estamos entrando em novas perspectivas de risco para a democracia
Toffoli deixa a presidência do Supremo a um sucessor que não traz de volta a esperança e a confiança no tribunal
Em situações de insegurança para o Estado democrático de Direito, a esperança de sustentação da ordem constitucional volta-se para o Supremo Tribunal Federal.
Desde 2018, tal ordem e o próprio Supremo são alvos de ataques que não se fundamentam em críticas, mas em propósitos contrários ao regime democrático. Com essas duas realidades à mão, estamos entrando em novas perspectivas de risco para a democracia.
A dimensão das responsabilidades do Supremo não admite a passividade com que, como instituição e ressalvadas algumas atitudes individuais, deixou-se diminuir por agressões reiteradas e crescentes de Bolsonaro e bolsonaristas profissionais ou amadores.
Dias Toffoli enfraqueceu-o mais com sua própria fraqueza, que o levou até a um acordo de pretenso comprometimento do Supremo com Bolsonaro. Não entendeu o que é o Supremo na independência dos Poderes. Não entendeu o seu dever diante dos ataques ao Supremo, à Constituição e à democracia, dos quais teve a mísera coragem de dizer que não os viu, nunca.
Toffoli deixa a presidência do Supremo a um sucessor que não traz de volta a esperança e a confiança no tribunal. Até hoje não mostrou as condições técnicas e pessoais convenientes ao tempo político em que vai presidir o Supremo.
Bolsonaro quer a reeleição. Os militares bolsonaristas querem a reeleição, admitidas ambições particulares de um ou outro. E esse objetivo significa mais do que um plano político, aliás, já com dedicação plena e exclusiva de Bolsonaro.
No decorrer dos dois anos em que Luiz Fux presidirá o Supremo, coincidirão a campanha eleitoral para a Presidência e, em princípio, as etapas mais gritantes dos inquéritos e processos suscitados pelo clã Bolsonaro, seus coadjuvantes e associados. As influências mútuas deverão fazer dos dois desenrolares apenas um. Já é uma advertência de processo eleitoral tumultuoso. O provável é maior, porém.
Bolsonaro e suas tropas de choque e de cheque precisam ganhar a eleição a qualquer custo. Não é força de expressão, é mesmo a qualquer custo. A necessidade de sufocar os problemas policiais e judiciais já justificaria a derrubada de limites, os legais e outros quaisquer.
É notório, no entanto, que Bolsonaro se viu compelido a desacelerar a marcha para os objetivos anti-institucionais. Imprevistos vários, inclusive nas Forças Armadas, negaram as condições para o avanço com riscos delimitados. Ou seja, o adiaram.
As condições podem surgir até o fim do mandato, talvez com a colaboração da pandemia e seus efeitos sociais, mas Bolsonaro e os desejosos restauradores de 1964 não parecem contar com tamanho ganho.
Apropriar-se das obras de Lula e Dilma, conter impulsos da boçalidade, viajar a qualquer pretexto, tudo indica o investimento no segundo mandato, prioritário ao plano inicial. A calmaria política na pandemia é um intervalo entre o que se temeu até ali e a sua retomada efetivadora pós-eleição.
Tudo ou nada, isto será o segundo mandato, se obtido. E este "se" terá sua decisão durante a campanha eleitoral, quer dizer, a batalha eleitoral, com o Supremo presidido por Fux e sua inclinação direitista, sua flexibilidade, sua vaidade exorbitante e irresistível aos afagos. Uma esperança, sim —para quem pretende vencer a eleição a qualquer custo.
Luiz Fux nunca surpreendeu. Mas não está impedido de achar que a hora é boa para uma experiência.
O AUTOR
Antes que a flecha chegasse ao peito de Rieli Franciscato e o matasse, já era conhecido o autor original da morte desse indigenista com mais de 30 anos de proteção aos indígenas. Já na campanha Bolsonaro falara contra a existência da Funai.
No governo, faz a sua demolição. A Coordenação-Geral de Índios Isolados foi entregue a um pastor, Ricardo Lopes Dias, um dos obcecados com a "evangelização" forçada dos índios. Rieli, sem o número necessário de auxiliares, foi morto na tentativa de evitar um confronto de brancos e índios isolados.
Mais uma realização de Bolsonaro.
Bruno Boghossian: Bolsonaro exerce no poder um presidencialismo de compadrio
Presidente explora relacionamentos para substituir critérios técnicos e respeito à lei
Jair Bolsonaro ainda não tinha ameaçado fechar o STF nenhuma vez quando tentou fazer um aceno a Luiz Fux, em julho do ano passado. “É o futuro presidente do Supremo. Tenho que começar a namorá-lo a partir de agora”, brincou, antes de receber o ministro no Planalto.
O presidente não demonstrou o mesmo afeto por outros integrantes do tribunal nos meses seguintes, mas agora parece interessado em mudar esse padrão. Durante uma cerimônia no interior da Bahia, na última sexta-feira (11), ele reforçou o flerte. “Aos poucos, estamos nos aproximando cada vez mais das autoridades do Judiciário”, anunciou.
Bolsonaro enxerga o exercício de seu poder sob a ótica de uma espécie de presidencialismo de compadrio, em que esses laços se sobrepõem ao respeito institucional. Ele certamente não é o primeiro governante a adotar o modelo, mas transformou essa característica numa marca de suas relações políticas.
Logo depois de mencionar os juízes no palanque baiano, Bolsonaro emendou um elogio a seu ministro da Infraestrutura por ter conseguido destravar obras “lá dentro do Tribunal de Contas da União”. Embora articulações desse tipo sejam comuns, o presidente fez questão de descrever as decisões da corte como produtos de um bom relacionamento, não de critérios técnicos.
Na política externa, o sentimento é semelhante. Bolsonaro planeja estender por mais três meses a isenção de tarifas para a importação de uma cota de etanol dos EUA, contrariando produtores brasileiros. Não seria o primeiro presente do governo brasileiro a Donald Trump, por quem Bolsonaro já se disse “cada vez mais apaixonado”.
Essa lógica vale também na ocupação de determinados cargos públicos, em que as conexões com o presidente e sua família valem mais do que as qualidades dos nomeados.
Bolsonaro trata o governo como uma disputa entre amigos e inimigos. Assim, ele acredita que pode atenuar suas derrotas e deixar em segundo plano as leis e o interesse público.
Ricardo Noblat: O teatrinho de Bolsonaro para enganar seus devotos mais uma vez
Guedes, o coadjuvante
O que o presidente Jair Bolsonaro diz ou faz não deveria mais causar espanto aos que discordam dele. Porque não é para eles que Bolsonaro fala e faz, mas para os que o elegeram e estão dispostos a reelegê-lo. Simples assim. Uma banalidade, ou quase isso.
“Estamos praticamente vencendo a pandemia”, afirmou Bolsonaro em mais uma viagem ao Nordeste, o mais novo alvo de sua caça permanente a votos. “O Brasil foi um dos países que menos sofreu dada às medidas tomadas pelo governo federal”.
Verdade ou mentira? Grossa mentira. A pandemia ainda está longe de ser vencida. E quando for, o governo federal não terá sido o maior responsável, pelo contrário. A levar-se em conta o número de mortos e de infectados, o Brasil é o segundo país que mais sofre.
Sim, mas, e daí? Os devotos de Bolsonaro querem escutar que ele lhes diz, querem acreditar em suas palavras, quando nada para concluírem que seu voto valeu a pena. Assim procedem nos Estados Unidos, por exemplo, os eleitores de Trump.
No momento, Bolsonaro e Paulo Guedes, ministro da Economia, encenam a farsa sobre a “crise do arroz”. Guedes reclama porque o Ministério da Justiça pediu explicações para a alta do preço do produto. Bolsonaro diz que autorizou que o pedido fosse feito.
Guedes sabe que Bolsonaro jamais cairia da arapuca de tabelar preços. Bolsonaro sabe que Guedes sabe disso. Mas para o público de Guedes, os empresários, pega bem que ele reclame. E para os pobres que Bolsonaro quer conquistar, que ele cobre explicações.
E segue o baile. Cada um com o seu papel e a situação sob controle. À falta de oposição, o céu é de brigadeiro para eles.
A corrupção sequestrou a política do Rio e tão cedo a libertará
Futuro com cara de presente
A corrupção emporcalhou de tal maneira a imagem política do Rio de Janeiro que o bacharel em Direito Eduardo Paes, duas vezes prefeito da cidade do Rio e candidato, este ano, ao mesmo posto, teria razões de sobra para comemorar o fato de ter-se tornado réu por irregularidades em contratações antigas.
A situação dele não é nada má se comparada, por exemplo, com a de Wilson Witzel, afastado do cargo por 180 dias e ameaçado de impeachment por desvio de dinheiro da Saúde. Ou com a situação do governador interino Cláudio Castro, investigado por ter recebido propina na época em que era vereador.
Paes parece menos enrolado do que o seu sucessor, o atual prefeito Marcelo Crivella, candidato à reeleição, acusado de fraude em licitações e lavagem de dinheiro. E do que o secretário estadual da Educação e a ex-deputada federal Cristiane Brasil, ambos presos ontem, suspeitos de desvio de 117 milhões de reais.
Só nesta semana, no Rio, foram três operações policiais contra corrupção em apenas quatro dias. Houve agente e promotor que participarem de duas em menos de 48 horas. Cansativo. Nem por isso há sinais de que o futuro possa ser o oposto do presente. O crime infiltrou-se no aparelho do Estado e sequestrou a política.
Merval Pereira: Sinal de independência
A sugestão para que o presidente Bolsonaro deixe para marcar o depoimento na Polícia Federal exigido pela decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Celso de Mello apenas quando o decano da Corte já tiver se aposentado, em novembro, denota insegurança, e só faz enfraquecê-lo.
Cogitar que a Polícia Federal terá comportamento diferente depois da aposentadoria de Celso de Mello revela a mente conturbada de quem acredita em teorias da conspiração. Ou a certeza de que a PF, sem uma autoridade a vigiá-la, lhe será dócil, o que confirma a vontade de controlá-la.
A lei permite que o presidente da República preste testemunho por escrito, quando é testemunha, mas não cita como deve ser tomado um depoimento se ele for o alvo da investigação. O Procurador-Geral da República, Augusto Aras, foi favorável a que o presidente Bolsonaro escolhesse a forma do depoimento: “Dada a estatura constitucional da Presidência da República e a envergadura das relevantes atribuições atinentes ao cargo, há de ser aplicada a mesma regra em qualquer fase da investigação ou do processo penal”, disse, alegando que o presidente poderia depor presencialmente ou por escrito.
Como a lei não especifica a situação em que o presidente da República está sendo investigado, o ministro Luis Roberto Barroso autorizou que o então presidente Michel Temer, também investigado na ocasião, depusesse por escrito.
Já o ministro Celso de Mello entendeu que "o Senhor Presidente da República, por ostentar a condição de investigado, não dispõe de qualquer das prerrogativas (próprias e exclusivas de quem apenas figure como testemunha ou vítima) a que se refere o art. 221, “caput” e § 1º, do CPP, a significar que a inquirição do Chefe de Estado, no caso ora em exame, deverá observar o procedimento normal de interrogatório (CPP, art. 6º, inciso V, c/c o art. 185 e seguintes)".
Outro detalhe da decisão do ministro Celso de Mello que provocou comentários de aliados de Bolsonaro foi a permissão para que os advogados de Moro participem, e façam perguntas, ao presidente Bolsonaro. O que, para esses assessores, é demonstração de que o decano do Supremo não gosta do presidente, significa apenas a equiparação dos dois investigados na ação.
O Procurador-Geral Augusto Aras deu salto mortal na decisão inicial para colocar o ex-ministro Sérgio Moro, que fez a acusação de interferência do presidente da República na Polícia Federal, no mesmo nível de investigado que Bolsonaro.
Deste modo, quando Moro foi depor na Polícia Federal logo no início da ação, Aras enviou três procuradores para participarem do interrogatório. Agora, a mesma condição será dada a Moro.
A alegação de Aras de que houve um precedente no caso de Temer não se sustenta à luz da lei, pois a interpretação de cada juiz dependerá também do ambiente em que a decisão for tomada. A de ontem é fruto da necessidade do STF de mostrar independência, pois a gestão anterior de Dias Toffoli estava muito atrelada ao Palácio do Planalto, assim como a da Procuradoria-Geral da República continua sendo.
Tomar decisões de independência em relação ao governo é importante para pelo menos manter a imagem pública do STF. A preocupação de seus seguidores tem razão de ser, pois Bolsonaro pode cometer atos falhos ou escorregões e contradições que por escrito não aconteceriam.
Mas o presidente está numa fase boa de relacionamento institucional com o Judiciário, como ele mesmo ressaltou dias atrás, e vai depor num ambiente mais favorável e controlado. Na época da denúncia, o ambiente político era completamente contra ele. Bolsonaro terá tempo suficiente para se preparar, e só um destempero, que lhe é comum, pode causar algum incômodo.
O impacto político para Bolsonaro é forte, sem dúvida. Mas a decisão só demonstra uma fragilidade dele como presidente porque seu entendimento dos poderes do Executivo é mais amplo que a lei permite supor. A independência entre os Poderes da República, ressaltada pelo novo presidente do Supremo, ministro Luiz Fux, é a linha seguida pela decisão de Celso de Mello.
Míriam Leitão: A igualdade perante a lei
A decisão de Celso de Mello tem um lado. O da República. República é o sonho da sociedade de pessoas iguais. Até que ponto as prerrogativas da Presidência podem ir sem infringir o dogma da igualdade? O que o ministro Celso de Mello respondeu ontem em sua decisão, longa e sólida, foi que se o governante é investigado não pode mandar por escrito o seu depoimento para a autoridade policial. Precisa se submeter, como qualquer um, às perguntas, ao contraditório, às “reperguntas”.
“Afinal, nunca é demasiado reafirmá-lo, a ideia da República traduz um valor essencial, exprime um dogma fundamental: o do primado da igualdade de todos perante as leis do Estado. Ninguém, absolutamente ninguém, tem legitimidade para transgredir e vilipendiar as leis e a Constituição de nosso país. Ninguém, absolutamente ninguém, está acima da autoridade do ordenamento jurídico do Estado”, escreveu o ministro.
Ele deixou avisos prévios. Em decisões anteriores, foi deixando claro que a prerrogativa para um chefe de Poder entregar depoimento escrito só existe quando a autoridade está no processo como testemunha. Se for investigado ou réu, não tem esse direito. Foi o que escrevi aqui na coluna “O presidente terá que falar”, de 7 de maio. Certamente a AGU sabia disso, mas o entorno do presidente está preferindo a interpretação de que a decisão do decano é pessoal. É o oposto. É impessoal.
Ele continuou em sua decisão: “Não custa insistir, neste ponto, por isso mesmo, na asserção de que o postulado republicano repele privilégios e não tolera discriminações”, diz ele, em razão de “condição social, de nascimento, de parentesco, de gênero, de amizade, de origem étnica, de orientação sexual ou posição estamental”, e isto porque “nada pode autorizar o desequilíbrio entre os cidadãos da República” sob pena de se transgredir “a ideia da República”.
Segundo Celso de Mello, apesar da “posição hegemônica que detém na estrutura político institucional”, o presidente da República é também “súdito das leis” e portanto não tem esse direito de depor por escrito quando for “pessoa sob investigação criminal”. O pedido para que o presidente deponha por escrito foi feito pelo procurador-geral da República. Augusto Aras sempre mostra sua vocação para defensor do presidente.
A República é sonho que vem sendo sonhado desde a colônia, como conta a historiadora Heloisa Starling no “Ser republicano no Brasil Colônia”. Esteve em cada levante, em cada manifesto de sublevados, esteve com os conjurados de Minas, Rio e Bahia. Foi sendo expropriada do seu sentido mais profundo até ser proclamada com o povo excluído da festa, como conta o historiador José Murilo de Carvalho no clássico “Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi”.
Para não sermos eternamente a “República que não foi”, o país precisar se mover sempre. O passo de ontem foi esse, dado pelo ministro que em breve deixará a cadeira do Supremo Tribunal Federal. Como sempre, ele buscou vozes antigas. Citou João Barbalho, membro da primeira Assembleia Constituinte (1890-1891). “Não há, perante a lei republicana, grandes nem pequenos, senhores nem vassalos, patrícios nem plebeus, ricos nem pobres, fortes nem fracos, porque a todos irmana e nivela o direito.” Não seguir esse princípio seria aceitar privilégios “próprios de uma sociedade aristocrática”.
Pela decisão de Celso de Mello o depoimento do presidente será presencial, e os advogados de quem o acusou, o ex-juiz Sergio Moro, poderão estar presentes e fazer perguntas. O ex-presidente Temer recebeu dos ministros Luis Roberto Barroso e Edson Fachin o direito de depor por escrito. Celso de Mello os elogia, mas discorda. E relaciona votos dele e de outros ministros negando essa prerrogativa. E ademais, ensina, o interrogatório é um “ato de defesa”, é direito do acusado no devido processo legal.
O parágrafo primeiro do artigo 221 do Código de Processo Penal dá a prerrogativa aos chefes dos Poderes de “optar pela prestação do depoimento por escrito” quando forem testemunhas ou vítimas. Quisesse o legislador que isso fosse estendido ao investigado, teria dito. O Planalto vai esperar o ministro se aposentar. Acredita que quem herdar o caso dará a Bolsonaro o direito de ser mais igual que os outros cidadãos da nossa República inacabada.
Reinaldo Azevedo: Fux chega ao topo com a advocacia sob a vara da Lava Jato
Que o ministro contribua para banir das terras nativas o direito criativo
Luiz Fux assumiu nesta quinta (10) a presidência do STF em meio a mais um espetáculo da Lava Jato-RJ, que vive seus dias de parceria física e metafísica com o bolsonarismo. Fez um strike contra Wilson Witzel e promete não deixar um só pino em pé com a Operação E$quema S, com esse cifrão que encanta os tiozões do WhatsApp que pedem golpe, com polo verde, ventre protuberante e meias e tênis pretos.
Leio que uma das missões do ministro seria manter as conquistas da Lava Jato, sua autonomia, seu poder, sei lá… Os objetos diretos variam de acordo com o entusiasmo do redator. Tomara que seja conversa mole. Sua tarefa é fazer valer a Constituição. Só.
Naquilo em que a Carta é explícita, deve fazê-lo sem margem para interpretações. Dou um exemplo: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Que seja em relação a isso tão aborrecido como o juiz de futebol que manda cobrar tiro de meta quando o atacante faz a bola escapulir pela linha de fundo do campo adversário —se for o defensor a fazê-lo, é escanteio.
Regras 16 e 17 da International Board. No caso da Carta, trata-se do inciso LVII do artigo 5º, cláusula pétrea que o próprio Fux ignorou ao validar um gol de mão da Lava Jato, que conseguiu manter Lula na cadeia contra a regra do jogo, num exercício de criatividade jurídica.
Que o ministro contribua para banir das terras nativas o direito criativo, que se assenta ou no solipsismo ou nas vagas de opinião que tornam a sociedade refém de facções organizadas, contra as quais Madison já chamava a atenção no artigo 10 de “O Federalista”. Elas destroem a República.
Ouso sugerir que leia também o artigo 51. Fôssemos anjos, não seria necessário haver governos. Como não somos, estes têm de ser dotados de instrumentos para exercer seu ofício. Dado que os próprios governantes seres angelicais não são, têm de ser obrigados a controlar a si mesmos —e, pois, não podem ser eles a comandar os tribunais por vias oblíquas.
Preservar a Lava Jato? Exatamente o quê? O conluio entre juiz e órgão acusador? A subordinação da agenda anticorrupção a candidaturas? A condenação sem provas? O uso das prisões preventivas como instrumento para obter delações? A entrega dos destinos do país a um criminoso premiado, que decidirá quem vive e quem morre na República?
Hora de retomar um fio lá do primeiro parágrafo. O “Espetáculo da Corrupção” —título de um livro do advogado Walfrido Warde— viveu um de seus dias de gala nesta quarta (9), agora que o próprio direito de defesa está sendo alvejado junto com sem-vergonhices óbvias. É certo que houve pilantragens na Fecomércio. O bandido da hora, Orlando Diniz, o admite para se safar. Ocorre que a operação já nasce sob o signo da exceção.
A Lava Jato sustenta, por exemplo, que o advogado Eduardo Martins, filho de Humberto Martins, presidente do STJ, recebeu entre R$ 40 milhões e R$ 82 milhões —a denúncia-cartapácio tem tantas ilações e alvos que permite ao leitor o livre exercício da calculadora— para influenciar decisões da corte.
Se Eduardo comprava sentenças no STJ, ministros as vendiam. Se o escândalo tem esse grau de comprometimento, o foro não é a Justiça federal de primeira instância, mas o STF. “Ora, Reinaldo, trata-se de tráfico de influência, não de compra de sentença”. É mesmo? A R$ 40 milhões? Ou R$ 78 milhões? Ou R$ 82 milhões? Ou é piada ou é má-fé.
Bolsonaro ri de orelha a orelha. A Lava Jato já depôs um inimigo seu e agora intimida um tribunal superior. No passado, impediu que ele tivesse de concorrer com Lula, que volta a ser alvo, agora por intermédio do advogado Cristiano Zanin.
“Ah, não importa! Aconteceu a sacanagem na Fecomércio, Reinaldo?” Certamente sim. Dada a denúncia, essa não é, no entanto, tarefa para a Lava Jato-RJ, mas para a PGR, uma vez que, obviamente, ministros do STJ estão sob investigação, o que desloca o foro da 7ª Vara Federal do Rio para o STF.
Qual Lava Jato Fux pretende preservar? O livro de Warde a que me referi tem um subtítulo: “Como um sistema corrupto e o modo de combatê-lo estão destruindo o país”.
César Felício: Distância regulamentar
Luiz Fux frisou que deferência a outros Poderes tem limite
A interlocutores nos últimos meses, o ministro Luiz Fux já havia indicado que pretendia demarcar uma certa distância em relação ao presidente Jair Bolsonaro. A convivência prometida iria muito pouco além da protocolar. Não haveria ambiente para visitas inesperadas, ou encontros no fim de semana.
Este não foi um traço de seu antecessor no cargo, Dias Toffoli, como ficou patente anteontem, com a irrupção de Bolsonaro em sessão do Supremo, para o assombro dos demais ministros.
Aboletado ao lado de Toffoli, a seu convite, Bolsonaro fez questão de lembrar que chegou onde chegou porque foi votado por milhões de eleitores. Ao passo que Toffoli e seus pares lá estavam por indicação presidencial. O momento não foi uma fotografia que colocou o Supremo em uma posição altiva, para dizer o mínimo.
Ao tomar posse ontem como novo presidente da Corte, Fux demonstrou o tamanho da distância regulamentar, ainda que o presidente estivesse ao seu lado, conforme manda o ritual.
Ele se mostrou disposto ao jogo político, ao deixar claro que quer ser “minimalista” e “pragmático” ao julgar ações de outros Poderes.
“O STF não tem o monopólio das respostas. Os demais Poderes devem resolver internamente seus próprios conflitos, em que a decisão política deve reinar”, disse em seu discurso. É algo que pode ter soado alentador aos ouvidos do presidente do Senado, que estava presente e sonha com uma reeleição explicitamente vedada pela Constituição.
Dentro da teoria consequencialista pela qual se rege ao tratar de temas econômicos, ele sempre estará disposto a ouvir os argumentos do Ministério da Economia ao pautar temas fiscalmente explosivos, um aceno para o Executivo.
Isso posto, Fux foi explícito em indicar que pode terminar aí a “deferência aos demais Poderes” que prometeu. “Deferência”, afirmou em seu discurso, “não se confunde com contemplação e subserviência”.
“O Judiciário não hesitará em decisões exemplares para a preservação da nossa democracia e nem mediremos esforços para o combate à corrupção. Não admitiremos recuo. Aqueles que apostam na desonestidade como meio de vida não encontrarão em mim condescendência, tolerância ou mesmo uma criativa exegese do direito”.
Não há outra interpretação possível que não seja a de ter sido feito um sinal de advertência ao presidente Jair Bolsonaro e seu entorno.
Não faz muitas semanas que a revista “Piauí” publicou uma matéria, sem revelar as fontes, em que se relata a disposição do presidente de intervir no Supremo, seja lá o que isso significa, caso fosse obrigado a entregar para perícia o seu telefone celular.
O esgoto da internet açulado pelo bolsonarismo bombardeia de maneira incessante os ministros de Supremo e Fux há tempos é um alvo importante de ataques ao rés do chão. Em sessão recente no STF, o ministro classificou este tipo de militância virtual como terrorista.
A referência à Lava-Jato é uma sinalização de que, no que depender de Fux, não haverá interesse em garantir blindagem a integrantes de outros Poderes. O novo presidente do Supremo Tribunal Federal não fez referências às suspeitas que pesam contra o próprio Judiciário, amplificadas anteontem pela operação desencadeada por ordem do juiz Marcelo Bretas.
Fux fez menção expressa à importância de se preservar a liberdade de imprensa, foco de explosões constantes de ira presidencial, e prestou logo no início de seu discurso tributo aos quase 130 mil mortos pela covid-19, que raramente recebem homenagens de Bolsonaro.
Se o seu antecessor buscou a assessoria de generais, Fux promete como um de seus primeiros atos como presidente da corte a criação de um Observatório de Direitos Humanos no âmbito do Conselho Nacional de Justiça. Em política, às vezes, um gesto é tudo.
Deriva
Tivesse o ex-ministro da Justiça Sergio Moro mais desenvoltura para articulações partidárias não faltaria a ele oportunidades para ser protagonista nestas eleições municipais. Moro está em segundo ou terceiro lugar nas pesquisas de intenção de voto para 2022, e há uma corte de admiradores do ex-ministro que estão disputando o pleito. A vinculação deles ao bolsonarismo é hoje tênue. Poderiam ser candidatos “moristas”.
Em São Paulo, a deputada Joice Hasselmann (PSL) disputa a eleição magoada com Bolsonaro e batendo em literalmente todas as forças políticas do Estado. Joice foi autora de uma hagiografia de Sérgio Moro, no auge da Lava-Jato. Se há uma vertente em que continua se ancorando é a do combate à corrupção.
Também seria uma “morista” em potencial a candidata do Podemos à Prefeitura do Recife, delegada Patrícia Domingos, que manifesta reservas a Bolsonaro e é só elogios ao ex-ministro da Justiça.
Nada indica, entretanto, que o ex-ministro partirá para este tipo de semeadura nos próximos dois meses. A notícia que existe é que ele começa na próxima semana a dar aulas virtuais no curso de direito do UniCEUB, uma faculdade particular em Brasília.
Desde que saiu do governo, causando desgaste ao presidente, Moro colecionou percalços. Enfrenta uma ofensiva de advogados para que seja impedido de exercer a atividade e está sob o fio de lâmina no Supremo, que há de um dia julgar a sua suspeição no processo que condenou Lula. A Operação Lava-Jato que tanto o projetou está nas cordas. Reúne contra si praticamente a unanimidade do mundo político.
São circunstâncias que tolhem seus movimentos. Moro será um ator importante no cenário político a depender de mudanças de variáveis que não controla. Ele está distante da costa, o que torna mais incerta a rota a seguir. Pra chegar no destino vai depender do vento.
Eliane Cantanhêde: Fux, sem subterfúgio
Em vez de defender o combate à corrupção em tese, Fux citou especificamente a Lava Jato
Se o Supremo Tribunal Federal agir e decidir nos próximos dois anos como se comprometeu ontem o seu novo presidente, Luiz Fux, será um sucesso, um bom momento para a Justiça brasileira. Não custa lembrar, porém, que, entre palavras e atos, há uma enorme distância. Entre o desejo e as condições práticas, também. E é preciso combinar com os “adversários” – inclusive os demais ministros. Logo, a torcida é para Fux perseguir suas promessas e os princípios manifestados, enfrentar as naturais divisões internas e as pressões externas.
Em seu discurso, que abriu com um tributo aos quase 130 mil mortos pela covid-19, geralmente esquecidos nas falas do Executivo, ele disse que “democracia não é silêncio, é debate construtivo”, e defendeu a independência entre Poderes, mas “com altivez e vigilância e não com contemplação nem subserviência”. Ao seu lado, o presidente Jair Bolsonaro, finalmente de máscara, apesar das telas transparentes que separavam os ministros e autoridades, não mexia um músculo.
Fux também criticou a judicialização da política e o excesso de ações que o Supremo julga por ano – 115.603 em 2019. Ao dizer que o Judiciário não é “oráculo”, pregou que Executivo e Legislativo resolvam seus conflitos internos, sem que o Supremo atue verticalmente, e prometeu uma “intervenção minimalista” em matérias sensíveis: “menos é mais”, disse. Além de enaltecer a democracia e a mínima interferência em temas dos demais Poderes, ele se comprometeu veementemente com uma ação firme em favor de minorias, liberdade de expressão e de imprensa e, junto com isso, com o combate à corrupção e ao crime organizado.
O recado mais objetivo do discurso de posse, porém, foi quando Fux saiu dos princípios gerais, das frases de efeito e das citações eruditas para dizer com todas as letras, sem subterfúgio, que sua gestão será pró-Lava Jato. Além de citar diretamente a operação e o mensalão, marcos contra a corrupção no Brasil, ele fez mais: lembrou aos quatro ventos, especialmente para a cúpula do poder nacional, ali presente, que todas as operações foram realizadas com autorização judicial. Inclusive do próprio Supremo.
Essas manifestações têm enorme significado diante das múltiplas frentes de ataque à Lava Jato e da correspondente reação das forças-tarefa. A cada ataque, uma nova operação – como a que atingiu em cheio, na véspera da posse, os advogados, até agora preservados e na linha de frente do tiroteio contra a Lava Jato, por motivos óbvios.
Se o Supremo é unânime ao dizer não aos arroubos antidemocráticos, sejam do presidente Bolsonaro, de seus adeptos e robôs de internet, a Corte se divide quanto o tema é Lava Jato. Por isso a importância da manifestação de Fux. O presidente tomou partido, reafirmou já na posse os seus votos, em plenário e na Primeira Turma, a favor das duas maiores operações de combate à corrupção de que se tem notícia.
Na pauta do Supremo, destacam-se a investigação de Bolsonaro por interferência política na Polícia Federal e o julgamento, na Segunda Turma, da suspeição do ex-juiz Sérgio Moro na condenação do ex-presidente Lula. E, claro, respingarão na Corte as decisões do Congresso sobre a prisão após condenação em segunda instância, que teve idas e vinda tortuosas e julgamentos apertados no plenário – em geral por um voto.
Celso de Mello sai em novembro e Marco Aurélio, no ano que vem. Ambos são contra a prisão em segunda instância. Portanto, se houver um novo julgamento, a decisão vai depender dos dois futuros ministros. Ou seja: de Jair Bolsonaro. Deste que é candidato à reeleição em 2022, não daquele de 2018. A grande interrogação, aliás, é justamente essa: como será a relação deles, Bolsonaro e Fux.
Bernardo Mello Franco: Sinais contraditórios na posse de Fux
As sessões solenes do Judiciário costumam ser pródigas em rapapés. Mesmo assim, Augusto Aras exagerou. O procurador-geral da República disse que o ministro Luiz Fux “alia a mente de Atenas à força de Esparta”. Até as estátuas gregas ficariam coradas com a bajulação.
Fux fez um longo discurso ao assumir a presidência do Supremo Tribunal Federal. Na única referência à Antiguidade, evocou Platão para declarar apoio à Lava-Jato. Depois citou pensadores mais contemporâneos, como Fagner e Michael Sullivan. “Ele me deu a honra da parceria na canção ‘Flor Mariana’, como presente de casamento para minha filha”, informou.
Sobre o que interessa, a relação da Corte com o bolsonarismo, o ministro emitiu sinais contraditórios. Numa passagem, ele afirmou que “harmonia entre os Poderes não se confunde com contemplação e subserviência”. A frase indicou uma mudança positiva em relação ao colaboracionismo de Dias Toffoli.
Em outro momento, Fux sugeriu que o Supremo pode passar a se omitir em debates caros ao governo. Ele criticou a “judicialização vulgar” de questões “permeadas por desacordos morais”. “Essa prática tem exposto o Poder Judiciário, em especial o Supremo, a um protagonismo deletério, corroendo a credibilidade dos tribunais”, afirmou.
A declaração deve ter animado Jair Bolsonaro, que ataca o Supremo sempre que se vê contrariado por alguma decisão. Em abril, ele hostilizou o ministro Alexandre de Moraes após ser impedido de nomear um amigo para a chefia da Abin. “Quase tivemos uma crise institucional. Faltou pouco”, esbravejou.
Diante de um governo autoritário, que faz ameaças constantes à oposição, às minorias e à imprensa, o Supremo não pode julgar apenas temas de consenso. Em diversos momentos, terá que contrariar o Planalto para proteger a Constituição.
À revista “Justiça & Cidadania”, Fux acrescentou que sua gestão será marcada por “uma postura de muita deferência às escolhas feitas pelo governo”. Se ele seguir essa linha, a diferença em relação a Toffoli será apenas de estilo.
Merval Pereira: Nova postura
Fortalecer a “autoridade e a dignidade” do Supremo Tribunal Federal (STF), retirando-o das disputas políticas e mantendo relações com os demais poderes “harmônicas, porém litúrgicas”, parece ser o objetivo central da gestão do ministro Luiz Fux, que tomou posse ontem como presidente do STF.
Essa postura é uma guinada em relação aos últimos anos presididos por Dias Toffoli, que se aproximou excessivamente, na visão de muitos, do Palácio do Planalto e das manobras políticas, na tentativa de protagonizar acordo entre os Três Poderes que resultaram apenas em uma imagem distorcida do Supremo.
Para tanto, Fux definiu que Executivo e Legislativo têm que arcar com as conseqüências políticas das próprias decisões. Em seu discurso de posse, Fux foi enfático ao falar da corrupção, fazendo referência elogiosa à Operação Lava-Jato, que sofre ataques dentro do próprio Supremo:
“Esses corruptos de ontem e de hoje é que são os verdadeiros responsáveis pela ausência de leitos nos hospitais, de saneamento e de saúde para a população carente, pela falta de merenda escolar para as crianças brasileiras”.
A base de sua gestão nos próximos dois anos foi definida num discurso comovido e comovente, em que ficou clara sua alegria de ter chegado ao posto mais alto da carreira jurídica, mas também o desejo firme de não envolver o Supremo em questões que levem a uma “judicialização vulgar e epidêmica”.
Para o novo presidente do STF, é preciso “deferência aos demais Poderes no âmbito de suas competências, combinada com a altivez e a vigilância na tutela das liberdades públicas e dos direitos fundamentais. Afinal, o mandamento da harmonia entre os Poderes não se confunde com contemplação e subserviência”. Para justificar esta nova postura, o novo presidente do Supremo advertiu em seu discurso que “(…) a intervenção judicial em temas sensíveis deve ser minimalista, respeitando os limites de capacidade institucional dos juízes, e sempre à luz de uma perspectiva contextualista, consequencialista, pragmática, porquanto em determinadas matérias sensíveis, o menos é mais”.
Na sua visão, o Tribunal tem tido “um protagonismo deletério”, muito devido ao excesso de demandas de políticos e governantes: “(…) alguns grupos de poder que não desejam arcar com as consequências de suas próprias decisões acabam por permitir a transferência voluntária e prematura de conflitos de natureza política para o Poder Judiciário, instando os juízes a plasmarem provimentos judiciais sobre temas que demandam debate em outras arenas que não o Judiciário”.
Os cinco eixos de sua gestão, alinhados aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas, definem bem seus objetivos: 1) a proteção dos direitos humanos e do meio ambiente; 2) a garantia da segurança jurídica conducente à otimização do ambiente de negócios no Brasil; 3) o combate à corrupção, ao crime organizado e à lavagem de dinheiro, com a consequente recuperação de ativos, 4) o incentivo ao acesso à justiça digital, e 5) o fortalecimento da vocação constitucional do Supremo Tribunal Federal.
Falou com especial ênfase no combate à corrupção, “que ainda circula de forma sombria em ambientes pouco republicanos em nosso país”. Fux afirmou que não admitirá “qualquer recuo no enfrentamento da criminalidade organizada, da lavagem de dinheiro e da corrupção”, e advertiu: “Não permitiremos que se obstruam os avanços que a sociedade brasileira conquistou nos últimos anos, em razão das exitosas operações de combate à corrupção autorizadas pelo Poder Judiciário brasileiro, como ocorreu no Mensalão e tem ocorrido com a Lava Jato.”
Esclarecimento
O General Richard Nunes, chefe do Centro de Comunicação Social do Exército, manda mensagem esclarecendo que o Exército não gastou nada com o aumento da produção de cloroquina, que já fabricava para outros fins, como tratamento de lúpus e malária.
A encomenda não saiu do orçamento do Exército, que foi ressarcido do gasto extra. Ele lembra que não compete ao Laboratório do Exército analisar se a cloroquina tem ou não efeito sobre a Covid-19, função de outros órgãos.