STF

Ruy Castro: Políticos e seus currículos de araque

Nada como um doutorado que não se precisou cumprir ou um título de mestrado imaginário

Kassio Marques, escalado por Jair Bolsonaro para o STF a fim de votar com imparcialidade a favor de sua família, gabou-se em seu currículo de uma pós-graduação na Universidade de La Coruña, na Espanha. Faltou combinar com a universidade. Consultada, ela informou que Marques fez apenas um curso de quatro dias sem relação com qualquer pós, e, mesmo assim, como ouvinte. Para Marques, o encarregado de compor seu currículo "errou" ao traduzir o quesito. Seria mais honesto se dissesse "Desculpem, não colou".

É um "erro" frequente na biografia dos homens de Bolsonaro. Vide seus notáveis indicados para o MEC, Ricardo Vélez Rodrigues, Abraham Weintraub e Carlos Alberto Decotelli. Todos tinham em seus currículos cursos fictícios no exterior, plágios descarados ou autoria de livros alheios. Belo exemplo para os estudantes.

Ricardo Salles, destruidor do Meio Ambiente, disse-se aluno de mestrado em Yale, embora nunca tenha sido sequer matriculado. E Damares Alves, sinistra ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, intitulou-se "mestra em educação e em direito constitucional". Não por uma universidade, mas por leituras da Bíblia. "Mestre é quem se dedica ao ensino bíblico", decretou, do alto de sua goiabeira ardente.

Os espertos vêm de longe. A primeira a ter sua erudição desmentida foi Dilma Rousseff, pré-candidata à Presidência, em 2009. Seu currículo Lattes incluía imaginários mestrado e doutorado em ciências econômicas pela Unicamp. Não corou ao ser apanhada.

Em 1967, aos 19 anos, ganhei um curso de língua e literatura portuguesa na Universidade de Coimbra. Era um curso de verão, sem valor acadêmico. Tentei cumpri-lo, mas, uma semana depois, achando-o chato, despedi-me dos colegas e fui saracotear em Paris. Mesmo assim, recebi depois um simpático certificado de inscrição. Vou procurá-lo —está em algum lugar— e juntá-lo ao currículo.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.


Hélio Schwartsman: A maldição do currículo

A mania de ficar embelezando CVs é generalizada

A indicação de Kassio Nunes para uma vaga no STF vai sobrevivendo às inconsistências curriculares. Carlos Alberto Decotelli, que fora apontado para ocupar o MEC, não resistiu mais do que alguns dias quando apanhado na mesma situação. Não tenho como provar que a diferença de tratamento se deve ao fato de Decotelli ser negro, mas essa é uma daquelas suspeitas difíceis de afastar.

Não é, porém, o racismo estrutural que eu gostaria de discutir hoje, e sim a mania de ficar embelezando CVs. Ela é generalizada. Levantamento de 2019 da DNA Outplacement mostra que 75% dos currículos enviados a RHs de 500 empresas no Brasil continham informações distorcidas. Os pontos sobre os quais os candidatos mais mentem são salário (48%) e fluência no inglês (41%). Escolaridade e títulos acadêmicos são deturpados por 10%.

Se a prática é tão disseminada, deve funcionar. Mas, se é razoável imaginar que pequenas empresas deixem de proceder a checagens, tal complacência é inimaginável quando falamos dos principais cargos do país, que estão sob os holofotes da imprensa e de lobbies variados. E isso reforça o mistério: se é grande a chance de ser desmascarado, por que tantos candidatos a altos postos insistem em turbinar seus CVs?

Nossa espécie tem uma relação ambivalente com a verdade. Se, de um lado, nós a glorificamos e pintamos o mentiroso como alguém cujo caráter é falho, de outro criamos dinâmicas sociais em que faltar com a verdade é uma necessidade. Você elogia a comida do anfitrião mesmo que ela seja intragável.

E fica pior. Pesquisas mostram que há correlação positiva entre capacidade de mentir bem e popularidade. Isso significa que é justamente entre aqueles que navegam com facilidade nos círculos sociais e na política que encontraremos as pessoas que se sentem mais à vontade mentindo. Às vezes ficam tão à vontade que esquecem que algumas afirmações serão conferidas.


Reinaldo Azevedo: Medo da cadeia faz Bolsonaro escolher Kassio, e isso é bom!

O garantismo assegura a Bolsonaro o devido processo legal, negado a seus adversários

Por que Jair Bolsonaro indicou Kassio Marques —para todos os efeitos, um garantista— para o Supremo? Porque, sendo inculto, não é burro e é capaz de aprender com a experiência, inclusive aquela que o levou à Presidência, fagocitando o juiz-celebridade dos tolos, que havia engaiolado seu adversário por meio de uma condenação sem prova, referendada pelos parças do TRF-4.

O “Mito” percebeu que, tudo o mais constante, seu destino inexorável é a cadeia. “Está acusando o presidente de ter cometido algum crime, Reinaldo? Seja claro!” Não neste artigo. Já o fiz dezenas de vezes. No dia 29 de março de 2019, diga-se, antes de ele concluir o terceiro mês de mandato, apontei aqui ao menos quatro crimes de responsabilidade então consumados. Na minha conta, já são 19.

O objeto deste artigo é outro. Mesmo que Bolsonaro fosse inocente como as flores, o encontro com o xilindró está em seu destino porque essa é a metafísica influente. E isso vale para qualquer governante. Este país manteve encarcerado um ex-presidente da República condenado sem prova e contra o que dispõem o artigo 283 do Código de Processo Penal e o inciso LVII do artigo 5º, cláusula pétrea da Constituição.

Ainda que Bolsonaro possa achar intimamente que seus olhos azuis deveriam lhe conferir certa vantagem comparativa sobre um nordestino moreno, sabe intuitivamente que, a depender do alarido, isso pode ser até um agravante. Lula, o maior líder popular da história do Brasil, foi alvo, “sob vara” (by Celso de Mello), de uma condução coercitiva espetaculosa e ilegal. A investigação que levou Sergio Moro a tomar essa decisão durou quase cinco anos e foi arquivada. Nem denúncia houve por falta de provas.

O presidente não leu Shakespeare, mas intui que a necessidade impõe estranhos companheiros de trajetória. Sua súcia de lunáticos na internet —da qual ele é cada vez menos dependente— não compreende e se ressente do que seria um flerte do líder com a “velha política”.

Bolsonaro riu de orelha a orelha quando viu Wilson Witzel cair em desgraça. Mas certamente não lhe escapou que o adversário incidental, alvo da fúria de seus aliados na Procuradoria-Geral da República, foi afastado do cargo sem ter tido a chance de ao menos apresentar a defesa. Foi punido antes da aceitação da denúncia. Não há uma miserável palavra impressa que justifique a decisão.

Se o presidente tiver realmente aprendido a lição, indicará no ano que vem, para a vaga de Marco Aurélio, um nome mais terrivelmente garantista —evangélico, católico, umbandista ou adorador da natureza, como os aborígenes australianos.

Moro, desgostoso com o insucesso da empreitada rumo ao poder, resolveu refletir no Twitter: “As tentativas de acabar com a Lava Jato representam a volta da corrupção. É o triunfo da velha política e dos esquemas que destroem o Brasil e fragilizam a economia e a democracia. Esse filme é conhecido. Valerá a pena se transformar em uma criatura do pântano pelo poder?”

Huuummm…

Antes da Lava Jato, entende-se, o Brasil era terra arrasada, com a economia em frangalhos e sem democracia, certo? Ele acredita ter deixado como legado uma fase de prosperidade, luzes e devido processo legal! Impressiona-me menos o ressentimento do que a parvoíce. Mas é a indagação final que desperta minha curiosidade. A quem se dirige?

Parece-me que é Moro falando com Moro —também Deltan Dallagnol mandava mensagens para si mesmo no Telegram. Ali está a confissão de que o objetivo era mesmo “o poder”. E criaturas “do pântano” são todas as que não concordam com o juiz universal, inclusive aquela a quem se aliou antes, durante e depois da eleição, vilipendiando o Poder Judiciário.

O presidente escolher garantistas para o STF não o preserva necessariamente de seus eventuais crimes, mas pode significar, ao menos, o direito ao devido processo legal, coisa negada a Lula e a Witzel. Desde a “Ilíada”, convém que o poderoso veja como exemplo, advertência e vaticínio o destino de seus adversários. “Bolsonaro nem sabe o que é ‘Ilíada’, Reinaldo”. Não faz diferença. Basta que intua.


Bernardo Mello Franco: O acordão do capitão

Num domingo de abril, o presidente Jair Bolsonaro foi à porta do Quartel-General do Exército, subiu na caçamba de uma caminhonete e estimulou seguidores que bradavam por “intervenção militar” e AI-5. “Nós não queremos negociar nada! Nós queremos ação pelo Brasil!”, vociferou.

Menos de seis meses depois, Bolsonaro toma café com Rodrigo Maia, almoça com o centrão e janta com Gilmar Mendes. No último domingo, ele foi à casa de Dias Toffoli comer pizza e assistir a um jogo do Palmeiras. A imagem dos dois abraçados, como amigos que se reencontram para torcer pelo mesmo time, é um retrato dos novos tempos em Brasília.

O extremista que prometia romper com o establishment passou a dançar conforme a velha música. A indicação de Kassio Marques ao Supremo faz parte da metamorfose. O presidente consultou Gilmar e Toffoli, inimigos jurados da Lava-Jato, antes de oficializar a escolha do futuro ministro.

Eles não são os únicos a festejar o indicado. “Para além das diferenças que nós temos, ele (Bolsonaro) pode deixar um grande legado para o Brasil, que é o desmonte desse estado policialesco que tomou conta do nosso país”, celebrou o senador Renan Calheiros. À CNN Brasil, ele listou outras medidas que agradaram à classe política: o desmantelamento do Coaf, a demissão de Sergio Moro, a nomeação de Augusto Aras.

Os elogios de Renan produziram um curto-circuito no bolsonarismo raiz. Chamado de traidor, o capitão tenta contornar as críticas. “Eu não quero acabar com a Lava Jato. Eu acabei com a Lava Jato, porque não tem mais corrupção no governo”, gracejou ontem, no Planalto.

É ilusão pensar que o exercício do poder moderou Bolsonaro. Estamos diante de um acordão, que o uniu a políticos que demonizava. A turma quer blindagem e sossego, mercadorias que Gilmar sempre soube entregar. A fantasia da conciliação pode ser rasgada a qualquer momento: basta que o capitão se sinta seguro para chutar os aliados de conveniência. Enquanto essa hora não chega, todos celebram a paz com brindes de tubaína.


Merval Pereira: O vento muda

Como sempre em uma democracia não totalmente amadurecida como a nossa, mudanças súbitas no quadro institucional acontecem, alterando o processo em andamento e manobras que estavam em gestação. O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luis Fux, tirou das Turmas e levou para o plenário o julgamento de ações penais, retirando do ministro Gilmar Mendes o controle das ações da Lava-Jato na Segunda Turma.

Paralelamente, a substituição do ministro Celso de Mello pelo desembargador Kassio Marques subiu no telhado. O que parecia ter sido a sorte grande de sua vida acabou se transformando num pesadelo que pode até mesmo inviabilizá-lo para o posto do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que almejava, antes de ter sido catapultado para a vaga do Supremo Tribunal Federal (STF) por interesses ainda não claramente identificados.

Assim como, num passe de mágica, apareceu do nada para compor o grupo de chamados “garantistas” no Supremo, cujo objetivo político imediato combina com o de Bolsonaro, de desmoralizar o ex-ministro Sérgio Moro, Kássio Marques pode estar em processo de autodestruição.

As inconsistências no currículo, onde registra título inexistente de pós-doutorado e duvidosas provas de mestrado e doutorado quase ao mesmo tempo, foram agravadas com a denúncia da revista digital Crusoé de que apresentou uma dissertação de mestrado na Universidade Autônoma de Lisboa com “trechos inteiros copiados de artigos publicados na internet por um advogado”.

A revista utilizou um aplicativo chamado Plagium para analisar as 127 páginas do trabalho com que o desembargador ganhou o título de mestre em Direito, e identificou passagens inteiras copiadas de textos do advogado Saul Tourinho Leal, piauiense como ele. Até mesmo um erro de grafia, trocando “Namíbia” por “Naníbia”, foi copiado.

A festa em que estava transformada a indicação de Bolsonaro, com reuniões sociais onde acusados e acusadores, juízes e advogados confraternizavam, está a ponto de desandar. Porém, o que, num país civilizado, seria obstáculo para a indicação de um ministro do STF, no Brasil pode não dar em nada.

Até pela manhã, o desembargador Kassio Marques aparecia no noticiário com duvidosos títulos em seu currículo, mas do jeito que as coisas são feitas por aqui, à base da amizade e do relacionamento pessoal, a confirmação de seu nome pelo Senado parecia não ser problema.

O desembargador aparece todos os dias em jantares, almoços ou bate papo na internet com os senadores que irão argui-lo. Essa ligação pessoal do indicado com quem vai julgá-lo é promíscua. Não me lembro de outro ministro do STF tenha ficado nessa socialização com todos ao ser indicado. As visitas formais de apresentação são naturais, mas nada além deveria acontecer se a sabatina do Senado fosse mesmo para valer.

No entanto, a denúncia da Crusoé eleva o sarrafo na avaliação do candidato pelo Senado, mesmo nesse ambiente. Como ministro, Kassio Marques iria para a Segunda Turma do STF, e seria o voto de desempate da turma, certamente para o lado que frequenta, a favor do grupo dito “garantista”, onde predominam Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski.

Agora, pode nem estar na posição de ministro nos próximos dias, e a história pode ser outra. Com a decisão do presidente Luis Fux, apoiada por unanimidade pelo plenário, restarão às turmas os habeas-corpus, como o de Lula argüindo a parcialidade do então juiz Sérgio Moro no seu julgamento no caso do triplex do Guarujá, onde foi condenado nas três instâncias.

Mesmo assim, se a Segunda Turma considerá-lo parcial, o processo volta à estaca zero. Lula, porém, foi condenado em segunda instância em outro processo, o do sítio de Atibaia. Nesse caso, o juiz Moro aceitou a denúncia, mas quem condenou foi a juíza Gabriela Hardt. Vai ser muito difícil para os advogados de Lula conseguir a anulação desta segunda condenação para que ele se torne novamente elegível. Ainda mais agora, que o vento mudou novamente de lado no caso da Lava-Jato.


Ricardo Noblat: Bolsonaro infecta o Supremo com a nomeação de Kassio Nunes

Os danos colaterais serão enormes

Algumas perguntas a respeito da surpreendente nomeação do desembargador Kassio Nunes Marques para ministro do Supremo Tribunal Federal já havia sido respondidas. Como o nome dele chegou ao presidente Jair Bolsonaro? Foi levado pelo advogado Frederick Wassef, aquele que escondeu Fabrício Queiroz em sua casa de Atibaia, e avalizado pelo senador Flávio Bolsonaro.

Quem conduziu Kassio pela mão para audiência no Palácio da Alvorada com Bolsonaro? Foi o senador Ciro Nogueira, presidente do Partido Progressista, um dos líderes do Centrão, e alvo de ações da Lava Jato. Kassio apresentou-se como candidato a uma vaga de ministro no Superior Tribunal de Justiça, que é o que ele era. Bolsonaro gostou da conversa e decidiu: “Vai para o Supremo”.

Faltava resposta pelo menos a uma pergunta: por que a pressa de Bolsonaro em nomear Kassio se a vaga do ministro Celso de Mello, o decano do Supremo, se ele só se aposentará na próxima semana? Seria uma descortesia, mas não só. Seria romper com a praxe seguida pelos presidentes anteriores de gastar algum tempo para refletir melhor sobre os nomes de aspirantes à vaga.

Com a descoberta, ontem, de que o currículo de Kassio está impregnado de falsos títulos acadêmicos e de alguns duvidosos, a resposta à pergunta sobre o motivo de tanta pressa parece evidente. Era preciso correr contra o tempo para que o teste do currículo do desembargador não desse positivo para mentiras. A dar, que isso só ocorresse depois de sua aprovação pelo Senado.

Além de Bolsonaro, a operação “Acelera, Kassio!” envolveu dois ministros do Supremo, Gilmar Mendes e Dias Toffoli, líderes do Centrão como Nogueira, e David Alcolumbre (DEM) presidente do Senado. Gilmar e Toffoli talvez não soubessem dos furos no currículo do seu futuro colega. Avaliaram que ele seria mais um aliado das teses que defendem dentro do Supremo.

Nogueira é conterrâneo de Kassio, ambos do Piauí, e seu amigo. Interessado em cargos onde quer que eles estejam, o Centrão uniu-se a Bolsonaro e compartilha também o seu propósito de desmanchar a Lava Jato. Para tal, a presença de Kassio no tribunal seria mais um voto certo. Alcolumbre… Bem, esse quer se reeleger presidente do Senado e faz o que Bolsonaro lhe pede.

Ainda está por vir muita coisa capaz de criar dificuldades para a nomeação de Kassio. Se não pôde fechar o Supremo como cogitou no final de maio último, sem encontrar apoio nem mesmo entre os militares que o vigiam de perto, Bolsonaro conseguiu infectá-lo com o poderoso vírus da banalização. O que antes era só desprestígio do tribunal agora é de todo o Poder Judiciário.

E com severos danos colaterais a serem registrados no exterior, afinal, Kassio pôs no currículo cursos e títulos fantasmas de universidades de boa reputação. Não se espere, porém, nenhuma reação do Supremo em legítima defesa de sua imagem conspurcada. Falta fibra à boa parte dos seus integrantes, coragem para se insurgir, e sobram receios.

Ah, as fraquezas humanas! Quem não as tem? Dos 11 ministros do Supremo, um cometeu o mesmo pecado de Kassio; outro deve sua indicação à mulher do presidente que o nomeou; outro contou com a colaboração de uma empresa para ser aprovado pelo Senado; outro foi reprovado em concursos para juiz; e outro agradeceu de joelhos à mulher do governador que o ajudou a chegar lá.

Por que Kassio Nunes não pode ser ministro do Supremo

O que a Constituição exige

O desembargador Kassio Nunes Marques, nomeado pelo presidente Jair Bolsonaro para ministro do Supremo Tribunal Federal, disse ontem a um grupo de senadores, em conversa reservada, que já sabe como driblar os efeitos deletérios da descoberta de que seu currículo está repleto de falsos títulos.

Segundo ele, a Constituição não exige do indicado que seja formado em Direito. Basta que tenha mais de 35 anos, menos de 75, e reputação ilibada. Usará desse argumento para defender-se nos próximos dias. Esqueceu-se de dizer que a Constituição exige também “notável saber jurídico”. E aí está o nó. Ou deveria estar.

“Notável”, segundo os dicionários, é toda pessoa renomada, destacada e famosa por suas obras ou seus feitos. Uma pessoa insigne. Sem a produção de obras ou feitos relevantes ou as duas coisas, não há notabilidade em termos técnicos e jurídicos. Assim entenderam os autores da Constituição em vigor desde 1988.

José Afonso da Silva, o professor de Direito Constitucional mais citado pelos ministros do Supremo Tribunal Federal em seus votos, ensina em um dos seus muitos livros:

“[…] não bastam, porém, a graduação científica e a competência presumida do diploma; se é notável o saber jurídico que se requer, por seu sentido excepcional, é porque o candidato deve ser portador de notoriedade, relevo, renome, fama, e sua competência ser digna de nota, notória, reconhecida pelo consenso geral da opinião jurídica do país e adequada à função”.

Kassio não tem esse perfil. Ou porque é muito jovem, 48 anos apenas, ou porque se formou muito tarde, a acreditar-se no que ele diz. Ou simplesmente porque não escreveu livros nem é autor de feitos relevantes. Decididamente, sua competência não é reconhecida “pelo consenso geral da opinião jurídica do país”.

De resto, seus poucos e ralos títulos estão sendo contestados pelas entidades que supostamente os conferiram. Precisa mais?


Bernardo Mello Franco: O ministro tubaína e os descontentes

Não convém esperar muito de Kassio Nunes Marques, escolhido para substituir o decano Celso de Mello no Supremo Tribunal Federal. O desembargador foi apadrinhado por Flávio Bolsonaro e pelos próceres do centrão. Antes de passar pela sabatina no Senado, submeteu-se a um beija-mão na casa do ministro Gilmar Mendes.

O presidente Jair Bolsonaro fez questão de deixar claro: Marques deve a indicação à amizade, não ao saber jurídico. “Ele já tomou muita tubaína comigo, tá certo?”, disse, na quinta-feira. A frase não lustra a biografia do futuro ministro. Apenas sugere que o capitão conta com sua obediência no Supremo.

Até aqui, o maior trunfo do desembargador são os descontentes. Sua escolha irritou os seguidores mais radicais de Bolsonaro. Gente que despreza a democracia e esperava ver outro fanático no tribunal.

Silas Malafaia, o pastor boquirroto, considerou a indicação um “absurdo vergonhoso”. “É uma decepção geral”, resumiu. Sara Inverno, a extremista de tornozeleira, sentiu-se abandonada pelo Mito. “Não reconheço Bolsonaro. Não sei mais quem ele é”, dramatizou.

Olavo de Carvalho, o astrólogo da Virgínia, incitou sua tropa contra “o tal Kassio”. “Não tenho culpa de ser brasileiro, mas da vergonha não estou conseguindo escapar”, tuitou. Outros aliados usaram as redes do presidente para protestar.

As respostas mostraram que Bolsonaro deseja ter um pau-mandado no Supremo. Ele chegou a antecipar o voto de Marques sobre o direito das mulheres a interromper a gravidez. “Kassio é contra o aborto (votará contra a ADPF 442 caso seja pautada)”, escreveu. “Está 100% alinhado comigo”, acrescentou.

Os bolsonaristas de raiz não são os únicos insatisfeitos com o ministro tubaína. Sua indicação também decepcionou personagens que rastejavam pela vaga no Supremo. É o caso do procurador Augusto Aras, que se comporta como advogado do governo, e do ministro João Otávio de Noronha, que soltou Fabrício Queiroz. Agora os dois terão que engolir a frustração em silêncio.


Merval Pereira: De corpo e alma

Nada mais exemplar do establishment que Bolsonaro prometeu destruir do que a reunião promovida pelo ministro Dias Toffoli do Supremo Tribunal Federal em sua casa em Brasília nesse domingo. O almoço, que em qualquer país civilizado provocaria escândalo, começou às 14 horas e foi até a noite, com futebol e pizza. A fauna brasiliense presente ia de advogados que atuam no Supremo, políticos de vários matizes, presidente do TCU e, por último, mas não menos importante, o presidente da República em pessoa, que está sendo investigado pelo STF.

Bolsonaro tenta separar o corpo da alma, pelo menos finge querer. De um lado, entendeu que precisa de acordos políticos e aproximações com o Congresso e o STF; e de outro, enfrenta os radicais que querem afrontar o Congresso e o STF, na batida do início do governo, o que não é possível numa democracia.

Bolsonaro entendeu que por esse caminho ia acabar sofrendo impeachment, porque não há possibilidade de governar em guerra com o Congresso e o STF. E a guerra com os dois outros poderes pressupõe uma visão democrática deformada. Os três poderes são equivalentes, e é preciso obter uma posição majoritária através de negociações.

Como só sabe fazer a baixa política, do toma lá, dá cá, que viveu durante os 30 anos como parlamentar do baixo clero, e prometeu acabar quando Presidente, aproximou-se da ala mais conservadora do STF e do Centrão, que sempre está com todos os governos em troca de favores, poder, emprego.

Atacado por seus próprios aliados nas redes sociais, acusado de ter feito acordo com o diabo, ou seja, a esquerda, Bolsonaro tenta se defender como se sua alma estivesse onde sempre esteve, junto aos radicais da extrema-direita, enquanto seu corpo circula pelos bastidores do establishment “porque tenho que governar”.

A indicação do desembargador Kassio Marques, escolhido por Dilma Rousseff para o TRF-1, e a amizade repentina com Dias Toffoli, ex-advogado do PT, mostram para seus radicais uma promiscuidade inaceitável, embora aceitem sem grandes protestos os acordos políticos com o Centrão, que significam abandonar definitivamente o combate à corrupção.
Toffoli à frente do Supremo, cargo que deixou recentemente, marcou sua gestão pela proximidade com o presidente Bolsonaro, com quem assinou um pacto político totalmente inadequado. Os então presidentes do STF Nelson Jobim e Gilmar Mendes firmaram pactos republicanos com os poderes Executivo e Legislativo, mas com o objetivo de tornar a Justiça brasileira mais eficiente.

Nada semelhante ao pacto firmado por Dias Toffoli, à frente do Supremo, com o objetivo de apoiar as reformas que tramitam no Congresso, sobretudo a Previdenciária, que estava em discussão naquele momento. Não há na história recente exemplo de pacto político de que tenha participado o Poder Judiciário. Por uma razão muito simples: é nele que desaguarão as demandas dos que se sentirem afetados pelas reformas. O Judiciário não pode fazer pactos sobre assuntos que vai julgar.

Aliás, foi o que disse o novo presidente do Supremo, ministro Luis Fux, ontem em uma palestra. Fux ficou de fora dos convescotes de Brasília desde o primeiro dia em que o desembargador Kassio Marques foi com Bolsonaro à casa de Gilmar Mendes ser oficializado como o candidato a substituir Celso de Mello.

Ao assumir o cargo, disse que o Supremo terá “autoridade e dignidade” fortalecidas, e advertiu que a harmonia entre Poderes “não se confunde com subserviência”. A relação de Fux com o presidente Bolsonaro começou marcada pela liturgia do cargo, o que só fará bem à democracia brasileira.

O abraço fraternal dado em Bolsonaro não seria mais apertado em Lula, antigo mentor de Toffoli que, cedo, descobriu que tem mais anos pela frente de Supremo do que Lula de expectativa de poder.


Ricardo Noblat: Bolsonaro antecipa votos do ministro que nomeou para o Supremo

Jamais se viu isso

Nunca antes na história deste país um presidente da República revelou com antecedência como deverá votar ministro indicado por ele para o Supremo Tribunal Federal. Pois foi o que fez, ontem à noite, Jair Bolsonaro a pretexto de defender o desembargador Kássio Nunes Marques, que não foi sequer sabatinado ainda no Senado como manda a lei. Sua nomeação depende disso.

Em sua conta no Facebook, Bolsonaro irritou-se com o comentário de um leitor insatisfeito com a escolha de Kássio: “Presidente, próxima indicação ao STF indica o Lula”. Primeiro, ele respondeu assim: “Ele tem mais de 65 anos. Estude e se informe antes de acusar as pessoas”. Em seguida, para alegria do Centrão, disse que a nomeação de Kássio “é completamente sem volta”.

Acrescentou: “Kassio é contra o aborto (votará contra a ADPF 442 caso seja pautada). É pró-armas nos limites da lei (ele é CAC). Defende a família e as pautas econômicas (quem duvida que aguarde as votações). Resumindo, ele está 100% alinhado comigo”. A ADPF 442 é a ação que tramita no Supremo pedindo a descriminalização do aborto. CAC é colecionador de armas.

Faltou dizer como Kássio votará o pedido de suspeição de Sérgio Moro que, segundo a defesa de Lula, comportou-se de modo parcial no processo do tríplex do Guarujá; as ações contra a Lava Jato; e o caso do senador Flávio Bolsonaro denunciado pelo Ministério Público do Rio por lavagem de dinheiro, organização criminosa e expropriação do salário de servidores públicos.

Bolsonaro ocupou grande parte do seu domingo a oferecer explicações nas redes sociais para seus devotos que não engoliram a nomeação do novo ministro. Em maio do ano passado, o desembargador Kássio liberou uma licitação do Supremo para a compra de lagostas e vinhos caros, derrubando a decisão de uma juíza federal que a vetara. Um devoto escreveu:

– Péssima escolha. Está criando cobras que lhe darão o bote.

Bolsonaro retrucou: “Aguarde, outra mentira”. Outro devoto lembrou o voto de Kássio contra a extradição para a Itália do terrorista Cesare Battisti, acusado por quatro assassinatos e que agora cumpre prisão perpétua. Bolsonaro retrucou: “[Kássio] participou de julgamento que tratou exclusivamente de matéria processual e não emitiu opinião ou voto sobre a extradição”.

Foi lacônico quando outro dos seus seguidores perguntou por que no sábado à noite ele foi à casa do ministro Dias Toffoli, do Supremo, comer pizza e assistir ao jogo do Palmeiras contra o Ceará: “Preciso governar. Converso com todos em Brasília. Um abraço”. Parte do domingo de Toffoli também foi gasto com respostas à pergunta se fez certo em confraternizar com Bolsonaro.

“Eu sou um cara que gosta de unir as pessoas, que todo mundo se divirta. Confraternizar. Foi uma confraternização, ninguém falou de trabalho. Não estávamos aqui para discutir assunto sério”, disse o ministro. Nos bastidores, ele tem dito que é preciso manter a harmonia entre os Poderes e que não há nenhum prejuízo de que a cúpula deles se reúna com alguma frequência.

Quanto mais Toffoli tenta justificar a cena de promiscuidade explícita com Bolsonaro, mais escandalosa ela fica. Só grandes amigos se abraçam com tanto carinho. Isso nada tem a ver com harmonia entre os Poderes. Impensável que um ministro da mais alta Corte de justiça seja tão íntimo do presidente da República que pode justamente ser alvo de muitas de suas decisões.

Nada faltou na cena reveladora das entranhas do poder que serviu para reforçar a convicção de que a independência dos tribunais é coisa para inglês ver. Toffoli e Bolsonaro sem máscara em meio à pandemia; abraçados quando se recomenda o distanciamento; à porta da casa do ministro e não dos gabinetes oficiais de um ou do outro; observados por um policial sem máscara.

À tiracolo de Bolsonaro, Kássio, focado em conquistar a simpatia dos futuros colegas e o voto dos senadores que poderão lhe abrir as portas do tribunal. Presente ao regabofe, Davi Alcolumbre (DEM-AP), presidente do Senado. É ele que presidirá a sessão para aprovação do nome de Kássio. Empenhado em se reeleger, suplica ajuda a Bolsonaro e faz tudo para agradá-lo.

São favas contadas no Senado a aprovação de Kássio. A sabatina será mera formalidade. Desde sua fundação no século XIX, o Senado só recusou cinco indicações para ministro do Supremo, todas feitas por Floriano Peixoto, o segundo presidente da República do Brasil que passou à história como “o marechal de ferro”, tantas foram as revoltas que esmagou durante seu governo.

No final de maio último, um dia depois de o Supremo fechar o cerco contra o “gabinete do ódio” comandado pelo vereador Carlos, o Zero Dois, Bolsonaro perdeu as estribeiras e afirmou que “ordens absurdas não se cumprem”. Em tom exaltado, criticou a operação da Polícia Federal que atingiu seus aliados no âmbito do inquérito das fake news. Por fim, gritou: “Acabou, porra!”.

De lá para cá, trocou de arma. Descobriu que a melhor forma de vencer o Supremo é cooptar o maior número possível dos seus integrantes, expondo suas fraquezas. Está se dando bem até aqui.


Janio de Freitas: Kassio Nunes é portador de um silêncio valioso

Indicado ao STF, Kassio Nunes Marques é portador de um silêncio valioso

O melhor a dizer sobre a indicação de novo integrante do Supremo é se tratar de dupla incógnita. O desempenho no tribunal depende da combinação de fatores como saber jurídico e orientação doutrinária, experiência de vida, concepção de ordem social, e outros, todos permeados pela qualidade do caráter. E nada disso se fez conhecido, de fato, na personalidade de Kassio Nunes, o que ficou demonstrado na vaguidão dos metros de noticiário sobre o personagem inesperado.

No caso, a incógnita é menos ruim do que era conhecido e previsto. A especulação que ruiu, ao fim de meses, dividia a preferência de Bolsonaro entre André Mendonça e Jorge Oliveira. O primeiro atenderia à escolha de alguém “terrivelmente evangélico”, qualificação que sintetiza todo um conjunto de ideias planas e pedregosas anti-ideias. Ministro da Justiça, apressou-se em reavivar a ditatorial Lei de Segurança contra o articulista Hélio Schwartsman e o cartunista Aroeira. Seria, pois, um magistrado terrivelmente previsível —embora não o único.

Discreto secretário-geral da Presidência, Jorge Oliveira chegaria ao tribunal com a cicatriz indelével de membro do grupo palaciano. De um daqueles que endossam, com seu passado e seu futuro, os desmandos de Bolsonaro e suas consequências funestas. Não é incomum que ministros do Supremo aparentem despir-se de sua origem política, e alguns o façam mesmo. Metamorfose, convenhamos, que não é para qualquer um. E não era pressentida em Jorge Oliveira, ao menos de modo absoluto.

A outra incógnita na indicação de Kassio Nunes Marques é o motivo real de Bolsonaro para adotá-lo. Porque foi indicado pelo presidente do PP, para amarrar mais o centrão, como gesto de afastamento do grupo ideológico, essas e outras especulações apenas preencheram o vazio informativo.

Certo é que Bolsonaro e seu grupo têm objetivos definidos que conflitam com vários preceitos da Constituição e com inúmeras leis. Assuntos, quando não possam ser impostos como a devastação ambiental, para interferência do Supremo. E Bolsonaro tem ainda os problemas judiciais que ameaçam filhos, o próprio Bolsonaro e até a mulher, todos sob risco de chegar ao Supremo.

Com tais expectativas, conhecer um desembargador na tarde de uma quarta-feira, reencontrá-lo à noite em jantar de políticos na casa da senadora Katia Abreu e, ali mesmo, anunciá-lo como sua indicação, convenhamos, compõem um percurso inconvincente.

Mais ainda, para fazer o que seria esperável de André Mendonça, Jorge Oliveira ou João Otávio Noronha, Bolsonaro não precisaria de um neófito nas suas relações. Kassio Nunes Marques é portador de um silêncio valioso.

A SERVIÇO

Ainda antes de se refazer da acusação de tentar distorcer investigações da Lava Jato, a procuradora Lindôra Araújo confirma sua disposição. Pediu ao Supremo que rejeite a denúncia contra o deputado Arthur Lira por corrupção.

A originalidade está em que a acusação foi feita pela própria Lindôra Araújo, assegurando então que “a investigação comprovou o repasse de propina ao parlamentar”. Agora a procuradora acusa a mesma denúncia de “fragilidade probatória”. No intervalo, Lira tornou-se bolsonarista de liderança no centrão.

Se não punida por denúncia com falsa comprovação, Lindôra Araújo teria de sê-lo por retirar denúncia com comprovação verdadeira. Mas talvez nem valha o trabalho. Punição no Ministério Público Federal é ficção.

MAIS FOGUEIRAS

Discriminado por muito tempo como escritor, Paulo Coelho acabou calando os detratores, movidos a arrogância ou inveja, ou ambas. Volta a ser atacado. Livros seus são queimados por bolsonaristas nas redes, servindo à informação de que já chegamos também a esse estágio da boçalidade celebrado no nazismo. Parabéns a Paulo Coelho.

DEMOLIÇÃO

Os negócios sombrios do esquartejamento da Petrobras em mais um capítulo: agora autorizada por pequena maioria de dois votos no Supremo, a Petrobras vai vender sem licitação oito refinarias por R$ 8 bilhões. Valor que a operação dessas empresas lhe daria e seguiria rendendo. O que está óbvio na existência de pretendentes à compra.

Em paralelo à venda “para fazer caixa”, a Petrobras está na iminência de adquirir a parte da francesa Total em cinco áreas na foz do Amazonas. A Total sai porque já houve quatro recusas de licença ambiental para a exploração da área.

SEMPRE

Projeto muito interessante, mandado por Bolsonaro ao Congresso na quinta-feira (1º): tirar mais R$ 1,5 bilhão da Educação para obras.


Cristina Serra: A despedida do decano

Celso de Mello é exemplo que deveria ser seguido por seus pares

Celso de Mello chegou ao Supremo Tribunal Federal em agosto de 1989, quando a Constituição ainda nem completara um ano de promulgada. Seus 31 anos na corte se entrelaçam com dramas e tensões da nossa história contemporânea que, em anos mais recentes, têm levado a um desgastante confronto do tribunal com os outros dois Poderes.

O julgamento do mensalão quebrou a redoma que protegia o STF da refrega político-partidária e acentuou disputas entre os ministros, agravadas sobremaneira pela Lava Jato. O excelente livro "Os Onze", de Felipe Recondo e Luiz Weber, mostra que, nestes tempos tumultuados, Celso de Mello atuou como vetor de alguma acomodação e equilíbrio sempre que procurado por pares menos experimentados em crises, como o primeiro relator da Lava Jato, Teori Zavascki, já morto.

Desde a ascensão do bolsonarismo, o decano também tem sido voz quase solitária na corte, na sua firmeza e altivez, a condenar as ameaças à Constituição, à democracia e ao Estado de Direito, repudiando em alto e bom som "intervenções castrenses" [ militares ] e práticas típicas do "pretorianismo". Quando os ataques ao STF pareciam estar em ponto de ebulição, no primeiro semestre deste ano, Mello, em mensagem privada (vazada à imprensa), também advertiu para os riscos de "destruição da ordem democrática", em processo semelhante ao que aconteceu na Alemanha nazista.

Conforme destacado no livro, Celso de Mello tem fama de ermitão. Não frequenta políticos, não vai a eventos sociais, não aceita convites para palestras, não visita o Palácio do Planalto. Envergando a toga, o ministro construiu reputação de credibilidade e independência, reforçada pelo decoro público exemplar e pela aversão aos holofotes.

Num Supremo conflagrado por interesses e conveniências nem sempre claros para a sociedade, é um exemplo de compostura que deveria ser seguido por todos os seus pares para o bem das instituições e da democracia no país.


Ascânio Seleme: Uma andorinha só

Indicação de Kassio Marques para o STF é uma indicação do movimento de Bolsonaro para o cento: o centrão

Trata-se de uma questão de ponto de vista, mas não se pode negar que o presidente Jair Bolsonaro evoluiu desde a sua posse. No dia 1º de janeiro de 2019, o capitão era a imagem do mal usando faixa. Era um extremista de direita disposto a dar um golpe. Foi assim até outro dia, quando deslocou-se para o centro, digo, para o centrão. Até a chegada de Bolsonaro ao poder, o centrão era o que havia de mais nefasto na política. O presidente andou uma casa, se moveu do pior para o ruim.

A indicação de Kassio Marques para a vaga de Celso de Mello no Supremo Tribunal Federal é uma indicação do movimento de Bolsonaro. Nenhuma dúvida que se trata de uma ação de natureza política, mas é com essa argamassa que se constrói entendimentos, pontes e saídas. O presidente está buscando consolidar para si uma posição mais confortável, uma alternativa viável para o seu governo, que mais patina do que anda para frente.

O fato novo neste e em outros episódios recentes é que Bolsonaro tem ouvido mais. A escolha de Kassio Nunes é o melhor exemplo disso. Mostraram ao presidente que a indicação de um extremista, de um terrivelmente evangélico ou de um amigo despreparado para o Supremo serviria apenas para irritar os demais ministros da Corte. Sozinho, o novo ministro não conseguiria ajudar a Bolsonaro, aos seus filhos ou às suas causas. Ao contrário, sua presença de um lado poderia acabar empurrando ministros simpáticos para o outro lado. Uma andorinha só não faz verão, lembraram a ele.

Bolsonaro ouviu seus novos interlocutores, refletiu, o que, convenhamos, é coisa rara em se tratando dele, e concluiu que uma indicação errada atrapalharia mais do que ajudaria. Conseguiu rapidamente encontrar um magistrado maleável, bem aceito por todos os lados, mas ainda assim um garantista, anti-lavajatista e conservador. A indicação deixou irados os terraplanistas e ultradireitistas que o guiavam até outro dia, como o falso guru Olavo de Carvalho. Bolsonaro fez um gol.

Não se espantem se outros movimentos forem feitos. Claro que não se pode esperar evolução muito maior do que a nomeação de um moderado para o STF, mas ainda há espaço para Bolsonaro se mexer. Se ele quisesse ganhar mais alguns pontos com o grande público, poderia aproveitar e passar logo a boiada toda, demitindo os vergonhosos ministros do Meio Ambiente e das Relações Exteriores, o recém-empossado ministro da Educação e o secretário de Cultura, por exemplo. Mas não vai acontecer. O capitão gosta dos odiados e odeia os bem-amados.

Se houver mais movimentos em favor do centrão, mais fácil e lógico seria se eles acontecessem nos ministérios da área produtiva, como Infraestrutura, Agricultura, Minas e Energia. Claro que aí estão os melhores ministros deste governo, mas o problema é o tamanho da boca do centrão e como satisfazê-la. Quem também não pode mais se julgar garantido é o ministro Paulo Guedes. O mercado não se importaria, sobretudo se o substituto compartilhasse as ideias liberais de Guedes e não estivesse tão desgastado quanto ele.

Com o Posto Ipiranga outros cuidados teriam de ser tomados. Um deles, segundo gente que andou até outro dia à vontade no Palácio do Planalto, é não fazer a operação num dia de semana. Entre dez da manhã e meio dia de sábado, este o melhor horário para se demitir o ministro da Economia. Seu substituto liberal deve ser anunciado no mesmo comunicado. Se ação for bem trabalhada, quando a segunda chegar, o mercado seguirá seu fluxo normal, pacificado. Pode até haver uma leve oscilação da Bolsa para cima e do dólar para baixo.

Patriotas

Os generais do Palácio do Planalto são mesmo patriotas? Então por que concordam com toda barbaridade que se engendra no gabinete do terceiro andar, sem sequer demonstrar contrariedade ou constrangimento? Seus interesses aparentemente são outros, pessoais, e ajudam a desmistificar a imagem de guardiões da pátria.

Ciúmes de você

A ciumeira volta a cercar o gabinete do vice-presidente Hamilton Mourão. O problema é que o general é bem mais inteligente e muito mais claro ao falar do que o capitão. E fala todos os dias. Bolsonaro odeia isso.

Os bois

Do que Ricardo Salles é capaz todo mundo já sabia. Ele nunca escondeu sua irritação com ambientalistas e sua antipatia com regras preservacionistas. O que surpreendeu no episódio dos manguezais foram os bois do Conama, que sujaram sua biografias, algumas até boas, para sempre.

Censura parlamentar

O vereador Brizola Neto, do PSOL, foi denunciado ao Conselho de Ética da Câmara por ter erguido três cartazes durante a votação virtual do pedido de afastamento do prefeito Crivella. Eles diziam “Fora, Crivella e Edir Macedo”; “Fora, milícia” e “Impeachment já”. Por se manifestar visualmente a favor do seu voto, 21 vereadores o denunciaram por quebra de decoro. Uma vergonha coletiva. Uma espécie de pós-censura.

Luz para todos

A proposta 39 oferecida pelo GLOBO aos candidatos a prefeito é uma praga que atormenta os cariocas desde os tempos dos lampiões a gás. O assunto é tão velho quanto a taxa de iluminação pública. Mas, ficando apenas neste século, já em 2001, o jornalista Luiz Antônio Novaes, o Mineiro, não se cansava de alertar: “Cuidado ao sair à noite, o Rio é uma cidade escura, mal iluminada, o que potencializa a insegurança”.

A ciência é pop

A pandemia de coronavírus restabeleceu na consciência da maioria dos brasileiros a importância da ciência na vida das pessoas. Há muito tempo, cientistas não eram ouvidos e levados em conta de maneira tão consistente e de forma tão recorrente. O GLOBO criou uma coluna diária especialmente dedicada à ciência, todos os veículos dão hoje a ela muito mais espaço. As universidades públicas também ganharam ao serem revigoradas moralmente com o bom assédio aos seus mestres e pesquisadores.

Stand by

Fiquem prontos. Foi isso o que Donald Trump disse aos supremacistas brancos quando solicitado a repudiá-los. Só mesmo nos Estados Unidos um homem destes continua com chances de ganhar uma eleição presidencial. Se fosse fotografado com uma modelo de biquíni sentada no seu colo seria varrido do mapa. Vai entender.

Stand back

Por sorte, Trump pode também perder a eleição de 3 de novembro. O imbatível de seis meses atrás pode ter de entregar o poder a Joe Biden, escolhido pelos democratas para perder, já que no ano passado, sem pandemia e com a economia americana em modo boom, ninguém acreditava numa derrota de Trump.

Racismo no futebol

Contrariando Neymar, o presidente da federação Francesa de Futebol, Noel Le Graet, disse que não há racismo nos campos franceses. Patrice Evra, ex-jogador que atuou pela seleção francesa por dois anos, respondeu ao dirigente afirmando que há sim, e acusou Graet de ser ele próprio um racista. Segundo Evra, todas as vezes que o presidente da República ou outra estrela da política nacional visitava a concentração da seleção, os jogadores negros eram colocados nas extremidades para a foto oficial. Ao lado das autoridades, só os brancos, por ordem de Graet, disse Evra.

Fundo para jornalismo

A Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) lança na terça-feira um manifesto pela taxação das grandes plataformas digitais em favor do jornalismo profissional. O evento terá transmissão ao vivo pelo Facebook, uma das entidades que a Fenaj quer taxar mais pesadamente. O objetivo é usar o dinheiro recolhido para formar um fundo de fomento que poderia ser usado pelas empresas jornalísticas. Para receber as contribuições, as empresas teriam de garantir os empregos dos seus jornalistas.

Cultura e riqueza

Em Nova York, o setor de arte e cultura movimentou US$ 120 bilhões em 2019, ou 7,5% do PIB da cidade. No Rio…