STF

Eliane Cantanhêde: Marco Aurélio, qual é a sua?

Juízes e ministros do STF não são robôs, que juntam o caso X com o artigo Y e apertam um botão

Em 27 de julho do ano 2000, escrevi artigo sobre a decisão monocrática do Supremo que mandou soltar o então banqueiro Salvatore Cacciola, apesar da obviedade da culpa e das evidências de que, assim que deixasse a prisão, ele fugiria do País. O ministro deu a liminar, Cacciola voou para a Itália, via Paraguai e Argentina, e só foi preso de novo seis anos depois, ao cometer um erro primário. Título do artigo: “Marco Aurélio, qual é a sua?”

Vinte anos e muitas decisões polêmicas depois, Marco Aurélio Mello assume a partir de hoje a solene condição de decano, no lugar do ministro Celso de Mello, já empurrando a Corte para o centro do debate nacional – ou melhor, da ira nacional. Qual o sentido de soltar André do Rap, o chefe do PCC que a polícia demorou anos e gastou fortunas para capturar?

Dono de helicóptero, lancha, mansões e carrões, o facínora tem duas condenações em segunda instância, somando 26 anos, mas entrou com recurso e estava ainda em prisão provisória desde setembro de 2019. Ao acatar o habeas corpus, Marco Aurélio justificou que sua prisão não fora renovada de 90 em 90 dias, como manda o novo Código Penal, aprovado no Congresso e sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro – contra a posição de Sérgio Moro.

Pode? Não pode. Bastava o relator pedir explicações e ganhar tempo até cumprir-se a burocracia. Mas esse não seria Marco Aurélio. Ele tem cultura jurídica, é respeitado tecnicamente, acorda cedo e mergulha em livros, leis e casos. O problema é a personalidade, o gosto de ser “do contra”. Se tal julgamento foi 10 a 1, o “1” é de Marco Aurélio, 74, no STF desde 1990, por indicação de seu primo Collor de Mello.

Ao libertar o líder do PCC, ele determinou: “Advirtam-no da necessidade de permanecer em residência indicada ao juízo, atendendo aos chamados judiciais”. Seria cômico, não fosse trágico. André do Rap deve ter dado boas gargalhadas antes de escafeder-se por esse mundão afora, assim como Cacciola ao fugir para sua Itália natal.

Na época, nem havia o artigo usado agora pelo ministro, mas o resultado foi o mesmo. O então presidente do STF, Carlos Velloso, revogou a liminar de Marco Aurélio e mandou prender Cacciola novamente, assim como o atual, Luiz Fux, fez no caso de André do Rap. Tarde demais nas duas vezes. Eles têm dinheiro, recursos e aliados para fugir da polícia, do MP e da Justiça, que são obrigados a consumir nossos impostos, durante anos, para prendê-los de novo.

Com a “letra fria da lei”, Marco Aurélio jogou o País contra o Supremo, aprofundou o racha na Corte, deixou Fux sem saída e gerou um empurra-empurra infernal. Um ministro condena Marco Aurélio, outro recrimina Fux, o Congresso joga no colo do MP, o MP devolve para o Congresso. Para nós, os leigos, é uma bagunça. Para os traficantes, uma janela de oportunidades.

Juízes e ministros do STF não são robôs, que juntam o caso X com o artigo Y e apertam um botão. São seres humanos que estudam e aplicam leis, conscientes de que cada caso é um caso e avaliando personagens, circunstâncias e a gravidade da situação, com bom senso. Afinal, qual o objetivo? Fazer justiça. Por isso o plenário tem 11 votos, 11 formas de compreender e votar, evitando empates.

O Congresso não deveria aprovar um artigo tão burocrático, Bolsonaro não deveria sancionar sem ouvir seu ministro da Justiça, Marco Aurélio deveria ter juízo. André do Rap, definido por Fux como de “altíssima periculosidade”, que “compromete a ordem e a segurança pública”, não estaria solto por uma canetada “técnica”, aterrorizando a sociedade e jogando dúvidas sobre a justiça brasileira.

*Comentarista da Rádio Eldorado, da Rádio Jornal e do Telejornal Globonews em Pauta


Hélio Schwartsman: Bem-vindos ao clube

Marco Aurélio poderia ter optado por outro caminho com o chefe do PCC, mas, se o fizesse, não seria Marco Aurélio

O ministro Marco Aurélio Mello agiu bem ao determinar a soltura de um dos chefões do PCC? Se você, dileto leitor, pensa que ele extrapolou, seja bem-vindo ao clube do consequencialismo, corrente filosófica que, devido a uma campanha de propaganda negativa, não goza da melhor das reputações, ainda que funcione bem em grande parte das situações.

O problema com a posição de Marco Aurélio é que, pela letra da lei, ela é corretíssima. Sob a perspectiva da deontologia, a escola rival do consequencialismo, devemos obediência apenas à legalidade, independentemente das consequências. Immanuel Kant, o representante maior dessa corrente de pensamento, disse tudo quando escreveu “fiat iustitia, et pereat mundus” (faça-se justiça, mesmo que o mundo pereça).

E, no ano passado, o Congresso adicionou ao artigo 316 do Código de Processo Penal um dispositivo que corretamente obriga as autoridades judiciais a renovar a cada 90 dias a fundamentação para manter uma prisão preventiva, sob pena de torná-la ilegal. Não fizeram isso no caso do líder pececista, e aí Marco Aurélio fez “iustitiam”.

Para contestar a kantiana decisão do magistrado, é preciso abandonar a legalidade estrita e sorver um pouquinho de consequencialismo: não é prudente utilizar uma interpretação mecanicista da lei para pôr em liberdade alguém que representa perigo físico para a sociedade e que, na primeira oportunidade que teve, tornou-se um foragido. Vale observar que preservar a segurança pública e evitar a possibilidade de fuga são, pela lei, razões que justificam a prisão preventiva.

É claro que Marco Aurélio poderia ter optado por um caminho menos conspícuo. Sem trair o espírito da lei, ele poderia ter exigido que o procurador e o juiz do caso se manifestassem ou ter levado a questão ao pleno do STF, para fixar os limites do novo dispositivo, mas aí Marco Aurélio não teria sido Marco Aurélio.


Pablo Ortellado: A normalização de Bolsonaro

Concessões ao establishment podem desmotivar base militante do presidente

Existe um equilíbrio difícil entre o que é necessário para governar e o que é necessário para se eleger, sobretudo com plataforma populista.

A indicação de Kassio Nunes para o STF, o jantar de Bolsonaro com Toffoli e Alcolumbre e a retomada do diálogo entre Paulo Guedes e Rodrigo Maia são os sinais mais visíveis da normalização de Bolsonaro que abandonou o discurso golpista e fez sucessivas concessões ao establishment.

As duras críticas que recebeu da militância mostra que os movimentos necessários para estabelecer as bases políticas para a governabilidade podem comprometer a disposição e o entusiasmo dos apoiadores. Será que Bolsonaro vai conseguir equilibrar os pratos?

Dois fatores contribuíram para a mudança de atitude do presidente.

O primeiro foi a agressiva reação de Alexandre de Moraes que conduziu com mão dura dois processos que envolviam apoiadores de Bolsonaro —aquele que investigava os atos antidemocráticos e aquele que investigava ataques à corte nas mídias sociais.

O segundo foi a descoberta tardia e fortuita de que boas políticas públicas —sobretudo políticas sociais —rendem votos. Bolsonaro descobriu esse princípio patente por acaso, quando as circunstâncias da pandemia o forçaram a implementar um programa amplo de transferência de renda.
Bolsonaro pode ser bronco e obtuso, mas tem instinto de oportunidade.
Seu compromisso com o radicalismo online veio do reconhecimento de que sua eleição se deveu à agitação de Carlos Bolsonaro no WhatsApp. E sua nova postura parece vir do reconhecimento de que no momento em que a agitação militante foi contida, sua aprovação cresceu com a implementação do auxílio emergencial.

Mas nem tudo o que o ajuda a governar, o ajuda a se reeleger.

Como Bolsonaro bem demonstrou nas eleições de 2018, uma militância entusiasmada e enraizada na sociedade pode derrotar campanhas adversárias com mais recursos. Sua recondução em 2022 depende de uma base motivada e continuamente mobilizada.

Bolsonaro não pode se dar ao luxo de deixar a militância esmorecer. Ele vai precisar fazer como Lula, que enquanto governava com um pragmatismo desavergonhado, distribuía migalhas à militância de esquerda que passou oito anos acreditando que seu governo estava em disputa.

É o que parece que Bolsonaro já começou a fazer com a promessa feita à base evangélica de que, embora não tenha sido dessa vez, sua próxima indicação ao STF será de um ministro, não apenas evangélico, como pastor —e acendeu a fantasia dos fanáticos com a imagem de sessões do Supremo precedidas por uma oração.

*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia


Carlos Andreazza: O padrinho faz o currículo

Aí está Dias Toffoli para encarnar o precedente exemplar

Sabe-se — informaram-nos os senadores Ciro Nogueira, Flávio Bolsonaro e Renan Calheiros — que o presidente da República não indicou Kassio Nunes Marques ao Supremo pela qualidade de seu curriculum vitae. Informou-nos também a respeito o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, dependente do aval do STF para avançar no golpe — contra a Constituição — que lhe permitiria concorrer à reeleição, também ele um dos graúdos que, com foro e interesses naquele tribunal, apadrinham Marques; a quem, no entanto, deve-se fazer justiça. Não terá sido o primeiro escolhido assim; por virtudes outras que não derivadas do tal notório conhecimento jurídico. Aí está Dias Toffoli para encarnar o precedente exemplar.

Sejamos, porém, igualmente justos com Toffoli, indicado pelo currículo, o real, que tinha — ou: indicado pelo que era, apesar do currículo. Tempos românticos — dirá o cínico. Aqueles, tempos raiz, em que um agente político ganhava a toga por ser agente político, com missão dada (e logo a ser traída), sem precisar se inflar de pós-graduações cumpridas em cinco dias.

Ou, talvez, tempos em que a transparência não era uma cultura estabelecida — imposta mesmo — pelo avanço da tecnologia. Parece mais difícil enganar hoje; donde o cético se vê obrigado a questionar se não terá sido sempre desta maneira, séculos de currículos fraudados e protegidos por raros e modestos mecanismos de acesso à informação. Neste caso, estando correto o desconfiado (ele costuma estar certo no Brasil), faria água a ideia de que a liquefação da verdade — o processo, em pleno curso, de desmaterialização dos fatos — chegara até ao pobre currículo; essa velha afirmação, ato de crença na palavra, da história individual… Mas já divago.

Vamos ao fato. Um raro fato ainda não tornado versão: o currículo do ora desembargador federal Kassio Nunes Marques nem pôde ser examinado. Refiro-me a um currículo — rico ou pobre — que não seja obra de ficção. Não ao currículo farsante de uma autoridade contra cuja dissertação de mestrado — a cada enxadada, uma minhoca — há a acusação, bastante carnuda, de plágio. E é esse senhor — mesmo diante de tudo quanto se levanta — que Jair Bolsonaro empurra para quase 30 anos de STF. Esse senhor: indivíduo que tira de uma imaginação pobre para dar a um currículo paupérrimo. (Não sou eu, por favor, quem classifica o CV do doutor como miserável; mas ele próprio — o inchamento artificial da peça sendo a admissão da pindaíba.)

O episódio — a maneira indecorosa como processo se dá, minimizando, ignorando mesmo, a exposição da fraude curricular — é eloquente de como ter padrinho basta no Brasil patrimonialista; em cujo corpo, registre-se, Bolsonaro constituiu bem-sucedida empresa familiar. Consagração que faltou — quem se lembra? — a Carlos Alberto Decotelli, nomeado ministro da Educação, mas ceifado em decorrência de haver recorrido ao mesmo expediente do currículo criativo. Qual a diferença?

Leia-se o início da nota divulgada pela assessoria de Marques — obra-prima da distorção de valores: “Além da formação em Direito, não há requisitos mínimos acadêmicos para a posição de desembargador federal ou para a indicação ou nomeação de ministro do STF. A apresentação de um currículo, portanto, é um ato de boa fé, possibilitando à sociedade conhecer as áreas de interesse e especialização do servidor público”.

Ninguém ora questiona o cumprimento de requisitos formais nem qualquer indigência curricular, mas tão somente a difusão de um currículo falso. Se apresentar o documento — verdadeiro — seria, segundo Marques, ato de boa-fé, como definir o expediente de divulgar um fraudado?

Estamos, pois, num lugar anterior; numa fase decisivamente anterior àquela em que Toffoli, então advogado-geral da União apontado para o Supremo, teve sua miúda formação escrutinada pela sociedade. Quem dera — devaneará o sonhador conformado — estivéssemos discutindo, na página das exigências constitucionais para um ministro de corte constitucional, sobre o saber jurídico de Marques…

Não estamos. Mas estamos, sim, na página das (poucas) exigências constitucionais para um ministro de corte constitucional. Daí por que pergunto, sendo generoso no verbo: alguém — ademais um desembargador federal — que manipula o currículo tem reputação ilibada? Hein?

Essa, sonhará o delirante, deveria ser a questão fundadora — a pedra fundamental — da sabatina de Marques no Senado. Para tanto, porém, num ato de ineditismo, os senadores teriam de transformar o que conduzem, historicamente, como reunião de confrades em pleno exercício do equilíbrio impessoal entre Poderes — com o que também, implicará o cínico, fundariam um pouquinho de República entre nós.

Não fundarão.

Por fim, não sem uma nota de humor, registro a passagem curiosa em que consiste observarmos a última esperança do reacionarismo bolsonarista — por ver cair a indicação de um tipo “pouco conservador” — depender do trabalho do jornalismo profissional.


Merval Pereira: O STF e a opinião pública

O novo presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Luis Fux, tem tomado decisões tão polêmicas quanto irrefutáveis, conseguindo recolocar a imagem do STF junto à opinião pública em bons termos, sem exceder seus poderes institucionais. Amanhã, ele levará a plenário o Habeas Corpus concedido pelo ministro Marco Aurélio Mello ao traficante André do Rap, que ele anulou levando em conta a periculosidade do preso.

Quando propôs retornar ao plenário as ações penais que estavam sendo julgadas pelas Turmas, feriu suscetibilidades, retirou poderes, mas teve a aprovação unânime do colegiado porque baseou a decisão em fatos – a redução das ações em tramitação -, não em política. Embora a conseqüência da mudança tenha sido retirar da Segunda Turma o poder político de impor a visão não necessariamente majoritária de ministros ditos “garantistas”, que seriam reforçados pela nomeação por Bolsonaro do desembargador Kassio Marques para a vaga aberta com a aposentadoria de Celso de Mello.

Na nova polêmica, Fux anulou um Habeas Corpus do ministro Marco Aurélio Mello que soltou o traficante André do Rap, um dos chefes da maior organização criminosa em atuação no país. Nada evidencia com mais rigor a grotesca situação jurídica em que nos metemos do que o pedido de outro traficante, Gilcimar de Abreu, o Poocker, para que o ministro do Marco Aurélio estendesse também a ele a decisão de soltar seu comparsa André do Rap, pois alega que sua prisão preventiva já estourou o prazo de 90 dias para uma confirmação pelo juiz que o condenou.

Pooker e André do Rap eram companheiros no tráfico internacional de drogas, enviando cocaína para a Europa através do Porto de Santos. Pooker está preso em Mirandópolis, André do Rap partiu, a bordo de um jato particular, para outros ares, possivelmente paraguaios. Nada mais previsível do que isso.

Ao usar o novo artigo 316 do Código de Processo Penal, o ministro Marco Aurélio foi tecnicamente correto, mas não levou em conta outros requisitos para a manutenção da prisão preventiva, como a periculosidade do preso e sua ameaça à segurança pública.

Levar em conta a textualidade da lei, sem atentar para outros fatores, é o que distancia “garantistas” como Marco Aurélio de “consequencialistas” como Fux. Há diversas interpretações de tribunais superiores, no Superior Tribunal de Justiça (STJ), e inclusive o STF, que consideram desnecessária a confirmação das razões para a prisão preventiva quando o réu, como o traficante André do Rap, já tiver sido condenado em primeira e em segunda instâncias.

Caso ainda estivesse em vigor a prisão em segunda instância, o traficante estaria na prisão cumprindo sua pena. No caso em discussão, tanto o Ministério Público Federal (MPF) quanto o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) já haviam justificado a necessidade de manutenção da prisão de André do Rap. O HC encaminhado ao ministro Marco Aurélio veio como recurso daquelas decisões.

O que o ministro Marco Aurélio chamou de “autofagia”, o fato de um ministro contrariar a decisão de outro ministro, pode ser visto como a defesa do compadrio, o que tem levado o Supremo Tribunal Federal a perder, diante da opinião pública, a aura de defensor da Constituição. Mais uma vez, porém, o ministro Fux deve ter confirmada sua posição, mesmo que tenha desagradado outros “garantistas” dentro da Corte.

Ele vai levar ao plenário o julgamento sobre o Habeas Corpus de Marco Aurélio e, mesmo que os debates sejam acalorados e até ataques retóricos sejam feitos, é improvável que a maioria do plenário sustente a soltura de um traficante perigoso que se encontra foragido depois de ser agraciado com uma interpretação literal da lei que prejudicou a sociedade.


Ricardo Noblat: Na raiz do conflito entre ministros, a chaga dos presos provisórios

O que diz a lei não vale para todos

Não convidem para dividir a mesma mesa os ministros Marco Aurélio Mello e Luiz Fux do Supremo Tribunal Federal. Nem Fux e os ministros Gilmar Mendes e Dias Toffoli. Jamais os ministros Gilmar e Marco Aurélio. Gilmar e Marco Aurélio, por querelas antigas que quase resultaram em troca de socos.

Fux detestou o acordo feito pelo presidente Jair Bolsonaro com Gilmar e Toffoli em torno da indicação do desembargador Kassio Nunes Marques para a vaga no Supremo aberta com a aposentadoria do ministro Celso de Mello. Falta ao “nosso Kassio” envergadura para tal, ou mesmo currículo confiável.

O troco veio rápido. Para evitar que Kassio chegue ao tribunal com essa bola toda e blindar a Lava Jato contra seus futuros votos, Fux sugeriu devolver ao plenário o poder de julgar ações penais que era repartido entre a Primeira e a Segunda Turma, cada uma delas formada por cinco ministros. Sugestão dada, sugestão aceita.

No último fim de semana, explodiu o conflito entre Marco Aurélio e Fux por causa de uma decisão do primeiro revogada em tempo recorde pelo segundo. Marco Aurélio mandou soltar o traficante André do Rap, um dos líderes do Primeiro Comando da Capital (PCC). Fuz revogou a ordem do colega.

Quem tem razão? Marco Aurélio e Fux têm razão, a levarem-se em conta os argumentos esgrimidos para justificar uma e a outra coisa, e esse é o nó da questão. Marco Aurélio baseou-se em novo trecho do artigo 316 do Código de Processo Penal, incluído após a aprovação do pacote anticrime aprovado no Congresso em 2019.

O novo trecho diz que o juiz precisa reavaliar a prisão preventiva a cada 90 dias – antes não havia prazo. Como isso não foi feito no caso de André do Rap, e sua defesa bateu às portas do Supremo, Marco Aurélio libertou-o. Desconfia a polícia paulista que o traficante fugiu para o Paraguai e que será difícil recapturá-lo.

Fux entendeu que o traficante deveria continuar preso porque é de “comprovada e altíssima periculosidade, com dupla condenação em segundo grau por tráfico transnacional de drogas, investigado por participação de alto nível hierárquico em organização criminosa e com histórico de foragido por mais de 5 anos”.

Marco Aurélio partiu para cima de Fux: “Ele assumiu a postura de censor. Eu não sou superior a ele, mas também não sou inferior”, disse. “Atuo segundo o direito posto pelo Congresso Nacional e nada mais. Evidentemente não poderia olhar a capa do processo e aí adotar um critério estranho a um critério legal”.

Presidente do Supremo há menos de um mês, Fux não quis polemizar com Marco Aurélio. Mas disse a pessoas que com ele, ontem, conversaram que viu “perigo” na tese do seu colega que beneficiou o traficante, pois se ela vingasse, “inúmeros réus perigosos acabariam sendo soltos”. Sobrou para quem?

Para o Congresso. Em sua defesa, saiu Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara. Ele não descartou revisão na lei que amparou a decisão de Marco Aurélio, mas afirmou que a falha foi do Ministério Público que deveria ter renovado o pedido de prisão preventiva do traficante em um prazo de 90 dias, e não o fez.

O Brasil tem mais de 773 mil presos provisórios, informou em fevereiro deste ano o Ministério da Justiça e Segurança Pública. Preso provisório é aquele cuja prisão foi decretada com o intuito de garantir que o acusado passe por um processo penal com amplo direito de defesa antes de ser sentenciado em definitivo.

São quase todos jovens, pobres, negros e mulatos. Somam algo como 40% do total de encarcerados em 2,6 mil cadeias de presídios e delegacias. A maioria está trancada há pelo menos quatro anos à espera da assinatura de um juiz que decida seu destino. Muitos, desde antes da sentença de primeira instância.

A Constituição assegura “a todos” o direito à “razoável duração do processo” e “a celeridade de sua tramitação”. Na vida real, a história é outra. Ministério Público, juízes e parlamentares sabem disso. A discussão pega fogo quando acontece um caso como o do traficante famoso, mas depois o fogo baixa e tudo fica como está.


Celso Rocha de Barros: O que acontecerá se a democracia brasileira for salva por seus defeitos?

Todas as iniciativas de combate à corrupção saem perdendo, e centrão está mais forte que nunca

Há uma percepção generalizada de que Bolsonaro tornou-se mais conciliador porque não conseguiu abafar o caso Queiroz. Dois colunistas da Folha notaram isso no último sábado (10): Hélio Schwartsman escreveu que Bolsonaro foi moderado pelo medo das investigações contra ele.

Fernando Haddad foi mais direto (e sarcástico): a corrupção de Bolsonaro pode ter salvado a democracia brasileira. Mais sutil, a revista Veja dessa semana elogiou Bolsonaro pela postura mais moderada, "goste-se ou não de suas motivações".

Na verdade, houve época em que os problemas legais de Bolsonaro até aceleraram seu golpismo. Mas, de fato, foram as investigações que o levaram às negociações com Toffoli, às conversas com Gilmar e com o centrão.

Ali começou o processo que culminaria na indicação de Kassio Nunes Marques para o Supremo Tribunal Federal. Kassio tem certas crises de identidade na hora de citar autores, mas é muito melhor do que o que se esperava de uma indicação bolsonarista.

O medo em 2018 era que Bolsonaro desse um golpe surfando o lavajatismo, aproveitando a desmoralização das instituições para confrontá-las. No fim das contas, o golpismo era 100% real, mas o moralismo era cascata. A posição atual do governo é que o que cura corrupção não é Lava Jato, é cloroquina.

Restam algumas perguntas, que já discutimos aqui na coluna: o acordão de Bolsonaro é estável? O desmantelamento da Lava Jato é uma pacificação ideologicamente neutra ou um aparelhamento do combate à corrupção, como o que se viu no caso Witzel? Bolsonaro continuará cauteloso se os protestos de rua voltarem? Se for reeleito? Se o caso Queiroz for definitivamente encerrado? E o que faremos, se, da próxima vez, o fascista for honesto?

Vamos supor que haja boas repostas para tudo isso, e que o risco autoritário tenha sido reduzido.

Mesmo neste caso, você já parou para pensar no que significa a democracia brasileira ter sido salva por seus defeitos?
Não só a Lava Jato, mas todas as outras iniciativas de combate à corrupção saem perdendo, seja pelo aparelhamento bolsonarista, seja pela ressaca de anos de turbulência que acabaram dando no Jair.

Mas isso pode ser o de menos: vai haver uma reorganização partidária nos próximos anos. E agora ela vai acontecer com o centrão mais forte do que nunca.

Em 2017, o Congresso Nacional aprovou mudanças eleitorais que devem reduzir o número de partidos. A principal delas é a proibição de coligações nas eleições proporcionais (para vereadores, deputados estaduais e federais).

Nossa esperança sempre foi que o centro fisiológico da política brasileira fosse, aos poucos, sendo espremido entre uma centro-esquerda e uma centro-direita fortes a partir de PT e PSDB. Torcíamos pelo fim do que o filósofo Marcos Nobre chamou de "peemedebismo".

Aconteceu o contrário. Às vésperas de uma mudança de regra que deve reforçar quem já é grande, os partidos de identidade mais clara e maior enraizamento social vão mal, e o peemedebismo está dando volta olímpica por ter salvado a democracia.

Mesmo no cenário otimista em que Jair Bolsonaro foi só uma curva errada no caminho de nossa democracia, mesmo se tivermos conseguido moderá-lo, tanto seu autoritarismo quanto a forma de sua moderação podem ter consequências que durem muito mais tempo do que seu mandato.

*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).


Fernando Gabeira: Tubaína, novo sabor de Brasília

O currículo do senhor K não bate com a realidade. Mas um currículo meio tubaína é tudo do que precisam no momento

Faz muito tempo que não vou a Brasília. Faz muito tempo que não vou a lugar nenhum.

Minha última viagem à capital foi para documentar a mudança da Corte após a vitória de Bolsonaro.

As Cortes marcam a cidade, pelo menos o plano piloto, onde circulam políticos, aspones e lobistas. Na chegada do PT, alguns restaurantes recendiam a fumaça de charuto cubano. Collor gostava de grandes carros modernos. FHC quis reviver saraus lítero-musicais.

Fui muito prematuramente buscar a marca de Bolsonaro. Se voltasse agora, movido pelo slogan da Coca-Cola, “sinta o sabor”, diria que o gosto da nova Corte é o de tubaína.

Honestamente: ninguém toma tubaína na Corte. É apenas um simbolo. Sua gênese está na escolha de um novo ministro do STF. No princípio, Bolsonaro dizia que o escolhido seria terrivelmente evangélico. Depois disse que o nome seria de alguém que tomasse cerveja com ele.

Houve uma inflexão. É difícil, não impossível, encontrar alguém terrivelmente evangélico chegado a uma cervejinha. Ao apontar o nome de Kassio Marques, Bolsonaro substituiu a cerveja por tubaína. O senhor K não é evangélico mas, por via das dúvidas, era preciso abolir o teor alcoólico da amizade. A tubaína se encaixava perfeitamente: popular, adocicada, meio fake.

Entrava em cena nosso Kassio, como é chamado em Brasília. Uma figura familiar, que tem o apoio do Centrão, de opositores e também a bênção de ministros do Supremo, como Gilmar Mendes e Dias Toffoli.

Quando Bolsonaro e K se reuniram na casa de Tofolli para comer uma pizza e assistir ao jogo Palmeiras X Ceará, o programa harmonizava com uma boa tubaína. Não foi o que beberam, mas isso é o de menos. A nova Corte se integrava a Brasília, de uma certa maneira reinava de novo a atmosfera familiar e promíscua da capital.

Era difícil prever que a tubaína se tornasse o símbolo do governo Bolsonaro quando visitei Brasília. Ainda não tinha acontecido um episódio decisivo: a prisão de Fabrício Queiroz. Fala-se tanto em novo normal, mas aquilo empurrou Bolsonaro para o velho normal: acordo com o Centrão, jantares e visitas às casas de ministros do STF.

O currículo do senhor K não bate com a realidade. Mas Bolsonaro jamais pensou em ministros que tivessem pós-graduação em Salamanca, La Coruña, Messina ou o cacete.

Um currículo meio tubaína é tudo do que precisam no momento. Os políticos vão entender as mentiras como um erro de tradução. Tradutor-traidor, devem até desenterrar a velha analogia.

Brasília respira o velho ar ressecado de sempre. Entramos na era da tubaína, the real thing, o líquido das nossas tramas, de abraços, mútuos elogios.

Há quem não goste. Mas, com uma boa renda social, uma renda cidadã, Santa Cruz, Vera Cruz, Brasil, não importa o nome, vencemos eleições e conquistamos o direito de seguir tomando nossa tubaína como os artistas tomavam seu absinto no Pós-Guerra.

Felizmente, isto aqui não é uma ilha. O mundo nos olha com atenção. A Europa já coloca o acordo comercial com o Mercosul no telhado. As relações com os Estados Unidos podem mudar com o resultado das eleições presidenciais.

O encontro de forças que resistem no Brasil com o empenho internacional por mudanças dentro do país pode representar uma esperança.

Já estamos calejados, vivemos o resultado daquelas promessas de tudo mudar, que acabam afogadas em tubaína. Mas, ainda assim, é preciso realisticamente sonhar com a preservação de nossos recursos naturais e a redução das grandes diferenças sociais.

Não sei se isto é um consolo, mas pelo menos a prisão de Queiroz nos levou de novo ao passado da redemocratização e nos afastou um pouco do temido tempo da ditadura.

Bolsonaro deve voltar à carga em algum momento. Antes precisa resolver a questão de Queiroz, que é, na verdade, a questão de seu filho, da família, dele próprio. Os convivas, políticos e juízes da Suprema Corte não percebem que bebem uma tubaína envenenada. Mas isso não é tão importante para eles, o jogo principal não é do Palmeiras, mas pelo poder. A dança típica da capital é sempre dançada diante do abismo.


Hélio Schwartsman: O que justifica as cotas?

Elas seguem na lógica de que podemos definir o destino de alguém com base em suas características fenotípicas

Há dois caminhos principais para justificar as cotas raciais. Pelo primeiro, elas seriam uma forma de reparar injustiças históricas. É preciso ser estatística e historiograficamente cego para não ver que existe racismo estrutural no Brasil e que a escravidão tem muito a ver com isso. Uma compensação aos descendentes de escravos na forma de cotas seria, então, uma forma de fazer justiça.

Não gosto muito dessa justificativa. O argumento central contra ela é que há um considerável descompasso entre o universo de prejudicados pela injustiça original e o de beneficiados pela política reparatória. As cotas, afinal, favorecem só um número pequeno dos descendentes de escravos, em geral os com mais instrução e que menos precisariam de impulso. Os negros mais necessitados, aqueles que não completam o ensino fundamental, lotam as cadeias e vão parar precocemente nos cemitérios, nada ganham com elas.

No polo oposto, o branco preterido no vestibular não é necessariamente um descendente de traficantes de escravos. Para a ideia de reparação fazer sentido, temos de apelar à noção de culpa coletiva, que é bem problemática.

O outro caminho me parece melhor. Por ele, as cotas não se justificam pelo passado, mas pelo futuro. Há um bom corpo de pesquisas mostrando que, quando diferentes pessoas, com diferentes backgrounds e perspectivas, se põem a trabalhar sobre os mesmos problemas, as soluções encontradas tendem a ser melhores. O bacana aqui é que a racionalidade das cotas também salta do indivíduo para a sociedade, e a culpa coletiva dá lugar à responsabilidade social.

Considero essa justificativa aceitável, mas devo confessar que não sou um grande fã de cotas raciais. Por mais que douremos a pílula, elas seguem na lógica de que podemos definir o destino de uma pessoa com base em suas características fenotípicas, que é justamente o que torna o racismo um problema moral.


Vera Magalhães: A construção de bunkers

Como Bolsonaro minou o combate à corrupção para proteger a família

Bastou se aproximar do Centrão, da ala fisiológica do MDB e dos ministros antilavajatistas do Supremo Tribunal Federal que Jair Bolsonaro, logo quem, passou a ser visto por setores da política (os mesmos acima, diga-se) e até da imprensa como alguém imbuído da disposição de construir pontes.

Trata-se de uma leitura entre cínica e ingênua de uma realidade bastante clara aos olhos de quem quiser ver. Bolsonaro continua onde sempre esteve: avesso à ideia de qualquer composição a não ser as de ocasião, que lhe permitam lograr seus intentos na política e proteger a si e aos filhos da perigosa aproximação das garras da lei quando esticaram demais a corda da ruptura institucional e/ou foram com sede ao pote demais nos recursos públicos a que tiveram acesso nas suas longas carreiras políticas dotadas de todos os vícios de um clã tradicional brasileiro.

Eduardo Bolsonaro, o “03”, conhecido por ser dos menos brilhantes da família, deixou claro o jogo nas redes sociais, com direito a erro de português: “Não é arrependimento, é espertise (sic) de mudar de estratégia pois o plano original fracassou”.

Não precisa desenhar. O plano original era fazer as instituições se curvarem diante de uma tropa golpista, “antiestablishment”, como adorava se gabar o “estrategista” Filipe G. Martins. A pandemia foi o gatilho para colocar o plano original em marcha, com direito a uso de terroristas como Sara Winter, que agora se diz decepcionada, e seus 30 gatos-pingados.

O fracasso constatado pelo ex-quase-embaixador veio do próprio STF, que colocou freio aos delírios autoritários de Bolsonaro.

A “espertise”, assim com “s”, talvez, além de desconhecimento da língua, aponte um ato falho: o filhote quis provavelmente fazer menção à esperteza de mudar de time para evitar o tão temido impeachment e frear as investigações que chegavam perto de Flávio (rachadinhas e aumento de patrimônio), do próprio Eduardo (gabinetes do ódio, aumento de patrimônio), Michele (depósitos em dinheiro da família Queiroz e dinheiro de doações desviado para programa assistencial da primeira-dama), Carlos (rachadinha, aumento de patrimônio, fomento a atos golpistas, gabinetes do ódio) e de si próprio (aparelhamento da Polícia Federal, responsabilização pelo agravamento do enfrentamento da pandemia e participação em atos antidemocráticos).

Construção de pontes? Faz-me rir, faz-me engasgar, pedindo licença a Chico Buarque para usar seus versos tão precisos.

Bolsonaro tem por figuras como Renan Calheiros, Toffoli, Gilmar Mendes, Kassio Nunes e Ciro Nogueira o mesmo apreço que por Sérgio Moro, Gustavo Bebianno, general Santos Cruz, Luciano Bivar, Joice Hasselmann, Alexandre Frota, Paulo Guedes, Bia Kicis, Carla Zambelli ou Jorge Oliveira: nenhum. Assim como já fez com vários desta lista, pode descartar os demais se disso depender sua sobrevivência e a dos seus.

O presidente tem na covardia e na insegurança alguns de seus traços de caráter mais notórios, bem como o pouco apreço à gestão e o instinto destruidor de tudo aquilo que signifique construção de marcos institucionais, conquistas de minorias e legados civilizatórios.

O que Bolsonaro constrói com afinco, além de um robusto patrimônio na forma de imóveis comprados com farto uso de dinheiro vivo oriundo de gabinetes, é um bunker no qual se abrigar e abrigar mulher e filhos.

Disso decorrem a indicação de Augusto Aras para a Procuradoria-Geral da República, a troca de Moro por André Mendonça, as mudanças no Coaf, a tentativa de interferir também na Receita e, agora, a escolha de Kassio Nunes para o STF.

A ponte (pinguela, no caso) pode bem ser implodida depois que por ela passar o último Bolsonaro, pouco importando quem for deixado para trás.

*Editora do BR Político e apresentadora do programa Roda Viva, da TV Cultura


Almir Pazzianotto Pinto: Breve história do STF

Supremo deve aplicar a Constituição quando provocado e defendê-la quando exigido

O Supremo Tribunal Federal (STF) tem raízes profundas na Casa da Suplicação do Brasil, criada por dom João VI após a chegada da Casa Real portuguesa, em 1808. Proclamada a Independência, a Constituição Imperial de 1824, outorgada por dom Pedro I, instituiu o Supremo Tribunal de Justiça, “composto de Juízes letrados, tirados das relações por suas antiguidades”, os quais eram “condecorados com o título de Conselheiros” (artigo 163). Relações era o nome dado a tribunais existentes nas províncias, destinados ao julgamento em segunda e última instância, “para a comodidade dos povos” (artigo 158).

A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, promulgada em 1891, criou o Supremo Tribunal Federal (artigo 55). Na Constituição de 1934 a denominação passou a ser Corte Suprema (artigo 73). O nome Supremo Tribunal Federal foi restabelecido pela Carta Constitucional de 1937 e preservado nas Constituições de 1946, 1967, 1969 e 1988.

Na frase ácida e definitiva de João Mangabeira, encontrada no livro Rui o Estadista da República, “o órgão que, desde 92 até 937, mais falhou à República não foi o Congresso; foi o Supremo Tribunal (…). O órgão que a Constituição criara para seu guarda supremo, e destinado a conter, ao mesmo tempo, os excessos do Congresso e as violências do Governo, a deixava desamparada…” (Ed. Livraria Martins, SP, 3.ª ed., páginas 69/70).

A vaga aberta com a aposentadoria do ministro Celso de Mello, anunciada para 13 deste mês, não é de fácil preenchimento, diante das qualidades intelectuais e morais do ilustre magistrado. Concede, porém, ao presidente Jair Bolsonaro o direito de lhe indicar o sucessor. Quais os requisitos impostos pela Constituição para a indicação de magistrado dos tribunais superiores e do Supremo? São quatro. Dois de natureza objetiva: ser cidadão, ter mais de 35 e menos de 60 anos de idade. E dois de caráter subjetivo: notável saber jurídico e reputação ilibada. Os primeiros se provam com mera exibição de documentos, os segundos dependem da interpretação do presidente da República. A Lei Fundamental não cobra amizade com o chefe do Poder Executivo ou crença religiosa.

Apesar das palavras duras de João Mangabeira, o Supremo Tribunal Federal tem sido o último baluarte na defesa do regime democrático. Vem à lembrança a manifestação do ministro Álvaro Ribeiro da Costa, presidente no biênio 1964-1965, diante de impertinente e autoritária proposta de emenda constitucional enviada pelo presidente Castelo Branco. Reagindo ao ato presidencial, declarou Ribeiro da Costa: “Já é tempo de que os militares se compenetrem de que nos regimes democráticos não lhes cabe o papel de mentores da nação, como há pouco o fizeram, com estarrecedora quebra de sagrados deveres, os sargentos, instigados pelos Jangos e Brizolas. A atividade civil pertence aos civis, a militar a estes que, sob sagrado compromisso, juraram fidelidade à disciplina, às leis e à Constituição”.

Em 192 anos de vida o STF conheceu ministros das mais diversas personalidades. É de justiça relembrar alguns deles. Começo por Pisa e Almeida (19/11/1842), natural de Capivari, “cujo nome se imortalizou, como símbolo de resistência e honra, em meio à dobrez e à covardia”, como escreveu João Mangabeira; e do também capivariano e emérito processualista Moacyr do Amaral Santos (25/7/1902-16/10/1983). Alguns sobressaem na memória do STF pela cultura ou como símbolos de oposição ao totalitarismo. Além de Piza e Almeida, destaco o nome de Amaro Cavalcanti, de Carlos Maximiliano, de Epitácio Pessoa, Hermes Lima, Evandro Lins e Silva, Vítor Nunes Leal, Ribeiro da Costa, Lafayette de Andrade, Gonçalves de Oliveira e de Moreira Alves,

O desembargador Kassio Marques, integrante do Tribunal Regional Federal da 1.ª Região, é desconhecido além das esferas do seu tribunal. Sabe-se que é do Piauí e foi promovido a desembargador pela presidente Dilma Rousseff. Ao indicá-lo, o presidente Jair Bolsonaro destacou ser seu amigo, com quem tomou tubaína e espera tomar cerveja nos fins de semana. Parece-me insuficiente para justificar a nomeação para o Supremo Tribunal, composto por 11 ministros, onde o desempenho não se dilui, como em geral acontece nos tribunais integrados por elevado número de magistrados.

A pauta do STF é carregada de processos que examinam matérias de alta indagação jurídica e política. A transmissão em tempo real das sessões de interesse nacional expõe à opinião pública o perfil de cada ministro. Revela se é dotado de reputação ilibada e notável saber jurídico ou se não passa de trapezista guindado à alta Corte pelas boas graças de um presidente da República e pela proverbial leniência do Senado.

Compete à Corte Suprema “precipuamente a guarda da Constituição” (artigo 102). Estamos na oitava, seis abatidas por golpes de Estado. Para não ser acusado de falhar à República o Supremo deve aplicá-la quando provocado e defendê-la quando exigido. É o que a Nação espera de seus 11 magistrados.

*Advogado, foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho


Ascânio Seleme: A beleza da rotatividade

O novo time de Bolsonaro havia esquecido que o Supremo tinha um novo presidente

Nada como um dia depois do outro. Até o final de setembro, as articulações dos novos aliados de Bolsonaro contra a Lava-Jato andavam de vento em popa. A indicação de Kassio Marques para a vaga de Celso de Mello era o ponto alto do entendimento entre o centrão, o Planalto e alguns ministros do Supremo Tribunal Federal. O presidente afastava, pelo menos provisoriamente, a ideia de nomear um nome terrivelmente evangélico ou um advogado despreparado para o posto, o tribunal seguia na sua solene altivez, e o centrão ganhava um ministro que ajudaria a torpedear a saga punitivista, engordando a ala garantista da Segunda Turma do STF. Aí chegou o Fux.

O novo time de Bolsonaro havia esquecido que o Supremo tinha um novo presidente. Acostumado com a simpatia e a amizade de Dias Toffoli, batia bola como se nada houvera. Foi um erro. O mundo estava diferente. E esta é a beleza da rotatividade no comando do STF. Se Toffoli fosse presidente vitalício, como funciona na Suprema Corte dos Estados Unidos, Bolsonaro nadaria de braçada. Mas, não, por aqui o sabiá muda de cantiga a cada dois anos. E o canto da vez é o de Luiz Fux, que reagiu à manobra do capitão com outra manobra, e tirou poder da Segunda Turma sobre a Lava-Jato.

Sem entrar no mérito de quem tem razão, se os garantistas ou os punitivistas, é fato que se Bolsonaro e o centrão estão de um lado, tudo indica que o outro lado é melhor. Se o lado de Bolsonaro e do centrão também tiver a simpatia do PT de Lula, mais forte fica esta convicção. Foi o que se viu com a indicação de Kassio Marques. O festival de elogios ao magistrado não teve qualquer contenção partidária. O PT sentiu-se à vontade para falar bem alegando que o indicado já havia sido conduzido para o TRF pela ex-presidente Dilma. Mas é mais do que isto, além de tentar enterrar a Lava-Jato, Kassio provavelmente se somará aos que querem punir e desautorizar Sergio Moro, anulando a sentença de Lula no caso do tríplex do Guarujá.

O ex-sumido senador Renan Calheiros também entrou no circuito ao lado de Bolsonaro, do centrão e do PT de Lula, reforçando a tese de que o outro lado é melhor. Há três semanas, Renan recebeu Lula num hospital de São Paulo, onde se convalescia de uma cirurgia. “Vou vingar o senhor, presidente”, disse Renan ao visitante. Dias depois, saiu do hospital e voltou a operar com toda a desenvoltura que o distingue. Junto com seu ex-desafeto, o presidente do Senado Davi Alcolumbre, Renan organizou a paz entre Paulo Guedes e Rodrigo Maia; ajudou a consolidar a vida de Bolsonaro no STF; está azeitando o caminho de Kassio no Senado e incentivando a punição a Moro.

Renan trabalha por Lula, com o seu aval, e por Bolsonaro, com o OK do presidente. Foi para atender ao capitão que ele acionou a senadora Kátia Abreu, a organizadora do jantar que reuniu Guedes e Rodrigo. E para contemplar também o petista, Renan se uniu a Alcolumbre em favor do rito rápido na aprovação do garantista Kassio e da votação para a suspeição de Moro. Se depender de Renan e dos novos aliados de Bolsonaro, a maquiagem do currículo do indicado não o impedirá de ser aprovado pelo Senado. Com isso, ganham centrão, Bolsonaro e Lula. E ganha o reinserido Renan.

Não foram poucas, como se vê, as articulações que reuniram sob o mesmo guarda-chuva Bolsonaro, Lula, Renan, Gilmar, Toffoli, Alcolumbre e o centrão. Não importa a força e o poder que um grupo desse possa ter, o problema é que sempre há um outro lado. E de dois em dois anos a fila anda.

Transparência

Pode-se falar tudo de Dias Toffoli, menos que não seja transparente. Tem o currículo que tem e não se acanha. Não inventou mestrados, doutorados ou pós-docs. Sabe-se que lecionou numa universidade meia boca de Brasília e nunca escondeu que tentou ser juiz e foi reprovado em dois concursos. Ele é o que é. E ponto final.

Grande negócio

Sabe qual o melhor investimento hoje no Brasil? Esqueça Bolsa, dólar ou fundos de investimento. Na Justiça é que a grana rola. Qualquer sentença judicial que envolva pagamento em dinheiro, rende 1% ao mês se a parte condenada recorrer da decisão. Assim, quando uma pessoa ou empresa é sentenciada e recorre, a dívida vai sendo ajustada mensalmente até a sentença em instância derradeira. Se o caso tramitar por mais de dez anos e a decisão final confirmar a sentença inicial, o devedor deverá pagar juro de 1% ao mês por todo o período. Numa simulação feita pelo TJ do Rio, uma dívida de R$ 10 milhões vai pagar R$ 20,6 milhões só de juros. Somam-se a isso a correção monetária e os honorários advocatícios, e a facada final chega a R$ 42,1 milhões.

Esfarrapadas

A cordialidade entre Paulo Guedes e Rodrigo Maia, quando fizeram as pazes publicamente, deve ser vista com muita atenção para se saber quem mesmo se desculpou com o outro. Na entrevista do perdão, Rodrigo disse com os olhos marejados fitando Guedes: “Eu fui grosseiro e pedi desculpas”. Na sua vez, Guedes foi muito menos inflamado: “Caso tenha ofendido alguém inadvertidamente, peço desculpas”. Claro que Paulo Guedes não se desculpou. Na verdade, nem acha que ofendeu Rodrigo Maia ao desautorizar membros da sua equipe a se reunir com o presidente da Câmara.

Huck Bobeou

Tucanos da nova geração de São Paulo acham que Luciano Huck perdeu uma grande chance de testar sua capacidade eleitoral e ganhar corpo para uma disputa presidencial mais adiante. Huck poderia ter se candidatado à prefeitura do Rio, dizem os tucanos, com grande chance de ganhar. Partido não lhe faltaria, e o PSDB chegou a sondá-lo neste sentido. Se ganhasse, estaria se qualificando para 2022, além de obter experiência na administração pública. Se perdesse, aprenderia a jogar, o que lhe daria um pouco mais de segurança para o pleito seguinte.

Lema

Para os que vivem se lamentando pela vitória de Bolsonaro, vale a pena lembrar o lema americano de convivência democrática: “Vote, eleja, aguente, aprenda”. Nos Estados Unidos, a máxima está em vigor desde a eleição de Donald Trump, em 2016. Os americanos votaram, elegeram e depois aguentaram, resta saber se aprenderam. Aqui no Brasil, vai-se saber se houve algum aprendizado desde Bolsonaro já nas eleições municipais.

Agulha no palheiro

Um mil e 800 candidatos de 33 partidos se apresentam para concorrer a um mandato de vereador na Câmara do Rio. Tem todo tipo de gente. Tem doutor, tem cabo, sargento e tenente, tem corretor, bombeiro e pastor. Tem até um que se apresenta como “advogado de Deus”. O eleitor terá de vasculhar para encontrar agulhas neste palheiro. Mas com esforço e determinação, vai encontrar candidato que presta. Não desanime, nobre eleitor.

Serial killer

É incalculável o número de vidas ceifadas pelo negacionismo de Donald Trump em relação ao coronavírus. Mas tem gente calculando quantas pessoas ele matou nos últimos cinco dias, desde que tuitou que as pessoas têm de enfrentar o vírus sem medo e tirou a máscara em cadeia de TV ao voltar para a Casa Branca depois de sua internação.

Reza o contrato

A gigante Pinterest, uma rede social de compartilhamento de fotos, pagou US$ 90 milhões a uma empresa imobiliária para desfazer contrato de leasing de um prédio de 46,5 mil metros quadrados em São Francisco. Com a pandemia, a empresa aprendeu que dá para manter muita gente em casa e seguir suas operações a custos bem mais baixos. O detalhe curioso é que o prédio ainda nem foi construído.

Que susto

Certo dia um senador que atende pelo apelido de Vulcabras foi a São Paulo receber uma propina de um empresário local. Chegou ao escritório da empresa, contou o dinheiro e levantou-se para sair, quando o empresário lhe ofereceu um carro blindado para levá-lo ao aeroporto. No meio do caminho para Cumbica, o veículo parou por falta de gasolina. Em dois minutos uma patrulhinha da PM estacionou ao lado do carrão. O senador, que achou que tinham armado contra ele, se identificou com os policiais e pediu ajuda. Pois não, excelência. Os PMs então empurraram o carro blindado e pesado, que carregava um senador com uma mala cheia de dinheiro, até um posto de gasolina.

Dinos do Planalto

A Christie’s leiloou na terça passada em Londres o esqueleto de um Tiranossauro Rex. Conseguiu oferta final de US$ 31,8 milhões (R$ 177,2 milhões) pelos restos da fera do período cretáceo. Se viesse garimpar em Brasília, a leiloeira levantaria uma fortuna.