STF
Reinaldo Azevedo: Temos, sim, vacina contra o caos
A única saída é tentar resgatar o país dos escombros da legalidade
A entropia do sistema político elegeu Jair Bolsonaro. Ainda que um reacionarismo nada subterrâneo se manifestasse transversalmente na sociedade brasileira, este se mantinha mais ou menos à margem como força (des)organizadora do sistema. Os agentes da desordem eram neutralizados pelos da ordem.
No dia em que se estudar o sistema político a sério, o Brasil descobrirá razões para, por exemplo, lamentar o esfacelamento do núcleo duro do MDB. O partido atraía e digeria o monstro, hoje autônomo. O surto de moralismo barato, que investia e ainda investe na destruição de garantias legais, liberou as forças do caos. E, como já refletiu a filósofa, “depois que a pasta de dente sai do dentifrício, ela dificilmente volta para dentro do dentifrício”.
Bolsonaro virou o beneficiário e o monopolista desse caos. Pode não agir em nome de uma teoria do poder, mas se expande na ausência de uma força organizada que lhe faça oposição. Seria incapaz de redigir uma redação do Enem explicando o seu pensamento, mas intui que sua primeira tarefa é esmagar os adversários que estão em seu próprio campo ideológico.
A personalidade tirânica, e é o caso, não admite contestação em seu próprio terreno —e nisso ele não inova. Todos os beneficiários de movimentos disruptivos, ainda que pela via eleitoral, como ocorre, procuram eliminar primeiro os parceiros de trajetória. Construída a lenda pessoal, então pode se ocupar de alvejar os verdadeiros inimigos ideológicos, se é que Bolsonaro sabe quais são.
Suas formulações são tão primitivas e desinformadas que até seu extremismo de direita não passa de um vomitório para indignar adversários e manter unida a tropa. Observem que ele chega a inventar um passado de combatente contra a inexistente guerrilha do Vale do Ribeira. Quando aconteceram por lá não mais do que duas escaramuças, tinha 15 anos.
O “Mito” é um mitômano. É preciso que se pensem as circunstâncias que permitiram a um marginal chegar ao centro do poder. Não foi sem melancolia que li e ouvi, por exemplo, as reações à sabatina de Kassio Marques na CCJ, ministro aprovado do Supremo. Muitos sábios entortaram o nariz para o que fez de melhor: a defesa do garantismo.
Quando o establishment político, intelectual e jornalístico admite que possa haver em direito outra corrente que não a garantista —entendida esta como o cumprimento da letra da lei, com suas… garantia!—, então é preciso admitir que estamos vivendo, sim, uma nova era.
Que força relevante fazia a defesa da democracia naquele ancestral 1964, que resultou em golpe? A resposta, como é sabido, é esta: nenhuma. Não vivemos as vésperas de um rompimento institucional, mas há o risco de esgarçamento do Estado democrático e de Direito. Sem estrondo. Quem se atreve a falar em defesa das forças da ordem?
É evidente que Bolsonaro sabia das negociações empreendidas pelo seu soldado raso, o general Eduardo Pazuello, com o Instituto Butantan — e isso significa que também as Forças Armadas foram tragadas pelo movimento entrópico, viciadas que estão numa boquinha.
Nem tanto por cálculo, mas em razão da pressão da expedição interventora dos EUA que veio ao Brasil para buscar um aliado na guerra comercial contra a China, o presidente desautorizou o seu ministro da Saúde; atacou um adversário do seu campo ideológico; pôs em dúvida a qualidade de uma vacina sem ter elementos para isso; ameaçou, de forma velada, negar o registro à Coronavac e correu para colher os louros junto a seus lunáticos.
O que resta do antigo establishment político e intelectual, inclusive a imprensa, se queda paralisado, estatelado, mal acreditando no que ouve e vê. E o homem pode muito mais porque ele e o vácuo se contemplam. Bem-aventurados os que tentam resgatar o país dos escombros da legalidade. É nossa única saída.
“Kassio foi indicado por Bolsonaro, Reinaldo!” E daí? Edson Fachin foi indicado por Dilma.
Lembrando são Mateus, pelo fruto saberemos se é videira ou espinheiro. A ordem legal —com todas as mobilizações sociais cabíveis, claro!— é nossa única vacina contra as forças do caos.
Maria Cristina Fernandes: Uma garantia estendida por 27 anos
Vínculos de Kassio Nunes com a OAB precedem Bolsonaro
O desembargador Kassio Nunes Marques foi inquirido por quase dez horas, só perdendo para a sabatina do ministro Edson Fachin (11 horas), mas duração não foi reflexo de contenciosos. Com 57 votos favoráveis, 10 contrários e 1 abstenção no plenário do Senado, o novo ministro chegará ao Supremo Tribunal Federal com uma aprovação menos contestada que a de Fachin (52 a 27), Gilmar Mendes (57 a 15) e Rosa Weber (57 a 14). O quórum de sua aprovação aproxima-se daquele de Dias Toffoli (58 a 9), o último dos ministros a ter um currículo tão contestado quanto o de Nunes Marques. Apesar da pandemia, a votação teve a presença de um número maior de senadores (68) do que a aprovação dos ministros Cármen Lúcia (56), Marco Aurélio (54), Ricardo Lewandowski (67) e Luís Roberto Barroso (65).
O panorama da votação foi antecipado pelo voto em separado de Alessandro Vieira (Cidadania-SE). O senador anotou que o desembargador “é a mais perfeita materialização do sistema de cruzamento de interesses que impera no Brasil há décadas”. Por esta razão, disse o senador, “não surpreende o fato de a indicação angariar apoios entusiasmados de políticos que vão do petismo ao bolsonarismo, nem a recepção expressiva por parte de ministros da Suprema Corte que confundem costumeiramente o republicano dever de urbanidade com a condenável confraternização efusiva com investigados poderosos e seus representantes”.
No condomínio de lealdades montado pelo presidente da República para a indicação de Kassio Nunes Marques, o senador não incluiu a Ordem dos Advogados do Brasil. A OAB, certamente, não esteve entre as instâncias consultadas por Jair Bolsonaro, mas nenhum outro ministro terá chegado à Corte com tão fortes vínculos com a instituição. Durante a sabatina, Kassio Nunes Marques falou até do carrinho de cachorro-quente que teve em Teresina, mas não da parceria com o ex-presidente da OAB, Marcus Vinícius Coelho Furtado, maranhense de nascimento, mas criado no Piauí.
Com a parceria, chegou ao conselho da Ordem e, a partir dele, ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região, no Distrito Federal. Contou, ainda, para o cargo, com o apoio do ex-presidente da OAB-DF, hoje governador, Ibaneis Rocha, outro que morou por muitos anos no Estado natal do novo ministro e cujo escritório, em Brasília, tem muitos processos em tramitação no TRF-1. A ambos juntou-se o senador Ciro Nogueira (PP-PI) e o presidente do STJ, ministro Humberto Martins, para a chegada do desembargador ao Superior Tribunal de Justiça. Foi neste momento, que o presidente, alertado pelo filho, o senador Flávio Bolsonaro, o fisgou para o Supremo Tribunal Federal.
Trata-se quase de uma “República do Piauí”, que tem planos de futuro buscando atrair ainda o jovem Pedro Felipe Oliveira Santos. Juiz auxiliar do Supremo Tribunal Federal, alçado pelo ministro Luiz Fux para a Secretaria-Geral da Corte, Santos tem um currículo sem os mesmos puxadinhos do futuro ministro. Foi primeiro lugar no concurso para a Justiça Federal, tem mestrado em Harvard e é doutorando em Oxford.
Ao longo de sua sabatina, o desembargador mostrou-se merecedor da confiança do seu condomínio de indicações ao definir como o principal ativo de sua indicação, o “garantismo”, rótulo que situou entre o “originalismo”, tradução literal do texto constitucional, e o “ativismo”, interpretação da Carta que comporta um judiciário participante da mudança social e política. Suas origens acrescentam, senão um ativo, mas uma decorrência de sua indicação, a importância, para a OAB, da ocupação de tribunais por ministros egressos da Ordem.
É uma força que tem tradução numérica. Para que um recurso ao Supremo seja acolhido, é preciso o aval de um ministro do STJ. Para que um apelo suba ao STJ, também é necessário que um desembargador o ponha no elevador. Decisões como essas podem render, a advogados, valores de até sete dígitos em honorários. Na atual conjuntura da OAB, a proximidade com um ministro como Kassio Nunes Marques, pode, ainda, desbalancear favoravelmente à atual direção “garantista” na queda de braço travada internamente com os conselheiros de filiação lavajatista. A se confirmarem as expectativas dos antigos companheiros do futuro ministro na OAB, sua filiação aos princípios que hoje movem a Ordem ultrapassarão, e muito, o mandato do presidente Jair Bolsonaro. Se ficar na Corte até a aposentadoria compulsória, Kassio Nunes Marques só a deixará em 2047.
Ao longo da sabatina, Nunes Marques valeu-se de vedações legais que o impedem de vir a se manifestar sobre temas que podem entrar na pauta do Supremo, da prisão em segunda instância à existência da TV Justiça. Disse ao senador Oriovisto Guimarães (Podemos-PR), que lhe perguntou sobre a mediação do senador Flávio Bolsonaro e do advogado Frederick Wasseff, que o presidente havia tomado a decisão sozinho. E repetiu, em quase todas as respostas, sua determinação em fazer valer a necessária segurança jurídica do país, numa sabatina que teve na audiência Humberto Martins, do STJ. O ministro liderou a decisão daquele tribunal que levou o prefeito do Rio e aliado de Bolsonaro, Marcelo Crivella, a encampar a Linha Amarela.
O ministro foi menos convincente na reação às acusações em torno de seu currículo turbinado. Inventou o verbo “aspasar” numa tentativa de mostrar que sabe usar aspas. Disse que a Universidade Autônoma de Lisboa tem a “melhor ferramenta antiplágio do mundo”, mas não explicou porque sua orientadora, alertada pela revista “Crusoé”, teria aberto a possibilidade de rever o título concedido. Na dissertação acusada de plágio, o novo ministro defende que a União forneça medicamentos a todos os pacientes que deles necessitem. Chegará ao Supremo num momento em que a Corte pode vir a ser instada a se pronunciar sobre a vacina que o presidente quer negar aos brasileiros. Terá, então, oportunidade de mostrar o que, de fato, pensa sobre o tema.
Hélio Schwartsman: O sistema de escolha de juízes para o STF funciona?
Receio que, se funcionasse, Kassio Nunes não seria aprovado
O que aconteceria com Kassio Marques se nosso sistema de escolha de juízes para o STF fosse plenamente funcional? Receio que, neste caso, o futuro ministro não teria seu nome aprovado pelo Senado.
É possível que Marques seja um bom magistrado e que sua fortificação curricular seja um pecado venial, mas não estamos falando de um cargo obscuro nos meandros da administração, e sim de uma vaga na Suprema Corte do país, onde deveriam ter assento apenas os melhores e mais probos de cada geração.
Não é possível que, entre os cerca de 2 milhões de brasileiros em carreiras jurídicas, não exista ninguém com excelência técnica e sem pecados curriculares.
Apesar de eu mesmo ter classificado como pouco funcional nosso modelo de seleção, no qual o presidente indica mais ou menos livremente um nome, que precisa ser sabatinado e aprovado pelo Senado, devo dizer que o sistema não é tão ruim quanto alguns o pintam. O risco maior, que seria a entronização de ministros próximos demais de quem os designou, foi posto à prova e não se materializou.
Embora as últimas composições do STF tenham tido a maioria de seus integrantes apontados pelo PT, a corte, em seu conjunto, não hesitou em tomar decisões que contrariaram os interesses do partido, como se viu no julgamento do mensalão e do impeachment de Dilma. O segredo é a vitaliciedade. Uma vez nomeado, o ministro não precisa mais se preocupar com seu próximo emprego e pode dedicar-se só a sua biografia. A vaidade faz o resto.
Para o sistema tornar-se plenamente funcional, o Senado teria de exercer sua prerrogativa de realmente avaliar os candidatos e rejeitar os que não estivessem à altura do cargo. Como isso dificilmente acontecerá, até acho que poderíamos limitar mais a escolha do presidente, restringindo-a a listas de nomes elaboradas por outros atores, mas eu não mexeria na vitaliciedade. É a parte que está dando certo.
Eros Roberto Grau: Igualdade ou desigualdade?
Programa do Magazine Luiza é iluminado por Platão e Aristóteles, Lewandowski e Barroso
O Magazine Luiza recentemente implementou um programa de contratação de jovens que estejam cursando ensino superior e se autodeclarem negros ou pardos. Daí foram desdobrados inúmeros debates. Por conta disso emiti um parecer no qual afirmo sua correção jurídica. Não obstante, tal tem sido a repercussão dessa sua iniciativa que me permito agora escrever a propósito de sua correção em termos sociais.
O artigo 5.º da nossa Constituição estabelece que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza e garante aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à igualdade. Note-se bem que o preceito contém uma afirmação – a igualdade perante a lei – e uma garantia. Uma conhecida lição de Kelsen é primorosa: a chamada “igualdade” perante a lei não significa outra coisa que não seja a aplicação correta da lei, qualquer que seja o conteúdo que esta lei possa ter, mesmo que não prescreva um tratamento igualitário, desigual.
A concreção da regra da igualdade reclama a prévia determinação de quais sejam os iguais e quais os desiguais, até porque – e isso é repetido desde Platão e Aristóteles – a igualdade consiste em dar tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais. Vale dizer: a Constituição e as leis devem distinguir pessoas e situações distintas entre si a fim de conferir distintos tratamentos normativos a pessoas e situações que não sejam iguais.
Mais, permito-me lembrar dois acórdãos exemplares. Um lavrado na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186 – relator o ministro Ricardo Lewandowski – outro na Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 41 – relator o ministro Luís Roberto Barroso.
Leem-se na ementa do primeiro deles os seguintes trechos: “I – Não contraria – ao contrário, prestigia – o princípio da igualdade material, previsto no caput do art. 5.º da Carta da República, a possibilidade de o Estado lançar mão seja de políticas de cunho universalista, que abrangem um número indeterminados de indivíduos, mediante ações de natureza estrutural, seja de ações afirmativas, que atingem grupos sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo a estes certas vantagens, por um tempo limitado, de modo a permitir-lhes a superação de desigualdades decorrentes de situações históricas particulares; II – O modelo constitucional brasileiro incorporou diversos mecanismos institucionais para corrigir as distorções resultantes de uma aplicação puramente formal do princípio da igualdade”.
Na ementa da ADC 41, o seguinte: “1. É constitucional a Lei n.º 12.990/2014, que reserva a pessoas negras 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal direta e indireta, por três fundamentos. Em primeiro lugar, a desequiparação promovida pela política de ação afirmativa em questão está em consonância com o princípio da isonomia. Ela se funda na necessidade de superar o racismo estrutural e institucional ainda existente na sociedade brasileira, e garantir a igualdade material entre os cidadãos, por meio da distribuição mais equitativa de bens sociais e da promoção do reconhecimento da população afrodescendente”.
As lições de Ricardo Lewandowski e Luís Roberto Barroso confirmam que não se interpreta o Direito em tiras, aos pedaços, que não se interpretam textos de Direito isoladamente, mas sim o Direito, no seu todo.
Repito: todos são iguais perante a lei, mas a igualdade consiste em dar tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais. Em voto proferido no julgamento do Mandado de Segurança (MS) 26.690, quando exerci a magistratura no Supremo Tribunal Federal (STF), afirmei que “sabemos, desde Platão e Aristóteles, que a igualdade consiste exatamente em tratar de modo desigual os desiguais”.
Ainda que seja assim, uma ação civil pública movida pela Defensoria Pública da União, subscrita por Jovino Bento Junior, nos deixa perplexos. A Defensoria Pública da União é incumbida, nos termos do disposto no artigo 4.º, inciso XI, da Lei Complementar 80/94, de exercer a defesa dos interesses individuais e coletivos de grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado, e entre os grupos que merecem proteção especial do Estado está a população negra. O que essa ação pretende, penetrando o absurdo, é que seja dado tratamento igual aos desiguais.
A lição de Carlos Maximiliano é primorosa, cá se aplicando qual uma luva. “DEVE O DIREITO SER INTERPRETADO INTELIGENTEMENTE: não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis” (maiúsculas no original).
O programa de contratação implementado pelo Magazine Luiza é iluminado pelos meus velhos amigos Platão e Aristóteles e pelos de agora, lá do Supremo, Ricardo Lewandowski e Luís Roberto Barroso.
*Advogado, professor titular aposentado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, foi ministro do STF
Carlos Melo: Uma sabatina para não sabatinar
A indicação de Kassio Marques para a vaga no STF é um processo de surpresas e atropelos. Surpresas porque se esperava de Jair Bolsonaro um nome “terrivelmente evangélico” – o que não ocorreu. Atropelos porque, após a indicação, aspectos do currículo do candidato foram revelados, deixando constrangimento para quem se apresenta à vaga, quem o indica e quem o aprovará, em sabatina.
Ao se afastar da promessa que fez à base evangélica, o presidente surpreendeu pelo pragmatismo, incomum no seu caso. Ser “terrivelmente” adepto de qualquer religião não é qualificativo para tribunais em Estados laicos e democráticos. O que se espera de um juiz é estatura jurídica. De sorte que Bolsonaro surpreendeu e indicou alguém com melhores condições do que se esperava.
Mas, também as articulações que levaram ao nome de Marques foram surpreendentes. O noticiário indica que a escolha compreende enfraquecimento da Lava Jato no STF. O futuro ministro pode ter visão jurídica distinta da operação; ser mais ou menos crítico em relação a isso não é um defeito, desde que faça sentido jurídico. Posicionamentos dessa ordem deveriam ser tratados pelos senadores.
O irônico é que ministro com essa inclinação seja indicado por Jair Bolsonaro, que cavalgou na popularidade e no radicalismo lavajatista. Que fez coro a ele, exigindo o fim da “velha política”, e a mais que dura punição, sem remissão, de envolvidos com corrupção. Os ventos mudam de direção: Bolsonaro teria capitulado e conciliado com seus antigos adversários? O certo é que ou errou lá ou erra aqui.
Da indicação para cá, problemas nos certificados de notório saber do futuro ministro foram revelados: títulos que não se confirmam e denúncias de plágio surgiram; imprecisões, enfim, frequentes no atual governo. Mas que, num ambiente de necessário rigor, seriam pontos para reanálise da própria indicação: são questões que comprometem mais do que ser contra ou a favor de teses jurídicas, pois desgastam a imagem de alguém que será guardião inconteste da Constituição. A busca do esclarecimento deveria ser ponto central da sabatina.
Mas isso dificilmente ocorrerá. A sabatina tende a não sabatinar, pois a posição do futuro ministro em relação à Lava Jato parece bastar. A conciliação de interesses apenas aparentemente contraditórios sabe fazer a curva dos ventos e tudo se dissipa na fachada do teatro.
*Carlos Melo cientista político e professor do Insper
Pablo Ortellado: Vacinação contra a Covid deve ser compulsória
Congresso e STF precisarão garantir instrumentos de coerção para vencer sentimento anti-vacina
Como esperado, a politização da Covid ampliou as resistências à vacinação. Pesquisa da CNN Brasil, publicada na última sexta (16), mostrou que 46% dos brasileiros não tomariam a "vacina da China" (Coronavac) e 38% não tomariam a "vacina da Rússia" (Sputnik V). Os números são altos e podem inviabilizar a imunidade comunitária, já que a Coronovac pode ser aprovada em breve.
A resistência à vacina chinesa, testada pelo Instituto Butantã, é resultado da campanha anti-China do governo Bolsonaro e da disputa política do presidente com o governador João Doria. Esse antagonismo se agravou com a declaração do governador de que a vacinação será compulsória e com a réplica de Bolsonaro de que não será.
O grau de imposição da vacinação é um problema delicado de política pública.
Por um lado, uma democracia liberal deve permitir a expressão do sentimento antivacina, respeitando as liberdades de pensamento, de expressão e de objeção de consciência.
Por outro, a liberdade individual não pode se sobrepor ao interesse coletivo de atingir a imunidade comunitária. Como as vacinas não têm 100% de eficácia, quando alguém não se vacina, não põe em risco apenas a própria vida, mas também a de parte dos seus concidadãos vacinados que ainda podem ser contaminados.
A experiência internacional apresenta um leque de instrumentos de imposição, que vão das multas a quem não se vacinar à exigência de comprovantes de vacinação para matricular as crianças na escola ou para acessar programas sociais.
Como o governo federal promove a hesitação em relação à vacinação, e como há limitações jurídicas às ações dos estados, cabe a Alcolumbre e a Rodrigo Maia, de um lado, e ao STF, de outro, garantirem que, uma vez aprovada uma vacina, possamos atingir a imunidade.
Alguns estados e cidades já solicitam cadernetas de vacinação para a matrícula nas escolas públicas.
Essa proposta pode ser nacionalizada por meio do PL 5.542/19, em tramitação no Senado. Ela pode ser expandida ainda para incluir, no caso da Covid, os estudantes do ensino superior.
Outra medida a ser tomada é exigir a vacinação contra a Covid de todos os membros da família para acessar o Bolsa Família. Além disso, pode-se exigir que trabalhadores que atuam diretamente com o público se vacinem. A cobrança da vacinação a estudantes, famílias beneficiárias do Bolsa Família e trabalhadores que lidam com o público deve ser suficiente para atingir a imunidade comunitária.
Embora a saída para vencer o sentimento antivacina seja o convencimento do público, no curto prazo vamos precisar de instrumentos de coerção.
*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.
Carlos Andreazza: Colegialidade de ocasião
O problema — talvez o maior — do STF não é simplesmente o excesso de decisões monocráticas, mas o uso constante de liminares
A lei é boa. E era necessária. Refiro-me ao artigo 316, parágrafo único, do Código de Processo Penal: aquele — expressão do estado de direito — que estabelece a necessidade de a prisão preventiva ser revista a cada noventa dias. Lembremo-nos: prisão preventiva é medida cautelar de natureza provisória. Há requisitos para que alguém seja mantido em cárcere por essa razão. Por exemplo: representar risco à ordem pública. São dezenas de milhares os brasileiros — sobretudo pretos e pobres — esquecidos, presos provisoriamente, em cadeias do Brasil profundo; a grande maioria sem oferecer os riscos que justificam a preventiva.
Exigir que essa condição seja reexaminada a cada três meses é movimento da civilização. Aqui, uma obviedade: tivesse a lei sido aplicada corretamente, André do Rap estaria preso. Ele, ameaça à sociedade, encarna as razões para a privação cautelar de liberdade. Aqui, portanto, outra obviedade — para desmontar a falácia dos oportunistas que querem fazer do episódio escada para reabilitar a prisão após condenação em segundo grau: o criminoso não está foragido porque a jurisprudência corrente no Supremo impõe trânsito em julgado para o cumprimento de pena.
Debatamos a questão. Mas sem embustes.
Diga-se que o erro original de Marco Aurélio Mello não derivou de sua leitura do artigo 316 do CPP. Tivesse o ministro respeitado, antes, a súmula 691 do STF, sua análise do habeas corpus — que resultou na liberação do traficante — nem sequer existiria. Marco Aurélio não foi ingênuo, tampouco literalista. Foi negligente com o regramento da corte constitucional. Simples. O STJ já havia indeferido a liminar. Não cabia acolhimento pelo STF. Ponto final. O ministro, no entanto, atropelou a súmula; para então se lançar ao fetiche, com o qual sempre se defende, de que processo não tem capa — como se isso, o enfrentamento impessoal de um caso, eximisse-o de estudar o conteúdo e pedir informações a respeito.
Não é todo dia que o tribunal se depara com a demanda por liberdade de um traficante que comercia toneladas de cocaína. O Supremo não precisaria deliberar sobre a não automaticidade da lei se Marco Aurélio tivesse trabalhado. Sua consulta — ao juízo de primeiro grau — sobre o processo teria bastado para que o juiz responsável pela prisão se visse provocado a renová-la. Chama-se bom senso. Algo que poderia ajudar a corte constitucional a não legislar tanto. Porque, afinal, a disciplina — talvez o menor dos males — que o STF assentou sobre como se comportar (blindar, na verdade) diante do artigo em xeque não deixou de ser mais uma invasão no terreno da atividade legislativa. Menos mal também porque, ainda que legislando, o Supremo acabou por avalizar a constitucionalidade da (boa) lei.
Não pode passar despercebida a proposição esperta que, a propósito da leitura do artigo 316 do CPP, tentou encaixar Alexandre de Moraes; segundo quem, havendo, contra o indivíduo preso preventivamente, condenação em segundo grau, não seria necessária a revisão da cautelar a cada noventa dias. Isto mesmo: o ministro, sem corar, tentava erguer um puxadinho para fazer valer de novo a prisão após condenação em segunda instância. Não prosperou. Ainda.
Prosperou, porém, a derrota, dura, de Marco Aurélio — exposto, sem dó, pelos pares. Um decano jogado ao mar. Não se pode dizer, entretanto, que Luiz Fux tenha vencido. O placar engana sobre o que foi o jogo. O tribunal fez a escolha pelo improviso menos danoso à sua imagem. Só por isso endossou, cheio de ressalvas, a intervenção — ilegal e autoritária — de seu presidente. Fux a chamou de excepcionalíssima. Mentiu.
O recurso autofágico — ministro suspendendo liminar de ministro — tem sido usado com frequência. Dias Toffoli usou. Idem o próprio Fux, agora tão dedicado a valorizar a colegialidade. Ou não terá sido ele o — censor, e censor prévio — que sustou decisão, perfeitamente legal, de Ricardo Lewandowski, que autorizara uma entrevista de Lula desde a prisão? Este Fux que ora vem, cheio de mídia, para combater a febre monocrática, outrora censor monocrático, sendo o mesmo que por quatro anos se sentou sobre liminar — monocracia corporativista de próprio punho — que garantiu auxílio-moradia para juízes e procuradores. Conta bilionária.
O problema — talvez o maior — do STF não é simplesmente o excesso de decisões monocráticas, mas o uso constante de liminares, como se os ministros fossem birutas, embasadas pelo vento influente, oportunista, de ocasião, não raro com a intenção de jogar para a galera, não raro fora da lei.
A suspensão discricionária de Fux da liminar bizarra de Marco Aurélio — Supremo comendo Supremo — se baseou em lei, a 8.437, que absolutamente não lhe autoriza o ato; como sem qualquer lastro legal foi a decisão de Barroso pelo afastamento do senador Chico Rodrigues. Assim vamos. Ademais sob o risco de, como forma de controlar a convulsão das canetadas monocráticas, impor-se uma tirania da colegialidade que, na prática, resulte em restrição ao habeas corpus.
Cuidado. De nada adiantará um choque de plenário se houver escassez de juízes.
Carlos Pereira: Contorcionismo interpretativo
Restrições do sistema político são responsáveis por mudanças de comportamento de Bolsonaro
Assim como é possível a algumas pessoas fazer acrobacias que envolvem flexões e contorções extremas no corpo, também é possível observar contorcionismos interpretativos de fenômenos políticos.
É surpreendente que, mesmo quando os atores políticos passam a se comportar de acordo com as expectativas geradas pelos incentivos e restrições institucionais, muitos analistas ainda têm imensas dificuldades de reconhecer as virtudes do sistema político brasileiro. Preferem, por exemplo, creditar aos supostos “defeitos” do sistema o enquadramento comportamental do presidente Jair Bolsonaro. Fazem contorcionismo interpretativo ao anunciar a fragilização das organizações de controle como decorrente de supostos “acordos”, como se estas fossem indefesas ou passivas às ações dos políticos.
Inebriado pela vitória surpreendente e pelos compromissos antissistema de sua campanha à Presidência, Bolsonaro inaugurou seu governo nadando contra a corrente das regras do jogo político. Ignorou as restrições institucionais do presidencialismo multipartidário e se negou a montar uma coalizão, preferindo governar na condição de minoria.
Baseado em extensa pesquisa empírica produzida pela ciência política brasileira, era esperado que essa estratégia governativa gerasse problemas crescentes de governabilidade. Não deu outra! O governo colheu derrotas sucessivas tanto no Legislativo como no Judiciário. Além do mais, acirrou animosidades e se engajou em conflitos abertos com outros Poderes.
Os custos decorrentes dessa estratégia adversarial de governar tornaram-se proibitivos para Bolsonaro, que viu sua popularidade derreter e aumentarem os riscos de interrupção precoce de seu governo. Independentemente das motivações do presidente (sobreviver, proteger seus filhos de investigações, obter sucesso no Legislativo e no Judiciário etc.), o governo fez, mesmo que tardiamente, consideráveis ajustes e inflexões em seu comportamento.
Ainda sem formar uma coalizão claramente majoritária e estável, bem como sem explicitar quais os termos de troca dessas alianças, Bolsonaro decidiu jogar o jogo do presidencialismo multipartidário. O presidente vem se aproximando dos partidos do Centrão, que têm conferido estabilidade e previsibilidade à democracia brasileira ao participar de quase todas as coalizões dos governos pós-redemocratização.
Bolsonaro também diminuiu o tom do seu discurso belicoso e autoritário que alimentava as conexões identitárias com seu eleitorado mais reacionário. As instituições políticas e de controle, portanto, têm sido capazes de constranger as ações do governo ao ponto do discurso confrontacional de Bolsonaro perder autenticidade. Ou seja, o presidente, ao se domesticar, se rendeu à “política tradicional”. A democracia venceu!
O Brasil, em termos relativos, tem vivido o período mais pacífico, longevo e estável da história de sua democracia. Atores políticos e agentes econômicos que apresentam comportamento desviante têm sido objeto de investigações e sofrido punições judiciais expressivas. Como exemplo, o ex-vice-líder do governo no Senado, senador Chico Rodrigues, acaba de ser flagrado pela Polícia Federal com dinheiro escondido na cueca e teve seu mandato suspenso por 90 dias pelo Supremo Tribunal Federal.
O viés de pessimismo decorrente do comportamento inicial de Bolsonaro parece ser a raiz do mal-estar que, a despeito das virtudes do presidencialismo multipartidário, tem atormentado a maioria das análises políticas sobre a capacidade das instituições brasileiras de constrangê-lo.
*Cientista político e professor titular da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (FGV EBAPE)
Janio de Freitas: Embate oferece controvérsia, mas STF marchou de mãos dadas contra Marco Aurélio
Ministro considerou justificada a liberação de André do Rap, que requereu habeas corpus baseado em excesso de prisão
A indiferença da classe privilegiada pelo que se passa abaixo dela recebeu do próprio Supremo Tribunal Federal, instância quase divina da “Justiça”, mais uma autenticação. É o destino histórico, deliberado por quem pode, para a imensa maioria dos brasileiros.
Com intenção fora das exigências vigentes, o Congresso alterou o tal pacote anticrime com uma medida para reduzir o número indecente de mais de 250 mil detentos em prisão nominalmente provisória, mas de fato sem prazo. Uma população abandonada, inúmeros sem culpa constatada, resultado da falta de meios para pagar advogados eficientes. Em vigor desde o final de dezembro último, a nova medida determina o reexame da prisão a cada 90 dias, para verificação da necessidade de mantê-la ou não. É claro que os reexames não são comuns.
O ministro Marco Aurélio considerou justificada a liberação de um detento provisório, que requereu habeas corpus baseado em excesso de prisão, mais do que os 90 dias legais e sem o reexame que a avaliasse. Recém-empossado na presidência do STF, Luiz Fux atribuiu-se o inexistente poder de invalidar a decisão do colega. E o fez com o forte argumento de ser o detento um chefe de milícia que, solto, ameaçaria a sociedade.
Um embate, portanto, que oferece controvérsia para muito tempo, entre defensores de que a lei é igual para todos, e aplicá-la é a função do juiz; de outra parte, os que sobrepõem à lei, ao decidir, presumidas decorrências de sua aplicação —ou, não raras vezes, suas inclinações pessoais. Controvérsia, mas não para o plenário do STF, que logo marchava de mãos dadas contra Marco Aurélio Mello, como sempre. E o fez com originalidade: abraçou a opinião aplicada por Luiz Fux, mas não que a aplicasse.
Para Luiz Fux, que lembra o Fernando Henrique das exógenas e endógenas para dizer externas e internas, o tribunal nada decidiu sobre o prazo de 90 dias: tratou do “prazo nonagesimal”. Que, conforme a resolução adotada, “não implica automática revogação da prisão preventiva, devendo o juiz competente ser instado a reavaliar a legalidade e a atualidade de seus fundamentos”.
Em que prazo? A rigor, deveria fazê-lo antes do dia “nonagesimal”, pois já no dia seguinte a prisão entra em excesso de prazo. Na lei, o prazo é tanto para o detento como para o juiz do caso. O Supremo cuidou, no entanto, de dar-lhes sentidos opostos. O do preso é fechado e dependente. O do juiz é livre, à vontade, a menos que haja intervenção do advogado nunca presente para a imensa maioria dos detidos provisórios sem meios de tê-lo.
Novo fogo
A emboscada policial que matou 12 de uma “narcomilícia” apreendeu, entre as armas que carregavam, três metralhadoras. É uma novidade. Um passo a mais.
Metralhadoras eram consideradas menos convenientes pela dificuldade de dirigir tiros mais precisos, nos confrontos. Sua utilidade estaria em ataques do tipo militar, os chamados assaltos. Se é isso que sua chegada prenuncia, não se sabe. Mas que trazem novidade, e para pior, é certo.
Nostalgias
As restrições às armas de brinquedo, o fim dos quintais e os síndicos extinguiram, ou quase, os empolgantes enfrentamentos de mocinho e bandido. Agora as críticas se voltam para os sobreviventes enfrentamentos de azuis e vermelhos, os mocinhos e bandidos dos falsos tiroteios do pessoal do Exército. Mas saíram todos contentes: os combates vencidos pelos azuis na Amazônia correram muito bem, como nos velhos tempos.
Merval Pereira: A favor do coletivo
O episódio polêmico do habeas corpus dado pelo ministro Marco Aurélio Mello ao traficante André do Rap serviu para levantar diversas questões que há muito distorcem a atuação do Supremo Tribunal Federal.
Para começo de conversa, não é razoável que um caso como esse tenha chegado à última instância da Justiça, numa Corte que deveria ser apenas constitucional e cada vez mais se vê às voltas com crimes, de colarinho branco a tráfico internacional de drogas.
Transferir para o colegiado do Supremo o poder decisório que hoje pode ficar com um ministro em julgamento monocrático é o objetivo da proposta do presidente, ministro Luis Fux, que será apresentada em reunião administrativa do STF.
A idéia é fazer com que toda decisão individual seja levada ao plenário virtual imediatamente. Está sendo criado um espaço especial para votações rápidas, provavelmente em 48 horas, sobre decisões monocráticas, incluindo habeas corpus.
A chamada “desmonocratização” do Supremo, anunciada pelo novo presidente tem o objetivo de que as decisões do tribunal "sejam sempre colegiadas, em uma voz uníssona daquilo que a Corte entende sobre as razões e os valores constitucionais". Os ministros perderão poder individualmente, mas o plenário do Supremo ganhará relevância.
Esse debate está sendo feito nos bastidores, mas o ministro Gilmar Mendes já reagiu publicamente, dizendo que se trata de uma medida demagógica, citando “telhado de vidro” dos que propõem a medida. Ele se referia indiretamente ao ministro Fux, lembrando que “a liminar mais longa que conheço” é a do auxílio moradia, dada pelo hoje presidente do Supremo em 2014, que nunca foi a plenário, revogada por ele mesmo quatro anos depois devido a um reajuste salarial dado aos juízes federais pelo presidente Michel Temer.
O ministro Gilmar Mendes é muito cioso dos seus poderes como ministro do Supremo, e não acredita que a Corte tenha que ter reduzidas suas funções. Certa ocasião, quando se debatia a necessidade de tirar do STF o julgamento de crimes, eleitorais ou comuns, o ministro Luis Roberto Barroso sugeriu a criação de um novo tribunal para tratar apenas dessas situações. Gilmar reagiu, dizendo que Barroso queria tirar poder do STF para criar um supertribunal que analisaria os casos criminais envolvendo os detentores de foro privilegiado.
O presidente Luis Fux, diante dos problemas que surgiram com a distribuição do habeas corpus, decidiu também acabar com a chamada “roleta russa” na escolha do relator dos casos, uma manobra costumeira que burlava a escolha através de sorteio.
Os advogados costumeiramente entram com uma ação ou recurso, que são distribuídos por sorteio a um ministro, ou encaminhados ao ministro “prevento”, isto é, que cuida de assuntos ligados ao tema. O ministro “prevento” para a Lava Jato no plenário é Edson Fachin.
Se o sorteio designa um ministro que não é partidário desta ou daquela causa, por decisões anteriores, o advogado desiste da ação e entra com outro pedido, esperando que desta vez a sorte lhe seja benfazeja.
Foi o que aconteceu no caso do habeas corpus do traficante, impetrado e retirado por oito vezes, até que caísse com o ministro Marco Aurélio, um garantista conhecido que já havia se utilizado do artigo 316 do Código de Processo Penal para soltar dezenas de presos. A partir de agora, o registro ou distribuição de ação ou recurso no STF gerará prevenção ao ministro inicialmente sorteado para todos os processos relacionados à primeira petição, impedindo a mudança de relator.
Essas mudanças de procedimento no STF estão sendo submetidas aos ministros nas reuniões administrativas, e até agora o ministro Luis Fux tem conseguido o apoio necessário para executá-las, como a volta das ações ao plenário, em vez das Turmas.
Seu objetivo de longo prazo é que todos os temas sejam debatidos e decididos pelo plenário. Para tal, ele pretende, até o final de seu mandato, que o Supremo Tribunal Federal recupere a capacidade de tratar apenas de temas constitucionais, sem tratar de casos como o do traficante André do Rap.
Merval Pereira: Falta de decoro
Mais uma vez estamos diante de uma disputa entre Poderes da República, e de membros de poderes entre si, que não dignifica o papel do Senado como instituição. Alegar que um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) não pode suspender o mandato de um senador eleito pelo povo é uma falácia, pois, se a lei manda consultar o Senado, será sempre dele a palavra final.
Por isso, o que estará em votação é a permanência em atividade de um senador que foi apanhado em flagrante tentando esconder dinheiro ilegal da maneira mais baixa já registrada nos anais policiais envolvendo nossas excelências.
Esse compadrio que começa a tomar conta dos senadores reflete apenas o temor de que seja um deles a próxima vítima de batidas policiais. A maioria está espantada com o despreparo de um “senador experiente” que não soube se desvencilhar da prova do crime, ou não teve sangue frio para assumir a posse desse dinheiro sem se auto denunciar no gesto extremo.
Não pelo local em si em que o senador Chico Rodrigues, um septuagenário, pretendeu esconder a bufunfa que roubou, segundo a Polícia Federal, da verba extraordinária que conseguiu para ajudar os povos indígenas durante a pandemia. Maior prova de falta de decoro não poderia ter havido.
Quando lembramos que o deputado federal Barreto Pinto teve que renunciar apenas porque apareceu numa fotografia de O Cruzeiro de cueca e fraque, vítima de um truque do repórter David Nasser que garantiu ao senador que apenas a parte de cima apareceria na foto, vemos como regredimos. As cuecas de Barreto Pinto não guardavam nada além de suas partes íntimas, já as do senador Chico Rodrigues guardavam dinheiro roubado. Sair de cueca numa foto era um crime contra o decoro no tempo em que se tinha noção do que seja decoro parlamentar.
Como é possível imaginar que um cidadão nessas condições possa continuar representando o Senado Federal? Como é possível o próprio Senado Federal achar que não sofrerá diante da opinião pública com manobras como a que está sendo arquitetada para salvar a pele do senador Chico Rodrigues?
O presidente do Senado, David Alcolumbre, que já havia rebaixado o cargo ao tentar se reeleger contra o que diz a Constituição, agora se agacha mais ainda ao articular nos bastidores a salvação de seu amigo e correligionário.
Sua presidência termina como começou, no baixo clero, representando mais um dos muitos políticos eleitos pelo que seria a nova política de Bolsonaro e se revelaram indignos do cargo que exercem.
Alcolumbre foi eleito com o apoio do novo esquema político do Palácio do Planalto, que na época era liderado pelo deputado Onix Lorenzoni. Agora, tenta, com o apoio do presidente Bolsonaro, ganhar uma reeleição a que não tem direito legalmente, nem merece politicamente.
A tentativa de blindar parlamentares das ações da Polícia Federal é permanente, e o próprio Chico Rodrigues já havia tentado aprovar uma norma que proibisse a ação policial nos escritórios e casas de políticos. Já houve também, e muitas vezes com sucesso, a tentativa de proibir a ação policial no interior do Congresso, como se fosse ali uma fortaleza a proteger os malfeitos de suas excelências.
A proteção legal aos parlamentares é uma necessidade da democracia, para impedir que sejam tolhidos em suas atividades. Mas não pode ser usada para proteger criminosos. O caso da deputada federal Flordelis é exemplar. Acusada de assassinato do marido, com o auxílio de vários dos seus filhos, protege-se com a imunidade parlamentar para não ir para a cadeia.
A proposta do ministro Luis Roberto Barroso para que sua decisão monocrática de suspender o senador por 90 dias seja levada o mais rápido possível ao plenário do Supremo, é uma forma de pressionar o Senado a adotar uma medida que parece a mais óbvia a qualquer pessoa séria preocupada com os destinos da política nacional.
Míriam Leitão: O Brasil vai de Mello a Mello
Foi uma semana marcante. O ministro Celso de Mello encerrou seu tempo no Supremo Tribunal Federal (STF) deixando a sensação de que 31 anos podem ser poucos, que sai quando é ainda necessário ao país. O STF foi tragado por uma voragem conflituosa envolvendo o novo decano, Marco Aurélio Mello, e o presidente Luiz Fux. Os dois Mellos não têm qualquer parentesco em nenhum sentido da palavra, mas os eventos ajudam a refletir sobre o Supremo e o país.
Não poderiam ser mais distantes os estilos dos dois decanos, o que sai e o que entra. Celso de Mello era construtor de maiorias, era a pessoa para a qual os pares olhavam, Marco Aurélio é um lobo solitário e passa a impressão de que o debate no colegiado importa menos do que marcar sua singularidade. Sempre preferiu votos indiossincráticos, amparados em teorias por vezes incompreensíveis aos mortais. Com grande frequência terminava sozinho, como nesta semana com o placar de nove a um. Recebeu o conforto das reprimendas dos colegas ao ato de Fux de cassar sua liminar, mas o desagrado de ver que ninguém daria liberdade ao traficante André do Rap.
Marco Aurélio Mello concedeu um habeas corpus tão controverso que não seguiu nem a si mesmo. Apesar de ter brigado a semana inteira de inauguração do seu decanato em defesa de sua decisão, o ministro não concedeu o mesmo benefício a outro preso, companheiro de facção e criminalidade de André do Rap. No conflito com o presidente do Supremo, não quis conciliação. Nada o aplacou nem mesmo o fato de os colegas concordarem que Fux não tem o poder de cassar liminares dos outros ministros. Acusou Fux de “autoritarismo”, fez uma estranha pergunta para o ambiente: “vai querer me peitar?” Quando o presidente do STF disse que o traficante enganara até a ele, Marco Aurélio, por não ter cumprido a ordem de recolher-se em seu domicílio, o decano disse que não fora enganado, já que reconhecia o direito de André do Rap “fugir de uma prisão ilegal”.
A discussão subjacente em todo esse conflito é se teremos ministros do Supremo que olham a literalidade da lei e a aplique automaticamente como se não houvessem circunstâncias agravantes e atenuantes. A dúvida é se o artigo 316 do Código Penal, que exige a renovação da prisão preventiva, determina a liberdade automática ou se caminharão para um acórdão que proteja a sociedade da libertação de criminosos condenados como André do Rap e leve à libertação de quem está de fato preso de forma abusiva.
Celso de Mello no seu último ato votou contra a concessão de um privilégio ao presidente da República. O risco é de que não seja seguido, apesar de serem cristalinas as suas razões. Está lá o artigo 221 do Código de Processo Penal, no capítulo que trata “Das Testemunhas”. Se derrubar a decisão de Celso de Mello concedendo a Bolsonaro o direito indevido de depor por escrito, o plenário do STF estará consagrando um erro cometido na avaliação da investigação de Michel Temer. Naquele caso, a decisão foi monocrática. Se for agora confirmado no pleno, fica eternizado. Assim, todos os presidentes, Bolsonaro e os que vierem depois, terão o conforto de entregarem seus interrogatórios para os advogados preencherem. Estarão livres do constrangimento de responderem pelos seus atos duvidosos. O indicado para substituir Celso de Mello, Kássio Nunes, está entrando pela porta lateral, em conchavos explícitos, dúvidas curriculares e lealdades outras que não as que um ministro deve obedecer. Que a cadeira que poderá vir a ocupar até 2047 o ajude a corrigir a rota.
O grande legado de Celso de Mello é a defesa da Constituição. Ele foi uma feliz indicação do ex-presidente Sarney, bem no alvorecer da nova ordem constitucional. Mostrou nas décadas seguintes ser a pessoa certa no lugar certo. Sua intransigência na defesa de princípios da liberdade, do respeito às minorias e de um governo de iguais o tornaram fundamental numa República que acabara de viver um longo período autoritário. Ele sai quando de novo o país é ameaçado por um governante que nunca valorizou o patrimônio cívico da democracia. Celso de Mello balizou o caminho a seguir. Seus votos permanecerão iluminando o plenário que deixou, os outros tribunais do país e as nossas consciências.