STF

Merval Pereira: Na janelinha

Nos Estados Unidos, um “Júnior justice” da Suprema Corte - ministro novato - tem, por tradição, a tarefa de fechar a porta da sala de reuniões depois que o último ministro chega. Uma demonstração de humildade diante dos mais antigos. Há até mesmo filmes que mostram essa cena, com o presidente da Corte advertindo um novato: “Você esqueceu de fechar a porta. É a tradição”.

Aqui, nosso ministro junior Nunes Marques mal chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF) e, como diria o sábio popular senador Romário, “já está querendo sentar na janelinha”. Em sua primeira atuação, ele deu aquele voto pseudamente salomônico que aprovou a reeleição de seu amigo senador David Alcolumbre, e proibiu o deputado Rodrigo Maia, inimigo do Planalto, de fazer o mesmo.

Sua decisão monocrática de reduzir o prazo de inelegibilidade dos atingidos pela Lei de Ficha Limpa, fazendo com que ele seja descontado da pena cumprida, está causando séria perturbação dos tribunais eleitorais pelo país, e alimentando a percepção de que o novo ministro, nomeado ao acaso pelo presidente Bolsonaro, cumpre mais uma etapa do plano governamental de desmontar o aparato jurídico de combate à corrupção nos meios políticos, depois da aliança com o Centrão.

A atitude do ministro Nunes Marques foi tomada um dia antes do recesso do Judiciário, e em pleno período eleitoral. Isso quer dizer que centenas de candidatos que concorreram subjudice agora exigirão da Justiça Eleitoral suas posses, o que pode até mesmo alterar a composição das Câmaras de Vereadores. Ou até mesmo eleger algum prefeito.

O mais espantoso é que a Lei da Ficha Limpa foi colocada sob o escrutínio do plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2012, e considerada constitucional pela maioria. O ponto específico agora alterado liminarmente pelo novo ministro foi analisado e considerado compatível com a Constituição e com a vontade do legislador, o Congresso Nacional.

O atual presidente do Supremo, Luis Fux, que era o relator do processo, tinha na ocasião a mesma opinião de Nunes Marques agora. Achava que a inelegibilidade, passando a contar somente a partir do fim da pena, era exagerada. O ministro Cezar Peluso, já aposentado, teve a mesma opinião, mas o ministro Marco Aurélio Mello rebateu o argumento lembrando que a utilização de recursos sobre recursos fazia com que a inelegibilidade não tivesse efeito prático, rejeitando a proposta de subtração do tempo decorrido entre a condenação e o julgamento dos recursos.

Sendo assim, a decisão monocrática do juiz novato foi contra um ponto da Lei da Ficha Limpa que já foi debatido pelo plenário, o que agrava a percepção de que, no Supremo, cada ministro é uma ilha que não se comunica com os outros, nem com as decisões já tomadas, sem que haja razão para um novo julgamento, mas apenas uma opinião pessoal

O caso, de todo modo, será avaliado pelo plenário depois do recesso, mas há uma movimentação no Supremo para que Nunes Marques altere sua decisão, para evitar o caos na justiça eleitoral. Ele pode definir que a medida só vale para a próxima eleição, para evitar que os tribunais eleitorais fiquem abarrotados de recurso durante o período de diplomação dos novos prefeitos e vereadores, ou, no limite, o presidente do Supremo, ministro Luis Fux, pode suspender essa liminar, com base exatamente em que essa lei já foi considerada constitucional pelo próprio STF.

Embora essa medida radical seja defendida por setores do judiciário, Fux parece inclinado a resolver o impasse pelo diálogo. A atuação do Supremo durante o recesso, que começou dia 20 de dezembro e vai até o dia 6 de janeiro, também está em discussão, pois quatro ministros já comunicaram que continuarão trabalhando nesse período.

Os ministros Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Alexandre de Moraes e Marco Aurélio Mello, com isso, reduzem o poder do presidente Luis Fux, que fica de plantão durante o recesso com poder de decisão. Aliados de Luis Fux garantem que o Regimento do Supremo não autoriza essa atitude, e o presidente parece decidido a exercer seu poder integralmente. Sendo assim, qualquer decisão a ser tomada no recesso dependerá apenas do ministro Luis Fux, que poderá cassar liminares que considere injustificáveis.


O Estado de S. Paulo: Decisão de Nunes Marques libera 'fichas sujas' a assumirem mandato de prefeitos

Às vésperas do recesso do Judiciário, ministro declarou inconstitucional um trecho da Lei da Ficha Limpa que fazia com que pessoas condenadas por certos crimes ficassem inelegíveis por mais oito anos, após o cumprimento das penas

Breno Pires, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - Uma decisão liminar (provisória) concedida pelo ministro Kassio Nunes Marques, do Supremo Tribunal Federal (STF), livrou o caminho de políticos que concorreram nas eleições municipais de 2020 e saíram vitoriosos, mas tiveram o registro barrado pela Justiça Eleitoral devido à Lei da Ficha Limpa.

Individualmente, às vésperas do recesso do Judiciário, Nunes Marques declarou, no sábado, inconstitucional um trecho da legislação que fazia com que pessoas condenadas por certos crimes ficassem inelegíveis por mais oito anos, após o cumprimento das penas.

A ação foi proposta pelo PDT há apenas cinco dias, contra um trecho da Lei da Ficha Limpa, que antecipou o momento em que políticos devem ficar inelegíveis. Antes da lei, essa punição só começava a valer após o esgotamento de todos os recursos contra a sentença por certos crimes (contra a administração pública, o patrimônio público, o meio ambiente ou a saúde pública, bem como pelos crimes de lavagem de dinheiro e aqueles praticados por organização criminosa).

Com a lei, a punição começou imediatamente após a condenação em segunda instância e atravessa todo o período que vai da condenação até oito anos depois do cumprimento.

O partido apontou que é desproporcional deixar inelegível um político por tanto tempo e alegou ao STF que a punição deveria ser de apenas oito anos a partir do momento que começa a valer a pena, e não durante esse período mais oito anos “após o cumprimento da pena”. Para o partido, deve haver a “detração”, isto é, o tempo da punição deve ser computado desde o momento que ela começa a surtir efeito, ainda que de modo antecipado, e não apenas quando o caso encerra. O ministro Nunes Marques concordou, afirmando que essa condição é um “desprestígio ao princípio da proporcionalidade”.

A decisão de Nunes Marques valerá especificamente para os políticos que ainda estão com o processo de registro de candidatura de 2020 pendentes de julgamento no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e no Supremo. É o caso, por exemplo, do prefeito eleito de Bom Jesus de Goiás, Adair Henriques (DEM), que teve o registro barrado pelo TSE. Condenado por delito contra o patrimônio público em segunda instância em setembro de 2009, ele teve o registro eleitoral para 2020 autorizado pelo Tribunal Regional Eleitoral, mas, no TSE, perdeu.

De acordo com o voto do ministro Edson Fachin, o prazo de oito anos de inelegibilidade deve ser contado a partir de 6 de maio de 2015, data em que foi finalizado o cumprimento da pena aplicada a Adair. O fundamento da decisão é exatamente o trecho da Lei da Ficha Limpa que, agora, o ministro Kassio Nunes Marques declarou inconstitucional.

Além desse caso, advogados eleitorais ouvidos pelo Estadão reservadamente estimam que até cem candidatos que estavam barrados pela justiça eleitoral poderão assumir os mandatos, com base na decisão de Nunes Marques. Três advogados, que preferiram não se identificar nem fazer declarações, disseram à reportagem que têm clientes em situação semelhante e vão acionar o TSE. Os eventuais recursos serão analisados pelo presidente do tribunal, ministro Luís Roberto Barroso.

Integrantes do TSE consultados pela reportagem não comentaram a decisão do ministro Kassio Nunes Marques. Em conversas reservadas, no entanto, alguns ministros disseram que a forma como foi tomada a decisão não foi a mais adequada.

A principal crítica, no meio jurídico eleitoral, é que a decisão modifica as regras da eleição de 2020 após a realização. A situação é incomum. Normalmente, as regras eleitorais só podem ser alteradas faltando um ano para a população ir às urnas. Leis aprovadas pelo Congresso em um prazo de menos de um ano para uma eleição, por exemplo, só valerão para a seguinte.

A liminar do ministro avançou sobre um tema que já havia sido debatido pelo plenário do Supremo Tribunal Federal em 2012, durante julgamento sobre a Lei da Ficha Limpa. Na ocasião, o ministro Luiz Fux, relator da ação, defendeu que o prazo de oito anos começasse a valer a partir do início da punição, e não após o cumprimento da pena. Apesar disso, a proposta enfrentou resistência dos ministros Marco Aurélio Mello e Cármen Lúcia, na ocasião. O plenário, então, entendeu por não modificar o que estava previsto na lei.

Kassio Nunes Marques, no entanto, decidiu não esperar para colocar em votação o caso no plenário do Supremo. Segundo ele, o trecho da lei questionado “parece estar a ensejar, na prática, a criação de nova hipótese de inelegibilidade”. O magistrado justificou a concessão da liminar afirmando que o pedido deve ser atendido imediatamente para não prejudicar quem foi eleito nessas condições. “Impedir a diplomação de candidatos legitimamente eleitos, a um só tempo, vulnera a segurança jurídica imanente ao processo eleitoral em si mesmo, bem como acarreta a indesejável precarização da representação política pertinente aos cargos em análise”. 

Com base na decisão dele, devem cair as decisões da justiça que determinaram a realização de novas eleições para prefeituras, nos casos em que o eleito estava na condição de ficha suja. Apesar disso, ainda pode haver recurso contra a decisão do relator no STF e, da mesma forma, também será necessária a análise do presidente do TSE.

O coordenador-geral da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), Marcelo Weick, elogiou a decisão do ministro Kassio Nunes Marques. “A Lei Complementar 135 (Lei da Ficha Limpa) completou dez anos. Natural que agora se avalie, longe do calor das emoções daquele julgamento das ADCs 29 e 30 (as ações no STF que discutiram a constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa), os excessos e desproporções desta Lei, em especial nesse tormentosa e mal feita redação da alínea ‘e’. Caberá ao plenário do STF, tão logo retomada suas atividades em 2021, enfrentar essa questão que, reiteremos, vem em bom momento. A necessária reflexão desta desproporcionalidade de tratamento entre as inelegibilidade previstas na Lei 135/2010 (Lei da Ficha Limpa)”, disse.

O procurador regional eleitoral do Maranhão, Juraci Guimarães Junior, disse que a decisão afronta ao princípio da igualdade, pois os candidatos que já perderam todos os recursos possíveis não têm mais como apelar ao STF. Ele disse também que a decisão também ofenderia o princípio da anualidade da lei eleitoral. “A alteração do processo eleitoral, por força do art. 16, da Constituição Federal, deve ser feita um ano antes das eleições”, disse.

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Gil Alessi: Do ‘01’ ao ‘04’, Bolsonaro entra na mira do STF por suspeita de blindar seus filhos com a máquina pública

Suspeita de que a Abin produziu relatórios para ajudar a defesa de Flávio Bolsonaro se soma à lista que inclui troca no comando da PF, influência nas eleições do MP do Rio e outras manobras

O presidente Jair Bolsonaro sempre disse ser um “defensor da família”. Com quase dois anos à frente do Governo, transparece a preocupação do mandatário em proteger pelo menos uma delas: a sua própria. A ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, determinou nesta sexta-feira que a Procuradoria-Geral da República investigue a suposta produção de relatórios pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin) com o objetivo de auxiliar a defesa do senador Flávio Bolsonaro, o filho 01 do presidente. O parlamentar é investigado ao lado do seu ex-assessor Fabrício Queiroz por ter supostamente organizado um esquema de rachadinha em seu gabinete à época em que era deputado estadual pelo Rio.

Esta “Abin paralela”, como vem sendo chamada, teria municiado a advogada de Flávio, Luciana Pires, com material a ser usado no caso, segundo reportagem da revista Época. De acordo com a defensora, as orientações teriam vindo diretamente de Alexandre Ramagem, diretor-geral da Abin e homem de confiança de Bolsonaro. Um dos relatórios deixa claro seu objetivo: “Defender FB [Flávio Bolsonaro] no caso Alerj [Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro] demonstrando a nulidade processual resultante de acessos imotivados aos dados fiscais de FB”. A própria Luciana Pires confirma ter recebido o relatório, segundo a reportagem, uma afirmação que contradiz o general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), e a própria Abin, que negaram a produção de material para ajudar o senador. Ramagem confirmou, no entanto, ter participado de reunião com a defesa do parlamentar na qual estiveram presentes o presidente e Heleno. Em nota, a Agência e o GSI afirmam que o encontro foi “completamente regular”.

A repercussão do suposto relatório da Abin incendiou a oposição, que já se articula para protocolar mais um pedido de impeachment do presidente, como afirmou nas redes sociais a presidenta nacional do PT, Gleisi Hoffmann. O Governador do Maranhão, Flávio Dino (PC do B), fez coro à petista: “Caso confirmado, o uso da Abin para interesses exclusivamente pessoais de Bolsonaro não é apenas crime de responsabilidade, sujeito a impeachment. É também crime comum e ato de improbidade administrativa”. Por sua vez, o PSB e a Rede pediram a saída de Ramagem do cargo. No momento, a bola está com o procurador-geral, Augusto Aras, que terá que investigar o caso e prestar contas ao STF sobre suas descobertas.

Caso fique provado que a Abin agiu para ajudar Flávio, será escrito mais um capítulo em uma história de episódios nos quais a atuação do presidente parece borrar a linha que separa os negócios privados do clã e a máquina pública. Do mais velho, o “01”, como Flávio é conhecido, até o “04”, referência a Renan, 22, o mais novo de seus quatro filhos homens, toda a prole de Bolsonaro (com exceção da caçula, Laura) foi afetada por ações do pai. Como o próprio presidente disse: “Pretendo beneficiar filho meu sim, pretendo, se puder dar um filé mignon para o meu filho, eu dou”. Veja as acusações de interferência do mandatário em órgãos públicos para ajudar a família:

A Justiça investiga Flávio, o “01”, e Carlos, o “02”

O suposto envolvimento da Abin para ajudar a defesa de Flávio é apenas o último movimento de um xadrez político que levou o presidente tomar medidas enérgicas para tentar aliviar a pressão sobre o senador e seu irmão, o vereador Carlos Bolsonaro, o filho “02”, que também entrou na mira das autoridades.

Sobre Carlos, pesam várias suspeitas. Uma delas é de peculato, ao empregar em seu gabinete funcionários fantasma. A mais rumorosa, no entanto, é a de que ele poderia ser o articulador de um esquema criminoso de disseminação de fake news. Um inquérito, com investigação da Polícia Federal, corre atualmente no Supremo. Nele, o “02″ é aparece como suspeito de ser líder do chamado “gabinete do ódio”, um grupo de assessores que se encarregam de espalhar mentiras sobre ministros do STF e apoiar manifestações antidemocráticas nas redes sociais e em grupos de apoiadores do presidente, pedindo o fechamento do Congresso e do STF.

Nos últimos meses, a PF desencadeou uma série de operações de busca e apreensão relacionadas a este caso, levando à prisão, inclusive, de influenciadores bolsonaristas. Foi o caso, na própria sexta-feira, do blogueiro Oswaldo Eustáquio. Ele estava em prisão domiciliar, mas descumpriu as restrições definidas pelo STF para ir participar de uma reunião no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, da ministra Damares Alves. A tornozeleira eletrônica denunciou seu deslocamento e ele foi recolhido por determinação do ministro Alexandre de Moraes, relator do inquérito.

Com os dois filhos mais velhos na mira de investigações, o clã presidencial passou para o ataque. O primeiro passo foi articular a troca no comando da Polícia Federal em abril deste ano, com a exoneração do diretor-geral da entidade, o delegado Maurício Valeixo —visto pela mandatário como muito independente. O então ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, denunciou a orquestração: em seu discurso de renúncia, ele acusou o presidente de tentar influenciar politicamente a PF. “O presidente me disse, mais de uma vez, que ele queria ter uma pessoa do contato dele que ele pudesse ligar, que ele pudesse colher informações, colher relatórios de inteligência”, afirmou.

Posteriormente, o ministro demissionário apresentou à TV Globo uma troca de mensagens entre ele e o presidente na qual o mandatário teria sugerido a saída de Valeixo para proteger aliados. Posteriormente vieram à tona imagens de uma reunião ministerial na qual Bolsonaro diz que não esperaria alguém “foder” a família dele, ou amigo, para trocar alguém da “segurança”. A fala do mandatário também fazia referências ao Rio de Janeiro, onde as investigações se aproximam de Flávio e Carlos.

A suposta influência do presidente na chefia da PF para proteger aliados —dentre eles seus filhos— deu origem a um outro inquérito que tramita atualmente no STF para apurar se houve irregularidade. Não há prazo para sua conclusão, e o presidente ainda não foi ouvido.

Em outra frente para tentar blindar Flávio e Carlos, o clã entrou nas eleições para a chefia do Ministério Público do Rio, Estado onde correm investigações contra ambos. O atual procurador-geral, Eduardo Gussem, foi criticado pelo “01” por sua atuação no caso da rachadinha no gabinete. Os Bolsonaro cerraram fileiras em torno do procurador Marcelo Rocha Monteiro, bolsonarista assumido, como uma opção para a lista tríplice, definida em dezembro, de onde é escolhido o nome do próximo procurador-geral de Justiça do Estado. No final, Monteiro foi o quarto mais votado pelos promotores. Agora cabe ao governador interino Cláudio Castro optar por manter a tradição e indicar para a chefia um integrante da lista, ou fazer um aceno ao presidente nomeando o candidato da família para o cargo ―uma opção caso algum dos três integrantes da lista tríplice desista da candidatura.

Publicamente, o presidente alega que estes órgãos estão agindo para prejudicar seus filhos em uma tentativa de atingi-lo —ele chegou até a dizer que se tratava de perseguição política do então governador Wilson Witzel. Agora alvo de processo de impeachment, Witzel buscava se cacifar para disputar o Planalto em 2022, o que justificaria, segundo Bolsonaro, as tentativas de desmoralizar sua família.

Uma embaixada para Eduardo, o “03”

Em julho de 2019 o presidente fez um de seus mais ousados movimentos com o objetivo de colocar nas mãos da família um importante cargo público. Jair afirmou que iria indicar o deputado federal Eduardo Bolsonaro, o “03”, para a vaga de embaixador do Brasil em Washington, uma das mais cobiçadas e prestigiadas representações do país no exterior, tradicionalmente reservada para diplomatas de carreira que se destacam no exercício da função. “Vou nomear, sim. E quem disser que não vai mais votar em mim, lamento”, chegou a afirmar o presidente ao ser questionado sobre a medida. “Eu quero uma pessoa de confiança minha na embaixada dos EUA (...) Vocês acham que eu colocaria um filho meu em um posto de destaque desse para pagar vexame?”, indagou.

A indicação logo começou a fazer água. Sob acusações de nepotismo, parlamentares de oposição e mesmo alguns aliados do presidente começaram a boicotar a nomeação de Eduardo, alegando que ele não seria aprovado na sabatina a que teria que se submeter no Senado antes de ser empossado. A reação da população também desencorajou o Planalto a manter o nome do deputado para a vaga, com 62,8% dos brasileiros se opondo à ascensão do filho do presidente para o novo emprego, segundo uma pesquisa da consultoria Atlas Político. No final de outubro, pouco mais de um mês após o início das articulações em prol do “03” em Washington, o próprio Eduardo tomou a palavra da tribuna da Câmara e anunciou a desistência, alegando que precisava ficar no Brasil para ajudar a manter viva a onda conservadora que o elegeu.

O empreendedorismo de Renan, o “04”

Os negócios do filho caçula se misturaram recentemente com os do Governo, em ações que suscitaram críticas por possível tráfico de influência do presidente. A primeira sinalização de que Renan estava entrando no jogo político político com suacompanhia startup ocorreu em 13 de novembro, quando o caçula articulou e participou de uma reunião entre o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, e um grupo de empresários da Gramazini Granitos e Mármores —companhia que patrocina a Bolsonaro Jr. Eventos e Mídia, fundada pelo caçula e cuja sede fica em um camarote do estádio Mané Garrincha. O compromisso não constava na agenda oficial do ministro e foi revelado pela revista Veja. A Gramazini apresentou a Marinho durante o encontro um projeto de moradias populares feitas em pedra. A pasta informou que Renan “participou na qualidade de ouvinte e por acreditar que o sistema construtivo teria potencial de reduzir custos para a União”, e que a reunião foi um pedido do Planalto.

Mas as relações da empresa de Renan com o Planalto vão além de promover reuniões entre os investidores de seu negócio e ministros. A Astronautas Filmes, produtora de audiovisual que possui contrato milionário com o Governo —tendo feito vídeos para os ministérios da Saúde, Educação e Turismo— realizou gratuitamente a cobertura da festa de inauguração da Bolsonaro Jr. Eventos e Mídia, segundo reportagem do jornal Folha de S.Paulo. O deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP) solicitou à Procuradoria da República que investigue suposto tráfico de influência no caso.

Em nota, a Astronautas Filmes afirma que “a chamada ‘parceria’ com Renan Bolsonaro foi restrita à produção de um único vídeo de lançamento para um projeto social, que tinha como público-alvo empresários da cidade de Brasília. Ressalte-se, a convite dos organizadores do evento. Por se tratar de um público de interesse, optamos por inserir a marca da produtora na comunicação do evento em contrapartida ao produto entregue”. Eles também alegam que não existe nenhum “laço de favorecimento”.


O Estado de S. Paulo: Seguranças da campanha de Bolsonaro foram para Abin

Agentes da Polícia Federal trabalharam com o atual diretor-geral da Abin durante eleição presidencial em 2018

Felipe Frazão e Tânia Monteiro, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - O diretor-geral Alexandre Ramagem levou para a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) ao menos cinco integrantes da Polícia Federal – parte deles envolvidos na segurança do presidente Jair Bolsonaro durante a campanha de 2018. Nos bastidores do órgão, servidores de carreira têm apontado o grupo de Ramagem como os responsáveis por orientar informalmente a defesa do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) no caso das rachadinhas.

Além de Ramagem, no topo da hierarquia está o delegado da PF Carlos Afonso Gonçalves Gomes Coelho. Ele exerce o cargo de secretário de Planejamento e Gestão da Abin e é uma espécie de braço direito de Ramagem.

A exemplo do diretor-geral, Coelho teve uma passagem pelo Palácio do Planalto no início do governo Bolsonaro. Os dois foram assessores especiais na Secretaria de Governo. Ministro à época, o general Carlos Alberto dos Santos Cruz disse que são “profissionais qualificados”, mas que não sabe se “estão sendo mal orientados”. O general diz não se recordar quem o recomendou a Ramagem, mas conhecia Coelho do Ministério da Justiça e Segurança Pública. O delegado fora diretor de Inteligência na Seopi, a Secretaria de Operações Integradas, no governo Michel Temer. Santos Cruz era secretário Nacional de Segurança Pública.

O ex-ministro da Secretaria-Geral da Presidência Gustavo Bebianno, morto em março, denunciou a tentativa de implantar uma espécie de “Abin paralela” no Planalto por parte de Carlos Bolsonaro. Filho do presidente e vereador no Rio pelo Republicanos, Carlos é influente no Planalto e controla as redes sociais do pai. Ramagem tem a confiança dele dos demais irmãos.

Outra delegada da confiança de Ramagem com passagem recente no órgão foi Simone Silva dos Santos Guerra. Ele a escolheu como assessora de Assuntos Internacionais na Abin em agosto do ano passado. Ela, no entanto, não completou um ano na agência. Em junho, retornou à direção executiva da PF, onde exerce o cargo de coordenadora-geral de Cooperação Internacional.

Assim como Ramagem, Simone tem larga experiência com segurança pessoal de autoridades, tendo trabalhado na área na PF e como coordenadora de segurança do Conselho Nacional de Justiça. Em 2018, era a responsável por chefiar cerca de 280 policiais envolvidos na “Operação Presidenciáveis”. Cuidou da segurança de seis candidatos, entre eles Bolsonaro, que sofreu um atentado e passou a ser protegido pela equipe de Ramagem.

Também na Abin estão outros dois agentes que trabalhavam no núcleo que socorreu Bolsonaro na facada em Juiz de Fora (MG). São eles Marcelo Araújo Bormevet, que faz militância virtual e elogia os filhos do presidente nas redes sociais, Flávio Antônio Gomes, atualmente requisitado para assessor a Superintendência da Abin em São Paulo. Mais um agente da PF na Abin é Felipe Arlotta Freitas.

Outros dois ex-guarda-costas de Bolsonaro ganharam cargos de confiança no governo. O papiloscopista João Paulo Dondelli, requisitado no ano passado para a Presidência, e o agente Danilo César Campetti, assessor especial de Nabhan Garcia, secretário de Assuntos Fundiários e elo do presidente com os ruralistas.

Abin nega que diretor tenha feito relatório a senador

Em nota, a Abin nega o envolvimento de seus diretores com orientação à defesa de Flávio. A agência afirma que “nenhum relatório foi produzido com tema, assunto, texto ou o título exposto, tampouco a forma e o conteúdo dispostos correspondem a relatórios confeccionados na Abin”. A agência alega que os textos encaminhados pelo do WhatsApp foram “mal redigidos, com linguajar atécnico e sem relação com a atividade de Inteligência”.

“Nenhum documento, relatório ou informe de defesa em processo criminal foi transmitido por qualquer meio a parlamentar federal”, afirma a nota da assessoria da Abin. “A imputação por qualquer pessoa de vinculação dos supostos relatórios à Abin ou ao diretor-geral é equivocada ou deliberadamente realizada para desacreditar uma instituição de Estado”, completa.

Defesa de Flávio tenta provar irregularidade na Receita

Estadão consultou as mensagens de aconselhamento encaminhadas ao senador por Ramagem, segundo relatou à revista Época a advogada Luciana Pires. Defensora de Flávio, ela tenta provar que o filho do presidente teria sido investigado ilegalmente em órgãos do governo, como a Receita Federal. Procurada pela reportagem, ela não se manifestou.

O clima na Abin é de desconfiança e tensão. Oficiais e agentes de inteligência, a carreira de Estado, manifestam preocupação com a repercussão do caso e possíveis investigações, como uma Comissão Parlamentar de Inquérito, que pode enfraquecer a imagem da instituição - e não só Ramagem.

Reservadamente, eles relatam que os policiais federais formam um feudo na agência, trabalham em grupos fechados, em volta do Ramagem e Bormevet. Por natureza, as apurações de inteligência são compartimentadas – um agente não costuma compartilhar com outros suas tarefas – o que dificulta que eles colham evidências de quem de fato fez o que.


Ascânio Seleme: Quem vai pagar a conta?

Custos serão altos, mas ainda mais grave é o número assustador de mortes que a doença continuará produzindo, por causa e entre os negacionistas

Não se preocupe, se você se vacinar direitinho, tomar as duas doses como recomendado, não vai ser infectado por negacionistas, seja um vizinho, um parente, um amigo ou um desconhecido com quem esbarrar na rua. Você estará imune. Do ponto de vista da sua saúde ou da sua família, não precisa fazer mais nada, embora seja conveniente manter o uso de máscaras por ainda algum tempo. Também não custa nada lavar sempre as mãos com bastante água e sabão. Seu problema será outro e terá natureza financeira. Você vai solidariamente pagar a conta que os que se negaram a tomar a vacina contra a Covid acabarão gerando para os cofres públicos. E ela não será pequena.

Imagine o cenário final, pós-vacinação. Neste momento, 46 milhões de brasileiros, ou 22% da população, não estarão imunizados e continuarão a exercer pressão sobre a rede pública de saúde. Se hoje os leitos dos hospitais estão quase 100% ocupados por pacientes com Covid, no futuro terão 22% da sua capacidade tomada por pessoas infectadas por uma doença que poderia ser evitada. Quem vai pagar esta conta? Você e eu. Na verdade, este volume pode ser maior, se os planos de saúde corretamente se recusarem a pagar internações hospitalares e remédios de quem se recusou a se vacinar. Se a doença era evitável, os planos vão recorrer e os pacientes com planos poderão acabar na rede pública.

Se a Justiça acabar obrigando os planos de saúde a pagar as contas dos negacionistas, o que sempre é possível, mesmo assim você e eu arcaremos com um custo adicional. Ninguém aqui é bobo, claro que os planos repassarão a conta para toda a sua clientela. Nós.

Haverá ainda outros custos indiretos gerados pelos negacionistas mas que serão arcados por nós. Primeiro, calcule o impacto que terão sobre a cadeia produtiva quando o mundo voltar ao normal. Se uma gripezinha de influenza afasta uma pessoa por dois ou três dias do trabalho, uma infecção pela Convid pode tirar o funcionário por até 14 dias da linha de produção, quando não o afastar definitivamente. Isso tem um custo que as empresas pagam e repassam aos preços dos produtos e serviços que você e eu iremos consumir.

Os não vacinados vão também compor uma nova estatística de morbidade no Brasil. Com a vida de volta ao normal, os 22% de não vacinados serão eventualmente contaminados e muitos vão morrer. Aos números. Mantida a média de 1.000 óbitos por dia, morrerão então 220 negacionistas a cada 24 horas. Em um ano, serão 80 mil. Mais do que os 12 mil que falecem a cada ano por câncer de próstata ou mama, os 44 mil que morrem em razão de doenças hipertensivas ou os 54 mil que são acometidos de diabetes. Trata-se de índice igual ao de mortes por infarto, que também somam 80 mil por ano.

Sim, há os que já foram infectados e dizem que não vão se vacinar porque já têm anticorpos, como afirma o magnífico Jair Bolsonaro. Estes ignoram a potencialidade da reinfecção ou o surgimento de cepas diferentes que podem lhes acometer. Vejam o caso da gripe influenza, que já exige quatro vacinas diferentes para ser obstruída. Na rede pública, as vacinas aplicadas são as trivalentes, que imunizam contra até três variações da doença. Na rede privada já estão sendo aplicadas as tetravalentes.

Claro que os custos serão altos, mas ainda mais grave é o número assustador de mortes que a doença continuará produzindo depois da vacinação em massa, por causa e entre os negacionistas. E elas ocorrerão por todos os lados, mas serão maiores nos grotões bolsonaristas. São os seguidores fiéis de Sua Excelência que mais se rebelam contra a vacina. Seguem o líder cegamente, como ratos ao flautista de Hamelin, mesmo que seja em direção ao hospital ou ao cemitério.

Rebanho

O que vai acontecer com aqueles que se recusarem a ser vacinados? Certamente perderão alguns direitos, como o de frequentar escolas, academias e clubes. Devem também perder o acesso a bolsas e outros auxílios oficiais, o direito de participar de concursos públicos e de votar. Podem ainda ser proibidos de viajar de avião e ônibus. E também não serão imunizados. Serão apenas parte do rebanho.

Eles erram

Presidentes erram. Sarney errou na economia, mas foi o presidente que avalizou a reabertura democrática. Collor errou ao confiscar a poupança dos brasileiros e ao permitir que seu contador PC Farias trocasse influência por dinheiro, muito dinheiro. Mas é verdade também que abriu a economia brasileira para o mundo. Fernando Henrique errou ao fazer aprovar o instituto da reeleição, mas estabilizou a moeda nacional. Lula deixou seu governo e seu partido se corromperem, mas distribuiu renda como nenhum dos seus antecessores. Dilma errou feio na economia e ao tentar falsear seus resultados acabou afastada. Bolsonaro erra como jamais se viu. Erra no atacado, desde o primeiro dia de seu mandato e em todas as frentes. Como Dilma, e ao contrário de seus antecessores, não deixou até aqui qualquer legado.

Falando em Collor

O governo de Jair Bolsonaro mergulhou de corpo e alma na política de negociação de cargos por apoio político. Um dos membros da tropa de choque de Fernando Collor no Congresso, o deputado Ricardo Fiuza, batizou este tipo de operação com um trecho da Oração de São Francisco: “É dando que se recebe”. Uma prática comum na política nacional ganhava um apelido. Fiuzão, que era um conhecido “caneleiro”, morreu em 2005, mas sua criação sobreviveu. Hoje, o capitão dá cargos para receber em troca votos para o deputado Arthur Lira (desvio de dinheiro público, enriquecimento ilícito, rachadinhas, violência doméstica) na sucessão da Câmara. E, para não perder a coerência, Bolsonaro mantém Roberto Jefferson, o segundo líder da velha tropa de choque de Collor, como seu brucutu de plantão.

Extrapolei

Foi engraçado ver Bolsonaro tentando representar o papel de estadista, que se desculpa com o país quando erra. Na cerimônia de divulgação do plano (?) de vacinação, o capitão disse que se alguém extrapolou foi na busca de resultados. Uma piada. A frase deveria ser lida assim: “Se algum de nós extrapolei ou até exagerei, foi no afã de buscar solução”. O pior é que mesmo que tivesse sido franco, o presidente não teria sido honesto. Ele exagerou e extrapolou por outras razões, você sabe, não porque queria encontrar saídas.

E há o Rio

No Brasil, vices seguidamente ocupam o posto principal pelo impeachment, a desincompatibilização ou a morte do titular. Em alguns casos tivemos sorte. Itamar Franco, por exemplo, substituiu Fernando Collor e devolveu dignidade ao cargo. Em São Paulo, Bruno Covas era vice de João Doria, assumiu a prefeitura e fez uma boa gestão, a ponto de ser reeleito. Há outros exemplos no país. E há o Rio. Por aqui, parece que não tem remédio. O governador em exercício Cláudio Castro fica melhor quando não fala, ou quando não faz nada. Esta semana ele quis fazer alguma coisa e falou. Foi uma calamidade. Num discurso ao lado do zero das rachadinhas, Castro disse para quem quisesse ouvir: “Eu confio no general Pazuello”. Pasmem, há alguém que confia no general. E acrescentou: “Não é fazendo politicagem com a saúde que vamos sair dessa”. Embora seja o presidente quem faz politicagem rasteira com o vírus, o recado de Castro era para seu colega João Doria. Puxou tanto o saco do governo Bolsonaro que até mesmo o zerinho que ouvia tudo calado não conseguiu esconder seu constrangimento.

Mais mortes

Um estudo feito pelo jornal The New York Times mostra que o crescimento do número de mortes por Covid é maior em cidades universitárias depois do retorno das aulas presenciais. A pesquisa do NYT foi feita em 203 cidades cuja população estudantil é maior do que 10% do total. Também cresceu exponencialmente o número de infectados nestas localidades, bem acima da média nacional. No Rio, as aulas nas escolas públicas estaduais voltam em janeiro. Em São Paulo, as escolas estaduais funcionam com até 35% da sua capacidade desde setembro. Doria anunciou que começará a vacinar em janeiro. Aqui, vacinação só em fevereiro, março, sei lá, já que Claudio Castro diz que vai seguir seu líder, o general paradão.

Assédio

O assédio do deputado Fernando Cury à deputada Isa Penna é uma demonstração absurdamente explícita do desrespeito e do abuso. Como pôde o deputado imaginar que podia se esfregar assim numa mulher sem o seu consentimento e que não aconteceria nada? Ainda mais em se tratando de uma parlamentar do PSOL, partido conhecido por sua constante luta contra este tipo de abuso. O partido de Marielle Franco, convenhamos. E, depois, o local do assédio era o plenário da Assembleia Legislativa de SP, local monitorado por câmeras o tempo todo. Cury deve ser punido por importunação sexual, falta de decoro e burrice atroz.


Ricardo Noblat: O dia em que auxiliares de Bolsonaro se ocuparam em corrigi-lo

Vexame!

Na última quinta-feira à noite, depois de amargar uma série de derrotas no Supremo Tribunal Federal e no Congresso, o presidente Jair Bolsonaro aproveitou sua live semanal no Facebook para responder aos seus seguidores nas redes sociais que cobravam o pagamento da 13ª parcela do Bolsa Família como ele prometeu na campanha eleitoral de 2018.

E o que ele disse logo se espalhou com cheiro de queimado entre os principais ministros do governo. Bolsonaro culpou o deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara, por ter deixado caducar a Medida Provisória que garantia o pagamento este ano. Para variar, mentiu. Foi a pedido dele que a Medida Provisória deixou de ser votada. Faltou dinheiro para honrar o compromisso.

Maia reagiu chamando Bolsonaro de mentiroso e anunciou que no dia seguinte poria a Medida Provisória em votação. Tocou o Deus nos acuda dentro do governo. E a fórmula encontrada para reparar o estrago foi escalar auxiliares do presidente para corrigi-lo. Em entrevista coletiva, a pretexto de fazer um balanço do ano, o ministro Paulo Guedes, da Economia, admitiu:

– Sou obrigado, contra minha vontade, a recomendar que não seja dado o 13º do Bolsa Família. É lamentável, mas precisamos escolher entre um crime de responsabilidade [que seria o pagamento da 13ª parcela] e a lei [de responsabilidade fiscal que pune a realização de gastos sem previsão no Orçamento].

Enquanto o general Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria do Governo, disparava telefonemas para líderes de partidos insatisfeitos com o que dissera Bolsonaro, o deputado Ricardo Barros, líder do governo, reconhecia nas redes sociais que tudo não passara de um mal entendido do presidente da República. Mais tarde renovou o pedido de desculpas em discurso na Câmara.

O dia ainda não tinha terminado. Na contramão do discurso oficial do governo, o secretário especial de Comércio Exterior e Assuntos Internacionais do Ministério da Economia, Roberto Fendt, em evento virtual da Sociedade Nacional de Agricultura, afirmou que o Brasil nada ganhou com os acordos comerciais assinados recentemente com os Estados Unidos

“Se me prometerem que não vão contar ao presidente (Jair Bolsonaro) o que vou contar agora… Mas o protocolo é bom para eles [EUA]”, observou Fendt. “Não ganhamos nada com a aproximação com o presidente Donald Trump.” E repetiu: “Celebrou-se abertura de linha crédito nos EUA. Para quem? Para os exportadores americanos. Ganhamos muito pouco”.

Bastou por aí? Não. Bolsonaro criticou a decisão do Supremo Tribunal Federal de tornar obrigatória a vacinação em massa contra a Covid-19 e de impor restrições a pessoas que não quisessem se vacinar. Garantiu que o governo federal não imporia nenhuma restrição. Porém, em entrevista ao STB, o general Eduardo Pazuello, ministro da Saúde, disse o contrário:

– É uma decisão [a do Supremo] que vejo com muita naturalidade, porque já estava previsto por lei. Só está sendo ratificada e define o que o Ministério da Saúde vai dizer… Cabe a nós colocar quais são essas restrições. Então é uma coisa natural, isso será avaliado. Claro que não é uma obrigação forçada, ninguém vai tirar você da sua casa para vacinar. Ficou claro essa posição.

Bolsonaro disse que não haveria vacinas para todos. Pazuello disse:

– Existe um cronograma. Dentro de um cronograma será disponibilizada para todos […] Chegando ao final de um cronograma, considerando aí as entregas dos laboratórios, as produções nacionais, os registros da Anvisa, a logística como um todo, ao final nós teremos disponibilizado a todas as pessoas do nosso país, de forma gratuita, universal e igualitária.

Em tempo: embora tenha contraído o vírus e se recuperado, Pazuello antecipou que irá se vacinar, sim. Bolsonaro foi vítima do vírus, mas nega que tomará a vacina. Confia na sua saúde de atleta.


Merval Pereira: Com a boca na botija

 “Prevaricação, advocacia administrativa, violação de sigilo funcional, crime de responsabilidade e improbidade administrativa”. Essa é a lista de crimes e ações administrativas ilegais que o suposto auxílio da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) à defesa do senador Flavio Bolsonaro, filho do presidente da República, pode acarretar, na opinião da ministra do Supremo Tribunal Federal (STF), Carmem Lúcia, que mandou que o Procurador-Geral da República, Augusto Aras, saísse de sua inércia para investigar o caso.

Aras havia considerado “grave” a denúncia do repórter Guilherme Amado, da revista Época, confirmada por outros órgãos de imprensa, mas disse que não era possível tomar providências, pois não havia provas. Foi o que a ministra Carmem Lucia mandou que fizesse: investigar para tentar descobrir tais provas, ou demonstrar que a denúncia é inepta.

A situação é muito grave, as próprias advogadas de defesa do senador Flavio confirmaram que receberam dois relatórios sobre como atuar na tentativa de invalidar as provas conseguidas pelo Ministério Público do Rio sobre a “rachadinha” no gabinete de Flavio da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, coordenada pelo notório Fabricio Queiroz.

Elas alegam que não seguiram nenhuma das sugestões, pois estariam fora de sua capacidade de intervenção. Da mesma maneira que o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), General Augusto Heleno, admitiu que participou de uma reunião no gabinete do presidente Bolsonaro no Palácio do Planalto, ao lado do diretor-geral da Abin, delegado Alexandre Ramagem, e das advogadas de Flávio Bolsonaro para tratar do assunto.

Segundo Heleno, como o assunto não dizia respeito à segurança institucional, como achava anteriormente, mandou que não se fizesse nada. O General Heleno e o delegado Ramagem, assim como as advogadas do senador Flavio, agiram como o ex-presidente dos Estados Unidos Bill Clinton, que admitiu que fumou maconha, mas garantiu que não tragou.

De acordo com a revista eletrônica Crusoé, os relatórios partiram do delegado Marcelo Bormevet, apelidado de “homem do capitão” devido à proximidade com Jair Bolsonaro desde que participou, com Ramagem, da segurança pessoal do então candidato eleito. Uma reunião com órgãos de inteligência governamental para tratar de problemas legais do filho do presidente é, no mínimo, desvio de finalidade e improbidade administrativa.

Um dos documentos, conseguido pela Época e confirmados por outras publicações, tinha um título explícito: "defender FB [Flávio Bolsonaro] no caso Alerj, demonstrando a nulidade processual resultante de acessos imotivados aos dados fiscais de FB". A sugestão que as advogadas comentam que estava fora de seus controles se referia à substituição de "postos", provavelmente da Receita Federal, lembrando que desde 2019 haviam sugerido esse procedimento: "Permanece o entendimento de que a melhor linha de ação para tratar o assunto FB e principalmente o interesse público é substituir os postos conforme relatório anterior.

Se a sugestão de 2019 tivesse sido adotada, nada disso estaria acontecendo, todos os envolvidos teriam sido trocados com pouca repercussão em processo interno na RFB [Receita Federal]".

As investigações do Procurador-Geral Augusto Aras não serão difíceis. Basta que ele requisite às advogadas cópias dos relatórios que elas confirmam ter recebido. A gravidade da situação já levou a que a palavra “impeachment” volte a circular no Congresso, e deu tons mais dramáticos à sucessão da presidência da Câmara dos Deputados, que é quem dá início a um processo desse tipo. O atual presidente, Rodrigo Maia, tem mais de 30 pedidos de abertura do processo de impeachment contra o presidente, nenhum tão grave e consubstanciado quanto este, que o futuro presidente da Câmara terá certamente que avaliar.


Eliane Cantanhêde: Aos trancos e barrancos

Bolsonaro é Bolsonaro, mas o STF e as instituições sabem defender o Brasil. Até dele

A vacinação contra a covid-19 preserva vidas, é um direito e uma obrigação coletiva e “não permite demagogia, hipocrisia, ideologias, obscurantismo, disputas político eleitoreiras e, principalmente, não permite ignorância”. Essa enxurrada de bom senso, que serve como uma verdadeira aula para todos e cada um, foi dada ontem pelo ministro Alexandre de Moraes, em mais um julgamento memorável do Supremo nesses nossos tempos tão sombrios, às vezes macabros.

Na votação a favor da vacina obrigatória, por bem ou por mal, Moraes mandou um claro recado ao presidente, ao ministro da Saúde, a governadores, prefeitos e seguidores desses lunáticos de internet que são contra vacinas, especialmente contra a “vacina da China”. Isso começa “de cima”, quando o presidente Jair Bolsonaro, não satisfeito em guerrear contra isolamento social, máscaras e “maricas”, declara: “Não vou tomar a vacina. Ponto final”.

Quantos, por ideologia ou ignorância, não acataram o grito de guerra do presidente contra as vacinas? Quantos, por se acharem “de direita”, sendo simplesmente burros, não começaram a ver demônios e “interesses geopolíticos” na Coronavac, chamada de “vacina da China” ou “do Doria” por Bolsonaro? Assim como isolamento e máscaras eram as únicas saídas para escapar do vírus e reduzir a contaminação, as vacinas são o único instrumento científico capaz de salvar vidas, trazer de volta a normalidade, os negócios e os empregos. Bolsonaro atacou aqueles, tentou combater estes.

As instituições, porém, salvam o País e o Supremo, que erra no varejo, nas brigas comezinhas, acerta no atacado, na defesa da democracia e da racionalidade. Foi assim contra golpistas, extremistas e fake news e quando decidiu que governadores e prefeitos não estariam sujeitos às maluquices de Bolsonaro na pandemia. E é assim, agora, ao permitir que União, Estados e municípios garantam, direta ou indiretamente, a obrigatoriedade da vacina. E que os pais sejam obrigados a imunizar seus filhos.

A decisão do Supremo – com o voto contrário, ora, ora, de Kassio Nunes – é um tanto confusa: o que é vacina obrigatória, mas não forçada? A melhor explicação é que ninguém vai ser puxado pelos cabelos ou “sofrer condução coercitiva” para se vacinar, como disse o procurador-geral, Augusto Aras, mas aqueles que se recusarem a fazê-lo sabem que vão sofrer as consequências.

Na prática, o Supremo autoriza empresas públicas e privadas, escolas e supermercados, cinemas e companhias aéreas, por exemplo, a recusarem funcionários e clientes que não sejam vacinados. Se você não toma vacina contra a febre amarela, é proibido de viajar a vários países. Se não tomar contra a covid-19, poderá sofrer sanções diferentes formas. Logo, onde se lê que o Supremo determinou a “obrigatoriedade”, leia-se que criou “mecanismos indutores” para a vacinação.

E para que tudo isso? Para, mais uma vez, botar o pé na porta e impedir, ou prevenir, arroubos insanos do presidente e do seu governo contra os interesses e os direitos à vida e à saúde da Nação. Assim como não se ouve falar mais em manifestação e convocações golpistas pela internet, o presidente mudou o tom, o tal ministro da Saúde foi obrigado a agir.

Aos trancos e barrancos, o governo lançou um plano nacional de vacinação e uma medida provisória para liberar R$ 20 bilhões, encomendou vacinas, engoliu a do Butantã (de origem chinesa), reincluiu os presos entre os prioritários e até convocou o Zé Gotinha. Bem, nenhuma das vacinas é por gotinhas, mas deixa para lá... O importante é que Bolsonaro continua sendo Bolsonaro, irrita, cansa, ameaça, desperdiça tempo, mas é obrigado a recuar e se render à realidade. Apesar dos pesares, o Brasil sabe se defender. Inclusive dele.


Fernando Abrucio: Um 2021 a favor da vida

A mudança política nos EUA e na União Europeia, com o enfraquecimento da extrema-direita, e a ascensão de novos líderes vão colocar uma nova agenda nos próximos anos

Ao refletir sobre 2020 e imaginar como pode ser 2021, um verso não sai da minha cabeça: “Ano passado eu morri, mas nesse ano eu não morro”. A canção é de Belchior (“Sujeito de Zorte”) e reapareceu gravada recentemente por Emicida, numa belíssima parceria com Pablo Vittar e Majur. Não há nada mais atual para definir o que passamos nos últimos meses, marcados pela desesperança e pela morte, e a chance que temos de mudar esse cenário, abrindo as portas a favor da vida. Muitos sinais mostram que o mundo pode trilhar esse caminho, mas no Brasil a escolha pela vida ou pela morte, num sentido literal e num plano mais amplo, ainda não foi feita pelo governo Bolsonaro.

A principal causa da desesperança que marcou 2020 foi a pandemia. Já houve mais de 70 milhões de casos em todo o mundo e quase um milhão e setecentas mil mortes. São números de guerra. A covid-19, no entanto, não só foi uma arma de destruição em massa. A doença foi além disso, tendo dois outros importantes efeitos.

O primeiro ocorreu nas principais organizações e formas de sociabilidade contemporâneas, como escolas, empresas e a própria vida social dos indivíduos e famílias. Nada funcionou como antes e tivemos de nos adaptar. Só que no final das contas ninguém mais quer ficar neste mundo pandêmico, com milhões de reuniões e aulas por videoconferência, precarização do trabalho e afastamento das pessoas queridas. Quase todos estão gritando: “Tragam meu mundo de volta!”

Junto com esse efeito negativo da pandemia na vida de cada um e nas principais organizações contemporâneas, a desgraça trouxe reflexão. Isso porque os problemas trazidos pela covid-19 escancararam temas que a humanidade tinha jogado para debaixo do tapete. A mudança política nos EUA, com a eleição de Biden, e na União Europeia, com o enfraquecimento da extrema-direita, além da ascensão de novos líderes sociais, vão gerar uma nova agenda para os próximos anos. O Brasil precisa prestar a atenção a esse processo, para não perder o trem da história.

Destacaria cinco temas que serão colocados no centro da agenda na maior parte do mundo a partir de 2021: a revalorização da ciência, a questão ambiental vista como emergencial, a busca de soluções humanizadoras para as organizações, a preocupação com a desigualdade em suas múltiplas dimensões e, por fim, a luta para reconfigurar a comunicação de massas, dominada hoje por redes sociais polarizadas e muito influenciadas pela lógica das “fake news”. O crescimento da importância de tais temáticas não quer dizer que haverá soluções para tudo no curto prazo, pois haverá muitos conflitos e dificuldades no processo político. Todavia, os grupos defensores dessas mudanças vão ganhar força e o clima de opinião irá mudar substancialmente.

A revalorização da ciência é filha direta da esperança com as vacinas contra a covid-19. No momento, há uma discussão inútil sobre a obrigatoriedade da vacinação. Ora, se mais gente for imunizada e ficar livre da doença, surgirão barreiras contra os que não se vacinarem. Países fecharão as suas portas para os estrangeiros não vacinados e o mesmo será feito por empresas multinacionais, com o argumento de resguardar a saúde coletiva de seus funcionários. E o sucesso nem precisa ser de 100% porque muita gente morreu com a pandemia. Isso não será esquecido. Quem tem dúvida, veja o que a história diz de outras epidemias famosas.

Uma vitória científica como essa pode afetar profundamente o negacionismo. Como consequência, será alavancado um segundo tema ao centro da agenda: a questão ambiental. Empresas, consumidores e governos em quase todo o mundo vão bater de frente contra aqueles que desdenham da mudança climática, que insistem em manter padrões que não são ambientalmente sustentáveis e que defendem atividades econômicas atrasadas, que destroem a natureza, afetando nosso futuro no planeta. Cabe frisar que as soluções nesse campo demandam um certo tempo, porém, quem fugir da cartilha básica será punido internacionalmente, especialmente no campo econômico. E isso ocorrerá mais cedo do que se imagina.

A pandemia realçou o lado sombrio de várias organizações e modos de vida atuais. A morte de tanta gente, combinada com a dificuldade de sobrevivência econômica ou psíquica de boa parte da humanidade, colocou uma palavra no topo do dicionário contemporâneo: empatia. Daí que, como terceira temática que vai crescer na agenda pública, empresas, escolas e governos vão ser pressionados a levar mais em conta os aspectos humanos. A educação, por exemplo, precisa ser vista como um processo fundamental para garantir o aprendizado de conhecimentos básicos a crianças e jovens, mas é muito mais do que isso. Ela é responsável pela formação de boa parte da personalidade de cada um e da noção de coletividade que vigora numa comunidade ou num país. As escolas nutrem nossos sonhos para a vida adulta. Educar é formar seres humanos melhores, desenvolver seus talentos e fazê-los entender que o outro é a coisa mais fantástica da vida.

O maior obstáculo da transformação humanística está no mundo empresarial, pois a lógica econômica atual ainda privilegia o individualismo exacerbado. Não obstante, muitas empresas começam a mudar seus processos seletivos para captar gente com habilidades socioemocionais mais favoráveis ao trabalho em equipe e à consciência social. Além disso, as pessoas como consumidoras e cidadãs vão exigir cada vez mais uma postura diferente de quem lhe vende bens e serviços. Por essa razão, assuntos como responsabilidade social e diversidade do corpo de funcionários vão ser alavancas para ganhar mercado.

A pressão pela maior humanização da sociedade contemporânea virá certamente de uma herança da pandemia: aumentou a percepção das múltiplas formas de desigualdade. Foi graças a políticas públicas como sistemas de saúde públicos e do trabalho de abnegados profissionais da educação, da segurança pública e assistência social que as mortes e calamidades produzidas pela covid-19 não foram maiores. No mesmo momento histórico, injustiças causadas contra negros e mulheres em várias partes do mundo mobilizaram milhões de pessoas em torno de um não rotundo contra a ordem desigual atual.

Essa quarta temática vai gerar muitos conflitos, mas já ganhou um lugar especial na agenda pública. Que os bilionários dividam mais suas riquezas, que a justiça não tenha mais cor nem gênero, que todos possam ter acessos a oportunidades mais iguais (afinal, como disse antes, a boa educação deve ser uma fábrica de sonhos), que a diversidade nos faça melhores como seres humanos. Para quem acha que essa pauta é muito utópica, pergunte aos jovens atuais o que eles pensam. Você irá se surpreender.

A agenda transformadora em favor de mais vida para todos tem um último elemento que é a batalha da comunicação. A internet produziu, inegavelmente, maior acesso à informação e aproximação de pessoas em várias partes no mundo. Contudo, essa mesma fonte emancipadora gerou redes sociais marcadas pela polarização política e pela expansão da mentira pública como estratégia política. Como remédios a esse mundo distópico, devemos alimentar a tolerância, a capacidade de ouvir o outro, de respeitar e aprender com a discordância. Ademais, só há democracia quando os fatos públicos se guiam por uma noção de transparência e verdade. Ou seja, é possível ter opiniões diferentes, mas a realidade factual não pode ser tão ampla que fuja de critérios mínimos de veracidade.

E como ficará o Brasil quando toda essa agenda estiver sendo puxada para o centro do debate em 2021? Por ora, o que se pode dizer que o governo Bolsonaro optou, nos últimos dois anos, pela destruição e pela desesperança como bussolas de sua ação. Isso antes da pandemia, quando se defendia que a solução para os problemas do país passava por armar a população, pela ocupação econômica desenfreada da Amazônia, por desprezar políticas a favor das minorias ou dos mais pobres e pela disseminação criminosa de mentiras contra os adversários e as instituições.

O pior de tudo é que o bolsonarismo não aprendeu muito com o espelho de problemas que nos estão sendo apresentados pela covid-19. Ao contrário, fechou os olhos para a profusão de mortes e lutou incansavelmente contra a ciência. É por essa razão que ninguém tem certeza se teremos, o mais rápido possível, vacinas suficientes para salvar pessoas, recuperar a economia e trazer de volta nossa vida em sociedade. Mas esse cenário pode ser transformado pela construção de uma nova agenda, antenada com as mudanças internacionais que vão sacudir o mundo nos próximos anos.

Inaugurar um novo ano marcado pela defesa da vida no Brasil, entretanto, vai além de ser contra o governo Bolsonaro. É preciso que a sociedade brasileira e suas elites se incomodem com a morte cotidiana não só dos atingidos pela covid-19, mas também por aqueles majoritariamente jovens, negros e pobres que morrem numa quantidade absurda, ano após ano. Segundo o Fórum Nacional de Segurança Pública, policiais mataram 2.215 meninos e meninas entre 2017 e 2019, o que representa mais de duas crianças ou jovens por dia. Desejar um Ano Novo melhor significa dizer aos brasileiros: tenham vergonha dessa carnificina e assim estaremos dando o primeiro passo para transformar o país.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.


Vinicius Torres Freire: Sem vacina, com mil mortos por dia, Brasil afunda no desgoverno do anticristão

Estados e STF improvisam governo da vacina, Congresso está em pane, Bolsonaro avança

 “O mercenário, que não é pastor, a quem não pertencem as ovelhas, vê o lobo aproximar-se, abandona as ovelhas e foge, e o lobo as arrebata e dispersa, porque ele é mercenário e não se importa com as ovelhas”. Está no Evangelho de João, aquele que Jair Bolsonaro cita de modo blasfemo, como se fora um clichê mundano, sem entender o que quer dizer “a verdade vos libertará”, se é que leu o texto, que de qualquer modo não entendeu, dada a sua grosseria moral e intelectual.

No início da epidemia, esse homem não apenas abandonou os brasileiros a seu próprio azar, mas sabotou os esforços de quem se bateu para não entregar as pessoas ao lobo da praga. Outra vez agora, o que restou de decência e razão no país se organiza a fim de vacinar o povo, proteger as pessoas que trabalham nos hospitais e salvar da morte pelo menos os nossos avós, de início.

A maioria dos governadores, prefeitos e o Supremo Tribunal Federal tentam improvisar um governo nacional pelo menos no que diz respeito à emergência da saúde. A desgraça recrudesceu, as mortes outra vez passam das mil por dia. É possível que entre o Ano Novo e o que alguns cristãos chamam da festa de Reis, 6 de janeiro, pelo menos 200 mil brasileiros tenham morrido de Covid-19. Em São Paulo, as internações e mortes aumentaram na casa de 60% desde o início de novembro.

A iniciativa de criar ao menos um governo para as vacinas é um arranjo precário, o que se tenta salvar do incêndio. Para piorar, o Congresso ou pelo menos o arranjo que continha os piores arreganhos de Bolsonaro está em pane. O Parlamento pode cair sob seu controle ou influência maior na eleição de fevereiro para os comandos da Casa. Uma perna do sistema de governo improvisado para limitar a destruição bolsonarista está para ser cortada. Bolsonaro, pois, ganha força para tocar seu projeto de destruição. É o anticristão, em todos os sentidos da palavra, no aumentativo do substantivo e no adjetivo.

O mercenário outra vez sabota o trabalho de quem quer proteger as pessoas da morte, desmoralizando a vacinação, disseminando dúvidas sem fundamento de modo a alimentar o desvario que é sua razão de ser e poder. Faz assim com qualquer instituição ou ideia racional. Tenta desmoralizar as eleições, imitando Donald Trump feito um sabujo rábico. Nega e estimula a destruição do ambiente, até agora o projeto mais bem-sucedido. Difunde a ideia de que o morticínio também pelas armas de fogo é uma solução para o problema da violência. Não são abstrações, são suas medidas ou propagandas mais recentes.

No submundo em que vive, tenta manipular com cada vez mais afinco os órgãos de polícia e fiscalização (como a Receita). Espalha agentes da Abin pelos ministérios. Depois de ser obrigado a parar com os comícios golpistas, toca seu projeto de destruição de modo mais insidioso.

Se o Congresso cair sob a influência de Bolsonaro, será pior. Mesmo a fantasia de “reformas” escorre pela vala suja. O capitão da extrema direita jamais se importou com isso. A fim de atacar João Doria, negou até privatização de um entreposto federal de alimentos, a Ceagesp.

Sem governo e com o Congresso em pane, não haverá socorro para os milhões que cairão em pobreza ainda maior com o fim dos auxílios. Não há plano de recuperação econômica em geral, nem mesmo para as contas do governo, “ajuste” que para os donos do dinheiro grosso justificou a eleição do capitão da extrema direita, o mercenário de João, que passeia pelo Brasil dizendo baixezas e mentiras com seu esgar demoníaco.


Reinaldo Azevedo: A democracia brasileira precisa aprender a punir a barbárie

Espero que Bolsonaro e Pazuello, mesmo fora do cargo, respondam por improbidade

Enquanto escrevo nesta quinta a coluna que você lê agora, o precioso tempo dos ministros do Supremo Tribunal Federal é consumido numa questão já pacificada na Constituição, na legislação ordinária e numa portaria do ministério da Saúde: a compulsoriedade da vacina. Por compulsória, os recalcitrantes sem causa, que não uma injustificada obstinação, têm de arcar com as consequências de sua resistência.

Não se aplica a vacina à força, escreveu o ministro Ricardo Lewandowski, relator de duas ações diretas de inconstitucionalidade, num voto impecável. Mas é legítimo que o Estado casse benefícios ou crie restrições de circulação a quem decidir se apartar da imunização desde que isso esteja previsto em lei.

Ao ler o voto do ministro na quarta à noite, uma música de protesto começou a soar aos meus ouvidos, vinda lá de 1969, ano seguinte à decretação do AI-5: "E na gente deu o hábito/ De caminhar pelas trevas/ De murmurar entre as pregas/ De tirar leite das pedras/ De ver o tempo correr".

É trecho de "Rosa dos Ventos", de Chico Buarque, que deu nome a um show de Maria Bethânia, com direito a LP, em 1971. Tudo muito antigo. Santo Deus! Não é possível que, 50 anos depois, estejamos aqui a caçar metáforas nas trevas, entre as pregas, nas pedras, vendo o tempo correr...

A rigor —e não se trata de uma crítica a Lewandowski, deixo claro—, o ministro nem deveria, como se diz no jargão técnico, ter "conhecido das ações". Sim, leitor, em direito, o "conhecer" é verbo transitivo indireto, no sentido de "tomar conhecimento de". E, no entanto, ao se ver obrigado a fazer o desnecessário, assim como o tribunal, acabou fazendo a coisa certa.

Eis aí um emblema do grande salto civilizatório para trás que é o governo Bolsonaro. O país e as instituições deixam de se ocupar dos desafios do presente com vistas ao futuro —e não se trata de mera retórica— para ter de refazer o que esses depredadores da ordem vão destruindo com sua ignorância truculenta.

Exceção feita à pororoca —à bossa nova, a um Machado, a um Drummond, a um Rosa ou a uma Clarice, que, de vez em quando, brotam em nosso jardim—, já há tão pouco do que nos orgulhar... Como destacou o The New York Times, o mundo da ciência reconhecia um sistema eficiente de imunização em Banânia, mesmo em meio às nossas obscenidades sangrentas.

Um capitão da reserva e um general da ativa, como dois arruaceiros, chegaram arrebentando as portas da excelência, cobrindo com o véu opaco de sua estupidez o que havia de clareza no setor, de modo a obrigar a Corte Suprema do país a decidir o que decidido já está desde a lei 6.259, de 1975 —no tempo em que ainda caminhávamos nas trevas.

Estamos, como sociedade, nos acostumando ao atraso, normalizando o absurdo, normatizando a burrice. A delinquência vai se esgueirando às margens da lei ou contra ela, de sorte que mesmo aquilo que já está sacramentado pela legislação ou pacificado pelo entendimento majoritário de tribunais superiores vai sendo permanentemente desafiado, um pouco por dia, de forma determinada, obsessiva, contínua, constituindo um método, ainda que seja o da desordem.

Expresso na minha última coluna deste 2020 os bons auspícios no modo que segue.

Espero que Bolsonaro e Pazuello, quando fora do cargo, venham a responder por uma tempestade de ações de improbidade administrativa, nos termos em que a medida provisória 966 foi admitida como constitucional pelo Supremo.

Estou entre os que entendem que ex-presidentes e ex-ministros podem responder por improbidade. Há condicionantes muito claras definidas pelo tribunal.

O STF assentou, então, que a inobservância de critérios científicos e técnicos na tomada de uma decisão, ignorando-se normas das autoridades nacionais e de organismos internacionais na área da saúde, constitui "erro grosseiro" e "elevado grau" de negligência. Que os Recrutas Zero da cloroquina paguem por seus feitos. É o que posso desejar de melhor, leitores!

Este escriba tira quatro colunas de férias e retoma a lida no dia 22 de janeiro. Mantenha o distanciamento social e cultive o jardim. Um Voltaire de máscara.


Ricardo Noblat: O dia amargo em que Bolsonaro só colheu derrotas

Seus seguidores estão ficando impacientes

Para o gosto do presidente Jair Bolsonaro, a quinta-feira 17 de dezembro até que começara bem. Em cerimônia no Palácio do Planalto, ele deu posse ao novo ministro do Turismo, Gilson Machado, líder de uma banda de forró em Pernambuco, e sanfoneiro que costuma tocar o instrumento nas lives semanais do presidente no Facebook. Uma vez até cantou a Ave-Maria.

O que disse Machado no seu discurso soou como música aos ouvidos de Bolsonaro e o deixou feliz a poucas horas de ter que voar para inauguração de obras em Minas Gerais e na Bahia. Refratário, como seu chefe, a medidas de isolamento social, Machado defendeu que festas de fim de ano reúnam ao menos 300 pessoas. Assim as aglomerações seriam evitadas.

“A gente tem que viver a vida, não morrer por antecipação”, argumentou o ministro, e recebeu aplausos. Em seguida, derramou-se em elogios a Bolsonaro: “O senhor está recuperando a autoestima do povo” (mais aplausos). “Aonde o senhor vai, o povo o aclama” (nesse momento, Bolsonaro sorriu). A cerimônia foi curta. O dia seria estafante para o presidente, e de fato foi.

Ele ainda estava em Jacinto, município de Minas Gerais, para o lançamento da pedra fundamental da implantação e pavimentação da BR-367, quando começou a receber notícias que o indignaram. O Supremo Tribunal Federal decidira que a vacinação contra a Covid-19 seria obrigatória. E também que governadores e prefeitos poderão impor restrições a quem não se vacinar.

Em Porto Seguro, na Bahia, segunda escala da viagem, Bolsonaro ficou sabendo que uma liminar concedida pelo ministro Ricardo Lewandowski autorizara Estados e municípios a comprar vacinas registradas por agências sanitárias de outros países. Foi em Porto Seguro que Bolsonaro resolveu passar recibo do seu desconforto. Sem referir-se às notícias, discursou:

– Se o cara não quer ser tratado, que não seja. Eu não quero fazer uma quimioterapia e vou morrer, o problema é meu, porra.

Ao desembarcar de volta a Brasília, seu humor só fez piorar. Foi quando conheceu trechos dos votos dos ministros do Supremo no julgamento das ações sobre a vacinação. Todos, à exceção do único ministro indicado por ele para o tribunal, Kássio Nunes Marques, bateram de frente com o que Bolsonaro pensa, fala e repete à exaustão país afora, dia sim e o outro também.

“A preservação da vida, da saúde individual ou pública, em país como Brasil com quase 200 mil mortos pela Covid-19, não permite demagogia, hipocrisia, ideologias, obscurantismo, disputas eleitoreiras e ignorância” (Alexandre de Moraes). “O egoísmo não é compatível com a democracia. A Constituição não garante liberdade a uma pessoa para ela ser egoísta” (Cármen Lúcia).

Para amargar ainda mais o dia de Bolsonaro, a Câmara endossou decisão do Senado e rejeitou ampliar o repasse de recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica para escolas ligadas a igrejas. E, nas redes sociais, seguidores dele ocuparam-se em criticá-lo a pretexto de qualquer coisa – uma delas, o não pagamento este ano da 13ª parcela do Bolsa Família.

Bolsonaro jogou a culpa no deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara. Que retrucou chamando-o de “mentiroso”. O presidente só foi dormir depois de responder pessoalmente aos ataques dos que antigamente se limitavam a lhe dar razão em tudo ou em quase tudo:

– Impressionante, os caras descem a lenha em mim. Lógico que a esquerda bate palma para essa direita burra, direita idiota. Bateram palmas para vocês. Vocês não sabem, não interpretam, não conseguem saber o que foi votado e descem o cacete. Não fica agindo como papagaio, repetindo o que um idiota escreve.

A certa altura, cairá a ficha da maior parte dos brasileiros e eles descobrirão que o presidente acidentalmente eleito lhes fez muito mal. O risco é de que tal momento de iluminação só se dê depois de ele ser reeleito daqui a dois anos. Seriam mais quatro anos perdidos – e a que preço? Preservar o meio ambiente não lhe interessa como já demonstrado. Tampouco educação e cultura.

Reforma do Estado foi promessa para atrair o voto dos liberais. A combater a corrupção, prefere aliar-se a políticos corruptos. Segurança pública resume-se a facilitar o acesso a armas – e os milicianos agradecem. Enfrentar a pandemia é deixar o vírus livre para infectar o maior número de pessoas. Vidas não importam porque todos haverão de morrer um dia, e ele não é coveiro.