STF

José Serra: A pressa é inimiga da Constituição

Sociedade tem o direito de esperar que processo legislativo seja seguido com absoluto rigor

O escritor português José Saramago é conhecido por tiradas geniais que nos fazem refletir diante de encruzilhadas. Lembrei-me de uma delas em plena votação da chamada PEC Emergencial: “Não tenhamos pressa, mas não percamos tempo”. O Senado aprovou celeremente uma emenda constitucional que autoriza o pagamento do auxílio emergencial, mas, ao mesmo tempo, cobre a Constituição com uma cortina de fumaça que compromete a credibilidade do nosso arcabouço fiscal.

Nosso país enfrenta a pior fase da pandemia, com nosso sistema público de saúde próximo do colapso. Diante disso, infelizmente, o governo vem sendo negligente: critica o uso de máscaras, condena o distanciamento e dificulta a vacinação.

Na discussão da PEC Emergencial o governo adotou uma estratégia que consiste em acuar o Congresso, com o objetivo de aprovar a agenda de austeridade improvisada pelo Ministério da Economia. Usou seu poder para introduzir na PEC um dispositivo que torna viável o pagamento de um benefício emergencial ao mesmo tempo que, em troca, embute uma obscura reforma estrutural nas demais partes da emenda.

Às limitações do sistema semipresencial de votações junta-se uma celeridade que torna a discussão precipitada e os resultados, confusos. Analisando a proposta com a experiência que tive de relator dos capítulos de finanças públicas na Constituinte, percebi a armadilha em que fui colocado: sem poder votar contra o auxílio emergencial, nem concordar com que se manipule a Constituição.

Julgo que emendar a Constituição implica responsabilidade análoga à tarefa de elaborá-la. A maioria dos estudiosos classifica as alterações constitucionais como emanadas do poder constituinte. Assim sendo, sua execução exige o máximo de cautela, a fim de evitar casuísmos e imprudências com a norma jurídica mais importante da fundação do Estado.

O próprio texto constitucional se protege de mudanças improvisadas e arriscadas: estabelece que não se pode emendá-lo na vigência de situações emergenciais, como o estado de defesa, o estado de sítio e a intervenção federal. Esse dispositivo, aliás, remonta à Constituição de 1934, em resposta à Emenda Constitucional n;° 3, promulgada em plena vigência do estado de sítio decretado em 1926 pelo presidente Artur Bernardes.

A pandemia permanece assolando nosso país e impedindo a volta da normalidade. Neste contexto, várias comissões do Congresso Nacional nem sequer voltaram a funcionar. Isso por si só já justifica postergar a votação de emendas constitucionais, a não ser que haja absoluto consenso, como no caso do Fundeb.

Mas o texto da PEC Emergencial exige considerações acerca das duas dimensões: uma emergencial, outra estrutural. Considero a emergência a dimensão mais importante para enfrentar o vírus e nela constato uma tática do tipo tudo ou nada. A medida torna viável o pagamento de auxílio emergencial limitado a R$ 44 bilhões, o que pode ser considerado o plano oficial do governo para enfrentar o vírus neste ano.

Assim como não foi possível combater a emergência sanitária no ano passado com R$ 5 bilhões – de acordo com os planos do governo no início da crise –, é improvável que a estimativa atual seja suficiente para enfrentar todos os efeitos da pandemia em 2021. Para resolver esse impasse previsível a PEC apresenta outra saída emergencial: suspender todas as regras fiscais do País. Uma emenda comparável a um AI-5 sobre o sistema fiscal previsto na Constituição.

Um plano fiscal para enfrentar a crise é o mínimo que se espera de um governo responsável. Não temos plano. Nem mesmo o Orçamento anual foi aprovado.

Ademais, a proposta encaminhada à Câmara compromete a credibilidade do nosso arcabouço fiscal. Criam-se regras fiscais com lacunas jurídicas e incentivos à contabilidade criativa, levando ao crescimento do gasto público.

Sabe-se que a crise fiscal tem um viés eminentemente federativo. Hoje, 68% das despesas com funcionários e 84% das verbas destinadas ao consumo de bens e serviços têm sua origem nos Estados e nos municípios. A PEC 186 estabelece que as medidas de ajuste fiscal a serem adotadas por governadores e prefeitos limitem a despesa corrente a um máximo de 95% da receita corrente.

Uma análise, mesmo superficial, revela que esse porcentual pode estimular o aumento da despesa: governadores e prefeitos que gastam menos de 95% poderão aumentar as despesas até esse patamar, especialmente em épocas de eleição. O Executivo poderá aumentar os gastos correntes dando aumentos salariais e subsídios, pois a regra tem por alvo o gasto passado, mas não o futuro.

Numa situação emergencial como a que vivemos hoje, não se deveria sequer pensar em alterar regras estruturais do Estado brasileiro. O momento não é propício, o contexto é temerário. A sociedade tem direito a esperar de nós, seus representantes na Câmara e no Senado, que o processo legislativo seja seguido com absoluto rigor.

Em poucas palavras: a pressa é inimiga da Constituição.

*Senador (PSDB-SP)


O Estado de S. Paulo: Eduardo Bolsonaro manda população ‘enfiar no rabo’ máscara contra covid-19

Filho do presidente, deputado federal critica cobertura da imprensa sobre uso de itens de proteção contra infecções pelo coronavírus

André Borges, Lorenna Rodrigues e André Shalders, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA – Visivelmente irritado, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) mandou a população brasileira enfiar as máscaras de proteção contra a covid-19 “no rabo”. Em uma aparição ao vivo que fez em seu perfil pelo Instagram, o filho “03” de Bolsonaro criticou o uso do principal item de proteção contra a contaminação do vírus que, dia após dia, causa recordes de mortes no País. 

“Eu acho uma pena, né, (que) essa imprensa mequetrefe que a gente tem aqui no Brasil fique dando conta de cobrir apenas a máscara. 'Ah a máscara, está sem máscara, está com máscara'. Enfia no rabo gente, porra! A gente está lá trabalhando, ralando”, afirmou o deputado. As declarações de Eduardo foram feitas no dia em que o presidente Jair Bolsonaro mudou o discurso, usou máscara e passou a defender as vacinas. Nesta quarta-feira, 10, o Brasil também atingiu mais um recorde de mortes: pela primeira vez foram registradas 2.349 mortes por covid-19 em 24 horas.

Em tom agressivo, enquanto seguia em um carro no banco de carona, o deputado comentou, ainda, o caso das rachadinhas de Fabrício Queiroz e a compra de uma mansão de R$ 6 milhões por seu irmão, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ).

“Você, retardado mental, que fica falando ‘o problema são os filhos, cadê o Queiroz?’, pagou o apartamento R$ 50 mil em dinheiro. Seu animal, larga de ser um peão nesse tabuleiro de xadrez chamado política e começa a pensar um pouquinho, ver o perigo que está por vir e ver como o sistema trabalha porque não dá ponto sem nó, não. Fique com Deus e não consuma cachaça em excesso igual a uns e outros aí”, disse.

Eduardo Bolsonaro também afirmou que iria comentar o resultado da viagem que fez com uma comitiva para conhecer o spray contra a covid-19 em testes iniciais em Israel. Na prática, porém, o que acabou dizendo é que o Brasil é que está desenvolvendo a sua vacina. E não só uma, mas três vacinas próprias.

“Você sabia que o Brasil está desenvolvendo três vacinas?”, perguntou. “A vacina brasileira ainda está em desenvolvimento, não é para agora”, comentou ele, acrescentando que o Brasil terá seu próprio spray e que outros países deverão vir ao País comprar esse produto. Ele não deu nenhum detalhe sobre o que estava falando.

“É importante a gente dominar essa tecnologia e dominar, ter a vacina brasileira. Além disso, isso coloca o Brasil em outro patamar internacional. Ao invés de nós irmos atrás de outros países, eles é que virão atrás de nós. Pode ser inaugurada uma vacina que não precise mais de insumos de outros países. Os israelenses gostaram muito disso”, afirmou.

Além do spray definido pelo presidente de “milagroso”,  que atuaria em conjunto com uma vacina, Eduardo disse que o Brasil tem uma segunda tecnologia em análise, com efeito “dois em um”, que curaria covid-19 e influenza.

“A terceira vacina vai diretamente em seu sistema imunológico. O Brasil está desenvolvendo tecnologia nesta área”, observou, sem nenhum detalhe, data ou previsão de testes.

“Depois que está a invenção feita, aí ‘tá’ o mundo inteiro correndo atrás da vacina, o mundo inteiro correndo atrás dos insumos… Aí já era. Isso que a gente foi fazer em Israel é à semelhança do que ocorreu com a vacina de Oxford. É chegar primeiro, chegar no começo. Quando estávamos saindo de Israel, estava chegando uma delegação de outro país, da República Checa”, lembrou o deputado. “Já procurou Israel não só a Grécia, mas também a Dinamarca, o Chipre, e alguns outros países. Acho que a Áustria também. Então, onde há tecnologia, o mundo inteiro está proativamente se deslocando.”


Eugênio Bucci: Justiça performática

Vivemos num tempo em que a arte nos enfada e os ministros do STF nos sobressaltam

Em dois dias, mudou tudo. Na segunda-feira, em despacho monocrático, o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), devolveu os direitos políticos a Luiz Inácio Lula da Silva. Ao anular as sentenças da Lava Jato contra o ex-presidente, sob o argumento de que o juiz da 13.ª Vara Federal de Curitiba, Sergio Moro, não era aquele a quem cabia a competência para decidir sobre as acusações que pesavam contra o réu, Fachin limpou a ficha de Lula, que agora está livre para se candidatar em 2022.

No dia seguinte veio mais. A Segunda Turma do mesmo STF começou a julgar a parcialidade e a suspeição do juiz Sergio Moro nas sentenças contra Lula. O julgamento levado a efeito pela Segunda Turma ainda não foi concluído, pois o ministro Nunes Marques pediu vista, dizendo que precisava estudar melhor o processo antes de votar, mas o que os ministros disseram na tarde de anteontem abalou o que se tinha por certo e sabido. Quando se referiu à Operação Lava Jato como “o maior escândalo judicial da nossa história”, o ministro Gilmar Mendes deixou claro: tudo mudou.

Nada contra o veredicto de segunda. Nada contra a sessão de terça. As razões processuais alegadas pela defesa do ex-presidente Lula vão se demonstrando irrefutáveis. A incompetência do juízo de Curitiba só demorou uns anos para ser admitida no STF, mas é cristalina. Ninguém mais parece disposto a refutá-la, a não ser que tudo mude de novo. Quanto aos sinais de parcialidade do magistrado responsável pela Operação Lava Jato, que foram enumerados na terça pelos ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski, não há peneira hermenêutica que dê conta de encobri-los. Houve abusos, alguns provados, outros até tacitamente admitidos.

Ao menos no caso de Lula, o juiz da Lava Jato perpetrou injustiças em série, ainda que tenham sido injustiças estritamente processuais, formais, como vem postulando a defesa. Por isso já se sabia que, em algum prazo, de alguma forma, essas injustiças acabariam sendo reconhecidas pelo Supremo, como começou a ser feito nestes dois dias. Só não se sabia que as coisas viriam assim, tão espetaculosas, alvoroçadas e atordoantes.

Portanto, o problema não é o que se decidiu. Ao contrário, a nova postura do STF sobre a matéria talvez seja até parte da solução. O problema é o risco imenso de se aprofundar uma impressão generalizada de que a mais alta instância da Justiça no Brasil se pauta pela inconsistência e pela imprevisibilidade errática. O risco não deveria ser desprezado. Justiça não combina com ciclotimia.

A instituição incumbida de julgar todos nós não deveria sentir-se à vontade para mudar assim ao sabor das brisas, dos ventos e mesmo dos furacões. Alguma linha de coerência há de perdurar entre as decisões, sob pena de a sociedade parar de acreditar de vez na magistratura. Deus, que é Deus, pode escrever por linhas tortas. Os juízes, não, por mais que alguns insistam.

E agora? A sociedade brasileira assimilará bem a incongruência entre os acórdãos impenetráveis da mais alta Corte do País? Qual o limite para tantas idas e vindas? Se as arbitrariedades contra Lula eram patentes e gritantes, como eram, por que se permitiu que elas fossem tão longe? Por que se permitiu que elas o tirassem da eleição de 2018 e o enjaulassem. E por que reconsiderá-las agora, justo agora e só agora?

Se Moro praticou atos inadequados, que incidiram sobre o andamento de momentos históricos de enorme repercussão, por que ele seguiu imune e adulado por tanto tempo? E por que questioná-lo agora, assim? A impressão que se tem é que no Brasil de hoje tudo está sub judice: a prisão de Lula, que agora transparece como uma violência indizível, está sub judice e, junto com ela, a posse de Michel Temer na Presidência da República, a abolição da escravatura, a Guerra do Paraguai e o descobrimento do Brasil. É como se na segunda que vem o STF declarasse nulas as violações ao Tratado de Tordesilhas e, em seguida, anulasse também o próprio tratado, porque uma das firmas não foi devidamente reconhecida. Vai saber... O STF parece acreditar que faz o tempo retroceder.

Normalmente os críticos do Judiciário, focados nas tecnicalidades da aplicação da lei, esmiúçam a observância ou a inobservância dos ritos e o rigor ou a frouxidão das derivações jurisprudenciais de cada fundamentação. A esta altura nós deveríamos preocupar-nos igualmente com a percepção que os brasileiros terão da Justiça nos próximos anos.

O leigo pode não saber o que é heurística, pode não entender o significado de expressões como ex ofício ou ex ante e ex post, mas sabe perfeitamente o que é certo e o que é errado. Todo ser humano tem senso moral, percebe intuitivamente a iniquidade, separa o justo do injusto. Se, por algum motivo, os seres humanos deste país não virem mais no Poder Judiciário a encarnação legítima da justiça, tudo o que está mudando vai abaixo.

Eis o “ó do borogodó”, para invocarmos o novo brocardo jurídico. Vivemos num tempo em que a arte nos enfada e os ministros do Supremo Tribunal nos sobressaltam. Enquanto tudo muda, e alguma coisa está fora de prumo.

*Jornalista, é professor da ECA-USP


Ascânio Seleme: Lula foi ainda mais Lula

Depois de dois anos ouvindo Bolsonaro, qualquer um que lhe fizesse frente se destacaria com louvor. Mas ex-presidente foi mais longe

Retire os excessos de retórica e as figuras de linguagem, sublime os trechos destinados ao público interno e à militância. Ignore os erros involuntários e mesmo os estudados. Esqueça o tom de campanha. O resultado será um discurso grande, importante. Lula voltou com tudo. É verdade que o ex-presidente foi beneficiado pela torpeza e pela ignorância do seu oposto.

Depois de dois anos ouvindo Bolsonaro, qualquer um que lhe fizesse frente se destacaria com louvor. Mas Lula foi mais longe. Falou de política, economia, saúde; conversou com os brasileiros nos seus termos; mostrou que está pronto para negociar em todos os âmbitos; e apontou quem é o seu inimigo.

Isso, sem texto pronto, sem teleprompter, apenas com uma lista de tópicos em sua frente.

Com a mesma empatia de sempre, mas sério, sem se permitir às gracinhas habituais de seus discursos, Lula se posicionou de maneira inequívoca como uma opção para o Brasil e os brasileiros. Os diversos pontos do discurso, mesmo os que não pareciam apontar na mesma direção, tinham Bolsonaro como alvo. Mas sempre com postura presidencial.

Ao lembrar que a terra é redonda ou ao criticar a política de liberação de armas, o tom foi de compromisso, não de chacota. Mesmo ao defender uma política econômica não liberal, dizendo que o governo não tem ministro da Economia, o ex-presidente queria mesmo era mostrar seu apoio à política de distribuição de renda através do salário emergencial, substituto provisório do seu Bolsa Família.

A insistência ao tratar do coronavírus também tinha endereço. E o destinatário do Palácio do Planalto recebeu a mensagem no mesmo dia, se apresentando logo em seguida para falar sobre a vacinação e, incrível, usando máscara.

Aos brasileiros, Lula falou da fome, do preço da gasolina, da picanha na mesa do trabalhador, do seu eterno objetivo de chegar à raiz dos problemas nacionais por querer um mundo mais justo. Retórica, claro, mas que toca no coração das pessoas. Se Bolsonaro consegue acertar o estômago dos brasileiros com suas grosserias, Lula busca o coração com suas sutilezas. E é isso o que o distingue do outro.

Negociação com o Congresso, com toda a classe política, nas suas palavras, e com os empresários é aceno do Lulinha, Paz e Amor. O mesmo que disse não guardar mágoas, apesar das chibatadas que levou.

Os claros exageros, como a afirmação de que Marisa, sua mulher, morreu por causa da Lava Jato, serviram apenas para ele reiterar que apesar de tudo não tem mágoas. Porque, disse, não há espaço nem tempo para guardar ódio. Mesmo quando atacou injustamente jornais e jornalistas, ofereceu um afago ao defender a liberdade de imprensa e ao elogiar a edição de ontem do Jornal Nacional.

Aliás, uma frase do discurso explica o morde e assopra de Lula com relação à imprensa.

“A gente começa a gostar da vida quando está mais perto do céu”, disse o ex-presidente.

Pois Lula esteve muito perto do inferno, quando aliados seus, do seu partido e dos que o apoiavam, saquearam em conjunto a Petrobras. Também quando seu governo foi denunciado por pagar por apoio de partidos com dinheiro público, o famoso mensalão. Ou quando sua sucessora, Dilma Rousseff, quase quebrou o país. Ou ainda quando um apartamento e um sítio foram estruturados por empreiteiras para atender o gosto da sua família.

Nestes momentos em que esteve bem próximo do fogo eterno, Lula não gostava dos jornais e muito menos do JN.

Mas mesmo esse desvio pode rapidamente virar passado na retórica política de Lula. O que não mudou e não vai mudar, é a grandeza do seu discurso. Lula sabe com quem fala, sabe bem o que quer falar e sabe melhor ainda como falar. Bolsonaro não está mais só.


Carlos Andreazza: O discurso de Lula

Não vi “paz e amor”. E nem me pareceu que fosse essa a intenção. Seria falso. Um sujeito, depois de mais de quinhentos dias de cana, cujo algoz – um juiz – decompõe-se em (justa) suspeição quer é guerra. Mas sem pressa; e de paletó, camisa impecavelmente passada. Sem pressa para se declarar candidato; antes – senhor do tempo – à frente do projeto que difundirá a sua inocência. Inocente não é; mas inocente será o que julgado por um acusador. Não havia “paz e amor”. Havia essa verdade; a de Gilmar Mendes: a de que corrupção nenhuma pode ser condenada com corrupção. Errado não está.

Esse foi o palanque – armado na altitude de quem conversa com o Papa – desde o qual falou Lula. Uma aula de discurso político – admita-se. (E seria aula mesmo se estivesse o sarrafo lá no alto.) Construção de profissional a serviço de rara capacidade de farejar para onde os ventos pandêmicos levam as demandas da sociedade. Articulação retórica de mestre para, se quiserem mesmo estabelecer o debate na cancha da polarização, aceitá-la nas bases que ditou: ele sendo o que usa máscara, prega distanciamento social e defende vacinação em massa. Radicalmente.

Com cálculo de provocador: se Bolsonaro, o capitão, investe em facilitar o comércio – sem fiscalização – de armas, Lula será o preocupado com o sucateamento das Forças Armadas.

Aula – e aqui fala Carlos Andreazza, jamais um esquerdista.

Para que fiquem claros os termos em que topa polarizar com o presidente: Lula associou Bolsonaro – com ênfase – às milícias. Será assim doravante. O discurso: não pode admitir que o país que governou – que fez respeitado no mundo – ora vá nas mãos de um miliciano.

Nem tudo foi verdadeiro, porém. Mentiu um lote – disparou números como nem Ciro Gomes. (As agência de checagem cortarão um dobrado.) E foi especialmente duro vê-lo falar sobre uma bem-sucedida gestão petista na Petrobras, como se não houvesse, entre esses gestores, Paulo Roberto Costa, Renato Duque e Nestor Cerveró – como se não houvesse, apenas como um exemplo, a barbaridade chamada Pasadena.

É um fato que a petroleira foi pilhada durante os governos do PT – fato também sendo que, como empresa, em função das escolhas lulopetistas para sua administração, quebrou. E a esse prejuízo – bilionário – não se referiu; pancada que ceifou empregos.

Mas aqui se analisa o discurso e só discurso; sendo fato também que a Petrobras de Lula – aquela onipresente, indutora maior da economia – simboliza um projeto de Brasil; de Brasil grande, independente, autossuficiente. (Que exportava óleo; e que, por isso, jamais poderia ser refém do dólar. O que fizeram

com essa nação para que se achatasse assim?) O Brasil de Lula – em que havia fábrica da Ford e onde quatro milhões de carros eram vendidos por ano – comunica. Alcança. Mobiliza. Atrai.

É um fato que a Petrobras de Lula – apesar da corrupção que abrigou profundamente – mobiliza memórias. Boas. A estatal que se expandia, quase uma casa moeda, distribuindo riquezas e gerando oportunidades – e não apenas, atenção, aos pobres. O ex-presidente jogou várias iscas. Quer ouvir os empresários – diz. Quer mesmo é lembrá-los de que foram felizes com ele; naquele Brasil-Petrobras que fabricava navios-sonda e multiplicava postos de trabalho (e propinas). Quer conversar com os políticos – com o Centrão. Quer de todos – e também dos mercados – compreender (como se Dilma Rousseff não tivesse existido) por que se foram associar ao liberal-bolsonarismo. Quer mesmo é fazer ver a todos que foram muito felizes com ele; e sem (promessas de) privatizações.

Um projeto de Brasil. Foi com isto que o ex-presidente jogou em seu primeiro pronunciamento – a aula – após reaver os direitos políticos: ele tem um projeto de Brasil. Goste-se ou não, Lula tem um. Em resumo: um país miserável como o Brasil não pode prescindir da mão forte do Estado. Simples e poderoso; tanto mais em meio a uma pandemia de efeito depauperante sobre os mais pobres.

É para onde o vento varrido pela peste levou o desejo da sociedade: para um lugar – espaço natural a Lula, que joga em casa – em que o governo injete dinheiros emergenciais na economia de modo a que o povo empobrecido sobreviva à falta de empregos, circunstância agravada pela incompetência-insensibilidade de Bolsonaro/Guedes.

Esse foi o discurso. O recado. Mais claro impossível. Lula – sangue nos olhos – desdobrar-se-á daí. Vem para a guerra – ou não seria um miliciano o seu adversário. E vem gigante. A caneta, porém, está com o outro. Que reagirá – acelerando o populismo que já vai em curso – com um derramamento de Estado. Precisa amarrar o Centrão, cujo preço subiu pela hora do almoço.


Fernando Schüler: Sinal de alerta para o centro político

A polarização tende a produzir uma fuga do centro, que deve buscar consenso

Lula fez discurso de candidato, na sede do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, e era seu direito fazê-lo. Disse que no seu governo a Petrobras era bem administrada e que o Brasil era o país “mais admirado do mundo”. Chamou a turma da Lava Jato de “quadrilha” e culpou a operação pela perda de mais de 4 milhões de empregos.

Mas o centro do discurso foi mesmo sobre Bolsonaro. Governo de milicianos, eleito pelas fake news, feito de gente que acredita que a Terra é plana. Governo de “imbecis”, em relação ao qual “alguma atitude nós vamos ter que tomar”.

É interessante que Lula não investiu na retórica da “ameaça à democracia”, que é a marca registrada da oposição a Bolsonaro desde a campanha de Fernando Haddad. Sua ênfase é no “pão com manteiga” na mesa do trabalhador, emprego, investimento público (“o que faz o país crescer). Talvez vá aí uma mudança, quem sabe um esgotamento do tema. Ou tenha apenas faltado combinar isso melhor.

A “narrativa”, como agora é moda dizer, parece clara: a decisão de Fachin foi, para todos os efeitos, uma absolvição, um reconhecimento tardio da inocência de Lula. Lava Jato, pois, é coisa do passado. Lula aguentou firme e sempre soube que este dia (esta quarta) iria chegar. E chegou.

OK, discurso político nem sempre se pode levar ao pé da letra, e sempre há aqui e ali algum excesso retórico. Mas o fato é que, escutando essas coisas, é surpreendente que alguém diga que a polarização política não tenha voltado, e voltado com tudo, com a entrada de Lula no jogo.

Se a disputa entre Lula e Bolsonaro é uma polarização entre dois “extremos” e se são extremos “equivalentes”, é um debate para a militância política. Um lado irá falar da corrupção, da quebradeira econômica e o risco de “venezuelização” (como li de um porta-voz bolsonarista), e o outro dirá o que Lula disse nesta quarta. Governo de milicianos, imbecis, feito à base de fake news etc. Não vi Lula usando a palavra “fascista”, mas é possível que ela apareça logo à frente.

Se isso não é uma polarização, o que seria, exatamente? Mais do que isto: é um tipo de debate de baixíssima qualidade política, que infelizmente preside nossa democracia.

É previsível que interlocutores do lulismo no debate público fiquem nervosos com a tese da “polarização entre os extremos”. Seu desejo é de que Lula pudesse liderar uma ampla frente, envolvendo o centro político, contra Bolsonaro. Ouvi de alguém que os elogios de Rodrigo Maia a Lula indicavam algo nesta direção.

Seria curioso uma aliança entre Lula e o Democratas, reunindo todos os que lutaram bravamente a favor das reformas, nos últimos anos, e todos os que o fizeram, também bravamente, na direção oposta. O lógico é que Lula seja candidato de uma frente reunindo seus tradicionais aliados na esquerda.

Se a polarização agrada ao Palácio do Planalto? Parece evidente que sim. À parte desviar o foco das debilidades do governo, a curto prazo, a presença de Lula permite a Bolsonaro reanimar a militância entediada ao ressuscitar sua retórica “identitária”, com um olhar no passado, reanimando velhos fantasmas do embate político brasileiro.

O principal motivo da discreta satisfação do Planalto, no entanto, é outro. A entrada de Lula e a crispação política criam um efeito de fuga do centro político. Eleitores à direita, decepcionados com Bolsonaro e dispostos a uma alternativa, tendem a reconsiderar diante do espectro de Lula. Nesse plano arriscamos enveredar em uma disputa de rejeições: o antipetismo contra o antibolsonarismo.

A conclusão é que o principal sinal de alerta soou para o centro político. Em 2018, vamos lembrar, Alckmin, Meirelles e Amoêdo somaram menos de 10% dos votos. É apenas uma lembrança. O centro político não tem, no atual cenário, outra tarefa a não ser buscar um candidato de consenso e um programa capaz de se colocar consistentemente como alternativa a Lula e a Bolsonaro.

Observando a nova coalizão majoritária em funcionamento no Congresso, não penso que seja uma tarefa simples.​

*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.


Maria Hermínia Tavares: O dilema dos democratas

Esquerda, centro ou direita falam uma coisa e fazem o contrário diariamente.

A mais de um ano das eleições presidenciais, tudo que se diga sobre seu desfecho é temerário, todo prognóstico corre o risco de ser desmentido, com ou sem Lula no páreo. Isso posto, afastada ao que parece a hipótese de impeachment, o endosso da robusta minoria que ainda apoia Bolsonaro, se não derreter até lá, bastará para levá-lo ao segundo turno.

Democratas de esquerda, centro ou direita não se cansam de dizer que a ampla união de forças será necessária em 2022 para impedir que ele se reeleja e, assim, continue a destruir o país e a democracia a duras penas construída. Falam uma coisa e fazem o contrário diariamente.

O centro-direita e a direita não bolsonaristas se movem em torno de seus possíveis candidatos, como se não existisse no país esquerda com enraizamento social e expressão eleitoral consideráveis. Como se pudessem ganhar a Presidência sem o seu apoio.

Já os líderes mais destacados da esquerda dedicam-se com afinco a se atacar uns aos outros —veja-se o tiroteio entre Ciro Gomes e Fernando Haddad. Enquanto isso, intelectuais progressistas gastam tinta para demonstrar que todos os economistas liberais, mesmo os mais críticos ao governo, se igualam a Paulo Guedes e que todos os possíveis candidatos da direita são bolsonaristas envergonhados, ainda que hoje façam oposição aberta ao ocupante do Planalto. Não custa lembrar que Lula e Dilma foram a segundo turno, quando venceram com o imprescindível apoio de forças que não se situam no campo da esquerda.

No fundo, uns e outros continuam a se movimentar em torno da linha divisória traçada em 2016, com a derrubada de Dilma Rousseff, que consolidou a polarização política e abriu espaço para a disparada do ex-capitão. Mas, então, a minoria de extrema direita existente na sociedade não tinha expressão política nacional. Agora tem um líder à altura do seu primitivismo e da sua brutalidade.

As regras eleitorais incentivam a multiplicação de candidaturas no primeiro turno das eleições presidenciais. Mas não limitam conversas prévias que aplainem o caminho para entendimentos na rodada final nem impedem o trato civilizado entre os concorrentes do campo democrático. Nada indica que isso esteja sendo buscado.

Cientistas políticos estudam os chamados dilemas da ação coletiva, situações em que pessoas ou organizações agindo em prol de seus interesses, sem a possibilidade de coordenar seus atos, terminam por produzir desastres para si e para a sociedade. A volta de Lula ao jogo político não afasta o risco de que as próximas eleições venham a ser mais um episódio dessa história de final infeliz.

*Maria Hermínia Tavares -professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.


Luiz Carlos Azedo: Cadê as vacinas, Bolsonaro?

As previsões de colapso do Sistema Único de Saúde (SUS), que sanitaristas e infectologistas vinham fazendo desde o mês passado, estão se confirmando

A cúpula do governo já se deu conta de que está protagonizando a maior tragédia sanitária da nossa história, ao fracassar no combate à covid-19, com o negacionismo reiterado do presidente Jair Bolsonaro e a incompetência do ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello. Ontem, em solenidade no Palácio do Planalto, bem que Bolsonaro tentou dar um cavalo de pau e mudou o discurso em relação às vacinas, até disse que a senhora sua mãe foi vacinada em São Paulo (com a Coronavac do instituto Butantan, quanta ironia, a vacina do governador João Doria). Somente fez isso porque foi duramente atacado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva por sua atuação como presidente da República durante a pandemia.

As previsões de colapso do Sistema Único de Saúde (SUS), advertência que os sanitaristas e infectologistas vinha fazendo desde o mês passado, estão se confirmando. O Brasil registrou nas últimas 24 horas 2.286 mortes por Covid-19 e 79.876 novos casos, segundo o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass). O número de vítimas fatais da doença no Brasil chegou a 270.65 e o total de casos aumentou para 11,202 milhões. Mesmo assim, Bolsonaro continua sabotando os esforços de governadores e prefeitos para conter a propagação da pandemia com o isolamento social, enquanto não há vacinas suficientes para imunizar a população.

“A política do lockdown adotada no passado, o isolamento ou confinamento, visava tão somente dar tempo para que hospitais fossem aparelhados com leitos de UTI e respiradores. O governo federal não poupou esforços, não economizou recursos para atender todos estados e municípios”, disse Bolsonaro. O presidente anunciou que o Brasil já adquiriu 270 milhões de doses de vacinas, a maioria para o primeiro semestre deste ano, mas as vacinas não chegam na frequência que a velocidade de propagação do vírus exige, por causa da incompetência do governo nas negociações. Voltou a defender o “tratamento imediato” com medicamentos não recomendados pelas autoridades de saúde, ao sancionar uma lei que prorroga a suspensão do cumprimento de metas pelos prestadores de serviço do Sistema Único de Saúde (SUS).

Patentes
O general Pazuello, atarantado com a ameaça de que a crise de Manaus se repita simultaneamente em várias capitais do país, também corre atrás do prejuízo. Tenta minimizar seu fracasso e ressalta os esforços dos principais centros de produção de vacinas: “Sem a produção da Fiocruz e do Butantan, nós hoje praticamente não teríamos vacinado ninguém. Essa é a realidade”. Desde janeiro, o país utiliza os imunizantes CoronaVac e Oxford/AstraZeneca.

Ontem, na reunião da Organização Mundial do Comércio, em Genebra (Suíça), porém, o Brasil voltou a se manifestar contra a suspensão dos dispositivos de propriedade intelectual sobre patentes de remédios, vacinas e outros produtos de combate à pandemia da Covid-19. A proposta apresentada pela Índia e pela África do Sul em outubro de 2020 visa a suspender patentes ligadas a tratamentos e métodos de prevenção para a Covid-19. Na epidemia de AIDS, a quebra de patentes foi fundamental para controlar a doença.

Diante do fracasso, Pazuello pediu ajuda à China, que tanto foi hostilizada pelos filhos do presidente Bolsonaro e integrantes do governo, inclusive o chanceler Ernesto Araújo. Enviou ofício à embaixada da China no Brasil para pedir auxílio para a compra de 30 milhões de doses da vacina da farmacêutica chinesa Sinopharm, que havia sido ofertada pelo governo chinês no ano passado, pois trata-se de um laboratório estatal, mas à época não houve interesse do governo. Pazuello também negocia a compra de outros imunizantes, como o produzido pela Pfizer, único com registro definitivo concedido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o que é outra novela.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-cade-as-vacinas-bolsonaro/

William Waack: Vendedores de esperanças

Bolsonaro e Lula vão disputar o mesmo eleitorado, num faroeste sem mocinhos

Nos fenômenos políticos brasileiros dos últimos 20 anos Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Messias Bolsonaro exibem uma importante característica em comum: foram vendedores de esperanças frustradas. As diferenças ideológicas e de estilo entre eles empalidecem diante do fato de que assumiram prometendo grandes transformações e acabaram governando com a mesma massa amorfa de forças políticas empenhadas em acomodar interesses setoriais, cartoriais, corporativistas e regionais às custas dos cofres públicos ou de pedaços da máquina pública – plus/minus a roubalheira petista. 

O fator excepcional agora é o alargamento e aprofundamento de crises simultâneas de saúde pública, economia estagnada e liderança política. Elas são causa e consequência ao mesmo tempo do esgarçamento do tecido social (perigo de anomia), da deterioração do equilíbrio dos poderes (Judiciário emasculando os demais) e da incapacidade generalizada de elites econômicas de enfrentar a estagnação de produtividade e competitividade da economia (já nem se fala mais de PIB ruim de ano para ano, mas de PIB ruim de década para década). 

Diante da tragédia da saúde e de seu impacto na economia – claudicante já antes da pandemia –, o problema para Bolsonaro e Lula é qual esperança vão vender. As bandeiras do lulopetismo estão manchadas não só pela corrupção adotada como forma de governo, mas, e ainda mais decisivos, pelo espetacular fracasso no intervencionismo e dirigismo da economia e a incapacidade de resolver mazelas sociais. São graves pois derivam de ideias equivocadas, em boa parte abraçadas por setores das elites empresariais. 

Sem ideias próprias, Bolsonaro abandonou sucessivamente qualquer conjunto coerente de postulados emprestados por Paulo Guedes, além de deixar para lá ou atuar contra as bandeiras da luta anticorrupção, da reforma e enxugamento do Estado e, de forma também espetacular, parou de se empenhar por destravar a economia do País. Que, ainda por cima, enfrenta o agravamento do sufoco fiscal, questão não meramente conjuntural (gastos com pandemia). 

A tripla crise é particularmente grave para a vida nacional, pois reforça um angustiante estado de paralisia no qual se destaca a percepção generalizada de que nada anda direito – inclusive criar alternativas políticas aos fracassados vendedores de esperanças. Paira um sentimento (sim, coisa subjetiva, mas política é coisa subjetiva também) de que impera por toda parte uma extraordinária hipocrisia: um STF que só toma decisões ao sabor da política, dizendo que não toma decisões políticas. Um Centrão que só pensa nos próprios interesses setorializados, quando fala que defende interesses do País. Um presidente que só pensa na reeleição e na própria família, quando diz falar pela coletividade, cujo sofrimento pouco o comove. 

Por uma desagradável ironia, Bolsonaro e Lula (ou as forças que representam) estão hoje na situação de terem de disputar a mesma parcela do eleitorado mais dependente de assistencialismo, mais arriscada a cair na miséria total se faltar a mão do Estado, mais ignorante e com a situação agravada pela falta de acesso a serviços básicos e educação de qualidade. Quadro piorado pela pandemia. 

É uma dura constatação, mas que até aqui não levou as diversas elites dirigentes brasileiras (entendidas como os grupos “que pensam” na economia, no ambiente cultural no sentido amplo e na condução de agrupamentos políticos) sequer a um diagnóstico comum, quanto mais a linhas de ação. A noção de que “a corrupção” seria a grande causa e a explicação para o nosso atraso relativo foi derrubada agora com o “desmascaramento” da Lava Jato (juntando na mesma trincheira safadeza com defesa de princípios da ordem democrática). “Mais saúde e educação”, as palavras de ordem de 2013 viraram slogans vazios de conteúdo.

Dizer que estamos vivendo um faroeste sem mocinhos é repetir Maquiavel, cuja originalidade estava na afirmação de que em política não se consegue realizar princípios. O problema é quando vira um faroeste sem esperanças.


Alon Feuerwerker: O estado da corrida

Vamos esperar as próximas pesquisas, mas a primeira presidencial feita após Luiz Inácio Lula da Silva ter voltado a ficar elegível mostra ele uns dois dígitos atrás de Jair Bolsonaro no primeiro turno e empatado tecnicamente com o presidente no segundo turno, apesar de numericamente atrás quatro pontos (a margem de erro do levantamento é três) (leia).

O presidente mantém sólido o contingente que votou nele no primeiro turno em 2018. Ele teve então algo que correspondeu a pouco menos de um terço do eleitorado total. A diferença está nas simulações de um eventual segundo turno, pois em 2018 Bolsonaro colocou em torno de dez pontos de vantagem sobre o então candidato do PT, Fernando Haddad.

Na referida pesquisa, os demais nomes ainda lutam para romper a barreira dos dois dígitos no primeiro turno. Tentarão fazer isso argumentando contra a polarização. Não funcionou da última vez. Vai funcionar agora? Há dúvidas. O tema polarização versus despolarização parece por enquanto meio fora do universo de preocupações do público mais amplo.

O que vai decidir, então? Em tese, como a economia vai chegar em meados do ano que vem. E isso dependerá da vacinação. Se ela andar razoavelmente, Bolsonaro tende a atravessar a turbulência e chegar competitivo. Pois removeu até o momento o risco de vir a sofrer nesse meio tempo um processo de afastamento na Câmara dos Deputados.

Se não, tende a se tornar um “pato manco”, como se diz nos Estados Unidos. Essa é a esperança dos concorrentes dele do centro para a direita.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Maria Cristina Fernandes: A volta de Lula

Se os arquivos da Lava-Jato permitem a Lula tentar reescrever sua história, os de Bolsonaro, com condutas, falas, gestos e atos de seu governo dificultam sua reinvenção

Radical é a pandemia, inútil competir. A dor do povo é tão grande que não autoriza mágoas. O estrago é tão gigantesco que a mudança de rumo não é um desejo, mas um imperativo. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva usou a pandemia para ancorar a moderação do presente e baixar a guarda sobre o futuro. É este o eixo de Lula 2022. À indagação sobre as chances de sua candidatura, foi simples e curto: “É mais fácil construir uma frente de esquerda contra o que está acontecendo no país do que uma frente de direita”.

Já mudou o país. No domingo, a pesquisa Ipec o trouxe com um potencial de voto acima daquele do presidente da República. Na segunda, Jair Bolsonaro acordou cordato para uma reunião com a direção da Pfizer. Na terça-feira, o ministro Nunes Marques pediu vistas da suspeição de Moro para manter aberta a possibilidade de as provas dos processos de Lula serem validadas pela primeira instância do Distrito Federal. Na quarta-feira pela manhã, horas antes de o ex-presidente começar a falar, apareceu de máscara na cerimônia que sancionou a lei da aquisição de vacinas. Em seguida, o senador Flávio Bolsonaro tuitou uma foto do pai com a frase: “A vacina é nossa arma.”

Não será fácil para Bolsonaro. Se é a revelação de um arquivo de mensagens entre os integrantes da operação da Lava-Jato que permite a Lula tentar reescrever sua história, com Bolsonaro se dá o inverso. É o arquivo de condutas, falas, gestos e atos de seu governo que torna pouco crível a fantasia de estadista responsável que o presidente da República passou a envergar. E nem precisa de “hackers” para isso. Está na memória recente dos milhões de brasileiros que perderam familiares e empregos.

Isso não significa que Lula tenha uma avenida desimpedida. A reação dos pregões à sua elegibilidade que o diga. No único momento mais exaltado da entrevista, respondeu à repórter Cristiane Agostine, do Valor: “Não concordo com tudo que eles fazem nem eles com tudo que eu fiz, mas não precisam ter medo.” Desfiou a convivência de oito anos, sua posição contrária à autonomia do BC e em defesa do investimento público até chegar à sua crítica mais aguda: “A Febraban poderia me chamar para eu mostrar o demônio. Vou lá na Fiesp também. O demônio é a safadeza daqueles empresários para quem Guido Mantega liberou R$ 500 bilhões de desoneração que não foram repassados para os trabalhadores”. Ao atingir não apenas os empresários mas o governo de sua antecessora já antecipou a vacina que pretende usar contra a herança da ex-presidente Dilma Rousseff, esquecida na nominata.

A julgar pelo discurso, não haverá uma segunda Carta ao Povo Brasileiro. Suas credenciais serão os resultados de seus oito anos de governo. De olho na aversão dos investidores ao seu adversário, Bolsonaro resolveu prestigiar o ministro Paulo Guedes e o presidente do Banco Central, Roberto Campos, ao se deixar cercar por ambos na conferência virtual com a Pfizer. Não é capaz de estender esse prestígio à sua base no Congresso, incapaz de barrar as mudanças que desidratam a proposta que congela gastos para abrir espaço fiscal ao auxílio emergencial.

A entrada de Lula no cenário vai subir o “custo Centrão”, com reflexos nas contas públicas. Bolsonaro sancionou, a contragosto, como já deixou claro ao próprio presidente do BC, a autonomia do banco, mas tem como trunfo, para evitar a escalada de juros nesse momento em que enfrenta a volta do petista, os 90 dias de prazo que a mudança lhe deu. A partir da promulgação da emenda constitucional da autonomia, em 24 de fevereiro, Bolsonaro tem até 90 dias para enviar os nomes do presidente e dos diretores do Banco Central. Está dado que a equipe é esta que aí está, mas não custa lembrar que a prerrogativa é dele de confirmá-la.

A ausência do ministro da Saúde do encontro virtual com a Pfizer sinalizou qual será a saída do presidente para tirar a pandemia de suas costas. Eduardo Pazuello é o problema e ele, Bolsonaro, a solução. Para enfrentar o novo discurso do presidente, Lula mimetiza o presidente americano. Se as tragédias pessoais de Joe Biden (a perda da primeira mulher e de uma filha bebê num acidente de carro e de um filho para o câncer) alimentaram sua empatia com o eleitor americano assolado pela pandemia, Lula também tem seu arsenal. Sua segunda viuvez, que atribui à Lava-Jato, a morte de um neto de sete anos enquanto estava na prisão e a de um irmão a cujo enterro foi proibido de comparecer: “Queriam que eu fosse para um quartel do 2º Exército e meu irmão, dentro do caixão, fosse me visitar”.

Desde a decisão de Fachin, o mundo político em Brasília já se reposiciona. O Centrão ficará onde está. Fincou sua praça pedagiada no governo Bolsonaro com uma tarifa reajustada diariamente e usará os recursos arrecadados para se fortalecer na negociação com quem assumir a estrada. Nos demais partidos, o efeito da polarização será o de aumentar as candidaturas, não de reduzi-las. Se a ausência de Lula levava à reunião de forças para enfrentar Bolsonaro, sua presença estimula o lançamento de candidaturas visando à negociação de uma aliança no futuro governo. É isso, por exemplo, que levou o MDB a namorar a possibilidade de lançar o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia (DEM-RJ) e fez com que o PSD filiasse o secretário de Fazenda de São Paulo, Henrique Meirelles, ex-candidato à Presidência pelo MDB, com vistas à disputa de 2022. A postulação do governador João Doria virou o mote preferido das piadas que chegam ao gabinete presidencial.

A volta de Lula só enfraqueceu mesmo as candidaturas de fora da política, como a do apresentador Luciano Huck, e ameaça a de adversários do campo da centro-esquerda, como o ex-ministro Ciro Gomes (PDT), que foi pra cima. Disse que o fato de Lula ser inocente não significa que seja honesto. Lula valeu-se da mesma fleuma para responder ao ataque de Ciro (“Ele é um homem de 64 anos, não pode ofender as pessoas como quando era jovem”) e ao elogio de Rodrigo Maia, que foi ao Twitter para dizer que não é preciso gostar de Lula para entender a diferença dele para Bolsonaro (“Se ele resolveu reconhecer algum mérito no que fiz, fico agradecido [...] quem sabe está querendo construir uma nova relação política”).

O sucesso da estratégia de Lula será diretamente proporcional à capacidade de contagiar seu próprio partido de sua lhaneza. A sobrevivência de um discurso ajuste-de-contas com aqueles que lhe deram as costas ao longo dos últimos anos jogará por terra o apelo de conciliação nacional com o qual o ex-presidente reapareceu e no qual aposta para tirar seu passado dos tribunais e devolvê-lo para o juízo das urnas.


Daniel Aarão Reis: O bolsonarismo - Uma concepção autoritária em formação

A eleição de Jair Bolsonaro à presidência da República do Brasil, em novembro de 2018, surpreendeu e criou um estado de perplexidade e desorientação sobretudo no campo das esquerdas, mas também entre forças de centro e das direitas democráticas.

O presente artigo tenta contribuir para a compreensão do fenômeno, articulando-se nas seguintes seções: (1) Contexto internacional da ascensão das extremas-direitas; (2) A ascensão da extrema-direita no Brasil; (3) O caráter da extrema-direita brasileira; (4) A construção de alternativas democráticas.

A análise é de Daniel Aarão Reis, professor na Universidade Federal Fluminense (UFF), em artigo publicado por A Terra é Redonda, 09-03-2021.

Eis o artigo.

O contexto internacional da ascensão das extremas-direitas [i]

O crescimento das forças políticas de extrema-direita e de diversos tipos de regimes autoritários é uma tendência mundial desde fins do século XX e inícios do presente século.

No cerne do processo encontra-se o que se convencionou chamar de revolução digital ou informática que tem mudado radicalmente os padrões civilizatórios da humanidade. À semelhança da chamada revolução fordista que, na virada dos séculos XIX/XX, transformou em profundidade as sociedades humanas, a civilização da informação, produto da atual revolução, tem igualmente produzido efeitos sociais, políticos, culturais e econômicos desestabilizadores.

No quadro da nova revolução, destacam-se alguns aspectos na economia e na sociedade: a aceleração, desde os anos 1970, das desigualdades sociais e econômicas (T. Piketti, 2014); a partir dos anos 1980, a consolidação da hegemonia do capital financeiro, com ênfase para os capitais especulativos e os paraísos fiscais libertados de anteriores legislações restritivas; o enfraquecimento das regulamentações que regiam os movimentos internos e internacionais de capitais e mercadorias; a privatização de setores econômicos e serviços públicos, mesmo dos que eram até então considerados estratégicos aos interesses nacionais; a fragilização correspondente da capacidade de intervenção e controle dos Estados Nacionais; desde os anos 1990, o surgimento de novos setores/atividades dinâmicos, como, entre outros, a informática, a biotecnologia, a robótica, a inteligência artificial, de alto nível de monopolização ou oligopolização, com impactos radicais na área das comunicações (internet, mídias sociais, etc.); a realocação internacional da produção industrial mundial e o declínio acelerado do peso demográfico das classes operárias nos países capitalistas mais poderosos; a desarticulação e a precarização dos mercados de trabalho (uberização) e das instituições sindicais tradicionais; o surgimento de novos polos de desenvolvimento (Índia, China) e de megamercados regionais, alterando o equilíbrio instaurado no pós-Segunda Guerra Mundial.

Os regimes de democracia representativa têm sido incapazes de lidar com os desafios decorrentes destas mutações. As instituições políticas e jurídicas perdem credibilidade ao não atender às demandas sociais. Entre os jovens e as classes populares acentua-se o desinteresse em relação aos processos eleitorais e a desconfiança em relação a um sistema político criticado como ineficaz, corrupto e desmoralizado (S. Levitsky e D. Ziblatt, 2018 e D. Runciman, 2018). Trata-se de um processo em curso desde os anos 1960/1970, quando passaram a emergir como protagonistas das lutas políticas, movimentos sociais que não se deixam enquadrar pelos jogos institucionais ou/e eleitorais (D. Aarão Reis, 2018).

Os regimes de democracia representativa têm sido incapazes de lidar com os desafios decorrentes destas mutações - Daniel Aarão Reis Tweet

Instaurou-se uma “sociedade da insegurança” (N. Fraser, 2007). Os que perdem posições ou não conseguem mantê-las, as grandes massas de assalariados ou dos que vivem do próprio trabalho, sentem-se amedrontados. As referências culturais que pareciam sólidas desmancham no ar. Ações terroristas, desde 2001 (T. Ash, 2011); crises econômicas e catástrofes naturais acentuam uma atmosfera de incertezas e angústia.

As forças e os partidos políticos reformistas, democráticos ou socialistas não têm conseguido apresentar propostas que sejam capazes de reformar as estruturas políticas e econômicas, diminuir as desigualdades sociais ou/e questionar a hegemonia do grande capital financeiro [ii]. Encolhidos nas fronteiras nacionais perdem capacidade de enfrentar fenômenos que se desdobram globalmente e não conseguem controlar ou atenuar os efeitos destrutivos da revolução em curso.

Têm sido assim identificados, com ou sem razão, como sócios de regimes incapazes de defender as grandes maiorias, o que se tornou particularmente evidente no enfrentamento da crise econômica de 2008, quando o custo de superação de seus efeitos desabou nas costas dos trabalhadores assalariados (A. Przeworski, 2019).

É neste quadro geral de desespero que se reforçam as tendências e propostas nacionalistas e autoritárias de direita, num processo de reação nacionalista [iii], quase sempre expressas através de organizações ou partidos de extrema-direita [iv].

O fenômeno Donald Trump nos Estados Unidos, o crescimento das forças de extrema-direita na Europa Ocidental (ItáliaFrança e Inglaterra) e Central (Hungria e Polônia), na Ásia (Índia e Filipinas) e na América Latina (ChileColômbia e Brasil) atestam a existência do processo. Uma de suas principais particularidades é que tais forças não se confrontam abertamente com as instituições democráticas, mas as instrumentalizam, corroendo-as por dentro, desfigurando-as. Combinam eficazmente o recurso à opinião pública e o uso intenso das chamadas mídias sociais no quadro de opções nacionalistas, antidemocráticas e conservadoras do ponto de vista social e religioso [v].

É neste quadro geral de desespero que se reforçam as tendências e propostas nacionalistas e autoritárias de direita, num processo de reação nacionalista, quase sempre expressas através de organizações ou partidos de extrema-direita
Daniel Aarão Reis

A ascensão da extrema-direita no Brasil

A vitória de Jair Bolsonaro insere-se neste quadro internacional. É a expressão brasileira destas tendências.

Para compreendê-la, uma vez contextualizada no plano internacional, proponho a articulação de três temporalidades: na longa duração, o estudo das tradições autoritárias de direita no país; na média duração, a deterioração do sistema político entre a promulgação da Constituição de 1988 e as eleições de 2018; na curta duração, a incidência da campanha eleitoral e seus efeitos.

As tradições autoritárias de direita: a longa duração

São densas as tradições autoritárias de direita no Brasil. Entre outras, destacam-se o racismo; as desigualdades sociais; o patrimonialismo e o mandonismo; a exploração sistemática do anticomunismo; a discriminação de gênero e os regimes democráticos fechados e elitistas.

Examinemos cada um destes aspectos.

As relações escravistas, antes de serem tardiamente abolidas, disseminaram-se por toda a sociedade (escravismo doméstico ou de proximidade), gerando desprezo pelo trabalho manual e relações hierárquicas. O processo peculiar de miscigenação, apresentado como antídoto à discriminação racial, apenas disfarçou formas onipresentes de racismo, evidenciadas, entre outros índices, nas desigualdades de emprego, de renda e de educação; no uso e abuso da violência policial; na população carcerária. Um racismo estrutural. E estruturado [vi].

É neste quadro geral de desespero que se reforçam as tendências e propostas nacionalistas e autoritárias de direita, num processo de reação nacionalista, quase sempre expressas através de organizações ou partidos de extrema-direita
Daniel Aarão Reis

As desigualdades de toda a ordem não foram atenuadas pelo progresso econômico, registrado entre 1930 e 1980. Mesmo as políticas de redução da pobreza, quando formuladas e aplicadas (2002-2010), reproduziram padrões brutais de desigualdades regionais e sociais, configurando amplas maiorias numa condição de cidadania de segunda classe, cujos direitos, embora proclamados em leis e mesmo na constituição, não se concretizam, a não ser muito parcialmente, na prática social.

patrimonialismo e o mandonismo, fundamentos da Ordem agrária, ancorados longe no passado colonial, conservaram grande força. Em artigo recente, o antropólogo Roberto Da Matta referiu-se “ao colonialismo autoritário e burocrático, radicalmente católico e anti-igualitário”, combinado a “laços de puxa-saquismo com punhos de renda, irmão de um desumano escravismo negro”. [vii] O processo de urbanização não dissolveu sua força e incidência, nem a República, proclamada em 1889, foi capaz de neutralizar seus efeitos. O acesso limitado à plena cidadania – apesar do que dizem os textos legais – reproduz a preeminência das relações pessoais em detrimento de códigos legais impessoais.

discriminação de gênero persiste, evidenciada em altos índices de violência doméstica e de estupros [viii]. Os avanços no sentido da emancipação da mulher são muito recentes, datando dos anos 1970, salvo o direito de voto, assegurado desde 1934. As desigualdades profissionais e de renda, o limitado acesso aos níveis mais altos de prestígio social e de remuneração, a criminalização da interrupção voluntária da gravidez atestam a subordinação violenta da “segunda metade do céu”.

anticomunismo tem uma longa história no país. Esteve presente nos anos que assistiram à irrupção da revolução soviética. Seria retomado com imensa ênfase depois da insurreição revolucionária liderada pelos comunistas, ocorrida em novembro de 1935, servindo, um pouco mais tarde, como principal pretexto para o golpe de 1937, que instaurou a ditadura do Estado Novo, entre 1937-1945.

Nestas condições, as instituições democráticas não poderiam mesmo se consolidar. Uma república proclamada através de um golpe de estado, o permanente monitoramento do regime político pelos militares, a seletividade elitista na atribuição da cidadania, a extensão soluçante e limitada dos direitos civis, políticos e sociais - Daniel Aarão Reis Tweet

Como um espectro, condicionaria a sociedade brasileira nos anos 1950 e, em especial, na conjuntura que precedeu o golpe civil-militar de 1964, quando, mais uma vez, seria uma bandeira central para a unificação das forças golpistas, permanecendo vivo ao longo da ditadura, até 1979. Durante todos estes anos, mobilizadas pela Igreja Católica, as forças conservadoras – e, às vezes, até mesmo partidos de esquerda – acionariam permanentemente o comunismo como um espantalho, um perigo imediato, ameaçador, pondo em perigo as instituições e a própria vigência da “civilização cristã” no país [ix].

Nestas condições, as instituições democráticas não poderiam mesmo se consolidar. Uma república proclamada através de um golpe de estado, o permanente monitoramento do regime político pelos militares, a seletividade elitista na atribuição da cidadania, a extensão soluçante e limitada dos direitos civis, políticos e sociais, os principais saltos econômicos registrados sob dominação de regimes ditatoriais (1937/1945 e 1964/1979), tudo disso deixou marcas profundas nas tendências políticas de direita e de esquerda. O reconhecimento de amplos direitos data apenas dos últimos anos do século XX (Constituição de 1988), mas muitos dispositivos legais existem apenas no papel.

A combinação destes aspectos na longa duração estruturou uma sociedade marcada pelas desigualdades, hierarquia, violência, intolerância e discriminações (L. Schwarcz, 2019 e H.Starling, 2019).

Sem embargo, foi notável como amplos círculos – políticos e intelectuais – tenderam a subestimar a força destas tradições e a considerar a democracia brasileira como “consolidada”. Um caso típico de cegueira política e histórica.

Nunca foi tão urgente como hoje superar este equívoco.

Vários historiadores, desde os primeiros anos deste século, têm chamado atenção para as “relações complexas” que se estabeleceram entre as ditaduras e a sociedade, evidenciando como aquelas não foram produto apenas da vontade das classes dominantes e da repressão, (ressalvado o papel fundamental desta última), mas contaram, sob hegemonia do grande capital financeiro, com apoios transversais em todos os níveis da sociedade. Efetivamente, em torno dos dois regimes ditatoriais que se impuseram no país no século XX (1937-1945; 1964-1979 [x]), foi possível construir não raro um consenso social significativo, o que oferece subsídios para a compreensão da instauração quase pacífica de ambos e dos processos também pacíficos de sua superação. Importantes pesquisas têm demonstrado a adequação desta interpretação[xi].

Considerar as tradições autoritárias para compreender a atual ascensão da extrema-direita não deve conduzir, porém, à sua absolutização [xii]. Apesar destas tradições, maiorias expressivas elegeram à presidência da república o sociólogo de centro-esquerda Fernando Henrique Cardoso (1994/2002), o líder operário, Luiz Inácio Lula da Silva (2002/2010) e Dilma Rousseff (2010/2016), ex-militante da luta contra a ditadura. Em outras palavras: as tradições autoritárias condicionam opções, mas não as determinam automaticamente. Como gostava de dizer o intelectual israelense, Amoz Oz: “o passado nos pertence, não pertencemos ao passado”. As tradições, embora poderosas, não podem expulsar a política da história. A longa duração não exclui a avaliação da média e da curta duração. Cumpre agora analisar estas últimas.

As “relações complexas” que se estabeleceram entre as ditaduras e a sociedade, evidenciando como aquelas não foram produto apenas da vontade das classes dominantes e da repressão, mas contaram, sob hegemonia do grande capital financeiro, com apoios transversais em todos os níveis da sociedade
Daniel Aarão Reis

A média duração: a grande conjuntura 1988/2018

Tornou-se comum denominar o período que se inaugurou com a aprovação da Constituição de 1988 como “nova república” [xiii]. Segundo os adeptos da denominação, ela teria entrado em crise com o impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, e sido definitivamente enterrada com a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018 [xiv] (A. Alonso, 2019 e E. Solano, 2019).

Aceite-se ou não a periodização, o fato é que a grande conjuntura entre 1988 e 2018 oferece uma plataforma interessante para avaliar as circunstâncias e as opções que levaram à perda radical do prestígio de um sistema político que parecia tão promissor em fins do século XX. Trata-se de uma reflexão importante, eis que a vitória da extrema-direita e de Jair Bolsonaro está intimamente vinculada à desmoralização do sistema político atual.

Entre outros aspectos, o que marca a trajetória da nova república, do ponto de vista político, ressalvados os anos presididos por Collor de Mello [xv] é a preeminência da polarização entre o Partido da Social-Democracia Brasileira/PSDB e o Partido dos Trabalhadores/PT [xvi]. Os dois partidos encarnaram as aspirações reformistas no sentido da construção de uma sociedade democrática e menos desigual.

A visibilidade, o prestígio e o poder adquiridos por eles corresponderam a políticas de defesa dos interesses das grandes maiorias. Entre muitas outras, o controle da inflação, empreendido nos anos de governo do PSDB e as políticas de distribuição de renda e as chamadas afirmativas contra o racismo, implantadas nos anos de governo do PT, em particular nos mandatos de Lula (2002/2010). Tiveram impacto positivo na redução dos índices de pobreza, mas não alteraram o padrão das desigualdades sociais que se mantiveram ou até se ampliaram. Entretanto, o ímpeto reformista dos dois partidos foi se arrefecendo, configurando-se, em ambos os casos, um “reformismo mole” (A. Singer, 2012).

Fez parte deste processo o pouco apreço por uma política ativista de memória, capaz de suscitar debates sociais e políticos a respeito do período ditatorial, características e legados, bem como a ausência de um debate socialmente amplo sobre direitos humanos e a condenação veemente de crimes contra a humanidade, cometidos pelo Estado brasileiro durante as ditaduras do século XX (D. Aarão Reis, 2019ª). O inventário das cicatrizes deixadas pela ditadura deixou de ser feito, com evidente prejuízo para a consciência cidadã [xvii].

Fez parte deste processo o pouco apreço por uma política ativista de memória, capaz de suscitar debates sociais e políticos a respeito do período ditatorial, características e legados, bem como a ausência de um debate socialmente amplo sobre direitos humanos e a condenação veemente de crimes contra a humanidade, cometidos pelo Estado brasileiro durante as ditaduras
Daniel Aarão Reis

Ao perderem as eleições para o PT, em 2002, o PSDB e seu líder, Fernando Henrique Cardoso, já registravam um considerável desgaste. Alianças consideradas sem princípios com partidos e grupos notoriamente conservadores e corruptos haviam corroído sua aura reformista e inovadora. Nada, no entanto, que ameaçasse sua posição de polo insubstituível nas lutas políticas institucionais.

Quanto ao PT, já no primeiro governo de Lula, escândalos de corrupção e principalmente o abandono de propostas reformistas mais consistentes começaram a abalar o prestígio e a colocar em dúvida os compromissos políticos do partido e do presidente. Entretanto, as dúvidas pareceram superadas com a reeleição de Lula (2006), e ao longo do segundo mandato (2006/2010), quando o país viveu momentos de intensa euforia social e política, o que se confirmaria com a eleição de Dilma Rousseff (2010). A nova república parecia segura e não poucos celebravam a consolidação da democracia no Brasil, chancelada internacionalmente com a aprovação do país como sede da Copa do Mundo (2014) e das Olimpíadas de Verão (2016).

A partir de 2010, no entanto, começaram a se fazer sentir os impactos da grande crise econômica mundial de 2008, muito subestimados e por isso mesmo mal atenuados ou controlados. Num quadro de agravamento das contradições, demandas sociais explodiram em vários níveis: por emprego; por serviços públicos de qualidade; por políticas de combate à corrupção, cuja existência tornou-se assunto nacional a partir de sucessivos escândalos envolvendo empresários e políticos; por políticas positivas em relação à segurança que, nas cidades, se tornava uma questão maior para todas as classes sociais.

As grandes manifestações de 2013, politicamente plurais, revelaram uma profunda insatisfação e desconfiança em relação aos partidos e lideranças políticas, expressas por multidões nas ruas e praças públicas.

Entretanto, face a este conjunto de desafios, PT e PSDB mostraram-se incapazes de oferecer propostas construtivas e credíveis. Enredados em suas querelas e jogos de poder, perdida sua vocação reformista original, era como se estivessem distanciados da sociedade, sem nexos com os problemas que atormentavam as pessoas comuns. Começou a brotar a ideia de que o sistema político já não funcionava a contento. Falido? Alguns começavam a dizer que estava podre.

Foi numa atmosfera de exasperação de contradições, condições propícias para a emergência de lideranças salvacionistas, outsiders supostos ou reais, que se abriu o ano eleitoral de 2018[xviii]. Ainda não estavam, porém, dadas todas as condições que ensejariam a vitória de Jair Bolsonaro.

Elas aconteceram na campanha eleitoral, na curta duração. Daí porque ser tão importante analisar esta temporalidade. Em caso contrário, como já se disse, a política seria expulsa da história.

As grandes manifestações de 2013, politicamente plurais, revelaram uma profunda insatisfação e desconfiança em relação aos partidos e lideranças políticas, expressas por multidões nas ruas e praças públicas
Daniel Aarão Reis

A campanha eleitoral de 2018: a curta duração

A análise da campanha eleitoral, na temporalidade da curta duração, é indispensável para a compreensão da ascensão da extrema-direita ao governo pelo voto.

Em pesquisas realizadas em 22 de agosto, menos de dois meses antes do primeiro turno, Bolsonaro ainda se mantinha em 22% das intenções de voto, e poucos acreditavam que fosse capaz de alcançar patamares muito mais altos. Daí a quase três semanas, em 10 de setembro, ele ganhara apenas mais 2 pontos, chegando a 24% das intenções de voto [xix]. Em outras palavras, apesar das tradições autoritárias e do desgaste do sistema político, não havia ainda certeza, muito pelo contrário, a respeito do sucesso da candidatura salvacionista de extrema-direita.

Que circunstâncias e opções conduziram à sua vitória?

De um lado, as esquerdas democráticas subestimaram o seu potencial de crescimento. Não conseguiram unir-se, dispersando-se em candidaturas rivais. Além disso, o PT recusou-se a avaliar a onda de fundo antipetista que permeava a sociedade, muito forte entre as classes médias, mas alcançando também camadas populares. Descartou assim a hipótese de apoiar um candidato de outro partido. E manteve durante longo e precioso tempo, em movimento suicida, a (anti) candidatura de Lula, ilegal na medida que ele fora condenado em segunda instância pela Justiça [xx].

Quando o partido, finalmente, resolveu apoiar formalmente a candidatura do ex-ministro da Educação e ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, o fez com ressalvas, apresentando-o como se fosse um peão de Lula. Tolhido pelos erros e inconsequências do PT e de Lula que sempre se recusaram a produzir qualquer tipo de autocrítica, Haddad não conseguiu apresentar propostas para neutralizar ou conter a corrupção em larga escala e a insegurança nas grandes cidades, dois grandes temas da campanha eleitoral, explorados de forma tosca, mas eficaz, pelo candidato de extrema-direita. Entre os dois turnos, Haddad recuperou terreno, cultivou personalidade própria, formulando propostas objetivas e convincentes, mas já não houve tempo político para reverter os resultados desfavoráveis.

Quanto ao PSDB, naufragada com a candidatura de Geraldo Alckmin, ex-governador de São Paulo e um dos líderes mais importantes do partido. Montando poderosa frente partidária, dispondo de vultosos recursos financeiros, agrupou muitas forças de centro e das direitas democráticas. Imaginava-se que a disputa tenderia a ser, mais uma vez, entre ele e o candidato do PT [xxi]. No entanto, em amplos contingentes do eleitorado, prevaleceu a percepção de que, para derrotar o PTBolsonaro reunia melhores condições do que Alckmin. Houve, assim, nas três últimas semanas da campanha, um trânsito maciço de votos para o candidato da extrema-direita, garantindo sua vitória.

As esquerdas democráticas subestimaram o seu potencial de crescimento. Não conseguiram unir-se, dispersando-se em candidaturas rivais
Daniel Aarão Reis

O vitorioso não se beneficiou apenas dos erros adversários. A partir de suas bases mais radicais, nas forças armadas e policiais [xxii], soube construir alianças surpreendentes e diversificadas. Escolheu como seu ministro da economia um empresário vinculado à especulação financeira que lhe abriu as portas para uma aliança com os capitais financeiros. No campo da economia também estruturou apoios entre os empresários ligados à exportação de produtos agrícolas, o chamado agronegócio, e com garimpeiros e madeireiros comprometidos com a devastação das florestas e com a abertura de fronteiras agrícolas.

Definindo o juiz Sergio Moro como ministro da Justiça, ganhou a confiança de todos os que consideravam a corrupção e a segurança grandes problemas nacionais [xxiii]. Explorando uma pauta conservadora do ponto de vista dos costumes, teceu laços com as igrejas evangélicas, com crescente força no país [xxiv]. Tais alianças seriam potencializadas pelas bancadas parlamentares ruralistas, armamentistas e religiosas, ditas BBB (do boi, da bala e da bíblia), conformando apoios eficazes na campanha eleitoral.

Restaria ainda mencionar duas importantes referências: o atentado sofrido por Bolsonaro, em 6 de setembro de 2018, que lhe permitiu afastar-se dos debates onde suas performances o desfavoreciam [xxv] e a organização e intensa exploração de uma sofisticada rede de comunicações, acionando de modo profissional as chamadas mídias sociais, seja para divulgar propaganda positiva, seja para disseminar falsas informações (fakenews).

Combinaram-se, assim, como sempre, erros (dos adversários) e acertos que beneficiaram o candidato vitorioso.

A elucidação das razões da vitória da extrema-direita e de Jair Bolsonaro passa, assim, pela compreensão do contexto internacional, do qual ela é a expressão brasileira, e pela articulação de três temporalidades: as tradições autoritárias de direita na longa duração; o desgaste do sistema político na média duração; e os erros (dos adversários) e acertos (próprios) da campanha eleitoral, na curta duração [xxvi].

Cumpre agora discutir melhor o caráter desta vitória e do governo liderado por Jair Bolsonaro desde 1° de janeiro de 2019.

A elucidação das razões da vitória da extrema-direita e de Jair Bolsonaro passa, assim, pela compreensão do contexto internacional, do qual ela é a expressão brasileira, e pela articulação de três temporalidades: as tradições autoritárias de direita na longa duração; o desgaste do sistema político na média duração; e os erros (dos adversários) e acertos (próprios) da campanha eleitoral
Daniel Aarão Reis

O caráter da extrema-direita brasileira

A vitória de Jair Bolsonaro, como já referido, suscitou um clima de grande perplexidade. Como é usual, as primeiras explicações e interpretações procuraram no passado paralelos ou fontes para entender o fenômeno.

Alguns afirmaram que o Brasil teria voltado aos anos 1960 e estaria na iminência de um golpe de estado, como em 1964. Outros preferiram ver semelhanças com a conjuntura que levou à promulgação do Ato Institucional n° 5, editado em dezembro de 1968, que radicalizou a ditadura então existente [xxvii]. Numa incursão a um passado mais distante, foram invocadas as experiências do movimento integralista brasileiro nos anos 1930, da ditadura do Estado Novo e, num plano mais geral, formularam-se associações – controvertidas – com o fascismo italiano e mesmo com o nazismo alemão, como se verá adiante.

Tais interpretações merecem discussão. Entretanto, como estou convencido de que a ascensão atual da extrema-direita no Brasil constitui um movimento original e ainda com perfil não consolidado, cumpre, antes de tudo, descrever o fenômeno para melhor captar sua especificidade e empreender, se for possível, sua conceituação.

estou convencido de que a ascensão atual da extrema-direita no Brasil constitui um movimento original e ainda com perfil não consolidado, cumpre, antes de tudo, descrever o fenômeno para melhor captar sua especificidade e empreender, se for possível, sua conceituação - Daniel Aarão Reis Tweet

Conforme esboçado na análise da campanha eleitoral a vitória de Jair Bolsonaro deveu-se à articulação de uma frente heterogênea que pode ser apresentada em forma de círculos, hierarquizáveis de acordo com a fidelidade a Bolsonaro.

Um primeiro círculo – núcleo forte e bastião do pensamento da extrema-direita – é constituído pelos oficiais das forças armadas, em particular do exército, mais os oficiais e suboficiais das Polícias Militares, da ativa e da reserva [xxviii]. Jair Bolsonaro, através de longa carreira parlamentar, projetou-se não apenas como representante dos interesses corporativos destas gentes, mas também como um dos únicos políticos, e com grande audácia, a resgatar em chave positiva a experiência da ditadura, inclusive seus métodos violentos de torturar e matar adversários.

A pauta da defesa dos costumes conservadores é outra importante referência a fidelizar estas bases a Bolsonaro, pois, em comum, cultivam o conceito de guerra cultural ou guerra híbrida, a ser travada contra os agentes – instituições e partidos – acusados de promover a destruição das tradições, da moral estabelecida, dos bons costumes e das tradições políticas e éticas da nação. Ingredientes importantes nesta perspectiva são as críticas ao globalismo, ao enfraquecimento dos estados e culturas nacionais, e aos novos métodos – encobertos e camuflados – através dos quais operariam novas e velhas esquerdas em sua luta permanente pelo controle da sociedade e do poder. Tais referências não podem ser nem exclusivamente nem principalmente atribuídas a Olavo de Carvalho, cujas manifestações caricaturais não deveriam servir para encobrir núcleos de formulação mais consistentes, que elaboram tais ideias há muitos anos no interior das, e protegidos por estruturas institucionais das forças armadas.

Foi no interior do estado maior do Exército que se formou uma equipe, ainda nos anos 1980, devidamente autorizada pelo ministro da arma, general Leonidas Gonçalves, que formulou volumoso livro, com um resgate da ditadura em chave positiva, enfatizando-se o papel dos militares como tutores da república e as sucessivas ameaças empreendidas pelas esquerdas no sentido da dissolução da nacionalidade brasileira. O texto, intitulado Orvil (anagrama de livro) só foi publicado mais tarde (L. Maciel e J. C. do Nascimento, 2012), mas se constituiu, desde então, numa referência para a extrema-direita militar e civil.[xxix].

Um segundo círculo, não menos importante, é constituído por setores populares de classe média, alguns com afinidades profissionais (pequenos empreendedores, caminhoneiros, taxistas, etc.), articulados pelas novas mídias sociais (whatsappfacebooktwitteryoutubeblogs, etc.), financiadas, em grande parte, por empresários bolsonaristas. Os valores compartilhados de extrema-direita compreendem, entre outros, o recurso à violência para matar criminosos comuns, o conservadorismo social, o ódio às lutas identitárias, etc.

Têm sido importantes nas ações de ruas e na intimidação de adversários, mas seus níveis internos de organização ainda são precários. Neste segundo círculo também poderiam ser incluídos as milícias. Constituídas por ex-integrantes das polícias militares, além de criminosos comuns, elas vêm ganhando força ao longo do atual século em algumas grandes cidades. Disputam espaço com facções de criminosos comuns no controle de atividades ilegais e semilegais e extorquem comunidades de diversos tipos, periféricas às grandes cidades, vendendo proteção em troca de segurança. A despeito de sua autonomia enquanto organizações criminosas, aparecem como um potencial e temível braço armado, eventualmente disponível para aterrorizar e matar adversários [xxx].

As igrejas evangélicas constituem um terceiro círculo. Não se estruturam monoliticamente, mas, em grande maioria, apoiaram ativamente a candidatura de Bolsonaro[xxxi]. Destaca-se também aí a pauta dos costumes. De modo geral, os evangélicos acreditam nos valores do trabalho, do ascetismo, do esforço próprio, da ajuda mútua e abominam as lutas identitárias, o consumo de drogas e a revolução comportamental que é um aspecto das transformações civilizacionais em curso. Apoiadas em crescente adesão social, fortes bancadas parlamentares (a bancada da Bíblia) e poderosos meios de comunicação, tornaram-se uma respeitável força política no país.

As igrejas evangélicas constituem um terceiro círculo. Não se estruturam monoliticamente, mas, em grande maioria, apoiaram ativamente a candidatura de Bolsonaro
Daniel Aarão Reis

Mas seria um equívoco imaginar que seriam dóceis aliados, pois há contradições entre os valores cultivados pelos evangélicos e determinados aspectos do credo bolsonarista, como o recurso à violência (bandido bom é bandido morto), a conciliação consequente com as milícias, rejeitada, e a liberação dos jogos de azar, que eles execram.

Num quarto círculo, encontram-se vastos setores das classes médias afluentes (profissionais liberais, assalariados de padrão mais alto, etc.), principalmente no sul e sudeste do país. Desorganizadas, unificaram-se em torno de Bolsonaro menos pelo compartilhamento de valores ideológicos e mais pela luta contra a corrupção e o antipetismo. A nomeação do Juiz Sergio Moro para o cargo de Ministro da Justiça consagrou a adesão destas camadas sociais a Bolsonaro, mas sua recente demissão, em 24 de abril passado, e suas denúncias contra a conciliação de Bolsonaro com a corrupção, abalaram a confiança destas bases [xxxii].

Num quinto círculo, finalmente, encontram-se setores importantes das classes dominantes brasileiras, do capital financeiro internacionalizado ao agronegócio, cujas propostas costumam ser veiculadas pelos grandes meios de comunicação. Eles não têm voto, mas têm recursos que condicionam votações. Num primeiro momento, viam com desconfiança a extrema-direita, preferindo um candidato de centro ou de centro-direita para derrotar o petismo. Neste sentido, apostaram suas fichas no PSDB e em seu candidato, Geraldo Alckmin.

À vista do fracasso deste último, porém, migraram em massa para a candidatura Bolsonaro, na expectativa de controlar e domesticar seu extremismo. A escolha de Paulo Guedes como ministro das finanças, um homem comprometido com programas e reformas ultraliberais, contribuiu para que se viabilizasse o apoio destas gentes.

Para encerrar, cumpre enfatizar o potencial de apoio social do qual dispõe Bolsonaro em camadas populares, o que, em parte, é assegurado pelo trabalho de base dos evangélicos, notoriamente ramificados, de forma capilar, nas comunidades mais pobres do país. Sua capacidade de comunicação, auxiliada por um trabalho profissional nas mídias sociais, só perde para a de Lula. Gestual e palavras obscenas, que chocam as camadas de elite e letradas do país, são, muitas vezes, encaradas como expressões de coragem e autenticidade, qualidades escassas entre os políticos profissionais. Não esquecer as expressivas votações de Bolsonaro nos grandes centros urbanos e nas capitais dos Estados. Mesmo na região Nordeste, que permaneceu majoritariamente fiel ao PT e a LulaBolsonaro venceu em grandes cidades consideradas de larga tradição de esquerda, como Recife, capital de Pernambuco.

A multiplicidade e a pluralidade das bases de apoio que garantiram a vitória da extrema-direita evidenciam seu caráter profundamente heterogêneo. Recorde-se que a vitória de Bolsonaro não foi uma surpresa apenas para seus adversários, mas também para ele e seus fiéis apoiadores.

Uma frente política constituída de forma apressada, sem propostas claras para uma série de problemas fundamentais do país (educação, saúde, transportes públicos, segurança etc.), apoiada em ideias simplistas, salvadoras, que ignoravam – e ignoram – a complexidade das questões com as quais teria que lidar caso o candidato fosse sufragado. A improvisação evidencia-se no troca-troca de ministros, tendo já sido substituídos doze deles em apenas um ano e meio de governo, além de dezenas de substituições em escalões secundários, mas importantes [xxxiii].

a extrema-direita atual é bastante diferente das referências que vertebraram as ditaduras do passado. E é questionável também a aproximação que se faz entre o quadro atual e a experiência integralista dos anos 1930 e, em particular, com a experiência do fascismo - Daniel Aarão Reis Tweet

Apesar de declarações altissonantes – e de bravatas em série –, que marcaram uma primeira fase do Governo, até junho de 2020, o governo e a extrema-direita não foram capazes de gestar até o momento uma doutrina coerente. Suas formulações encontrar-se-iam num estado gasoso, se a metáfora for permitida, o que dá conta das improvisações e acochambrações diversas, mal encobertas por uma estridente e poderosa propaganda. Trata-se de uma força política cujas concepções ainda estão em formação, como uma nebulosa, daí as dificuldades em conceituá-la, embora sejam bastante claros – e perigosos – seus propósitos autoritários e antidemocráticos.

Tais propósitos têm raízes autoritárias no passado brasileiro. Entretanto, a extrema-direita atual é bastante diferente das referências que vertebraram as ditaduras do passado. E é questionável também a aproximação que se faz entre o quadro atual e a experiência integralista dos anos 1930 e, em particular, com a experiência do fascismo.

De um lado, as conjunturas internacionais que ensejaram as ditaduras e o fascismo histórico (e o integralismo) têm características qualitativamente diferentes das atuais. As ditaduras exprimiam alianças de classe bem definidas e projetos claros de modernização autoritária. Não é o caso da atual extrema-direita[xxxiv].

Quanto ao integralismo e ao fascismo, caberia uma análise mais complexa [xxxv].

Se pensarmos o fascismo histórico, não há consistência teórica em identificá-lo com a atual extrema-direita brasileira. O fascismo caracterizou-se por propostas de regeneração cultural, de integração e enquadramento orgânico da sociedade, de mobilização intensiva e agressiva da população. Acionava um nacionalismo exacerbado, militar, violento e expansionista e voltado para a construção de um projeto de renovação da sociedade, típico das direitas revolucionárias. Ora, este conjunto de características e de referências não se encontra no bolsonarismo [xxxvi].

Do ponto de vista do debate a respeito da adequação e eficácia políticas do emprego do termo, preferimos empreendê-lo no próximo item, destinado ao estudo das alternativas disponíveis para lidar com a extrema-direita.

A democracia face à extrema-direita. Desafios & Alternativas

A análise do bolsonarismo tornou-se mais complexa em virtude de acontecimentos que se têm desdobrado a partir de junho de 2020.

Até então o governo manteve uma retórica beligerante, apoiando grupos extremistas que se destacavam por uma retórica de enfrentamento e que demandavam abertamente, às vezes com a presença e o estímulo do próprio presidente, o fechamento das instituições da democracia representativa, ou seja, um golpe de estado na tradição latino-americana dos anos 1960/1970.

Com o crescimento das tensões, associadas à crise gerada pela pandemia do vírus covid-19, extremamente mal gerenciada por Bolsonaro, à demissão do ministro da Justiça em abril de 2020, e a vários escândalos de corrupção, envolvendo fiéis aliados e até os próprios filhos de Bolsonaro, o governo sofreu profundo desgaste. Tendo sido sufragado por 57,8 milhões de votos (55,13% dos votos válidos), os índices de confiança caíram bastante, conforme flagrado por pesquisas realizadas em maio e junho de 2020, situando-se em torno de 30% [xxxvii].

Houve, a partir de então, notável e surpreendente reviravolta.

Bolsonaro abandonou à própria sorte os grupos extremistas que se isolaram e enfrentam hoje complicados processos na Justiça. Suspendeu igualmente a habitual retórica estridente, com aspectos paranoicos, e se dedicou, com sucesso, a formar ampla base política com diversos partidos minados por múltiplas acusações de envolvimento com a corrupção. No mesmo movimento, definiu um padrão de relações estáveis e amigáveis com lideranças do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, até então quotidianamente hostilizadas [xxxviii].

Se pensarmos o fascismo histórico, não há consistência teórica em identificá-lo com a atual extrema-direita brasileira. O fascismo caracterizou-se por propostas de regeneração cultural, de integração e enquadramento orgânico da sociedade, de mobilização intensiva e agressiva da população
Daniel Aarão Reis

Bafejado pelo impacto positivo do auxílio emergencial aprovado pelo Congresso, mas que tem sido atribuído ao presidente pelos beneficiários, e apesar do desgaste entre os que votaram nele pensando na luta contra a corrupção, Bolsonaro voltou a conhecer substancial crescimento nos índices de aprovação popular segundo pesquisas realizadas em setembro último [xxxix].

As opiniões e análises se dividem agora a propósito dos rumos do bolsonarismo e do governo de Jair Bolsonaro. Estaríamos assistindo a um recuo episódico, “tático”, ou se trataria de definição de novos rumos? O presidente estaria receoso de que os processos contra seus filhos pudessem alcançar um ponto de não-retorno? Atingindo-o através de um processo de impeachment, de duvidosos resultados? O que teria feito Bolsonaro desistir das bravatas e ameaças sem fim? Os altos mandos das Forças Armadas teriam desaconselhado aventuras militaristas e ditatoriais? O presidente teria concluído que, entre as próprias classes dominantes, não haveria espaço, pelo menos nas circunstâncias atuais, para surtos autoritários? Teria sido ele, afinal, domesticado no quadro dos parâmetros institucionais? Outra incógnita, maior, completa o quadro de dúvidas: as orientações ortodoxamente neoliberais, lideradas pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, seriam mantidas a todo o custo ou prevaleceriam inclinações por políticas nacional-estatistas, conferindo ao Estado um protagonismo decisivo na recuperação da economia?

O futuro do governo permanece indeciso. A cruzada contra a corrupção, depois da demissão do ministro da Justiça, Sergio Moro, em abril passado, deixou de ser uma prioridade, para dizer o menos. A proposta neoliberal de reorganização da economia encontra-se também em questão. O ministro da Economia, Paulo Guedes, paladino desta perspectiva, apesar de seus esforços, não conseguiu ainda esvaziar as tendências nacional-estatistas defendidas por vários ministros [xl]. Grande parte da mídia, partidária das medidas e políticas neoliberais, hesita em acreditar na solidez da posição do ministro da Economia e não está certa de que ele se sairá vencedor nos embates contra os nacional-estatistas incrustados no governo.

As campanhas com vistas às eleições municipais, considerando-se a excepcionalidade da pandemia, vêm transcorrendo normalmente, promovendo-se uma carta “naturalização” do governo Bolsonaro. Quanto aos erros clamorosos cometidos pelo presidente ao lidar com a pandemia, o cansaço que toma conta de amplos setores da população, devido aos rigores da pandemia, tende a neutralizar, ao menos em parte, o desgaste sofrido nos primeiros meses pelos propósitos negacionistas do presidente.

Neste quadro, as forças de esquerda, de forma geral, permanecem sem propostas claras e sem capacidade de intervenção e mobilização. As referências a um possível impeachment, por improvável, esfumaram-se. É como se no palco político, em vez de duas forças, estivessem se confrontando duas fraquezas. A extrema-direita não tem capacidade – ainda não – de derrotar o Congresso e o Judiciário ou ameaçar, pelo menos no curto prazo, as instituições democráticas. Mas estas instituições também não conseguem remover Bolsonaro.

Como entrever e propor alternativas?

Entre os que observam a cena política brasileira, há um consenso de que a maioria de votos obtidos por Bolsonaro nas eleições de outubro de 2018 deveu-se muito mais ao antipetismo do que propriamente ao entusiasmo suscitado pelas propostas e características do candidato vitorioso.

Votando ou se articulando em torno de Bolsonaro, muitos ficaram na expectativa que, depois da vitória, houvesse uma rápida domesticação do presidente. Uma expectativa não realizada, mesmo depois da reviravolta acima mencionada. Se é verdade que as provocações e bravatas diminuíram de intensidade, são poucos os que imaginam que ele teria abandonado propostas e perspectivas autoritárias. Em vez de um golpe frontal, não se pode descartar, dependendo das circunstâncias, a hipótese de uma estratégia de desgaste progressivo das margens democráticas, uma corrosão por dentro as instituições, mantendo-as, no limite, como se fossem cascas desprovidas de conteúdo, num estilo semelhante ao empreendido por V. Orbán na Hungria [xli].

O fato é que, uma vez ameaçadas, as forças políticas de centro e de direita democráticas, hegemônicas no Parlamento e no Poder Judiciário, reagiram, marcando limites às pretensões ditatoriais de Bolsonaro. As tendências e os métodos chavistas, de enfraquecimento progressivo das instituições democráticas, atribuídos pelas direitas ao PT e a Lula, estariam sendo, na prática, adotados por Bolsonaro [xlii]. Em protesto, manifestos de intelectuais, juristas e profissionais liberais, publicados pela imprensa, afirmavam-se na defesa das instituições democráticas. Panelaços contra Bolsonaro, em várias cidades, evidenciavam um crescimento da insatisfação.

Reitera-se o equilíbrio de forças: entre a extrema-direita, liderada por Bolsonaro e a direita/centro democráticos, representados por líderes parlamentares e ministros do Supremo Tribunal federal. Nenhum lado mostra-se capaz de derrotar o outro.

A ameaça à democracia representada pela extrema-direita continua real. É verdade que o presidente perdeu bases nas classes médias que votaram nele imaginando-o como um campeão na luta contra a corrupção. Entretanto, o avanço registrado em amplos setores sociais em virtude o auxílio emergencial concedido pode inspirar aventuras autoritárias com apoio popular, o que não seria inédito na história do Brasil [xliii].

Estas esquerdas, sempre plurais, não estão destinadas a permanecer desarticuladas e/ou apartadas. No Brasil atual, porém, no quadro da nova república, estabeleceu-se uma grande distância entre elas
Daniel Aarão Reis

Se o governo mantiver a orientação neoliberal, prometida durante a campanha eleitoral, será muito difícil ampliar ou manter substancial apoio popular. Já uma inflexão no sentido de uma política nacional-estatista, combinando-se com políticas assistencialistas, criariam condições mais favoráveis ao apoio de camadas populares [xliv].

O dado novo é que as esquerdas democráticas começam a sair do torpor que as caracterizou desde a derrota eleitoral de 2018. Entre elas cabe distinguir as ações empreendidas pelas esquerdas de Estado e pelas esquerdas sociais.

A conceituação tem sido defendida por Carlos Vainer, professor vinculado ao Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional/IPPUR/UFRJ). As esquerdas de Estado seriam representadas pelos partidos políticos ou outras associações que disputam espaços institucionais, e ritmam seus movimentos de acordo com os calendários eleitorais. Já as esquerdas sociais seriam constituídas por lideranças que operam no tecido social, articulando e organizando movimentos que se desdobram na base da sociedade.

A experiência dos governos petistas evidenciou que não há uma “muralha da China” entre estes dois tipos de esquerda: muitos representantes de movimentos sociais importantes foram aspirados por órgãos ou conselhos consultivos, abandonando ou deixando em plano secundário a militância social. Até mesmo um movimento social tradicional, como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra/MST, deixou-se cooptar, em certa medida pelos acenos e promessas dos governos petistas.

Estas esquerdas, sempre plurais, não estão destinadas a permanecer desarticuladas e/ou apartadas. No Brasil atual, porém, no quadro da nova república, estabeleceu-se uma grande distância entre elas, na medida em que as primeiras – as esquerdas de Estado – têm sido aspiradas pelas alturas institucionais das lutas políticas, afastando-se claramente das dinâmicas, aspirações e movimentos que se desdobram nas bases da sociedade, onde atuam as esquerdas sociais [xlv].

As esquerdas de Estado não parecem sensíveis a um processo autocrítico. Continuam ruminando críticas e ressentimentos relativos ao passado de derrotas recentes. No seu conjunto, nas eleições municipais de novembro de 2020, perderam uma boa chance de aparecerem unidas, com uma proposta alternativa ao autoritarismo bolsonarista, politizando as escolhas locais. Ao contrário, dividiram-se e foram a reboque da dinâmica localista dos pleitos municipais.

Contribuíram assim, involuntariamente, para “naturalizar” o bolsonarismo e a desarmar a sociedade para eventuais surtos autoritários. De seu lado, o Presidente, salvo exceções, fez uma escolha de se manter “neutro” em relação a candidaturas às prefeituras das cidades brasileiras. Entretanto, nas cidades onde manifestou apoio, seus candidatos não aparecem como favoritos, evidenciando-se que a “onda bolsonarista” de 2018 encontra dificuldades em se repetir. Reproduz-se, na conjuntura eleitoral, o “empate” de fraquezas acima referido.

Quanto às esquerdas sociais, evidenciam maior dinâmica. Em várias cidades, tomam iniciativas para se defender dos efeitos da pandemia, organizando serviços próprios de saúde, desempenhando papéis que caberiam ao Estado, mas que não são por este assumidos por negligência ou incompetência. Nas ruas, apesar dos interditos impostos pela pandemia, promoveram manifestações, disputando os espaços públicos com os grupos de extrema-direita. Nas mídias sociais, fervilham ações de diferentes tipos– debates, palestras, lives. Intelectuais e artistas formulam plataformas comuns, assinam manifestos e se pronunciam em defesa da democracia [xlvi]. É bastante provável que, desaparecidos ou atenuados os efeitos da pandemia, brotem importantes movimentos sociais, dando vazão a demandas por melhores condições vida, serviços públicos decentes, renda básica para todos, diminuição das desigualdades sociais etc.

Trata-se de garantir as margens democráticas existentes, reunindo em torno delas, sem exclusões, todos os que estiverem dispostos a lutar por sua preservação. A ideia de concretizar este movimento em torno de uma plataforma antifascista pode ser problemática. Para além da já referida inconsistência teórica, é de se perguntar se as amplas maiorias saberão sequer o que significa o termo fascismo. Por outro lado, e mais importante, uma frente popular democrática deveria se evidenciar como alternativa – positiva e construtiva – e não apenas se formar na base do anti, eis que tais frentes – negativas – tendem a perder o essencial: de que democracia se está falando, que democracia é preciso construir [xlvii].

Quanto às esquerdas sociais, evidenciam maior dinâmica. Em várias cidades, tomam iniciativas para se defender dos efeitos da pandemia, organizando serviços próprios de saúde, desempenhando papéis que caberiam ao Estado, mas que não são por este assumidos por negligência ou incompetência
Daniel Aarão Reis

Entretanto, é preciso ir além de defender apenas as margens democráticas existentes – restritas e limitadas. Neste sentido, cabe às esquerdas democráticas – de Estado e sociais – se reinventarem e se reaproximarem: a prioridade é investir na ativação dos movimentos de rua, recuperando musculatura no tecido social, reconstruindo forças de que já dispuseram, mas as perderam, e sem as quais não conseguirão retornar ao proscênio, hoje ocupado pela extrema-direita e pelas direitas e centro democráticos.

Num plano mais geral, as esquerdas democráticas precisam formular um programa de democratização da democracia, uma condição indispensável para que as gentes tornem a se interessar – e a proteger, no limite, a se dispor a salvar – o regime democrático ameaçado.

Um conjunto complexo de desafios. Que sejam capazes de suscitar, como sugeriu S. Zizek, a coragem da desesperança [xlviii]. Deste tipo de coragem é que dependerá a sorte da democracia no Brasil. [xlix]

Referências:

AARÃO REIS, Daniel. Notas para a compreensão do Bolsonarismo,in Estudos Ibero-americanos, v. 46, n° 1/2020, Seção Tribuna. Revista de História da Escola de Humanidades da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUC/RGS, Brasil, abril/2020.

AARÃO REIS, Daniel. As armadilhas da memória e a reconstrução democrática. In Sergio Abranches e alii. Democracia em Risco? 22 ensaios sobre o Brasil de hoje. São Paulo, Companhia das Letras, 2019ª , pp 274-286.

AARÃO REIS, Daniel. Aproximações, contrastes e contradições entre paradigmas de mudança social: os cinquenta anos de 1968, in Daniel Aarão Reis e alii: 1968, reflexos e reflexões. Edições SESC, São Paulo, 2018, pp 15-30.

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Notas:

[i] Para o debate sobre a díade direita-esquerda e suas manifestações extremas, cf. N. Bobbio, 1995 e K. Soper, 1999.

[ii] O mesmo aconteceu com os estados socialistas autoritários que, ou se desagregaram (área soviética) ou fizeram opções pela associação com capitais internacionais, reiterando-se como estados despóticos, onde não existem a livre expressão do pensamento e qualquer tipo de organização autônoma das classes populares (China, Vietnã, Cuba e Coréia do Norte).

[iii] Muitos preferem chamá-la de populismo de direita (S. Torney, 2019).

[iv] Observe-se que as propostas autoritárias de direita e as alternativas socialistas despóticas retroalimentam-se à custa das instituições democráticas.

[v] Lideranças políticas e estudiosos têm caracterizado este processo como de ressurgência do fascismo. O debate sobre a questão será desenvolvido no ítem 3 deste artigo.

[vi] Para o racismo estrutural no Brasil, em seus vários aspectos, cf. disponível aqui. Consultado em 20/10/2020.

[vii] Cf. Roberto DaMatta, crônica publicada em O Globo, 10 de junho de 2020, p. 3.

[viii] Para a cartografia dos estupros no Brasil, cf. disponível aqui. Consultado em 20/10/2020. Para violência doméstica, cf. disponível aqui. Consultado em 20/10/2020

[ix] Cf. Rodrigo Patto Sá Motta, 2002.

[x] Entre 1937 e 1945, a ditadura do Estado Novo, liderada por G. Vargas; entre 1964 e 1979, a ditadura civil-militar, presidida por cinco sucessivos generais.

[xi] Entre outros, mencionaria Daniel Aarão Reis, Rodrigo Patto Sá Motta e Marcelo Ridenti, 2014; Rodrigo Patto Sá Motta, 2002 e 2014; Denise Rollemberg, 2008, 2010, 2010a; Lucia Grinberg, 2009; Janaína Cordeiro, 2015; Gustavo Ferreira, 2015; Tatyana Maia, 2012; Paulo Cesar Gomes, 2019; Lívia Magalhães, 2014.

[xii] Nos anos 1970, tornou-se comum analisar as ditaduras latino-americanas como expressão imediata das tradições ibéricas. O conceito enfraqueceu-se com os processos de democratização que se realizaram na…península ibérica, (J. Linz e A. Stepan, 1978 e J. Linz, 2000).

[xiii] Na aspiração por tempos melhores, os brasileiros tendem a usar – e a abusar do – o adjetivo novo para designar mudanças que superariam mazelas do passado. A chamada nova república evidencia a reiteração do recurso, embora em sua estrutura e dinâmica fossem visíveis as marcas do velho,de continuação com o passado.

[xiv] Na interpretação de petistas, de lulistas e de outros agrupamentos de esquerda, o impeachment de Dilma Rousseff foi um golpe de estado parlamentar, camuflado, efetuado por dentro das próprias instituições democráticas. Curioso é que estas forças, desde 1988, recorreram diversas vezes ao impeachment, sem que o mecanismo, essencialmente autoritário, lhes parecesse questionável.

[xv] Nas primeiras eleições diretas para a presidência república, em 1989, foi vencedor, no segundo turno, Fernando Collor de Mello, representante de forças conservadoras que almejavam políticas neoliberais. Seu governo, porém, foi curto (1990-1992), tendo sido apeado do poder por um processo de impeachment apoiado em ampla frente social e política.

[xvi] O PT foi fundado em 10 de fevereiro de 1980, na esteira de grandes movimentos sociais; e o PSDB surgiu no âmbito dos trabalhos de elaboração da nova Constituição, em 25 de junho de 1988.

[xvii] A Comissão Nacional da Verdade, organizada em 18 de novembro de 2011, mais de trinta anos depois do fim da ditadura, até realizou um trabalho positivo, mas não conseguiu alterar o quadro de silêncio social sobre os crimes e legados da ditadura.

[xviii] A esperança em salvadores da pátria tem larga tradição no país. Getúlio Vargas, Jânio Quadros, Fernando Collor, o próprio Lula, cada um a seu modo, todos se inscreveram neste registro de alternativas salvadoras a um sistema execrado.

[xix] Cf. disponível aqui. Consultado em 24 de junho de 2020. As eleições presidenciais realizaram-se em dois turnos: 7 e 28 de outubro de 2018.

[xx] A Lei n° 135, de 5 de maio de 2010, conhecida como Lei da Ficha Limpa, proíbe a candidatura de políticos condenados em segunda instância. A ironia é que foi promulgada pelo próprio Lula, quando no exercício de seu segundo mandato.

[xxi] Desde 1994, em seis sucessivas eleições presidenciais, os dois candidatos mais votados foram apresentados pelo PSDB e pelo PT.

[xxii] Desde 1992, em sete mandatos sucessivos, Jair Bolsonaro elegeu-se à Câmara de Deputados, defendendo interesses corporativistas das forças armadas e policiais e enfatizando o resgate positivo do regime ditatorial.

[xxiii] O juiz projetou-se como campeão nacional da defesa da moralidade. em virtude de seu protagonismo nos processos que desvendaram casos espetaculares de corrupção e acabaram levando à cadeia, entre muitos outros, o próprio ex-presidente Lula.

[xxiv] O censo nacional, realizado em 2000, apurou a existência de 26,2 milhões de pessoas que se autodeclaravam evangélicas, equivalentes a 15,4% da população. Em 2010, o número saltou para 42,3 milhões, 22% da população. O IBGE calculou então que existiriam 14 mil igrejas evangélicas. Consultado em aqui

[xxv] Bolsonaro teve participação pífia nos debates anteriores ao atentado, que o salvou de novos encontros, preservando-o de inevitáveis desgastes.

[xxvi] Para uma análise da presença das direitas políticas no Brasil, cf. André Kaysel e alii, 2015. Para uma interpretação da vitória eleitoral de Jair Bolsonaro, cf. Jairo Nicolau, 2020.

[xxvii] Os diplomas legais emitidos no quadro do estado de exceção instaurado em 1964 foram nomeados pelos próprios autores como atos institucionais ou atos complementares. Foram 17 atos institucionais e 104 atos complementares. O mais drástico e violento foi o AI-5.

[xxviii] Não seria razoável afirmar que todos os referidos oficiais sejam partidários de Bolsonaro, mas é inegável que, no seu conjunto, eles constituem importante base de sustentação do atual presidente.

[xxix]Para as bases militares de extrema-direita, cf. Bolsonaro e o mundo armado no Brasil. Debate entre Luiz Eduardo Soares e Piero Lerner: Disponível aqui. Para as concepções de guerra cultural, cf. J.C. de C. Rocha, 2020.

[xxx] O assassinato da vereadora Marielle Franco, do PSOL-RJ, perpetrado em 14 de março de 2018, foi obra de milicianos. Observe-se que, em algumas regiões, as milícias aliam-se ao tráfico, distribuindo seus “negócios”segundo interesses comuns. Para a força crescente das milícias e articulação com o tráfico cf. disponível aqui. Consultado em 22/10/2020.

[xxxi] Entre elas, destacam-se mesmo algumas lideranças que estão no campo das esquerdas. Por outro lado, o voto evangélico pode evoluir segundo as conjunturas, não sendo os fiéis meros carneiros nas mãos de seus pastores. Cf. B.A. Cowan, 2014. Tem crescido a literatura a respeito dos evangélicos, na proporção da importância dos mesmos na sociedade e na política do país. Cf., entre outros, citados pelo autor referido: S. Baptista, 2009 e M.N. Cunha, 2007.

[xxxii] O prestígio de Sergio Moro e dos procuradores de Curitiba foram gravemente atingidos com as revelações da Intercept, que revelou incontáveis tratativas e procedimentos ilegais e imorais empreendidos por eles. Cf. disponível aqui, consultado em 22/10/2020.

[xxxiii] Cf. Um governo de alta rotatividade. Alto escalão tem uma troca a cada três dias. In O Globo, 27 de agosto de 2020, p. 10.

[xxxiv] Considere-se que muitas forças políticas caracterizaram a ditadura instaurada em 1964, e também o Estado Novo, como fascistas. Foi mais um recurso de luta política do que um conceito adequado. Com o tempo, tais denominações perderam vigência.

[xxxv] Para o movimento integralista, cf. H. Trindade, 1979 e L. Gonçalves, 2018. A presença de núcleos nostálgicos do fascismo e do nazismo no interior da reação nacionalista de extrema-direita em várias partes do mundo tem levado muitos a apresentar este fenômeno novo e específico como uma ressurgência do fascismo/nazismo dos anos 1930. Foi o que tendeu a acontecer também no Brasil, em particular após o ascenso fulminante da extrema-direita. Para a especificidade do fascismo, que dispõe de abundante bibliografia,cf. Emilio Gentile, 2005, sobretudo a II Parte (pp. 169-375) e Robert Paxton, 2007, em particular os capítulos 7 e 8 (pp 283-361). Para uma síntese da especificidade do fascismo, segundo Paxton, cf. pp 358-361. Cf. ainda os estudos clássicos de Renzo Felice, 1977; e ZeevSternhell, 1994. Para o corporativismo estatal, doutrina inspiradora do Estado Novo cf. Antonio Costa Pinto, 2014. Para a vasta literatura sobre o nazismo, cf. I. Kershaw, 2010 e 2015 e R. Gelatelly, 2011. Para o ponto de vista marxista, cf. N. Poulantzas, 1978.

[xxxvi] Uma crítica pertinente ao bolsonarismo, como política excludente, distinta do caráter essencialmente integrador do fascismo, foi elaborada por R. Lessa, 2020. Ressalvem-se interpretações que atribuem ao fascismo uma acepção mais ampla, mais elástica, enfatizando-se não propriamente a experiência histórica, mas um complexo de valores autoritários e intolerantes. Cf. U. Eco, 1995.

[xxxvii] Pesquisas realizadas entre 7 e 10 de maio de 2020 indicavam o crescimento da rejeição ao governo, alcançando patamar de 43,4% (governo ruim ou péssimo). Já os índices de aprovação caíram para 32%. Cf. disponível aqui, consultado em 26 de junho de 2020. Tais resultados foram confirmados em novas pesquisas, publicadas em 26 de junho de 2020.

[xxxviii] Para a caracterização da paranoia de Bolsonaro e de alguns de seus auxiliares, cf. a transcrição da reunião realizada pelo conselho de ministros, presidida pelo próprio Bolsonaro, em 22 de abril de 2020: disponível aqui. Filmada e gravada, o conteúdo da reunião foi divulgado por decisão da Justiça, mostrando-se Bolsonaro e vários de seus correligionários tomados por um delírio de cerco típico das pessoas paranoicas (perseguem, mas se sentem perseguidas). Escrevi a propósito uma crônica: Um governo em cuecas, publicada em 13 de junho de 2020, em O Globo, p. 3. Paulo Sternick, psicanalista, em 21 de junho, no mesmo jornal, p. 3, consideraria a pulsão de morte do Presidente.

[xxxix]Observe-se que o auxílio, de R$600,00 por mês, previsto para durar 3 meses, foi proposto pelo governo em apenas R$ 200,00. Nos debates no Congresso, aumentou para R$500,00 sendo, mais tarde, fixado em R$600,00 pelo próprio Bolsonaro. Reduzido a R$ 300,00, o auxílio foi mantido até o fim do ano de 2020. O auxílio vem socorrendo dezenas de milhões de pessoas e seu impacto foi decisivo para evitar o agravamento da crise econômica e para ensejar a migração de muitos setores da pobreza e da miséria para a chamada classe C, ou seja, uma espécie de classe média inferior. Para a aceitação de Bolsonaro junto às camadas populares,cf. pesquisas realizadas em setembro último: disponível aqui. Consultado em 22/10/2020.

[xl] Tais tendências tornaram-se evidentes a partir da divulgação da reunião ministerial de 22 de abril. São defendidas pelos generais que assessoram Bolsonaro, como o gen. Braga Netto, e também pelos ministros de desenvolvimento regional, Rogério Marinho e de Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, cf. nota 44.

[xli] Observe-se que V. Orbán foi um dos poucos líderes internacionais a comparecer pessoalmente à posse de Bolsonaro, em janeiro de 2019.

[xlii] ElioGaspari, em sua coluna no Globo, de 10 de junho de 2020, p. 3, registrou reflexões de lideranças políticas (Joice Hasselmann, ex-líder do PSL, partido do governo na Câmara de Deputados) e intelectuais (José Arthur Giannotti, simpático ao PSDB, e Denis Lerner Rosenfeld, da direita democrática) que manifestavam alarme com seus procedimentos autoritários, classificados como chavismo de direita.

[xliii] Além da aprovação de 40%, que consideraram o governo “ótimo e bom”, Bolsonaro ainda conta com 29% que consideraram o governo “regular”. Além disso, recorde-se a força capilar – e popular – dos evangélicos.

[xliv] Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística/IBGE, o país conta hoje, fins de outubro de 2020, com 14 milhões de desempregados. No quadro atual duvida-se da possibilidade de maciços investimentos internacionais, restando, portanto os investimentos estatais, combinados com setores industriais de intenso aproveitamento da mão de obra, como a construção civil. Por ironia, algo muito semelhante ao realizado pelos governos petistas.

[xlv] Cf. intervenção de Carlos Vainer na emissão Rebeldes, sempre, em três partes, a partir dos seguintes links: aquiaqui; e aqui.

[xlvi] Alcançaram grande repercussão, manifestos assinados por intelectuais de esquerda e do centro e direitas democráticos: “Estamos juntos”; “Basta” (juristas); “Somos 70%” e “Enquanto houver racismo, não haverá democracia”.

[xlvii] Cabe assinalar, contudo, que diversas manifestações e articulações populares têm se autoidentificado como antifascistas. Assim, não é de se excluir a hipótese que esta terminologia se afirme e se generalize.

[xlviii]S. Zizek, 2017.

[xlix] O presente texto atualiza e aprofunda questões veiculadas por artigo intitulado: “A extrema-direita brasileira: uma concepção política autoritária em formação”, publicado no Anuario de la Escuela de História, Universidad Nacional de Rosario, Argentina, em fins de outubro de 2020. Mencione-se igualmente uma primeira versão, intitulada: “Notas para a compreensão do Bolsonarismo”, publicada em abril de 2020 na Revista de Estudos Ibero-americanos, v. 46, n° 1/2020, Seção Tribuna. Revista de História da Escola de Humanidades da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUC/RGS, Brasil (Cf. D. Aarão Reis, 2020). Para a presente reelaboração, contribuíram sugestões de Angela Castro Gomes, Janaína Cordeiro, Marcelo Ridenti, Rodrigo Patto Sá Motta e Vladimir Palmeira, embora, de modo algum, possam ser responsabilizados por eventuais imprecisões e erros de avaliação que subsistam no artigo.

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