STF

Bernardo Mello Franco: Continuidade é morte

Na reta final do governo, José Sarney entregou o comando do antigo Inamps ao médico que atendia sua família. Ao se apresentar aos colegas, o escolhido arriscou um gracejo: “Sou um dos poucos brasileiros que já viram o presidente nu”. Na lógica do patrimonialismo, estava justificada a nomeação.

Jair Bolsonaro convidou Marcelo Queiroga a assumir o Ministério da Saúde. Qualquer médico seria melhor que o general Eduardo Pazuello, mas o indicado não tem qualquer experiência em gestão pública. Suas credenciais são outras: ele pediu votos para o capitão e é íntimo de Flávio, o primeiro-filho.

Queiroga deu as caras no dia em que o Brasil registrou novo recorde de mortes na pandemia: 2.798. Na primeira declaração pública, ele prometeu “continuidade”. “A política é do governo Bolsonaro. O ministro da Saúde executa a política do governo”, disse.

A gestão de Pazuello foi um desastre político e humanitário. Suas primeiras ações foram militarizar a pasta e maquiar números oficiais para esconder cadáveres. Ele se dizia especialista em logística, mas deixou faltar testes, medicamentos e até oxigênio nos hospitais.

O paraquedista admitiu que, ao ser nomeado, “não sabia nem o que era o SUS”. Não sabia, não quis saber e esnobou quem tentou aconselhá-lo. Em outro surto de sinceridade, ele reconheceu que só estava no cargo para cumprir ordens de Bolsonaro. “Um manda, o outro obedece”, explicou.

Quando Pazuello assumiu, o Brasil contava 14 mil mortos pela Covid. Ontem ultrapassou os 282 mil. O vírus está fora de controle, a vacinação se arrasta a conta-gotas, e o presidente insiste em sabotar as políticas de distanciamento social.

Queiroga será o quarto ministro da Saúde em um ano de pandemia. Henrique Mandetta e Nelson Teich saíram para não rasgar o diploma de médico. Pazuello fez o que fez, e a cardiologista Ludhmila Hajjar recusou o posto ao ver que não teria autonomia para trabalhar.

O amigo do Zero Um pode admirar o capitão, mas precisa mostrar que não será mais um pau-mandado. No cargo que ele vai ocupar, apostar na continuidade é selar um pacto com a morte.


Vera Magalhães: Lockdown já

O Brasil precisa parar por duas semanas. Nosso sistema hospitalar não dá mais conta de resistir a medidas paliativas ou meramente figurativas de distanciamento social nem à recusa suicida de grande parcela da sociedade em fazer o mínimo: a parte de cada um para evitar o morticínio.

A troca de guarda no Ministério da Saúde, já é possível ver, será de seis por meia dúzia. Marcelo Queiroga até conforta pela fala mansa, conciliatória, contrastante com o tom arrogante e desconectado da realidade do general Eduardo Pazuello.

Suas credenciais, que colhi em entrevistas com médicos e dirigentes de entidades médicas, são boas, de alguém zeloso da ciência e das evidências, que não aderirá facilmente a condutas criminosas como as que Pazuello chancelou batendo continência.

Só que isso não basta. Para que se mude o rumo da tragédia sanitária brasileira, que preocupa o mundo e condena o planeta a não superar a pandemia, é preciso que o Brasil pare, se tranque em casa e dê apoio muito mais intensivo e urgente aos que não têm de onde tirar o sustento a não ser na rua e a empresas que quebrarão se fecharem as portas.

Mas elas precisam fechar, sob pena de continuarmos a assistir diariamente à perda de mais de 2.000 pessoas como se isso fosse um dado da natureza.

Não há paralelo em nenhum outro país de tolerância por tanto tempo, e em números tão elevados, com a carnificina. Como se estivéssemos propositalmente jogando gente como nós, brasileiros com todos os direitos e deveres, ao mar para assegurar os poucos coletes salva-vidas restantes. Isso não é aceitável nos planos político, jurídico, ético ou moral. Tal comportamento faz de todos, governantes ou não, cúmplices de chacinas diárias e espalhadas por todo o território nacional.

Faz de nós um país de pessoas que aceitam um pacto macabro com Bolsonaro a favor da morte. Se toparmos ser parte dessa estratégia, a História cobrará não só dele, mas de cada um que viveu na década de 2020.

Parar custará muito em termos de transferência de renda às pessoas, de recursos aos entes subnacionais e de apoio na forma de crédito, isenção tributária ou subsídio a empresas, inclusive com redução de salários.

Mas não há nenhuma outra medida que, na falta criminosa de vacina em quantidade ao menos razoável, nos tire desta guerra em que estamos enfrentando o vírus desarmados.

Em vez de querer tirar uma casquinha obscena da popularidade dos governadores todos os dias, o presidente que somos condenados a ter no tempo mais grave das nossas vidas precisa ajudá-los, dar-lhes um suporte. Precisa ser obrigado a fazer isso pelo Judiciário, que até já ensaiou fazer isso, mas que precisa fazer cumprir suas decisões, senão viram letra morta.

Bolsonaro precisa ser forçado a endossar o lockdown por um Congresso que até aqui tem sido seu comparsa. Fechado com ele por interesses indizíveis, que nada têm a ver com o dos brasileiros que querem um leito e oxigênio para seus pais, avós e filhos.

O cronograma mentiroso de vacinas de Pazuello, que Queiroga endossou alegremente, fala em mais de 500 milhões de doses de imunizantes de procedência diversa até o fim do ano. Não para em pé nem sequer no que promete para março, incluindo no cômputo 8 milhões de unidades procedentes de um laboratório da Índia que nem concluiu a fase 3 de estudos. Trata-se de uma empulhação criminosa.

Ou o lockdown é assumido como política de Estado pelo Brasil, como foi com desassombro por países tão diversos quanto Nova Zelândia, Portugal, Chile e Alemanha, ou amanhã teremos de lidar com números mais sombrios. E por muito tempo, já que Bolsonaro zombou da pandemia, pisoteou cadáveres, desdenhou vacinas e nos trouxe até aqui.


Luiz Carlos Azedo: Apagão logístico na Saúde

Queiroga assume o ministério deslumbrado com o cargo e alinhado com Bolsonaro, mas completamente perdido diante da gravidade da crise sanitária

O novo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, assume o cargo em meio a um apagão logístico: faltam vacinas, mesmo com o escalonamento da programação, leitos, respiradores, oxigênio, material para intubação, sedativos e pessoal treinado em várias regiões do país. Em São Paulo, o estado com mais recursos, maior rede hospitalar e principal produtor de imunizantes do país, a situação é dramática, com uma morte a cada dois minutos. Queiroga fez, ontem, um discurso ambíguo, no qual defendeu a “política de saúde do presidente Jair Bolsonaro” e, ao mesmo tempo, destacou a importância das “evidências científicas” na condução da pasta, o que é uma contradição. Bolsonaro é contra as medidas de governadores e prefeitos para conter a propagação do vírus e evitar o colapso do Sistema Único de Saúde (SUS). Está deslumbrado com o cargo, mas completamente perdido diante da gravidade da situação.

Com a saída de Pazuello, não haverá uma transição, mas continuidade da política que estava sendo implementada por ele. Nenhuma mudança na equipe do ministério, formada por militares, foi anunciada. O novo ministro assumiu a pasta no dia em que o Brasil registrou 2.841 mortes por covid-19 nas últimas 24 horas, recorde absoluto desde o início da pandemia, e 84.362 novos casos, segundo o Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Com isso, o número de vítimas fatais da doença chegou a 282.128, e o total de casos, a 11,603 milhões. Falta uma coordenação nacional de combate à pandemia, agravada pelo fato de que o presidente Bolsonaro estimula a desobediência civil e o desrespeito às medidas de isolamento social.

Rio Branco, Rio de Janeiro, João Pessoa, Macapá e Aracaju interromperam a aplicação da primeira dose da vacina contra a covid-19 porque o estoque acabou. Maceió suspendeu a imunização programada para ontem. Em Belford Roxo (RJ), milhares de pessoas se aglomeraram nos postos de vacinação sem conseguir receber a dose, todos idosos. Até agora, o Brasil vacinou cerca de 10 milhões de pessoas, o que equivale a 4,7% da população. É muito pouco, porque a chamada P1, originária de Manaus, já se espalhou por todo o país. Esse vírus mutante é responsável pelo novo perfil da pandemia, com taxa de contaminação mais alta e letalidade maior. Também está hospitalizando pacientes mais jovens, por longo tempo.

Falta de insumos
Em São Paulo, foram 679 novas mortes provocadas pela covid-19 em 24 horas, a maior taxa desde o início da pandemia. O estado totaliza 64.902 óbitos causados pelo coronavírus. Nessa escalada, será inevitável um lockdown em muitas cidades, pois 90% dos leitos de unidade de terapia intensiva (UTI) para covid-19 estão ocupados. O índice considera hospitais públicos e particulares. Na Grande São Paulo, a taxa média é ainda maior, 90,6%. Em todo o estado, 69 cidades já alcançaram 100% de ocupação de leitos de UTI. São 24.992 pessoas internadas, sendo 10.756 em UTIs e 14.236, em enfermaria.

No Rio Grande do Sul, foram 502 óbitos nas últimas 24 horas. É o maior registro diário em toda a pandemia. A taxa de ocupação dos leitos de UTIs estava em 109,6%. Dos 3.461 pacientes hospitalizados em leitos críticos, 2.534 são de pessoas confirmadas com covid (73,2%). Na rede privada, a situação é ainda mais grave: 135% das vagas de UTI adulto estão ocupadas. No Sistema Público de Saúde (SUS), a taxa é de 99%. Faltam equipamentos; os profissionais de saúde estão esgotados e adoecendo.

Em Mato Grosso, faltam respiradores. Em Várzea Grande, região metropolitana de Cuiabá, médicos que trabalham na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) do Bairro Ipase desmontaram estetoscópios para usar a mangueira do aparelho como mangueira de oxigênio, já que o insumo está em falta. No Ceará, todos os hospitais da rede privada de Fortaleza estão em colapso, com 100% dos leitos de enfermaria e UTI ocupados. No Paraná, 28 hospitais de Curitiba e região estão em colapso, mesmo com o lockdown. Em Santa Catarina, faltam bloqueadores neuromusculares e anestésicos para a realização de intubação de pacientes em tratamento contra a doença. Acabaram os estoques de medicamentos, como Rocuronio, Propofol e Atracúrio.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-apagao-logistico-na-saude/

O Globo: Rejeição a Bolsonaro na condução da crise da pandemia chega a 54%, diz Datafolha

Avaliação negativa cresceu seis pontos em dois meses; reprovação ao governo como um todo é de 44%, também o maior patamar até então

Marco Grillo, O Globo

BRASÍLIA– Em meio à sequência de recordes diários na média móvel de casos de coronavírus e com o país se aproximando do patamar de 3 mil mortes por dia – foram 2.798 nesta terça-feira –, mais da metade dos brasileiros, pela primeira vez, rejeitam a gestão do presidente Jair Bolsonaro na condução da pandemia. Pesquisa Datafolha divulgada na noite desta terça-feira pelo jornal "Folha de S. Paulo" mostra que 54% da população avaliam como ruim ou péssima a atuação presidencial na crise sanitária. Em outro dado colhido pelo instituto, 44% reprovam o governo como um todo – eram 40% no fim de janeiro.

A avaliação negativa sobre a postura do governo no enfrentamento à Covid-19 deu um salto de seis pontos percentuais em dois meses – o índice era de 48% em janeiro. Por outro lado, hoje, 22% acreditam que a atuação é ótima ou boa, enquanto 24% afirmam que é regular – os patamares, em janeiro, eram de 26% e 25%, respectivamente.

Por segmento, a rejeição encontra seu ponto mais alto entre aqueles com ensino superior: 65%. Já o pico de aprovação, 38%, é identificado entre empresários, segmento que, em parte, o presidente busca agradar, combatendo medidas de fechamento do comércio.

Ao serem perguntados sobre quem é o principal culpado pela situação atual da crise vivida pelo país, 43% responderam que é o presidente; 17% dizem que são os governadores; 9% põem a culpa nos prefeitos.

No olhar geral sobre a administração, a reprovação chega a 44%, mesmo patamar de junho do ano passado, último ponto antes de uma sequência de queda turbinada pelo pagamento do auxílio emergencial. Depois de chegar a 32% em dezembro, o índice voltou a subir até repetir o maior valor desde o início do governo. O governo é tido como ótimo ou bom por 30% – eram 31% em janeiro – e como regular por 24% – eram 26% há dois meses.

A aprovação também é maior do que a média entre empresários (55%), moradores do Sul (39%) e evangélicos (37%). A reprovação, por sua vez, tem seus maiores índices entre quem concluiu o ensino superior (55%), pretos (55%), aqueles com renda mensal acima de dez salários mínimos (54%) e entre moradores do Nordeste (49%).

Já o desempenho do Ministério da Saúde, que terá o quarto ministro desde o início da crise sanitária, é considerado ruim ou péssimo por 39% dos brasileiros, um crescimento de nove pontos percentuais em relação a janeiro. Há ainda 32% que consideram a gestão regular, enquanto 28% dizem ser ótima ou boa.

O Datafolha ouviu por telefone 2.023 pessoas nos dias 15 e 16 de março. A margem de erro é de dois pontos para mais ou menos.


Cristiano Romero: Subestimar Jair Bolsonaro é um erro

Negacionismo do presidente tem cálculo político

Jair Messias Bolsonaro não é o primeiro presidente brasileiro cuja habilidade política é subestimada pela maioria dos analistas. Durante um bom tempo, duvidou-se da capacidade de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de governar o país. Antes do petista, era quase unânime a opinião de que Itamar Franco, o vice que assumiu o cargo em decorrência do primeiro impeachment da história do país _ de Fernando Collor de Mello, em 1992 _, de tão “incompetente”, “tolo” e “turrão” acabaria de afundar a nação no caos iniciado por seu antecessor.

Bolsonaro passou 28 anos na Câmara dos Deputados com apenas uma preocupação: reeleger-se a cada quatro anos. Não foi difícil, afinal, sua bandeira, única, sempre foi defender privilégios e vantagens das corporações militares, o que, evidentemente, significou apoiar, de um modo geral, os interesses da burocracia estatal, o Estado dentro do Estado, o poder autóctone deste país, patrimonialista por definição.

O atual presidente defendeu os soldos dos militares durante o período, provavelmente, de maior arrocho salarial do funcionalismo na história _ os primeiros anos de estabilização da economia, após o lançamento do Plano Real, em 1994. Com a queda abrupta dos índices de preços de cerca de 2.800% para 50% ao ano, o enorme desequilíbrio das contas públicas apareceu instantaneamente nos orçamentos, uma vez que, antes, a inflação crônica corroía o valor real da despesa, criando a ilusão de que o setor público não gastava mais do que arrecadava.

Entre outras providências, coube ao primeiro primeiro presidente eleito no pós-Real _ Fernando Henrique Cardoso (PSDB) _ segurar a evolução dos salários do funcionalismo civil e dos militares para conter, minimamente, o déficit público. Ainda no primeiro mandato de FHC (1995-1998), o déficit nominal _ conceito que inclui todas as despesas, inclusive, os juros da dívida _ chegou a 7% do Produto Interno Bruto (PIB).

Para o deputado Jair Bolsonaro, gritar contra o arrocho salarial de FHC e conquistar votos na família militar foi mais fácil que decorar a tabuada do número 1. Isto explica o ódio devotado por militares bolsonaristas ao ex-presidente. Em entrevista ao Valor em 2019, o general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), um dos mais próximos do presidente da República, disse que "Lula é terrível, mas o Fernando Henrique era pior, hein?”, uma óbvia referência ao principal alvo de Bolsonaro nos anos em que era visto apenas como uma figura folclórica da direita brasileira.

Talvez, nem em sonho Bolsonaro tivesse acreditado que, um dia, haveria a chance de sair do folclore para tornar-se o primeiro mandatário do país com a 6a. maior população do planeta, a quarta extensão territorial e a 12a. Maior economia (há poucos anos, caminhava para ser a 5a. Maior, mas esta é outra história). Mas, a tragédia inacreditável do governo da presidente Dilma Rousseff (PT) criou oportunidade única para Bolsonaro ambicionar seu salto inesperado na política nacional.

Em 2015, quando o país já ingressara no segundo ano da mais profunda e longa recessão de sua história, provocada por sucessão inacreditável de equívocos de política econômica cometidos pelo governo Dilma, Bolsonaro e seus seguidores montaram estratégia nas redes sociais para fazer do então deputado o candidato anti-PT, anti-Dilma, “anti-também-tudo-isso-daí”. Com a Operação Lava-Jato fazendo estragos nas hostes tanto do PT quanto do PSDB, a economia atolada numa recessão e o maior líder popular da história do país, Lula, encarcerado, o atual presidente tornou-se rapidamente um fenômeno nas redes sociais, ignorado por alguns, subestimado por muitos, entre os quais, o titular desta coluna.

“Quando a campanha oficial começar, em agosto de 2018, o tempo diminuto de horário eleitoral gratuito frente a outros candidatos fará de Bolsonaro o Celso Russomano da disputa presidencial _ sempre larga na frente, mas nunca chega em primeiro. Vai desidratar nas pesquisas”, dizia-se sobre as perspectivas eleitorais de Bolsonaro. A cada previsão frustrada, analistas experientes da cena política nacional faziam novas projeções, segundo as quais, o então candidato do PSL naufragaria.

Nos livros de História do Brasil, provavelmente na maioria deles, será dito que o presidente ganhara a eleição de 2018 porque, a menos de um mês, sofreu um atentado a faca que o afastou dos debates, de entrevistas e de eventos de campanha com grande potencial de desgastar a imagem do candidato. Depois de errar mais de uma vez em seus prognósticos sobre o destino político-eleitoral de Bolsonaro, o titular desta coluna acredita que atribuir sua vitória à facada é “brigar com a notícia”, como costuma dizer o nobre colega e escritor Sérgio Leo, ex-colunista do Valor.

Bolsonaro ganharia com ou sem facada. Ponto. Seu sucesso deveria ter convencido, senã0 a todos, pelo menos à maioria, de que ninguém chega à presidência de uma das maiores democracias do planeta, eleito pelo voto popular, destituído de inteligência, astúcia, sagacidade política. Para as elites pensantes do país, é mais simples manifestar o quão Bolsonaro é diferente _ para pior _ do que nós somos e desejamos para o projeto de construção de uma nação nestas plagas.

Daí, os erros de avaliação que ajudam a fortalecer o presidente e que, em alguns casos, desvalorizam avanços institucionais na área econômica, notadamente, a aprovação da independência do BC e da PEC emergencial, que criou novo marco regulatório fiscal para todos os entes da Federação, fato que na prática diminui sua compreensão e, portanto, sua legitimação na sociedade.

Na pandemia, com a ajuda do Congresso, Bolsonaro acabou por instituir o maior programa de redução de pobreza da história do país. Seu negacionismo tem cálculo político. Ele esticou a corda na negação da gravidade do vírus e os governadores foram obrigados a adotar medidas rígidas de isolamento, cujo efeito tem sido afastá-los da popularidade. No fim, o presidente virá com a solução, a vacina, que só a União tem condições de comprar em grande quantidade. Não adianta brigar com notícia, Bolsonaro será no momento agudo, aos olhos da população, o pai da vacina.


Monica de Bolle: Os desafios do Brasil aquém e além da pandemia

Ou se aceita que a escolha de gastar para salvar vidas requer abrir mão do que se reconhece como sendo fiscalmente responsável, ou se permite o alinhamento com bolsonaristas

Os desafios a que me refiro no título deste artigo não são nem os da saúde pública, que são imensos, nem os econômicos, também enormes. Em momento sombrio da história brasileira, dou um passo para trás em um esforço para perceber mais claramente os desafios que a sociedade brasileira já havia criado para si com a eleição de Bolsonaro em 2018 e que foram agravados pela pandemia. Podemos dividir o país em dois campos, como é mais habitual: de um lado, figuram os bolsonaristas; de outro os que a elem se opõem. Mas vale tentar ir além do binarismo, para contemplar nuances que já eram visíveis em 2018 e ficaram mais explícitas no decorrer do último ano.

Há os bolsonaristas. Eles possuem uma linguagem própria, e este elemento merece atenção porque o bolsonarismo se define menos por uma ideologia do que por estratégias de comunicação que ou apresentam a violência ou repõem a sua potencialidade. Não menos importante, o bolsonarismo é antipluralista. É antipluralista em relação à vida social, como fica claro quando contemplamos a sua relação com minorias; na política, como podemos ver, sugere a ilegitimidade de seus adversários, desde a sua perspectiva; nos valores, o que notamos quando atentamos para os seus operadores (”cidadão de bem”, “humanos direitos”, “a família brasileira”) e no plano das ideias. Falas bolsonaristas, como são as do presidente, deixam ver práticas patriarcais longamente constituídas. Para ilustrar com uma manifestação recente: contestando medidas que governadores tentam implementar, o presidente afirmou em uma mídia social que “atividade social é toda aquela necessária para um chefe de família levar o pão dentro de casa”. O viés do bolsonarismo também é nitidamente colonialista, como se nota em sua relação com povos indígenas, com esboços de defesa ou justificação do desmatamento em nome do “desenvolvimento”.

Se o bolsonarismo é antipluralista, o antibolsonarismo seria pluralista. compreende o antirracismo, o feminismo e sua luta mais que secular no Brasil pelos direitos das mulheres, a igualdade de todos os seres independentemente de gênero ou orientação sexual, o rechaço à desigualdade e a contestação de uma democracia universal na forma, mas restrita na vida, em que negros e pobres são tratados como não-cidadãos, ou cidadãos de segunda classe. O pluralismo percebe o traço autoritário na operação de uma lógica absolutista e que instrumentaliza a razão em causa própria. A razão assim instrumentalizada é cerceada. Ser pluralista, ao contrário, é manter-se aberto aos conflitos trazidos pela abertura ao real e os questionamentos dos pressupostos que a realidade suscita. O pluralismo supõe uma abertura que é antagônica a tudo o que é estático.

O antagonismo do pluralismo ao que é estático ficou em evidência maior na pandemia, um evento cujo ineditismo não permite que permaneçamos apegados a conhecimentos estabelecidos e formas de ordenar o mundo informadas por experiências passadas. A pandemia fez ver. Fez ver o tamanho da desigualdade, a inadequação da política econômica, o desconhecimento científico da população, o sofrimento, a vida e a morte. Esses aspectos da realidade brasileira ficaram tão visíveis, tão despidos de construções e fantasias, que o inaceitável ―para o campo pluralista― passou a ser permitir que o mundo não fosse visto por determinados grupos da sociedade.

Mas, nas fraturas da sociedade brasileira, há ainda outro grupo: aquele formado por pessoas que se declaram antibolsonaristas, mas, ao encontro com o real, não resistem a se agarrar a um conhecimento estabelecido, mantendo intactos os seus pressupostos, sem reexaminá-los. É o que chamo, hoje, de relação absolutista com a racionalidade, que faz certa razão aparecer como antipluralista. Esses atores políticos percebem a importância das causas do pluralismo e as abraçam. Porém, o antipluralismo embutido na forma como entendem a relação de especialistas com o público torna algumas de suas práticas compatíveis com o bolsonarismo. Sendo preciso dar-lhes um nome, proponho chamá-los de “anti-anti”.

Eles estão presentes na economia, mas não só: os antibolsonaristas e antipluralistas aparecem à luz do público, eventualmente. São pessoas bem intencionadas, de diferentes gerações, que defendem causas a meu ver justas, tais como a renda básica, a redução da pobreza e das desigualdades, mas que ao mesmo tempo não se dão conta de que defendê-las pode implicar abrir mão de certas crenças e pressupostos. Na economia, o pressuposto mais hostil a dúvidas, e proveniente do conhecimento estabelecido a partir de experiências passadas, é o de que a responsabilidade fiscal é um valor inegociável, ainda que a realidade o exija, em uma crise humanitária e com um governo que atua por ação e omissão para deixar morrer e fazer morrer. No mundo dos anti-anti, a defesa da igualdade de acesso e o inevitável choque com aquilo que consideram fiscalmente responsável estão em planos distintos, correm em paralelo. Mas a realidade não permite que se opere em planos paralelos. Ao contrário, ela coloca esses planos em rota de colisão: ou se aceita que a escolha de gastar para salvar vidas requer abrir mão do que se reconhece como sendo fiscalmente responsável, ou se permite o alinhamento com bolsonaristas.

Evidente na economia, tal absolutismo é difuso. No jornalismo opinativo ―nos editoriais ou nas colunas de opinião― a construção de um mundo que não tem relação com a realidade está igualmente presente. Constroem-se argumentos para sustentar essa ou aquela tese com base em uma dissociação da realidade. Temas que tentam reconstituir uma realidade que deixou de ser com a pandemia dão a tônica à representatividade dos veículos de comunicação. Aceita-se de bom grado o absolutismo econômico, científico, ou seja lá qual for, ainda que se manifeste uma opinião contra o Governo, contra o presidente da República. A imprensa que se permite tratar o mundo real com demasiada maleabilidade, ou negligenciá-lo, para habitar esse outro construído valida o bolsonarismo sem querer fazê-lo: é anti-anti pelo que deixa ver, pelo que faz não ver.

Está posta, assim, a tragédia do Brasil atual: atores importantes da sociedade não enxergam, em suas construções e atitudes, pontes para a perpetuação do antipluralismo bolsonarista. Esses grupos preferem desqualificar aqueles que estão com os pés na realidade, tentando dar conta de um mundo repleto de fraturas, de descontinuidades, que requer novas ideias e o livre pensar, ou o que Hannah Arendt chamou de pensar sem corrimão. Preferem tudo isso a enxergar insuficiências e inadequações do conhecimento que nos foi legado. No limite, e nós nos encontramos em alguns limites, tornam-se facilitadores, conscientes ou desavisados, da franca decadência moral que marca um país que se recusa a chorar pelos seus mortos, seus doentes, seus destituídos.

Monica de Bolle é economista, PhD pela London School of Economics e especializada em medicina pela Harvard Medical School. É professora da Universidade Johns Hopkins, pesquisadora-Sênior do Peterson Institute for International Economics e mestranda em Imunologia e Microbiologia na Georgetown University.


Bruno Carazza: Mais próximo do que se imagina

Autonomia exige cautela de presidente do BC

No seu discurso de fênix na quarta (10/03), Lula disse não saber por que o mercado deveria ter medo de sua volta ao poder, diante de tudo o que ele e o PT fizeram pelo empresariado. Em resposta à repórter Cristiane Agostine, do Valor, porém, deixou explícita uma exceção: “Eu era e sou contra a autonomia do Banco Central. É melhor o Banco Central estar na mão do governo do que estar na mão do mercado. [...] A quem interessa essa autonomia? Não é ao trabalhador urbano, não é ao sindicalista, é ao sistema financeiro”.

Embora real, o risco de captura de órgãos reguladores por representantes de empresas é difícil de ser comprovado. Seguir os caminhos do dinheiro, mapeando doações de campanhas, ajuda bastante. Monitorar agendas públicas e verificar com quem eles se sentam à mesa também. Outra estratégia que costuma funcionar é observar o movimento das portas giratórias da administração pública, quando agentes do mercado são nomeados para cargos nas agências reguladoras e, depois de um tempo, retornam aos antigos empregadores.

O pesquisador David Finer, da Chicago Booth School of Business, deu um passo além. Utilizando a Lei de Acesso à Informação de Nova York, teve acesso a dados anônimos de mais de um bilhão de viagens de táxi ocorridas na maior cidade dos Estados Unidos entre 2009 e 2014, incluindo as coordenadas de GPS, data e horário do início e do fim de cada deslocamento.

Interessado em mapear o relacionamento entre funcionários do Banco Central americano e executivos das grandes instituições financeiras, Finer analisou cuidadosamente os padrões dos trajetos dos famosos táxis amarelos entre o prédio do FED, na 33 Liberty Street, e as sedes de gigantes como Bank of America, Citigroup, Goldman Sachs e Morgan Stanley. Lembrando que os encontros também podem se dar fora dos escritórios, o pesquisador incluiu no seu rastreamento as viagens que partiam de ambos os endereços para um terceiro destino (que poderia ser um restaurante ou um bar, por exemplo) num curto espaço de tempo.

Buscando minimizar o risco de vazamento de informações que podem abalar o mercado (e enriquecer muita gente), o FED impõe restrições a seus diretores e funcionários, como um período de silêncio em que são proibidas reuniões com o público externo e declarações à imprensa nos dias que antecedem os encontros do Comitê de Política Monetária (o FOMC, na sigla em inglês).

Após garimpar uma montanha de dados, Finer obteve evidências de que as movimentações entre as sedes do FED e dos bancos, ou de ambos para centros de lazer e alimentação, se intensificam na proximidade das datas em que as taxas de juros básicas são estabelecidas, particularmente no horário de almoço. Há também um aumento atípico nas corridas entre os mesmos destinos nas primeiras horas da madrugada após o encerramento do período de silêncio - o que sugere uma busca de integrantes do mercado por explicações sobre as decisões tomadas pela autoridade monetária.

Com uma metodologia inovadora, a pesquisa de David Finer aponta para a necessidade de se aprofundar os instrumentos para que a independência dos Bancos Centrais seja para valer e valha para ambos os lados - perante o governo e o mercado.

No Brasil, depois de pelo menos duas décadas de discussão legislativa, somente no final do mês passado a autonomia operacional do Bacen virou lei. Embora nosso Banco Central já tenha incorporado muitas das melhores práticas internacionais, como o próprio período de silêncio antes das decisões do Copom, ainda temos um longo caminho a percorrer para torná-la efetiva.

Não é preciso GPS para observar que são cada vez mais frequentes os deslocamentos feitos pelo presidente Roberto Campos Neto entre o Setor Bancário Sul, onde se localiza a sede do Banco Central, e a Praça dos Três Poderes, para atender a chamados de Jair Bolsonaro, Arthur Lira e Rodrigo Pacheco.

É bem verdade que o BC brasileiro possui atribuições que extrapolam aquelas típicas de uma autoridade monetária - como a regulação e a fiscalização do sistema financeiro - e a nova Lei Complementar nº 179/2021 ainda exige que a instituição zele para suavizar as flutuações da atividade econômica e fomente o pleno emprego, ao lado de manter a inflação sob controle. Tudo isso acaba exigindo que o presidente do Bacen compareça ao Palácio do Planalto ou ao Congresso Nacional para prestar contas de suas decisões.

O grande problema é que Roberto Campos Neto, pela sua capacidade técnica e habilidades interpessoais, tem entrado de cabeça na negociação política da agenda econômica do governo - e com isso tem avançado perigosamente a linha de independência exigida de um central banker.

Na semana passada, quando o governo se dividia entre as votações da PEC Emergencial e as tratativas com a farmacêutica Pfizer para a compra de um novo lote de vacinas, Roberto Campos Neto esteve duas vezes com Jair Bolsonaro no Palácio do Planalto. Além disso, visitou o presidente da Câmara em sua residência oficial para convencer diversos deputados da necessidade de aprovação de dispositivos de ajuste fiscal como contrapartida à nova rodada do auxílio emergencial.

Não há dúvidas que o presidente do BC tem um excelente trânsito com os parlamentares e tem se mostrado um ativo valioso do governo para construir pontes e aparar as arestas, muitas vezes afiadas, criadas por Paulo Guedes nas suas relações com o Congresso. Mas não pode se prestar a esse papel, sob pena de perder sua credibilidade.

Caso queira continuar contando com a capacidade técnica e o fino trato do neto de Bob Fields nas negociações de sua agenda econômica, Bolsonaro tem uma saída. O art. 8º da lei da autonomia lhe deu 90 dias para referendar a atual diretoria do Bacen e empossá-los nos novos mandatos.

Com os rumores cada vez mais constantes de que Paulo Guedes balança no cargo, de repente a solução para uma transição suave, que não assuste o mercado e ainda agrade ao Centrão, está mais próxima do que se imagina. Nem precisa chamar um táxi.


Roberto Romano: O Congresso como pandemia

Mercenários? Há muitos por lá. Subornos? Ora... Preocupados com o bem público? Poucos

"Já passou a hora de pôr um fim à sua presença neste lugar que perdeu a honra pelo desprezo de todas as virtudes, contaminado por todos os vícios. Os senhores não passam de uma facção inimiga de todo bom governo, pois formam um bando de miseráveis mercenários. Seu gosto é como o de Esaú: vender seu país por um guisado e, como Judas, trair Deus por moedas. Existe uma única virtude entre os senhores e algum vício que não possuam? (...). Qual dos senhores deixou de trocar a consciência por subornos? Existiria um homem entre os senhores preocupado com o bem da Comunidade? Prostitutas sórdidas! Os senhores não infectaram este lugar sagrado e fizeram do templo divino um covil de ladrões por seus princípios imorais e práticas iníquas? Os senhores se tornaram odiosos para toda a nação pois foram postos aqui, pelo povo, para reparar suas queixas, mas se tornaram a fonte da maior queixa. Logo, o seu país apela-me para limpar esta estrebaria de Augias, pondo um ponto final nos procedimentos iníquos desta Assembleia. Com ajuda de Deus e a força que ele me deu, efetivo tal missão. Ordeno, com perigo das suas vidas, que os senhores saiam imediatamente deste lugar. Escravos venais, vão embora! Em nome de Deus, vão!"

Deixei sem aspas o trecho acima para que os informados sobre a história dos parlamentos tenham o prazer melancólico de identificar semelhanças entre o que teria ocorrido na Inglaterra do Rump Parliament e os dias de hoje, no Brasil. Cromwell, a quem se atribui a fala mencionada, se estivesse na porta do Congresso brasileiro, informado das manobras para tornar os parlamentares isentos das leis que eles mesmos devem manter, diria as mesmas palavras do parágrafo anterior. Nada falta para a similaridade entre a situação parlamentar na terra de Shakespeare (“existe algo podre no reino...”) e o Brasil de agora.

Mercenários? Existem muitos no Parlamento nacional. Praticantes de subornos? Ora... Preocupados com o bem público? Poucos.

Naqueles dias como hoje, o ambiente onde são feitas as leis ficou sujo como as estrebarias de Augias. Naquele espaço a equidade é expulsa dia a dia. Falta apenas a figura do ditador que expulsa, relho na mão, deputados que o apoiaram a preço de ouro e dos quais ele conhece a venalidade. Ele conhece seus interesses financeiros, próprios de mercadores de leis. A diferença fica por conta do personagem que fecha o Parlamento.

Cromwell assume, pelo menos de fachada, a ética protestante em seu florescer. Aqui, com muita probabilidade, o chicote nas costas dos deputados será movido por alguém sem ética ou respeito pelo bem público.

Elias Canetti em página memorável enuncia que, ao contrário da vida social marcada pela guerra de todos contra todos, no Parlamento “não deve haver mais mortos. Esta intenção é expressa (...) na imunidade parlamentar, que tem um duplo aspecto: fora, em relação ao governo e aos seus órgãos; dentro, entre os seus pares”. O sistema democrático funciona se a imunidade for garantida. O Parlamento tem como alvo criar, no meio da batalha perene da sociedade, um espaço de paz e segurança. O Legislativo é sagrado porque nele reside a única esperança de algum diálogo, algum respeito. Nele, o instrumento relevante é o voto dos representantes. As cédulas de votação (hoje, o painel eletrônico) atenuam a morte coletiva. Quem usa de modo sacrílego tais cédulas “confessa suas próprias sangrentas intenções”. Assim, cada voto pode gerar vida ou trazer morte.

“O deputado é um eleitor concentrado”, resume Canetti. Se o Legislativo age em causa própria, perverte o sistema das cédulas. O Parlamento é feito para trazer esperança ao coletivo. Se legisla em próprio benefício, sua existência perde a razão de ser. Se decidem sem ouvir os representados, os parlamentares abreviam sua própria extinção. Tomo o inimigo do sistema parlamentar, Carl Schmitt. Se por várias razões “os representantes podem decidir em vez do povo, com certeza um representante único poderia decidir em nome de todo o povo. Sem deixar de ser democrático, o argumento justifica um antiparlamentarismo”. Tal senda prepara a ditadura do “representante único”.

A humanidade sofre ameaça inédita e no Brasil os campos da morte se espalham sem controle. Seria preciso esperar do Parlamento maior zelo pela vida coletiva. Não é o que vemos.

Em clara parceria com um presidente isento de prudência e de respeito aos governados, o Congresso coloca antes e acima de medidas para preservar a saúde pública os seus privilégios e prerrogativas. E usa como desculpa a prisão de um deputado que ousa exigir o fechamento do STF e do próprio Congresso, a retomada do nefasto Ato Institucional número 5.

Quos Deus vult perdere prius dementat – aqueles a quem o divino quer desgraçar, primeiro enlouquece. Talvez seja esta a pandemia maior nas instituições brasileiras, a começar com os frangalhos do Poder Legislativo. E para tal desgraça não existe vacina, salvo a repulsa máxima da cidadania que ainda resta em nossa pátria.

 *Professor da Unicamp, é autor de ‘razões de estado e outros estados da razão’ (Perspectiva)


Catarina Rochamonte: Danilo Gentili e o autoritarismo da Câmara

Imputar saudosismo de ditadura a Gentili é assombrosa aleivosia

Em atitude abusiva, covarde e persecutória, o presidente da Câmara e sua turma acionaram o STF com um pedido de prisão em flagrante contra o humorista Danilo Gentili. O motivo da estapafúrdia peça jurídica, enviada pelo ministro Alexandre de Moraes para apreciação da PGR, foi uma postagem de Twitter na qual o apresentador vale-se de expressão hiperbólica para tecer sua crítica aos deputados que apoiavam aquela que ficou conhecida como "PEC da impunidade."

Augusto Aras se manifestou junto ao STF dizendo não existir, "por ora", motivos para a prisão, mas propôs incluí-lo no inquérito dos atos antidemocráticos e recomendou seu banimento do Twitter. Outras medidas de cerceamento contra as liberdades de Gentili foram propostas, como a proibição de sair da cidade onde vive ou se aproximar a menos de um quilômetro da Câmara.

A Câmara justificou seu arroubo autoritário com a necessidade de "tolher a seiva autoritária" dos "saudosistas da nossa assombrosa experiência ditatorial". Ora, imputar saudosismo de ditadura a Gentili é assombrosa aleivosia. A mensagem que motivou tal empenho retaliatório quis antes atacar a trama autoritária dirigida pela Mesa da Câmara, que, com urgência oportunista, tentou fazer passar a indecorosa PEC que tornava os parlamentares praticamente inimputáveis.

O comediante já foi às redes sociais para se justificar e dizer que sempre defendeu as instituições democráticas. O que, apesar de suas ácidas críticas disparadas a torto e a direito, é substancialmente verdade. O humor de Danilo é fundamentalmente antiautoritário.

A frase que gerou a celeuma é inconveniente, merecendo um pito. Que por causa dela tenha a Câmara pedido a prisão do autor e que a PGR queira que um humorista seja censurado e banido das redes sociais é uma piada que nem o talentoso Danilo faria igual. Entretanto, é preciso que os cidadãos fiquem alertas para não permitir que tal piada se transforme em jurisprudência.


Celso Rocha de Barros: Como Bolsonaro reagirá a Lula?

Presidente dirá que causou a recuperação gerada pela vacinação que sabotou

Como disse em meu artigo publicado na Ilustríssima, a entrada de um Lula moderado na disputa eleitoral de 2022 mudou completamente o quadro político brasileiro. Lula moderado é um polo de oposição muito mais forte do que os que havia até agora. O choque, inclusive, levou o “centro” a acelerar suas articulações por uma candidatura competitiva. Como a extrema direita que governa o Brasil desde 2019 vai reagir?

No dia do discurso de Lula, a reação de Bolsonaro foi de evidente terror. Pela primeira vez em muito tempo, apareceu de máscara em uma solenidade pública. Não tenho nenhuma dúvida de que seu pessoal nas redes sociais notou que as declarações ponderadas de Lula sobre vacinas e máscaras foram bem-recebidas pelo público.

Seria maravilhoso se a ameaça Lula forçasse Bolsonaro a finalmente começar a se comportar como presidente da República, mas talvez seja tarde demais. Se Jair acordou na quinta-feira decidido a se comportar como um estadista responsável para derrotar Lula, imediatamente deve ter percebido que o Jair de 2020 não comprou as vacinas que um Jair responsável de 2021 teria que aplicar. Como a única outra alternativa de combate à Covid-19, o lockdown, prejudicaria o Jair candidato de 2022, não sobrou nada de responsável para qualquer Jair fazer no Brasil da pandemia.

Sempre trabalhando com a premissa testada e provada de que Bolsonaro não fará a coisa certa, o que lhe restará? No momento, seu plano parece simples: incapaz de achar um cenário de combate à pandemia que lhe beneficie eleitoralmente, Bolsonaro vai deixar os brasileiros morrerem na fila da UTI e falar de outra coisa.

Jair sabe que sua popularidade vai cair, mas aposta que não chegará a níveis de rejeição que o tornem eleitoralmente inviável. E conta que a vacinação, eventualmente, permitirá a recuperação econômica antes da eleição.

Se você quer fazer uma aposta sem qualquer chance de perder, aposte que Paulo Guedes e Bolsonaro vão dizer que causaram a recuperação econômica gerada pela vacinação que sabotaram desde o início.

O que é muito menos seguro é cravar se Guedes dirá isso como ministro ou como ex-ministro. Bolsonaro certamente gostaria de substitui-lo por um ministro gastador, mas o resultado eleitoral seria incerto. Certamente haveria turbulência no mercado, ela bateria no dólar, o dólar bateria nos preços, os preços bateriam nos juros, e os juros bateriam no desempenho econômico. Talvez isso melhorasse com o tempo, mas Bolsonaro tem cada vez menos tempo até a eleição.

A única certeza sobre isso tudo é que Jair Bolsonaro não perderá eleição para agradar a turma de Guedes.

Mas a maior certeza sobre o que Bolsonaro fará agora que a competição eleitoral ficou mais acirrada é que jogará muito, muito sujo.

Causará estrago enorme ao Brasil. Voltará a ameaçar golpe de Estado —já o fez na live de quinta-feira— aparelhará as Forças Armadas, destruirá a credibilidade de órgãos públicos, atacará a imprensa livre, disseminará notícias falsas, incentivará o conflito e a instabilidade social, enfim, fará o Brasil pagar o preço de não tê-lo impichado.

Mesmo para gente que já se comportou com dignidade em outros momentos da vida, é difícil fazê-lo na hora da derrota. Imaginem para Jair Bolsonaro.


Alon Feuerwerker: Mar das dúvidas

A decisão do ministro Edson Fachin de anular as sentenças contra Luiz Inácio Lula da Silva, por considerar que as acusações não tinham conexão com a Petrobras, deu uma antecipada no calendário eleitoral e acendeu incógnitas na cabeça dos concorrentes do PT em 2022.

O petismo é o único que parece não ter dúvida: se Lula puder concorrer, e quiser, o candidato será ele. E, aparentemente, o PT ainda não deu sinais de estar matutando sobre os detalhes da escolha. Primeiro, vai ser preciso ter certeza de que a decisão de Fachin continua como está.

Pois o jogo ainda corre aberto, como evidenciou a parada no julgamento da suspeição de Sergio Moro pela Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal. E do atual STF nada que venha será surpresa.

Lula parece beneficiar-se momentaneamente de um certo “equilíbrio do terror”. Mesmo se o plenário do Supremo reverter a decisão de Fachin, continuará o risco de a Segunda Turma declarar Moro suspeito, e aí desencadear um terremoto sob os pés da Lava-Jato.

Desta vez um grande.

E com Moro declarado suspeito cairiam também as condenações de Lula.

Se a decisão de Fachin é mantida, e impede-se a Segunda Turma de prosseguir no julgamento da suspeição de Moro, salva-se (momentaneamente?) a Lava-Jato. Mas Lula fica com caminho aberto para 2022. A não ser que volte a receber condenação pelo menos em duas instâncias até lá. Difícil.

E se o STF não reverte o que Fachin decidiu, mas tampouco impede a Segunda Turma de concluir o julgamento da suspeição? Aí juntar-se-iam a fome e a vontade de comer. Qual será a probabilidade de vingar este cenário maximalista?

Tem também a hipótese minimalista. O plenário reverte a decisão de Fachin e a Segunda Turma ou não declara Moro suspeito ou simplesmente não decide nada sobre isso até que passe a eleição de 2022. Será um jeito de tirar Lula de novo da corrida.

Aguardemos. Entrementes, algumas forças políticas quebram a cabeça sobre o que fazer. O movimento mais visível é a tentativa de agrupar o “nem-nem”, os políticos que não querem nem o petista nem Jair Bolsonaro. A dificuldade aí não é saber o que não querem, mas o que querem.

Além do poder, claro.

Se bem que em outros momentos da história agitar uma rejeição foi suficiente para fazer valer alternativas políticas programaticamente nebulosas. Aliás, o Brasil está cheio de casos. O antimalufismo, por exemplo, foi vaca leiteira para muita gente boa por pelo menos duas décadas.

A dificuldade do dito centro parece residir no enigma não decifrado de 2018, e que o levou à catástrofe eleitoral: quando o gato quer caçar dois ratos, como fazer para não escaparem os dois? Desta vez, o discurso “contra os extremos” vai sensibilizar as massas?

Ou seria preferível escolher um adversário principal e apresentar-se como a melhor opção disponível para derrotá-lo? Bem, esse é um problema para os especialistas destrincharem. Enquanto isso, Lula vai agregando simpatias, ou pelo menos reduzindo antipatias, por gravidade.

E tem Jair Bolsonaro. Ele não está num momento confortável em popularidade, mas a agenda econômica parece ganhar tração no Congresso e a vacinação promete entrar em certo ritmo entre este mês e o próximo. E o Brasil inteiro quer que a vacinação funcione.

E tem Sergio Moro, que também está elegível.

E a eleição não é agora. É só em outubro de 2022.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Míriam Leitão: A falha dos poderes é ameaça perigosa

A democracia brasileira, nos últimos dias, deu mais alguns passos na perigosa trilha em que entrou. O Supremo Tribunal Federal (STF) aumentou a insegurança jurídica, ao dar vários sinais de que os ministros tomam decisões que mudam a vida do país seguindo a lógica das brigas internas da corte. A Câmara entregou a Comissão de Constituição e Justiça a uma deputada que esteve em atos que propuseram rasgar a Carta e a Comissão do Meio Ambiente a quem faz parte da tropa antiambiental. O presidente mais uma vez ameaçou o país com a ditadura, contando para isso com o silêncio dos generais.

A decisão do ministro Edson Fachin obedece à lógica de que se o caso não é relativo à Petrobras não tem que ficar na 13ª Vara Federal em Curitiba. A dúvida que permanece é por que levar tantos anos para descobrir a procedência da tese sempre apresentada pelos advogados do ex-presidente. Fachin explicou em entrevista a Aguirre Talento e Bela Megale do GLOBO que o assunto havia sido mencionado, mas que ele não recebeu pedido direto da defesa de Lula até novembro de 2020. O ministro disse que a Justiça tem que ser imparcial e apartidária. É verdade. Mas também precisa ser tempestiva. A intempestividade pareceu mais um lance da briga entre duas das onze ilhas da corte

O ministro Gilmar Mendes afirma que é insuspeito. E explicou por quê: “ao contrário da ministra Cármen, dos ministros Lewandowski e Fachin, não cheguei aqui pelas mãos do Partido dos Trabalhadores.” Isso quer dizer que os outros três ministros são suspeitos em ações do PT? Ou que ele é suspeito para julgar os casos do PSDB? Ele acusa o ex-juiz Sergio Moro de ter se tornado inimigo do réu, quando ele próprio dá demonstrações constantes desse sentimento em relação ao ex-juiz e aos procuradores.

Depois do duelo jurídico entre Fachin e Gilmar para saber quem tem a última palavra no destino de um ex-presidente da República, outro conflito emergiu no plenário virtual do STF. Na quinta-feira, o ministro Marco Aurélio chamou o ministro Luiz Fux de autoritário e o ministro Alexandre de Moraes de xerife. Foi mais um sinal ruim. Não é a primeira vez que as divisões na mais alta corte são expostas, mas esta semana houve um concentrado de votos idiossincráticos e falas pontiagudas. Quem acredita na democracia defende o STF dos ataques bolsonaristas, mas, na devastação institucional em que vivemos, certos ministros deveriam entender que seus ombros envergam as togas não a título pessoal, mas em nosso nome.

A Câmara enfraqueceu o sistema de check and balances ao fazer duas escolhas para as comissões. Não é uma questão partidária que torna a deputada Bia Kicis (PSL-DF) a pessoa errada para presidir a Comissão de Constituição e Justiça. São as suas manifestações em rede, ou nas ruas. Ela é uma radical e por isso não terá o equilíbrio necessário. Kicis esteve em atos que pediram um novo AI-5, o Ato Institucional que fechou o Congresso e cassou deputados na ditadura. A deputada Carla Zambelli (PSL-SP) fará o oposto do que se espera de uma presidente da Comissão de Meio Ambiente. O governo está fazendo uma demolição do aparato legal que protege o meio ambiente. O legislativo precisava ser o freio e o contrapeso dessa ação de passar a boiada pela cerca das leis.

O executivo trabalha contra a democracia. Isso já virou rotina. Basta ouvir o que o presidente diz. Sua visão distorcida do artigo 142 da Constituição, sobre o papel das Forças Armadas, é sempre jogada na cara do país como ameaça. Ele está tentando mudar o que quis dizer com “o meu Exército”, afirmando que se referia aos seus seguidores, mas a Arma nada fez para lembrar que ela pertence ao país.

Bolsonaro mostrou no Sebrae, no seu habitual tom colérico, que continua prisioneiro da visão conspiratória. Mentiu que o país está há um ano em lockdown e afirmou que isso está sendo feito para atingi-lo. “Até quando aguentaremos a irresponsabilidade do lockdown?” E tudo “só consegue atingir o presidente da República”. Bolsonaro chamou de “estado de sítio” as medidas protetivas tomadas em todos os países do mundo. Houve quem se iludisse, achando que a elegibilidade de Lula iria convencê-lo a mudar. Exceto por aceitar, enfim, a forma esférica da Terra, no resto Bolsonaro continua sendo negacionista. Ele ameaça a saúde dos brasileiros e a democracia. Quando os outros poderes falham, o país fica ainda mais vulnerável ao candidato a tirano que nos governa.