STF

Alberto Aggio: O que mudou

A decisão de 08 de março do Ministro Edson Fachin, do STF, que, no fundamental, garante elegibilidade a Lula (PT) na corrida presidencial de 2022, gerou um verdadeiro terremoto nas relações de força entre os principais atores políticos.

Na forma como se deu, contestando a validade do fórum de Curitiba no qual protagonizava o ex-juiz Sérgio Moro, o fato equivale a uma profunda derrota do chamado “tenentismo de toga” (Werneck Vianna) expresso na operação Lava-Jato durante os últimos anos. Em função da visão messiânica que visava a regeneração da Nação, tal movimento colocou em suspensão toda a política brasileira e o resultado foi a identificação da política com corrupção. A Lava-Jato foi mais uma face da ideia de que o País necessita de uma ruptura histórica e, por essa razão, contribuiu para a emergência de fenômenos de antipolítica que grassam desde 2013.

Independente das suas intenções e aparentemente sem uma estratégia definida, a adesão de Sergio Moro ao governo Bolsonaro, a partir de 2018, implicou uma aposta de alto risco que, por fim, fracassou. Sua saída do governo não redundou em força para o movimento. A Lava-Jato restou parada no ar e se enfraqueceu. Agora, atingida no coração, seu destino parece estar selado. Em sentido profundo, mitigar ou tentar eliminar a política e sobrepô-la pela dimensão jurídica, concentrando suas ações num único ponto, a corrupção, apenas confirmou que este não pode ser o caminho da política democrática com vistas a resolver os principais problemas do País nem o orientar em direção ao futuro.

O retorno de Lula ao centro da cena tem inúmeras repercussões e guarda muitos significados. De um ponto de vista conjuntural representou um respiro frente a um governo como o de Bolsonaro. Diante dele, a sociedade parece atônita e vulnerável, acossada pela pandemia e a persistente elevação do número de infectados e mortos. Lula se apresentou e rapidamente foi identificado com a vitalidade que a oposição deve ter. Com isso, a musculatura do polo petista sai fortalecida não só em função da sua popularidade, mas também porque isso gera desestabilização em outras candidaturas por seu poder de atração. Além disso, antigos aliados serão desafiados e o próprio Centrão, até agora em deriva inercial rumo à candidatura de Bolsonaro, deverá repensar seus futuros passos.

Mas há um engodo nessa história. Claro está que a retomada dos direitos políticos de Lula não equivale a absolvição de todas as acusações que existem contra ele. Essa narrativa é falaciosa, Lula não foi absolvido. O ex-presidente retorna à politica, com todos os seus direitos, por uma tecnicalidade jurídica que tardou a ser admitida e não por sua absolvição.

O discurso de Lula no sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo do Campo serviu para instituir o teatro de que ele é a única contraposição à estratégia destruidora da democracia de 1988 que Bolsonaro vem estabelecendo desde sua posse. O que é outra falácia. Há resistência a Bolsonaro desde a posse, fortemente demonstrada nas eleições municipais de 2020, especialmente nas capitais. No contexto da pandemia tal resistência se expressa na defesa do SUS e na contraposição dos governadores, especialmente o de São Paulo, no tocante à vacina. Os petistas querem fazer crer que somente eles se opõem a Bolsonaro e mantêm o estilo de sempre: mitificam Lula, despreocupados em ampliar o arco de alianças para enfrentar Bolsonaro desde o primeiro turno.

Há uma soberba nisso tudo. Lula permaneceu em silêncio até esse momento e as agressivas manifestações bolsonaristas não são contra ele, mas contra aqueles que estão na chuva e no sol criticando o atual presidente. O PT tem feito uma política errática no Parlamento que contém lances de ambiguidade em relação ao bolsonarismo, tal como se observou na votação para as presidências das  duas Mesas no Congresso bem como nas principais comissões.

Por outro lado, há questões a serem recuperadas na história do PT e de Lula. Ambos coquetearam com a antipolítica desde as primeiras lutas pela redemocratização e foram vigorosos representantes dela no processo que gerou a Constituição de 1988. Ambos são a expressão de uma esquerda que promete a nova sociedade aos “de baixo” mas apenas lhes dá inclusão via consumo. Enquanto aos “de cima” garante estabilidade e ampliação de ganhos. Lula é a esquerda antirreformista que estabiliza o capitalismo brasileiro na fase da globalização, depois da integração a ela promovida por FHC. É uma esquerda adaptada ao contexto histórico, o que é positivo, mas é uma esquerda sem conceito, que negocia tudo para garantir seu projeto de poder com o apoio de movimentos fragmentados nascidos da sociedade pós-industrial. É uma esquerda mais do “mundo da vida” do que do “mundo da produção”, apesar de daí ter nascido. Lula não precisa de esforço algum para definir seu inimigo na contenda eleitoral de 2022. Ele retomará a posição de ataque a quem está no poder, como sempre fez, de Sarney a FHC, e assumirá a dissimulação de ser um ator benfazejo a todos e a todas.

 As reações de Bolsonaro à volta de Lula são evidentes, embora demonstrem alguma desorientação. A adoção de uma atitude mais responsável frente à pandemia é apenas um dado superficial. Do ponto de vista discursivo, Bolsonaro poderá recuperar a narrativa antissistema, criticando a decisão judicial que favoreceu Lula e identificando o petismo com o status quo. Bolsonaro será seduzido por seus apoiadores a radicalizar essa posição e voltar à lógica da guerra. A palavra de ordem desse grupo é o golpe. Provavelmente Bolsonaro vai ceder espaço a isso, evitando muito envolvimento. Aqui também a estratégia é a da dissimulação: retomará o antipetismo, embora tenha perdido seu aliado fundamental, o ex-juiz Sérgio Moro. Nesse sentido, a campanha de 2022 não poderá se servir inteiramente desse ponto de força como foi em 2018. Outro elemento de fragilidade de Bolsonaro está, como todos sabem, na desastrosa condução frente à pandemia, deixando o País sem as vacinas de que necessita.

Portanto, a estratégia de destruição de Bolsonaro não pode lhe garantir, como antes, uma passagem lisa e tranquila para o terreno eleitoral. Reduzir-se apenas aos seus, àqueles que professam essa estratégia, pode ser uma aposta de alto risco para chegar ao segundo turno e depois perder. Por fim, a última alternativa seria, fragilizando-se ainda mais, se reduzir a um candidato do Centrão, retornando à expressão de um candidato do “baixo clero” – e isso se o Centrão não se movimentar pragmaticamente em direção a Lula.

O terremoto provocado pelo retorno de Lula afetou diretamente a todos postulantes à presidência em 2022. É inevitável que Ciro Gomes mantenha sua beligerância tanto contra Lula e o PT, quanto contra o ex-juiz Sergio Moro. No entanto, sua resiliência não encontra equivalente em sua capacidade de agregação. Envolvido diretamente, Moro será forçado a se pronunciar: ou contra-ataca, lançando-se definitivamente candidato ou se retira de uma vez da contenda eleitoral.

O fato é que se o centro político já encontrava dificuldades de unificação em torno de uma candidatura, com os partidos inteiramente divididos, o retorno de Lula veio carrear mais obstáculos. Independentemente dos nomes ou pela profusão deles, o centro permanece invertebrado. Em verdade, ainda não existe do ponto de vista eleitoral e a grande incógnita é se conseguirá se configurar como um fator de poder para atrair aliados e eleitores.

A premissa de que o centro deveria ser um ponto intermediário entre dois extremos perde força com o retorno de Lula, que, a partir da esquerda, se move com facilidade para o centro. De outro lado, o desastre que significa o governo Bolsonaro impõe uma condição: não há como o centro se apresentar a não ser em oposição a Bolsonaro. Mas terá que buscar um discurso e uma estratégia distinta do lulopetismo, sem ser antagônica a ele. Pensando na rearticulação e no futuro da Nação, o centro terá que se reinventar: sua única saída é ser um “centro excêntrico”, um novo polo de agregação, com programa próprio e alternativo. Uma operação dificílima, obviamente, e talvez já tardia, ainda mais se tiver que cuidar também para que sua candidatura consiga fazer frente a duas “potências de audiência”, como Bolsonaro e Lula.

Tudo mudou, mas infelizmente o nosso flagelo frente a pandemia se agravou. Mas com força e resiliência, mais as vacinas, o País pode superar o vírus e … Bolsonaro.

*Professor Titular de História da UNESP-Franca-SP


Luiz Carlos Azedo: Pior momento de Bolsonaro

A estratégia de responsabilizar governadores e prefeitos pela crise sanitária, adotada por Bolsonaro, fracassou: 56% dos entrevistados o consideram incapaz de liderar

A pesquisa DataFolha de ontem confirmou o que mundo político já estava esperando: o governo Bolsonaro vive o seu pior momento, acumulando desgastes, principalmente em razão das suas atitudes negacionistas em relação à pandemia da covid-19, cujo descontrole assombra o mundo. Segundo o instituto, cresceu para 56% o número de brasileiros que consideram o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) incapaz de liderar o país. Em janeiro, eram 50%. A pesquisa caiu como uma bomba no Palácio do Planalto, a jaula de cristal na qual a bolha dos partidários do presidente da República nas redes sociais tem mais influência nas decisões do que todos os demais interlocutores do governo juntos.

Segundo o levantamento, o percentual de brasileiros que consideravam Bolsonaro capaz de liderar caiu de 46% para 42% de janeiro para março, com oscilação negativa no limite da margem de erro. Em abril de 2020, ele era considerado capaz de liderar o país por 52% dos brasileiros, em detrimento de 42% que o julgavam incapaz. Entre os que hoje julgam o presidente mais incapaz estão os mais ricos, que ganham acima de 10 salários mínimos (62%), os que têm curso superior (também com 62%) e moradores da região Nordeste, dos quais 63% julgam o presidente incapaz de liderar o Brasil. A base de apoio de Bolsonaro mais resiliente é formada por moradores das regiões Sul (51%) e Norte/Centro-Oeste (49%) e evangélicos 52%.

O desempenho de Bolsonaro na pandemia é que puxa sua avaliação para baixo: 54% dos entrevistados avaliam como ruim ou péssimo. Na pesquisa anterior, realizada em janeiro, esse índice era de 48%. Segundo o levantamento, 22% consideram ótima ou boa a performance do presidente da República na condução do enfrentamento à pandemia. O índice anterior era de 26%. Esse desempenho fortalece os aliados do governo no Congresso, que pediram a cabeça do general Eduardo Pazuello, defenestrado do Ministério da Saúde, mas não conseguiram emplacar no cargo o deputado Dr. Luizinho (PP-RJ), presidente da Comissão de Seguridade Social da Câmara. Bolsonaro nomeou o médico paraibano Marcelo Queiroga, presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia.

A estratégia de responsabilizar governadores e prefeitos pela crise sanitária, adotada por Bolsonaro duramente a crise sanitária, fracassou completamente: para 42% dos entrevistados, a responsabilidade é do presidente da República. Os demais responsáveis se- riam: governadores, 20%; e prefeitos: 17%. As atitudes de Bolsonaro contra o isolamento social e o uso de máscaras, e a falta de uma campanha publicitária nacional de mobilização contra a pandemia, fruto também do negacionismo, se refletem no grau de responsabilidade atribuída à própria população: 1%. No ranking dos mais empenhados na luta contra a covid-19, governadores (38%) e prefeitos (28%) deixam Bolsonaro (16%) na rabeira.

Resiliência
Mas que ninguém se iluda, mesmo assim, Bolsonaro tem uma base de apoio muito resiliente, o que ainda lhe assegura um piso confortável de aprovação para quem pretende disputar a reeleição. Por exemplo, em relação ao impeachment, o índice oscilou dentro da margem de erro: 53% eram contrários à abertura de impeachment em janeiro, ante 50% agora; 42% eram favoráveis àquela ocasião; agora, são 46%. A mesma coisa em relação à renúncia de Bolsonaro: 51% avaliam que não deveria renunciar, contra 45% favoráveis. São números desagradáveis, mas não são irreversíveis se o governo se reposicionar em relação à pandemia.

A aposta de Bolsonaro é de que a situação pode ser revertida com a vacinação em massa da população, que está muito atrasada, porém, o governo iniciou uma corrida para comprar imunizantes, todos os que forem possíveis. O atraso nas vacinas existe porque a prioridade era outra, o tratamento precoce com cloroquina. Em outra frente, o Ministério da Cidadania prepara a medida provisória do auxílio emergencial, que Bolsonaro pretendia levar pes- soalmente ao Congresso ainda ontem, mas não ficou pronta. Sua aposta é de que o auxílio mitigará os desgastes com a pandemia, ao possibilitar um alívio à chamada população de “invisíveis”, que perdeu as fontes de renda com a pandemia.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-pior-momento-de-bolsonaro/

BBC Brasil: Se Lula chegar ao poder em 2022, Forças Armadas não criarão impedimento, diz Jungmann

Ex-ministro da Defesa e da Segurança Pública durante o governo Temer, Raul Jungmann conhece como poucos civis os meandros da elite das Forças Armadas brasileiras

Caio Quero, BBC News Brasil

Observador privilegiado de alguns dos principais episódios das recentes crises entre militares, civis e o Judiciário — desde o controverso tuíte do general Villas Bôas ao 'prende e solta' de Lula, em 2018 —, no final de fevereiro Jungmann publicou uma carta aberta aos ministros do STF onde enumera o que vê como riscos da política armamentista do presidente Jair Bolsonaro.

No documento, ele pede uma "intervenção" dos ministros do Supremo para suspender as portarias e decretos presidenciais de Bolsonaro que desburocratizam e ampliam o acesso a armas e de munição por cidadãos comuns e por aqueles que têm registro de CAC (colecionador, atirador e caçador).

Em entrevista à BBC News Brasil, Jungmann argumenta que tais políticas estão "erguendo o espectro horripilante de um choque, um conflito de brasileiros contra brasileiros e isso tem um nome na história: guerra civil".

"Quando você teve o armamento de populações, a História nos ensina, sempre vieram a reboque ou deixaram um rastro de genocídio, de massacre de etnias, de populações, de golpes, tirania e, inclusive, do ovo da serpente: do fascismo italiano e do nazismo alemão", disse à BBC News Brasil.

Na entrevista, Jungmann também afirma que, apesar dos pedidos de "intervenção militar" por parte de setores radicalizados da sociedade, "as Forças Armadas não darão suporte ou apoio a qualquer desvio constitucional, qualquer golpe ou qualquer interrupção da democracia".

Questionado sobre as eleições de 2022, Jungmann diz não antever qualquer tipo de interferência ou "maiores problemas" por parte dos militares, "seja com Lula... Mandetta, Moro, Huck... e, evidentemente a continuidade do Bolsonaro".

Confira os principais trechos da entrevista:

BBC News Brasil - Em fevereiro, o senhor escreveu uma carta aberta aos ministros do Supremo Tribunal Federal em que diz que a política do governo Bolsonaro de ampliar acesso às armas de fogo coloca em risco a democracia no Brasil. Como, em sua opinião, tais políticas podem ser uma ameaça às instituições?

Raul Jungmann - A questão do armamento ou não da população sempre foi um assunto de debate na área da segurança pública. Alguns achavam que isto reduziria a violência e outros, como nós, baseado em ampla literatura técnica, achávamos que não, pelo contrário: mais armas mais mortes, menos vida.

Acontece que o presidente da República fez um deslocamento do debate da área da segurança pública para a área político-ideológica quando ele diz que é preciso armar todo o povo para resistir a tiranias, para resistir a perda de liberdades. Ora, não pesa sobre o país nenhuma ameaça, seja real ou imaginária, de que você venha a ter uma tirania, pelo contrário, ainda que sob pressão nossas instituições estão funcionando até aqui. E, também, não existe nenhuma força política hoje de relevância ou mesmo de pouquíssima relevância que esteja fora do jogo democrático.

Então, isso nos leva a três questionamentos, a três graves problemas: em primeiro lugar, ao se propor o armamento da população, está se propondo a quebra do monopólio da violência legal, que é privativa ao Estado Nacional. Na verdade, o certificado do nascimento de um Estado Nacional é quando ele passa a deter o monopólio da violência legal. Em segundo lugar, ao quebrar o monopólio, você está desfazendo do papel constitucional das Forças Armadas, que são, digamos assim, a ultima ratio, o último suporte da integridade desse Estado Nacional e da nossa soberania, então isso também representa um ataque às Forças Armadas e é preciso defender o papel delas. Terceiro e último, ao propor o armamento da população, se nós não temos nenhum inimigo, nenhuma ameaça externa, então, ainda que não esteja visível no horizonte, você está erguendo o espectro horripilante de um choque, um conflito de brasileiros contra brasileiros e isso tem um nome na história: guerra civil.

Quando você teve o armamento de populações, a História nos ensina, sempre vieram a reboque ou deixaram um rastro de genocídio, de massacre de etnias, de populações, de golpes, tirania e, inclusive, do ovo da serpente: do fascismo italiano e do nazismo alemão.

Então, por isso que eu entendo que essa proposta de armar a população, pelo o que aqui narrei, representa um risco sério e precisa ser afastado, precisa ser devidamente evitado, de uma quebra de nossa estabilidade e por isso me dirigi ao Supremo Tribunal Federal, onde tramitam vários pedidos de suspensão dessa política armamentista do governo federal.

BBC News Brasil - O cenário que o senhor pinta é bastante preocupante. Na avaliação do senhor, qual o objetivo do governo Bolsonaro ao facilitar esse acesso a armas? O senhor acha que estas são consequências que o governo não está antevendo ou existe algo deliberado nesse sentido?

Jungmann - Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que o presidente Bolsonaro sempre teve essa pauta. Eu fui colega dele durante 12 anos na Câmara dos Deputados, então ele está sendo absolutamente honesto quando faz a defesa dessa pauta. Em segundo lugar ele atende à base que o elegeu, que é uma base pró-armamentista, em larga medida. E, em terceiro lugar, aí eu acho que fazer uma interpretação literal não é possível, mas é possível dizer que este tipo de atitude conspira contra a estabilidade democrática. Basta lembrar o que aconteceu há pouco nos Estados Unidos, com a invasão do Capitólio, e nós temos eleição em 2022.

Então, independentemente das intenções, que não me cabe aqui avaliar, do senhor presidente da República, ele comete um enorme equívoco, que atenta contra o monopólio da violência legal pelo Estado Brasileiro, contra o papel da Forças Armadas e, evidentemente, contra a possibilidade de você ter conflitos entre brasileiros.

Imagine você que em 2022 nós temos um resultado eleitoral contestado — e aparentemente nós vamos ter uma reedição de polarização, igual a de 2018, aparentemente, apenas. Então tudo isso, evidentemente, agrava nossas preocupações e exige medidas imediatas para evitar que isso aconteça.

BBC News Brasil - O senhor foi ministro da Defesa e conhece como poucos civis as Forças Armadas. Na carta aberta, o senhor fala que essa política de facilitação do armamento atenta contra o papel das Forças Armadas. Mas, ao mesmo tempo, parte das Forças Armadas parece não estar tão incomodada com esse fato, pois temos um recorde de militares em cargos de ministérios e secretarias no governo Bolsonaro. Por que o senhor acha que isso ocorre, já que há um conflito entre o papel da Forças Armadas e essa política armamentista?

Jungmann - Em primeiro lugar é preciso dizer que o presidente Jair Bolsonaro, durante toda a sua carreira parlamentar, foi um parlamentar de nicho, ou seja, ele tinha duas clientelas específicas as quais ele se dedicava: primeira delas são os próprios militares e ele provém exatamente das Forças Armadas, mais especificamente do Exército Brasileiro e, em segundo lugar, os policiais.

No momento em que ele assume o governo, não tendo ele uma grande passagem junto às elites financeiras, empresariais, culturais, de mídia etc., etc. para compor o seu governo, ele volta-se para quem? Para os militares. Não se volta tanto para as polícias, porque as polícias são estaduais e não são nacionais, como são as Forças Armadas. Então onde é que ele vai buscar os quadros para governar com ele? Ele vai buscar isso exatamente com as Forças Armadas.

Do lado das Forças Armadas, além daqueles que evidentemente simpatizam com a agenda do presidente, existem outros que não simpatizam.

Mas aqui nós temos um problema que não é tanto das Forças Armadas e tampouco do presidente Jair Bolsonaro, que é o papel do Congresso Nacional.

Hoje se reclama muito da presença dos militares no governo, mas é preciso dizer que o Congresso Nacional tem prerrogativas constitucionais para estabelecer restrições sobre isso. Se o Congresso Nacional, se o poder político, se a elite civil e política não impõe travas a isso. Não seria necessariamente contra militares, mas exatamente para manter a separação que é fundamental institucionalmente entre governo e Forças Armadas, que têm uma missão constitucional voltada para o Estado e não para o governo. O Congresso falha ao não estabelecer isso.

Então, reclama-se por exemplo da presença (de militares no governo) — que eu acho, sobretudo em termos dos militares da ativa, excessiva —, mas não existe nenhuma trava. Em segundo lugar, sendo o presidente da República o comandante supremo das Forças Armadas, não havendo nenhuma trava legal, o que elas podem fazer?

Certa feita eu estava em um debate com o ex-ministro da Justiça Tarso Genro, e ele disse: "As Forças armadas precisam se pronunciar." E eu disse: "Não, elas não devem se pronunciar. Elas devem permanecer exatamente onde estão", que é exatamente voltadas para as suas atividades profissionais, elas não têm que entrar na política. Elas não têm que falar, diferentemente de outras corporações, elas não devem falar. Porque se começam a falar, vão falar hoje, vão falar amanhã e vão falar depois.

A verdade é que aqui há uma grande confusão, que é preciso esclarecer... Quem tem falado são militares da reserva que estão em funções políticas, mas eles não falam pelas Forças Armadas.

Não se deve cobrar que os militares se pronunciem sobre política. Evidente que militar é cidadão e tem gente lá que apoia o governo e tem gente que é contrária ao governo, como aliás acontece mundo a fora — mas elas (as Forças Armadas) devem e estão permanecendo voltadas a suas atividades profissionais.

Eu não represento e não falo pelas Forças Armadas, apenas fui quase dois anos ministro da Defesa, mas posso lhe assegurar pelo que conheço e pelo que conheci, que as Forças Armadas não darão suporte ou apoio a qualquer desvio constitucional, qualquer golpe, qualquer interrupção da democracia do nosso país.

BBC News Brasil - No mês passado também voltou à tona aquele famoso tuite do general Villas Bôas, então comandante do Exército, que ele publicou as vésperas do julgamento do HC do ex-presidente Lula, em 2018. O senhor tinha acabado de assumir como Ministro da Segurança Pública, saindo da pasta da Defesa. O senhor ficou sabendo desse tuíte antes?Como foi essa história? O senhor ficou sabendo de que haveria algum posicionamento por parte do general Villas Boas?

Jungmann - Não soube e nem caberia. Eu deixei o Ministério da Defesa no dia 27 de fevereiro de 2018 e o tuíte, se eu não me engano, foi no dia 8 de abril ou alguma coisa assim (o tuite de Villas Bôas foi publicado em 3 de abril). Então a cadeia de comando já não passava por mim de forma alguma.

Eu sou um admirador e tenho uma grande amizade com o ex-comandante Villas-Bôas, um amigo que considero pessoal. Mas acho que o tuíte, embora eu entenda as razões que ele apresenta a esse respeito e acho que são ponderáveis, mas acho que não é a forma adequada.

Eu defendi aqui exatamente que as Forças Armadas permanecessem focadas em seus aspectos profissionais e em linha com a Constituição. Eu acho que, em que pese as preocupações, em que pese o clima que estava vivendo, em que pese eu reconhecer que o general Villas Bôas é um democrata, mas aquilo não é a forma mais adequada de se, digamos assim, de exercer o exercício de pressão sobre uma Suprema Corte, o que é, repito, é inadequado.

Se ele me consultasse, o que não ocorreu nem ocorreria, porque, dada nossa amizade, ele iria me preservar, eu teria procurado dissuadi-lo. Mas veja, tenho convicção que outro fosse o resultado do julgamento, ele seria integralmente respeitado.

BBC News Brasil - No livro onde o general conta sobre o tuíte, ele fala que houve participação do Alto Comando do Exército, não foi o general sozinho que tuitou. Na época, o senhor declarou que "a fala do general foi no sentido da serenidade e do respeito à Constituição e às regras, o que é correto". O senhor continua mantendo essa avaliação, sabendo que foi o Alto Comando que planejou esse tuíte?

Jungmann - Em primeiro lugar, é preciso entender o seguinte: a decisão é do comandante e ela é intransferível, porque foi ele que o publicou. Se ele chegou a ouvir, como está dentro do livro e não nos cabe duvidar, pode ter sido uma atitude, digamos, mais formal.

De todo o jeito, é uma atitude que considero que não é adequada para a necessária separação que tem que existir entre instituições. Nós estamos aqui falando de um outro poder, que é o Poder Judiciário, e ao mesmo tempo do não envolvimento do Exército e das Forças Armadas em questões tópicas, em questões de governos, na medida que são instituições do Estado.

BBC News Brasil - O senhor foi o último civil a ocupar o cargo de ministro da Defesa e, para muitos analistas, o controle civil das Forças Armadas é fundamental para a democracia. O senhor concorda com isso, acha que é melhor um civil controlar as Forças Armadas?

Jungmann - Olha, o grande controle a ser exercido pelas Forças Armadas se dá através dos órgãos de controle e, particularmente, através do Congresso Nacional e, no caso de conflito, pelo Judiciário.

Eu já fui adepto da tese de que o Ministério da Defesa deveria permanecer apenas nas mãos dos civis. Mas o controle deve sobretudo não prescindir de duas coisas: que o poder político civil tenha liderança e projeto para as Forças Armadas, e não existe isso, sobretudo na área da Defesa. Nosso poder político não exerce a sua liderança e tampouco tem demonstrado apetite por projetos para a defesa nacional.

No meu entendimento, é muito frágil você dizer "o controle depende de um civil". Você pode botar um civil lá, vamos supor uma situação absurda, que seja simplesmente uma marionete, que não tenha nenhum poder, não, não é isso.

O controle efetivo dos órgãos do Executivo está na mão do Congresso, só que o Congresso não exerce isso. No início, confesso a ti, eu entendia que deveria continuar a linhagem civil, mas depois melhor refletindo, eu vejo que nações democráticas colocam (militares no comando).

Eu estive, por exemplo, com o secretário de Defesa durante o governo Trump, o Jim Mattis, e ele é um ex-fuzileiro. Você teve mais até que Secretário de Defesa, você teve o secretário de Estado, o Colin Powell (ex-general que comandou o Departamento de Estado dos EUA entre 2001 e 2005). E alguém coloca em dúvida o controle civil sobre as Forças Armadas dos Estados Unidos? Ninguém coloca.

Então a questão não é tanto por aí. A questão, para mim, tem dois níveis: primeiro, o poder político civil não exerce suas prerrogativas na área de Defesa e também nas Forças Armadas. Em segundo lugar, um problema mais abaixo, que é o seguinte: o Brasil talvez tenha o único Ministério da Defesa do mundo em que você não tem um especialista civil, um gestor civil, de carreira, atuando.

Você não tem parlamentares que hoje dialogam e entendam sobre as Forças Armadas. Pode ter um ou outro perdido entre 513. Me lembro de ir, enquanto Ministro da Defesa, em audiências públicas e confesso, eu percebia no debate o desconhecimento ou distanciamento que existia. Como é que você quer liderar?

Então, essa é a minha visão: pode ter ministro civil, pode ter ministro militar, mas tem que ter uma grande base civil, com capacidade técnicas e científica lá dentro, participando desse processo e você precisa sobretudo que o Congresso Nacional assuma o seu papel, e ele não vem exercendo isso.

BBC News Brasil - Semana passada tivemos uma reviravolta política, o ministro do STF Edson Fachin acabou por anular as condenações do ex-presidente Lula. Na Folha de S. Paulo um reportagem afirmava que os militares viram com reserva o discurso do ex-presidente Lula depois da anulação. Eles teriam dito que podem ter dificuldade de relação com o presidente caso Lula venha a ser eleito em 2022. O senhor acha que pode ocorrer um problema nesse sentido?

Jungmann - Olha, se em 2022, o Mandetta, o Huck, o Doria, o Moro ou o próprio Lula, chegarem ao poder, eu posso lhe assegurar que da parte das Forças Armadas não terão qualquer impedimento ou dificuldade para governar.

Dentro das Forças Armadas existem, sim, aqueles que são antipetistas, como há aqueles que também tem a outra opção e são petistas, socialistas ou liberais, ou conservadores. Enfim, isso está tudo representado lá dentro.

Mas, eu posso dizer que hoje é consolidado o sentimento, até porque já viveram o governo Lula anteriormente.

O governo do PT durou 14 anos, infelizmente terminou como terminou, mas a verdade é que é no governo Lula que acontecem duas coisas importantes para as Forças Armadas. Em primeiro lugar, foi a edição de uma política e de uma estratégica nacional de Defesa.

E, além disso, é reconhecido que é desse período, que foi um período economicamente muito mais folgado, que houve um grande investimento na modernização e atualização das nossas Forças.

Então, eu digo isso como alguém que fez oposição ao governo do PT durante 14 anos, mas tem que reconhecer as coisas que de fato aconteceram e é isso que a gente tem a narrar.

Eu não vejo maiores problemas, seja com Lula, seja com quem for que chegue lá, o Mandetta, o Moro, o Huck e, evidentemente a continuidade do Bolsonaro. Serão recebidos da mesma forma, em linha com a Constituição.

BBC News Brasil - O general da reserva Luiz Eduardo Rocha Paiva escreveu que "aproxima-se o ponto de ruptura" após a anulação das condenações de Lula. O senhor não vê isso como refletindo o que se pensa dentro das Forças Armadas ativas hoje?

Jungmann - Militares que estão na reserva usualmente têm uma visão em boa medida da Guerra Fria, do combate ao comunismo, da subversão e tudo mais, da política de segurança nacional e tal. São homens que deram e contribuíram pra nação e para pátria, mas permanecem ainda imersos em um clima que já não existe mais, que já não faz mais sentido.

De um modo geral, a reserva é assim. Ela fica numa posição, digamos assim, pré-queda do Muro de Berlim e às mudanças todas que o mundo teve, inclusive o próprio processo de redemocratização. Na reserva é comum, por exemplo, que não se aceite que as Forças Armadas não tenham um papel moderador, não tenham mais o papel de tutela e tudo mais que tinham no passado. Então eu acho que isso é a expressão de um pensamento que já não é o pensamento da Forças Armadas.

Não quero dizer que não existam lá dentro militares que pensem assim, mas a cúpula, as escolas de formação, esses oficiais superiores, já não são inclinados ou se deixam levar por esse tipo de percepção. Eles pensam muito mais na profissão e no respeito à democracia.

BBC News Brasil - Sobre seu período como ministro extraordinário da Segurança Pública (2018-2019), surgiu no contexto das mensagens vazadas entre o ex-juiz Sergio Moro e a Força Tarefa da Lava-Jato um diálogo do procurador Deltan Dallagnol em que ele diz que a ministra do STF Carmen Lúcia teria ligado para o senhor no episódio da guerra de liminares que quase libertou o presidente Lula, em 2018. Ele teria dito para o senhor que o Lula não deveria ser libertado. O senhor se envolveu de alguma forma nessa ação?

Jungmann - No dia que eu chamo de "prende-solta" do Lula, que teve duas ordens para soltar e duas ordem para prender, alternadamente, eu recebi ligações de todo mundo, de formadores de opinião, de pessoal de comunicação, de editor, de autoridade, ministro, o próprio presidente da República ligou e pediu que o mantivesse informado do que estava se passando.

Um dos telefonemas que eu recebi, foi exatamente da ministra Cármen Lúcia para pedir informações: "Jungmann, como é que tá isso? Como é que tá acontecendo?". Eu narrei tudo o que estava acontecendo, o conflito que estava se dando e, evidentemente, a dificuldade que tem a Polícia Federal, executora da ação judicial, de lidar com essa situação. E em seguida, ela me disse: "Eu vou soltar uma nota sobre isso. Eu estou preocupada", e eu disse: "Faça isso, senhora presidente". E nada mais trocamos.

Então, eu vou repetir o que eu disse quando me fizeram pela primeira vez essa pergunta: isso é uma mentira. Repito: é uma mentira. Não houve esse diálogo. A ministra é uma juíza e sabe que se ela assim procedesse, estaria incorrendo no crime de obstrução da Justiça. Se eu, porventura, recebesse - que não recebi - esse pedido, eu estaria incorrendo em obstrução de Justiça, o que obviamente não fiz.

Por isso mesmo, eu resolvi interpelar o senhor Deltan Dallagnol para que ele confirme e desminta isso, porque não faz nenhum sentido. Não houve nada disso de parte da ministra Cármen Lúcia, que então presidia o Supremo, e da minha parte.

Pelo amor de Deus, quando a Polícia Federal está trabalhando junto ao Judiciário, o ministro da Segurança Pública e da Justiça não tem poder nenhum, está se passando em outro poder. A Polícia Federal trabalha de mãos dadas com o Judiciário e quem poderia autorizar ou solicitar isso é exatamente o juiz da questão, o juiz do caso.

A mim não caberia e tampouco à senhora presidente do Supremo nenhuma ação, senão estaríamos cometendo um crime de obstrução de Justiça, o que nem ela e nem eu cometemos.


William Waack: Não ao mais do mesmo

A comoção nacional em torno da pandemia é o grande obstáculo à reeleição de Bolsonaro

Jair Bolsonaro ocupou a crista de duas ondas de grande amplitude política e social. A primeira o levou ao Planalto, num fenômeno que surpreendeu a ele mesmo. A segunda está muito próxima – se é que já não atingiu – do ponto de repetir em relação a Bolsonaro o que ocorreu na cabeça dos eleitores em 2018 diante de um candidato que representava Lula: a maioria não queria repetir mais do mesmo.

O “mais do mesmo” é a noção majoritária no público, e com alta probabilidade de se tornar irreversível, de que o governo Bolsonaro é incompetente para tratar da saúde e do bolso das pessoas. Em 2018 o presidente foi capaz de detectar as mudanças de sentimentos na política e como o “momento” se formava em seu favor. Agora, percebeu tarde, mas não entendeu a profundidade e a amplitude das emoções (e política é emoção) trazidas pela angústia, medo e insegurança ligados ao avanço da pandemia.

Uma boa parte da explicação para essa cegueira política está no próprio personagem Bolsonaro, refém de uma paranoica concepção segundo a qual tudo que lhe pareça adverso é resultado de conspirações de adversários reais ou imaginários para apeá-lo do poder e/ou impedir sua reeleição. Aliada a uma visão de mundo tosca e retrógrada, essa característica de personalidade – mais o fato de acreditar só na família – o levou a cometer grave erro político ao operar a troca do ministro da vez na Saúde.

Diante da pressão política e social causada pela percepção generalizada da incompetência governamental para combater a pandemia, Bolsonaro sentiu-se obrigado a sacrificar um peão, o general da Saúde que, involuntariamente, causou o maior dano recente à imagem da instituição à qual pertence, o Exército. Ocorre que essa percepção generalizada assume (corretamente) que os erros partem do próprio presidente, e que a troca de subordinados só teria efeito para inverter a narrativa dominante, fatal para quem quer se reeleger, se indicasse uma vigorosa correção de rumos.

Mas o que ficou no ar é a tediosa sensação de trocar seis por meia dúzia. Pior ainda, essa “mentalidade do bunker” à qual Bolsonaro está preso o levou a se isolar ainda mais na tentativa de aliviar a pressão política e social contra seu governo. Os que ele acusa, erroneamente, de tentar prejudicá-lo (governadores e prefeitos) são, na verdade, os que estão na primeira linha do combate ao vírus e mantêm uma relação direta com os parlamentares do Centrão, por exemplo. Que ficaram de fora.

No atual cada um por si é o Congresso que ocupa mal ou bem um papel central de coordenação de esforços e articulação num salve-se quem puder que está virando comoção nacional. Há forças políticas aliadas ao presidente dizendo a ele e ao público que essa comoção passa com a chegada em massa de vacinas e a esperada inversão das curvas de contaminação, hospitalização e mortes. E que a retomada da ajuda emergencial, mesmo mais tímida, permitiria a travessia do tempo necessário para que reformas como a administrativa (que corta despesas) e tributária (que reduz custos, ainda que não reduza a carga) sejam aprovadas e produzam efeitos.

É a tal janela de oportunidade da qual tanto fala o ministro Paulo Guedes. Em situação de tripla crise já seria uma aposta arriscadíssima, pois supõe que o tempo (e, de fato, falta muito até as próximas eleições) trabalharia a favor. Mas, no atual ambiente político no qual as opções de Bolsonaro estão se estreitando, a autoridade de seu governo se dissolvendo, seus adversários se organizando e a desmoralização da figura política do presidente atingindo avançado estágio de consolidação, virou uma aposta perigosíssima para ele.

Crises políticas e sociais da atual amplitude, abrangência e profundidade produzem em fases agudas respostas que a priori surgem como grandes surpresas, como foi a vitória de Bolsonaro em 2018. O cenário atual não indica que será a mesma resposta em 2022.


O Globo: Troca no Ministério da Saúde irrita Arthur Lira e provoca insatisfação no Centrão

Escolha de Marcelo Queiroga incomodou o presidente da Câmara, que preferia médica Ludhmila Hajjar ; senador Ciro Nogueira, presidente do PP, atua para conter os ânimos

Bruno Góes, Paulo Cappelli e Natália Portinari, O Globo

BRASÍLIA – A escolha do novo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, provocou insatisfação no presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), e em seus aliados. Eles demonstram desconfiança com o médico, escolhido por sua ligação com Jair Bolsonaro. A preferência pelo seu nome, porém, contou com o aval do presidente do PP, o senador Ciro Nogueira (PI), que tenta acalmar os ânimos.

Ao concretizar a substituição de Eduardo Pazuello, Bolsonaro rifou a cardiologista Ludhmila Hajjar, apoiada publicamente por Lira. O deputado do PP, segundo interlocutores, ficou "muito chateado".

No partido, Lira havia defendido a indicação de Ludhmila em detrimento do deputado Luizinho (PP-RJ), preferido entre os parlamentares. À bancada, Lira disse que Bolsonaro não aceitaria o nome de um político nesse momento e, então, o ideal era dar apoio a Ludhmila. Quando o presidente mudou de ideia, Lira se irritou.

Em conversa no Palácio do Planalto com o presidente, na tarde de terça-feira, porém, Ciro Nogueira deu aval ao nome do cardiologista. Ao sair do Palácio do Planalto, ele tentou acalmar os ânimos de Lira. Na segunda-feira à noite, após o anúncio de seu nome, Queiroga se reuniu com diversos deputados do PP, como Hiran Gonçalves (RR), Celina Leão (DF), Margarete Coelho (PI) e de outros partidos, como Soraya Santos (PL-RJ).

Parlamentares cobram desde o fim do ano passado o cumprimento de um calendário de vacinação factível e veem como fundamental uma mudança de postura do ministério. Alguns aliados de Lira dizem até mesmo publicamente que não há mais chance para erros.

– O Congresso vai dar o todo apoio. Mas, numa situação grave dessas, o ministro não pode aprender a ser ministro. Tem que ser ministro e colocar em prática o calendário de vacinação – afirma o vice-presidente da Casa, Marcelo Ramos (PL-AM).

Além de condenarem o papel de Pazuello na Saúde, alguns parlamentares esperavam que pudessem ter mais influência no ministério para coordenar as políticas voltadas diretamente para suas bases eleitorais.

Parlamentares do Centrão e aliados de Lira disseram ao GLOBO, em caráter reservado, que a postura de Bolsonaro no episódio poderia incitar retaliações em "votações importantes". Entretanto, essa ainda é uma conjectura diante da insatisfação.

– É um dos ministérios mais delicados de qualquer governo. Não é possível trazer alguém para tentar entender o que está acontecendo. É delicado. Queiroga é uma pessoa que tem capacidade médica, mas não conhece o sistema de saúde. Temos o exemplo do Teich. Quanto tempo ele durou? Um mês. Era extremamente qualificado academicamente, mas o Ministério da Saúde é uma área técnica, mas também política. Em um momento como esse, não dá pra botar pessoa que ainda está tentando entender o que está acontecendo internamente – diz o deputado Hugo Leal (PSD-RJ).


Roberto DaMatta: Viramos jacaré?

Meu senso de antropólogo cultural antigo e de não especialista (hoje, o Brasil é a pátria desses maravilhosos profissionais) prevê que teremos múltiplas vacinas contra o competidor biológico maior, a Covid-19, com suas famílias e linhagens que o governo Bolsonaro incrementa por meio de um pueril negacionismo e por uma adulta e criminosa sabotagem.

O vírus, não custa repetir, além de ser um agente epidêmico mortal e sem intenções (exceto sobreviver), é — tal como as nossas elites, de que somos parte e parcela — um predador invisível e solerte.

Aliás, conforme escreveu um “especialista” chamado Charles Darwin, no mundo natural, além de uma perturbadora ausência de intenção (ou causa final) e de uma óbvia presença de oportunidade, quem melhor se adapta e mais se reproduz triunfa.

O significado dessa desgraçada vitória, devo logo dizer antes que me levem à guilhotina moral, é a grande questão do nosso mundo, já que, de modo claro, ela suprime um outro mundo, uma outra vida e — quem sabe? — engendra uma história alternativa...

Se levamos a sério as premissas darwinistas, cabe honrar ao menos “este mundo” de que estamos certos e onde atuamos. Pois o fato inexorável é o seguinte: se tudo ocorreu ao acaso num planeta igualmente singular, posto que ele próprio é “vivo”, o sentido final da existência não precisa ser justificado por uma outra vida. Ela tem que fazer sentido aqui e agora, como demandam o vírus, os sanitaristas e todos os inesperados. Acima de tudo, os inesperados paradoxalmente previstos (e planejados) dos abismos entre quem tem demais e os despossuídos.

Não é preciso ser um sábio para dirimir os abismos sociais do Brasil. Eles saltam aos olhos quando saímos de casa — se casa temos...

Nesta etapa antropocênica — em que a pandemia impede, entre outras dimensões, que se possam disfarçar as imensas desigualdades mundiais, os vergonhosos abismos sociointelectuais nacionais e os transtornos de um planeta agredido por “empreendedores” esquecidos de que são por ele englobados e foram por ele engendrados —, não há a menor dúvida de que a espécie triunfante, o Homo sapiens, é ao mesmo tempo Deus e algoz do mundo que habita e dele mesmo.

Diz um celebrado mestre-pensador (Claude Lévi-Strauss) que, graças à invenção da linguagem articulada e dos costumes, somos um superpredador com um trajeto semelhante ao do câncer, porque conseguimos uma multiplicação além da Bíblia. Hoje somos onipresentes. A onisciência e a onipotência que nos tornariam divinos está em nossa volta e se afirmam nos laboratórios e nas “armas de destruição em massa”, esse eufemismo para artefatos com o poder de simplesmente assassinar o planeta em nome de alguma desavença nacional!

Avaliando com minha óbvia insuficiência essas pressões, tenho, não obstante, um temor de idoso: imagino, conforme confesso ao meu filho Renato, um consumado biólogo, pesquisador e professor universitário, que o vírus pode ter vindo para ficar.

O que significa esse “ficar” quando o ideal de conforto, satisfação e dignidade depende de um rude individualismo (primeiro eu, depois os meus e em seguida quem pensa e faz como eu!) — uma consciência do mundo que convenientemente inibe reciprocidades, interdependências e só imagina o outro como adversário ou inimigo a ser eliminado (ou cancelado, como se diz atualmente)?

Não deixa de ser paradoxal que o lado mais perturbador do vírus seja sua potência de bloquear o que nos tornou humanos: a sociabilidade ancorada na presença do outro. A dialética da costumeiro e do exótico — do encontro interessado ou espontâneo. Enfim, o que originou as grandes descobertas, inclusive a desses bichos invisíveis que existem ao nosso lado e interagem conosco porque são tão antigos quanto nós.

A habitual negação e a sabotagem do vírus no Brasil — cujo maior responsável é uma atitude emocional e irracional do presidente Bolsonaro e de seus seguidores —não são só um ato de desgoverno desses que permeiam e estruturam a admiração nacional desde que nos entendemos como um coletivo; são um risco para a Humanidade.

Certo que Adão não foi criado no Brasil, mas é igualmente verdadeiro que a Humanidade pode ser radicalmente ameaçada a partir de nossa cuidadosa e precisa negligência negacionista. De nossa incapacidade de realizarmos uma leitura mais abrangente de nosso lugar na Terra.

Enfim, se não nos conscientizarmos do perigo que estamos causando a todo o planeta; se não nos dermos conta de que o vírus impede o comércio, a aliança, a troca em todos os seus níveis que nos fizeram humanos, então vamos virar jacarés.

Cumpriremos um dos mais devastadores vaticínios do mais insensível presidente da nossa história.


Vinicius Torres Freire: Sem vacina e infectado por Bolsonaro, país tem de tomar remédio ruim de juros

BC não tem alternativa no país que Bolsonaro sabota a saúde e a economia

O Banco Central vai aumentar a taxa básica de juros em sua reunião desta quarta-feira (17). Caso não o fizesse, provocaria um tumulto final na economia sob o desgoverno de Jair Bolsonaro. Não importa o que a leitora, que é perspicaz, ache do regime de metas de inflação, da autonomia do BC ou do “neoliberalismo”: haveria tumulto. A curto prazo, não há solução alternativa.

Caso o BC se fingisse de morto, o dólar iria muito além dos R$ 6, de imediato e para começar. A inflação, que já está marcada para ir a perto de 7% anuais lá por junho, por aí ficaria. Esses seriam os primeiros sintomas de coisa ainda pior.

Isto posto, a alta da Selic não vai sair barato, talvez para o crescimento de 2022 e com certeza não para o controle da dívida pública, um problema central do país, qualquer que seja a solução que se imagine para um endividamento ainda sem limite.

Por falta de crédito, taxas de juros de longo prazo muito salgadas, o governo do Brasil se endivida ou rola sua dívida cada vez mais a curto prazo. Uma taxa Selic real (descontada a inflação) em zero ou perto disso até o fim do ano que vem daria um refresco. Não, não é solução. O país está tão arrebentado que dependemos dessas coisas marginais para não afundarmos de vez.

Não, a taxa básica de juros não estaria entre os determinantes da atividade econômica a curtíssimo prazo (menos de um ano), se tanto. O resto de crescimento que se pode salvar em 2021 depende, como é óbvio, de contenção do morticínio, da lotação das UTIs e de vacinas, nada disso à vista antes de meados de abril, se tivermos sorte.

No ritmo atual, em nove dias as UTIs da prefeitura da cidade mais rica do país, São Paulo, estarão lotadas. Se forem abertas mais vagas, em esforço recorde, inédito e talvez limite, lotam em 17 dias.

No mais, o crescimento dependeria da existência de algum governo, com qualquer rumo que fosse. O “teto” de gastos não desabou por um triz neste março. Goste-se ou não desse telhado de vidro já encardido e rachado, entre outros problemas estruturais desde sempre, se o “teto” tivesse desabado agora, sem alternativa bem pensada, estaríamos indo à breca imediata. Bolsonaro tentou derrubar o teto.

O estímulo da política monetária (juros do BC, grosso modo) à retomada econômica será menor. Quão menor? Também dependerá da campanha de alta de juros que o BC levará adiante. Há quem diga que a Selic deve ir apenas dos 2% atuais para 4% no fim do ano. Já seria forte. Na média de opiniões reputadas e preços de mercado, imagina-se que vá a 5,5% ao ano. Uma paulada.

Tanto maior será a paulada quanto maior o desgoverno. As altas do dólar e das commodities são os fatores dominantes da inflação, determinados majoritariamente por motivos externos. A pressão do exterior poderia ser em parte contrabalançada por um governo que tratasse da epidemia e tivesse rumo, qualquer rumo, na economia. Mas Bolsonaro agora tenta sabotar com mais frequência até as últimas proteções contra o caos: vide patada no Banco do Brasil, na Petrobras, a tentativa de sabotar o teto de gastos na votação de PEC Emergencial.

Afora os fatores externos, o dólar está ainda mais alto por causa do endividamento sem limite, porque o Brasil não cresce, porque Bolsonaro seca o chão onde pisa ou cospe seus vitupérios idióticos, facinorosos e autoritários.

Ah, tratávamos do Banco Central. O BC se tornou um barquinho nesse mar de imundície tormentosa. Está sendo levado, não tem o que fazer a não ser atenuar o pior.


Ruy Castro: Abominável senhor dos destinos

Nunca a vida de tantos brasileiros esteve nas mãos de tão poucos, garantidos pelas instituições

Um encontro numa sala reservada do Palácio do Planalto, no último domingo (14), reuniu quatro pessoas. Em jogo na conversa, a vida de centenas de milhares de brasileiros. O resultado da reunião, inevitável pelas circunstâncias, parece indicar que esses brasileiros perderam —muitos que acompanharam o caso pelo celular ou pela televisão talvez não estejam vivos daqui a um mês. Esse desfecho terá as digitais de três dos presentes na sala: Jair Bolsonaro, o general Eduardo Pazuello e o deputado Flávio Bolsonaro. Já a quarta pessoa, a médica Ludhmila Hajjar, poderá dormir em paz.

O encontro, todos sabemos, referia-se ao convite de Bolsonaro para que ela aceitasse a suposta pasta do Ministério da Saúde no lugar do pesado, mas invertebrado, Pazuello. Para isso, teria de declarar sua sujeição às ordens do verdadeiro ministro, que é Bolsonaro, e assumir a co-autoria na chacina da população pela Covid. Co-autoria esta já garantida a Pazuello, cujos netos lerão nos livros que o vovô foi cúmplice na morte de 265 mil brasileiros pela pandemia. O que a dra. Ludhmilla recusou não foi um convite, mas uma intimação.

O tenebroso nessa reunião é como tantos destinos —o número de vidas perdidas no Brasil ameaça chegar a inacreditáveis 500 mil ou 600 mil— podem depender de tão poucos. Entende-se que Bolsonaro e Pazuello quisessem arguir a dra. Ludhmilla, para certificar-se de que ela seria um capacho à altura de Pazuello. Mas o que Flávio Bolsonaro fazia ali, mesmo em ameaçador silêncio?

Não apenas a saúde no Brasil está refém de um grupo de sujeitos abomináveis. Tudo mais está refém deles. Quando se diz que as instituições "estão funcionando", é para garantir a continuidade do desmoronamento do país.

Já não há instituição do Estado que não esteja visceralmente aparelhada. A costura da provável ditadura está sendo feita por dentro e aos nossos olhos.


Bruno Boghossian: Desastre na pandemia pesa sobre planos de Bolsonaro para 2022

Morticínio abala tentativa do presidente de preservar força para reeleição

Quando a pandemia deu as caras, Jair Bolsonaro apostou todas as fichas em seu projeto de reeleição. O presidente sacrificou os esforços mais urgentes de contenção do vírus e tentou fazer com que a economia continuasse girando à força. A estratégia acentuou a tragédia no país e, agora, ameaça seus próprios planos políticos.

Até a virada do ano, Bolsonaro sustentou sua popularidade com base nesse discurso. O comportamento conflituoso manteve sua base eleitoral coesa, enquanto o pagamento do auxílio emergencial criou um colchão de aprovação ao governo. O morticínio que essa plataforma produziu, no entanto, começa a cobrar um preço do presidente.

A nova pesquisa do Datafolha indica uma tendência continuada de piora nos índices de avaliação de Bolsonaro. Ele nunca teve aprovação significativa durante a crise, mas agora 54% dos brasileiros consideram seu trabalho na pandemia ruim ou péssimo. A reprovação subiu tanto entre os mais pobres (que tiveram o auxílio) como entre os ricos (que já foram o núcleo de sua base de apoio).

O morticínio furou uma blindagem que Bolsonaro tentou construir no último ano. Na sondagem, 43% dos entrevistados citaram o presidente como principal culpado pela situação do país, à frente de governadores (17%) e prefeitos (9%). O número ganha peso porque a responsabilidade de governantes é um componente importante da decisão do eleitor.

Os números sugerem que a saúde é um fator político mais carregado do que Bolsonaro gostaria de admitir. A avaliação negativa do governo nessa área se somou à dificuldade da economia e se refletiu no índice de reprovação ao governo, que subiu para 44%. Mesmo assim, 30% dos brasileiros ainda consideram o trabalho do presidente ótimo ou bom.

O desastre nacional não foi suficiente para fazer com que Bolsonaro abandonasse a sabotagem e o negacionismo. Ele só mudou o discurso sobre a vacina e decidiu trocar o ministro da Saúde quando viu que sua reeleição poderia ficar em risco.


Elio Gaspari: Bolsonaro fritou o bode

O presidente e Pazuello encarnam um tipo de comando primitivo

Quando se acha que aconteceu de tudo, o capitão consegue mais uma. Fritando o general que transformou em bode expiatório, chamou a Brasília a médica Ludhmila Hajjar para convidá-la.

Bolsonaro e Pazuello encarnam um tipo de comando primitivo, às vezes confundido com o folclore da caserna. O general entrou no Ministério da Saúde com uma tropa de ocupação. Colocou 25 oficiais da ativa e da reserva em posições de comando. Um tenente-coronel cuidava das aquisições de insumos estratégicos; outro, de sua logística. Deu no que deu. O coronel secretário-executivo usava um brochinho com uma caveira atravessada por uma faca.

Afora isso, o próprio general dirigiu-se a parlamentares como se fosse um sargento falando a recrutas: “Não falem mais em isolamento social”.

Oficiais exibicionistas ridicularizam comandados. Às vezes mandam soldado puxar carroça. Como ministro, o general Pazuello fez fama mostrando-se como um soldado do capitão ao lembrar que “um manda, e outro obedece”.

O ministro talvez pudesse ter recorrido à memória que o vice-presidente Hamilton Mourão tem da história militar americana. Em 1866, o presidente Andrew Johnson mandou o general Ulysses Grant para uma missão no México. Ele se recusou, e o presidente se enfureceu, vendo no gesto um ato de indisciplina. Grant acabara de vencer a Guerra Civil e explicou: “Eu sou um oficial do Exército e devo obedecer às suas ordens militares. No caso, trata-se de uma missão civil, puramente diplomática, e não estou obrigado a aceitá-la”.

Formação militar nada tem a ver com folclore, muito menos com incompetência administrativa. A hidrelétrica de Itaipu foi construída por um coronel da reserva que morreu sem fortuna ou encrencas. José Costa Cavalcanti havia sido deputado e não elevava o tom de voz. O mais folclórico dos generais-presidentes (João Figueiredo) foi o pior da cepa. Castello Branco não usava a linguagem que Bolsonaro usou na conversa com a médica Ludhmila Hajjar.

O estilo que Bolsonaro cultiva com seu pelotão palaciano tem folclore e falta-lhe conteúdo. O Planalto vive assombrado pelo que considera uma campanha de desinformação. Tanto é assim que uma das primeiras providências de Pazuello foi alterar o boletim estatístico de mortes pela pandemia. Produziu o memorável episódio da formação do consórcio de veículos de imprensa, que faz o serviço a custo zero.

Pazuello passará para a história do ministério como gerente de um desastre. Tornou-se bode expiatório por ter irradiado uma visão negacionista da pandemia. As vacinas de Manaus foram para Macapá, a avalanche de imunizantes não aconteceu, e a CoronaVac chinesa do governador João Doria revelou-se uma dádiva. Durante a última semana de sua gestão, o Brasil tornou-se um dos dez países com mais mortes por milhão de habitantes. Foi a consequência da “conversinha” da nova onda de contágios.

Não precisava ter sido assim. Os Estados Unidos, Reino Unido, Itália e Portugal sofreram no ano passado. Sem as “frescuras” do folclore militar, não estão mais nessa lista maldita.

Que o médico Marcelo Queiroga, nova variante da cepa de ministros de Bolsonaro, tenha sorte.


Ricardo Noblat: Acuado pelo vírus, Bolsonaro assiste Lula atrair velhos aliados

Versão Lulinha paz e amor de volta à cena

De Guilherme Boulos a Delfim Netto, ex-ministro da Fazenda na ditadura entre 1967 e 1974, passando por José Sarney (MDB) e Fernando Henrique Cardoso (PSDB), todos admitem votar em Lula se ele disputar com Bolsonaro o segundo turno da eleição do próximo ano. É o tal “arco da sociedade” de antigamente.

Boulos e Delfim são os mais entusiasmados. O primeiro ainda não explicitou seu apoio a Lula porque tem antes de convencer o seu partido. A tarefa de Delfim é mais hercúlea – abrir trincas no paredão do mercado financeiro que resiste a Lula e ainda põe um resto de fé em Bolsonaro à espera das reformas.

Na eleição de 2018, quando o candidato do PSDB a presidente obteve no primeiro turno apenas 5% dos votos válidos, Fernando Henrique, embora amigo de Fernando Haddad (PT), preferiu não votar em ninguém no segundo turno. Arrependeu-se, como admitiu ontem em entrevista a Tales Faria, do UOL:

– Se ficar Lula e Bolsonaro, faço minha culpa, minha culpa e voto no menos ruim.

Fernando Henrique ainda espera que seu partido escolha um nome com chances de derrotar Bolsonaro, mas já avisa: “Se não se opuser a Bolsonaro com firmeza, fracassará”. João Doria (PSDB), governador de São Paulo, recuou do seu propósito de enfrentar Bolsonaro, embora tope enfrentar se seu partido quiser.

João Leite (PSDB), governador do Rio Grande do Sul, persevera na intenção de bater-se contra o atual presidente. Até aqui, pelo menos, seu nome parece encontrar menor oposição dentro do partido. Na eleição de 2018, o Rio Grande do Sul deu 63% dos seus votos a Bolsonaro no segundo turno.

O MDB de Sarney é também o MDB de Michel Temer que, por enquanto, permanece calado. Em segredo, Temer deu conselhos a Bolsonaro na esperança de que seu governo se ajeitasse. Pouco escutado, retraiu-se. Ele e Lula sempre se deram bem. Dilma não quer conversa com Temer, mas ela está fora do jogo.

Bolsonaro é quem deve se preocupar com sua permanência no jogo. Começou a colher os resultados desastrosos de sua omissão no combate à pandemia. Ou melhor: da sua parceria com a Covid no estrago que ela provoca no país. Sucessivas e recentes pesquisas de opinião pública atestam que ele está ladeira a baixo.

No dia em que o número de mortes alcançou o recorde de 2.798, quase duas por minuto, e a Fundação Oswaldo Cruz anunciou que o país enfrenta o maior colapso hospitalar de sua história, o Datafolha conferiu que a atuação de Bolsonaro na guerra contra o vírus é considerada ruim ou péssima por 54% dos brasileiros.

Na pesquisa Datafolha realizada em 20 e 21 de janeiro último, 48% reprovaram o desempenho dele. Na rodada atual, para 43%, ele é o principal culpado pela fase aguda da pandemia, seguido pelos governadores (17%) e os prefeitos (9%). O índice dos que nunca acreditam no que ele diz oscilou de 41% para 45%.

No ocaso da gestão do general Eduardo Pazuello, substituído no cargo pelo médico bolsonarista Marcelo Queiroga, a avaliação positiva do Ministério da Saúde, de janeiro para cá,  caiu de 35% para 28%, o menor índice desde a chegada do novo coronavírus. A avaliação negativa subiu de 30% para 39%.

Em sua primeira fala como ministro, Queiroga disse a que veio. Recomendou o uso de máscara e a lavagem das mãos, solidarizou-se com as vítimas da Covid e repetiu que dará continuidade ao trabalho de Pazuello e seguirá as orientações de Bolsonaro. É uma nova versão do “manda quem pode, obedece quem tem juízo”.

Hamilton Mourão, vice-presidente da República, deu razão a Queiroga: “A função do ministro, quem define é o presidente. O ministro é um executor das decisões do presidente. Até por isso, o presidente é o responsável por tudo o que aconteça ou deixe de acontecer, essa é a realidade”. (Maldade com Bolsonaro!!!)

Na célebre e barulhenta reunião ministerial de abril do ano passado, o ministro do Meio Ambiente sugeriu a Bolsonaro “passar a manada” da desregulamentação do setor enquanto a mídia estivesse ocupada com a pandemia. Acuado pelo vírus, Bolsonaro assiste Lula aparar suas eventuais diferenças com antigos aliados.

O futuro assegura um emprego bem pago ao general Pazuello

A quarta estrela será difícil

Se quiser retornar ao quartel, tudo bem. O general Eduardo Pazuello, de saída do Ministério da Saúde, deixou ali grandes amigos. Só não deve contar necessariamente com a quarta estrela que lhe falta no ombro. Doublé de general e de ministro de um governo turbulento, ele desgastou-se no Exército.

Mas o provável é que ganhe uma embaixada para não ficar ao desamparo, e ainda por cima sob o risco de ser chamado a depor diante de um juiz da primeira instância e de ouvir voz de prisão, acusado de improbidade administrativa. Embaixada quer dizer: um emprego bem pago que lhe confira visibilidade.

Pode ser dentro do Palácio do Planalto, a relativa distância do gabinete do presidente Jair Bolsonaro, ou fora, no comando de alguma empresa estatal. Ou como conselheiro de uma dessas empresas. Desabrigado não ficará para não sujeitar-se a vexames e em reconhecimento aos serviços prestados ao ex-capitão.


Rosângela Bittar: Enquanto isso...

Recobrando a liberdade de ir e vir, o ex-presidente Lula reanima velhos contatos

Discretamente, como convém a quem ainda não ganhou certificado de inocência nem a plena reabilitação política, o ex-presidente Lula vai escrevendo, na prática, seu roteiro de candidato. A manifestação da volta, pensada por ele mesmo, um retrato fiel do velho Lula de sempre, contém indicação ampla sobre o que se deve observar nos passos seguintes. Tanto no que revelou como no que escondeu.

pandemia foi a preliminar de efeito político imediato. A simples menção às ações necessárias já resultou na troca do ministro da Saúde. Satisfez o eleitorado só pelo contraste entre suas palavras de mero bom senso e a realidade política atual, forjada na irracionalidade.

Recobrando a liberdade de ir e vir, mesmo que em modo virtual, Lula reanima velhos contatos. Chama a atenção de empresários e convoca políticos amigos, como os caciques do MDB. Partido disseminado por todos os Estados, o MDB é uma federação de lideranças neutras ideologicamente, que agrega civis e militares, empresários e sindicatos, capital e interior, uma salada de referências na sociedade.

Ainda neste campo sua agenda registra o Centrão. O bloco dá sustentação fiel ao presidente Jair Bolsonaro. Mas governo e eleição são duas coisas diferentes, o Centrão está aí, para o que der e vier.

O que ainda não estava implícito nem explícito, mas não surpreende, são os movimentos e conversas de Lula no terreno delicado de suas relações com os militares.

A atualização do episódio, já desgastado, da pressão do general Villas Bôas sobre o STF, em 2018, simplifica os efeitos do constrangimento da época. Agora, Lula está tão aberto às conversas com militares que seus partidários consideram natural uma aproximação objetiva, de alto nível.

Citam o general Carlos Alberto dos Santos Cruz, ex-secretário de Governo nos primeiros meses da administração Jair Bolsonaro, como um dos nomes para compor a chapa, como vice-presidente. União que permitiria ampla composição, como se deu com o falecido industrial José Alencar nos mandatos presidenciais de Lula. 

O interesse por Santos Cruz revela dois aspectos das preocupações do candidato Lula. Primeiro, o resgate das boas relações com as Forças Armadas. Segundo, a expectativa de colaboração efetiva do general, expurgado do atual governo por um dos filhos do presidente. Saiu como vítima de fake news, uma prática depois banalizada, e deixou a impressão de ser o mais preparado dos colaboradores militares do governo.

Estes movimentos visam também modular a tentativa de politizar o Exército por parte do candidato à reeleição, seu adversário. O presidente Jair Bolsonaro, embora de origem militar, desviou-se do padrão de atuação e comportamento das Forças Armadas. A ambiguidade com que se refere ao "meu Exército" sugere mais seu lado miliciano do que propriamente militar.

Lado este, por sinal, que está em crescimento e ebulição. Certamente não foram as Forças Armadas que atuaram nos violentos episódios de intimidação moral e ameaça física à cardiologista Ludhmila Hajjar, convidada para integrar o governo. Convite recusado depois de dois dias de terror sob o comando do gabinete do ódio.

A investida evidenciou como está avançada a ocupação do território por esta milícia extremista, violenta, agressiva e ilegal do bolsonarismo. Prática de um terrorismo contemporizado pelo presidente, que consolou a vítima com um covarde "faz parte".

Expansão esta que chegou com força ao Congresso. Os presidentes da Câmara e do Senado pagam caro a fatura da sua eleição: o deputado Arthur Lira entregou joias da coroa parlamentar a deputadas da barricada bolsonarista; o senador Rodrigo Pacheco engavetou CPI proposta, dentro das regras, por senadores que pretendem apurar a letal gestão da pandemia pelo presidente da República.