STF

O Globo: Com pandemia no ápice, conflitos entre Bolsonaro, governadores e prefeitos emperram medidas de combate

Governador da Bahia, Rui Costa (PT), que também enfrenta críticas de prefeitos bolsonaristas, disse que vai acionar a Procuradoria-Geral do Estado para atuar contra o presidente

Bernardo Mello, Gustavo Schmitt e Sérgio Roxo, O Globo

RIO E SÃO PAULO - No momento mais crítico da pandemia, com o Brasil prestes a atingir a marca de 300 mil mortos, o confronto entre o presidente Jair Bolsonaro, governadores e prefeitos vem dificultando a adoção de medidas no combate ao coronavírus. Além de terem decretos questionados por Bolsonaro, que ingressou no Supremo Tribunal Federal (STF) ontem contestando o toque de recolher adotado por Bahia, Rio Grande do Sul e Distrito Federal, governadores de pelo menos oito estados enfrentam embates com prefeitos, alinhados ou não ao presidente, que rejeitam restrições em seus municípios.

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Ontem, governadores que foram alvos do pedido no STF — que deve ser negado pela Corte — reagiram ao presidente. O governador da Bahia, Rui Costa (PT), que também enfrenta críticas de prefeitos bolsonaristas, disse que vai acionar a Procuradoria-Geral do Estado para atuar contra o presidente, a quem chamou de “aliado do vírus”.

Governadores e prefeitos entraram em choque Foto: Editoria de Arte
Editoria de Arte/O Globo

O Consórcio Nordeste, formado por todos os estados da região, classificou o pedido de Bolsonaro como “inusitado”, enquanto Ibaneis Rocha (MDB) prorrogou o toque de recolher no Distrito Federal. O gaúcho Eduardo Leite (PSDB) ironizou a ação e disse que Bolsonaro “mais uma vez chega atrasado” ao debate. Leite também lembrou que o STF autorizou estados e municípios a determinarem suas próprias restrições, prevalecendo a regra mais rígida.

Interferência da Justiça

Bolsonaro criticou ainda o prefeito do Rio, Eduardo Paes (DEM), por determinar o fechamento das praias no fim de semana. O presidente disse que ir à praia era uma forma de obter vitamina D, o que reduziria a chance de um quadro grave em caso de contaminação com o vírus. Paes afirmou que pediria ao governador Cláudio Castro (PSC), aliado do presidente, para estender restrições à Região Metropolitana e respondeu Bolsonaro em uma rede social.

“Temos clareza das vitaminas que todos precisamos para ter saúde. Uma delas é a vitamina da solidariedade e contra o negacionismo aos fatos e o que vem acontecendo em todo o país”, escreveu Paes.

Gestão da pandemia criou atritos Foto: Editoria de Arte
Editoria de Arte/O Globo

Em algumas capitais, como Porto Alegre, Natal e Teresina, prefeitos alinhados ao bolsonarismo só cumpriram medidas restritivas de decretos estaduais após serem pressionados no Judiciário. Na capital do Piauí, o prefeito Dr. Pessoa (MDB), simpático a Bolsonaro, fez uma ofensiva no fim de janeiro, após se reunir com o presidente, pedindo a flexibilização de protocolos. Na última quinta, Pessoa baixou um decreto que descumpria as restrições do estado. O governador Wellington Dias (PT) recorreu à Justiça, que obrigou o município a seguir as regras estaduais.

— O sistema de saúde de Teresina está colapsado. Tivemos notícia de paciente que morreu sem atendimento. Ele (o prefeito) é um médico e espero que, com essa decisão, a gente possa manter a integração — afirmou Dias. — A posição do presidente cria uma dificuldade no cumprimento dos protocolos e decretos que são implementados. Sai da orientação científica para a campo da política.

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Em Natal, o prefeito Alvaro Dias (PSDB) aceitou um decreto conjunto com o governo do Rio Grande do Norte, na quarta-feira, após mediação do Ministério Público e pressionado por uma decisão judicial que reafirmava a prevalência das medidas mais restritivas. Na semana anterior, Dias havia contrariado decreto da governadora Fátima Bezerra (PT) e flexibilizado o toque de recolher para bares e restaurantes.

Em audiência de conciliação na última semana, Dias — que tem defendido o uso de remédios ineficazes contra a Covid-19, como a cloroquina — chegou a dizer que a capital potiguar tinha “vencido a pandemia”. Após ceder ao decreto estadual, ele justificou a mudança de posição citando a “agressividade” de novas cepas do vírus, argumento semelhante ao sugerido por aliados de Bolsonaro para que o presidente passasse a defender a vacinação:

— Ninguém gosta de adotar medidas tão duras. Isso afeta dos empresários aos trabalhadores mais pobres, informais. Por outro lado vejo que a doença está se espalhando e com características diferentes da primeira onda.

Na capital gaúcha, onde mais de 300 pessoas aguardam por leitos de UTI, o prefeito Sebastião Melo (MDB) ameaçou romper a chamada “cogestão”, em que prefeitos e governador tomam medidas conjuntas contra a Covid-19. Crítico ao fechamento de serviços, Melo chegou a apelar à população para que “contribuísse com a vida para salvar a economia”, e disse que “sempre cabe mais um” em hospitais.

Atrito entre aliados

O GLOBO também identificou conflitos entre governadores e prefeitos no Espírito Santo, Paraíba, Bahia, Minas Gerais e São Paulo.

Embora a maioria dos conflitos seja marcada por rivalidades locais, também há divergências entre aliados. O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), e seu correligionário Bruno Covas trocaram críticas ontem sobre a decisão da capital de antecipar feriados na tentativa de aumentar o isolamento social.

O temor do estado é que o feriado prolongado de dez dias motive viagens e aglomerações no litoral. Doria disse que faltou bom senso. Covas rebateu e disse que o que falta é “senso de urgência”.

Além das capitais, cidades médias apresentam embates envolvendo prefeitos que se declaram apoiadores de Bolsonaro e contrariam medidas restritivas.

Aglomeração

Em Bauru, o governo do estado alega que a gestão de Suéllen Rosim (Patriota) tentou descumprir a fase vermelha e não tem investido na fiscalização das medidas sanitárias. No mês passado, ela cantou em um culto em uma igreja para diversas pessoas.

— Bauru é o pior exemplo do estado em termos de consequências negativas para a saúde da população — afirma Paulo Meneses, epidemiologista e coordenador do Centro de Contingência do governo estadual.

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Em Campina Grande, o prefeito Bruno Cunha Lima (PSD) afirmou que vai recorrer de decisão judicial que o obrigou a seguir o toque de recolher do governador João Azevedo (Cidadania).

Em Ipatinga (MG), o prefeito Gustavo Nunes (PSL), eleito com apoio do presidente em suas lives, chegou a retirar a cidade do programa “Minas Consciente”, da gestão estadual de Romeu Zema (Novo), que estabelece protocolos sanitários para abertura de serviços. Mesmo em colapso na rede pública, Nunes se recusou a fechar atividades até quarta-feira, quando Zema impôs toque de recolher estadual, inclusive para quem estava fora do Minas Consciente.

Na Bahia, cidades no Sul do estado resistiram ao decreto estadual de lockdown. Em Teixeira de Freitas, o prefeito Marcelo Belitardo (DEM), que teve apoio do bolsonarismo local na última campanha, baixou um decreto que afirma que as medidas do governador da Bahia “não serão acolhidas”.


Evandro Milet: Podemos trocar o ministro por um algoritmo

Quem não faltou à aula de interpretação de textos na escola conseguiu ler o óbvio na decisão do STF e entendeu que a Corte não proibiu o governo federal de agir no enfrentamento da pandemia da Covid-19. Apenas, no seu entendimento, a possibilidade do chefe do Executivo Federal definir por decreto a essencialidade dos serviços públicos, sem observância da autonomia dos entes locais, afrontaria o princípio da separação dos poderes.

É óbvio que uma série de ações de coordenação e articulação com estados e municípios deveria ter sido feita e não foi. O STF não proibiu o executivo de coordenar a compra de respiradores que poderia ter evitado a bateção de cabeça com governadores negociando com fabricantes preços disparatados e dando margem à tenebrosas transações. Caberia até uma articulação diplomática com países fornecedores. Também não impede de coordenar a compra de oxigênio. Se não podia coordenar essas compras porque poderia comprar caminhões de cloroquina e distribuir?

Se o papel do governo federal é só distribuir o dinheiro para os estados, o ministro da saúde poderia ser substituído por um algoritmo com as regras de divisão. Aliás, a computação afetiva já começa a ser realidade e os algoritmos de inteligência artificial conseguem perceber até emoções. Não faria mal um pouco de empatia, mesmo digital, com os pacientes e famílias. Um robô teria mais sensibilidade para visitar hospitais.

O STF também não proibiu o executivo de fazer uma ampla campanha pela utilização de máscaras e pela necessidade de distanciamento social. Mas como fazer isso se o próprio Presidente fazia o contrário do que o mundo todo preconizava? Até campanha pelas vacinas fica difícil depois das seguidas manifestações contra a vacina chinesa por um ciúme político doentio e as transmutações em jacarés. Com isso se atrasou toda a negociação com fabricantes de vacinas.

A única recomendação presidencial foi pelo tal tratamento precoce que não consta em nenhum protocolo para covid em países desenvolvidos e ainda derrubou dois ministros que não compactuaram com as recomendações. Muita gente tende a seguir as recomendações médicas do capitão e passa a se achar imune, relaxando nos cuidados devidos. As teorias delirantes de conspiração nas redes supõem que todos os cientistas e líderes mundiais foram subornados pelos laboratórios farmacêuticos, que não queriam que os remédios baratos de lúpus, piolho e lombriga competissem com seus remédios caros.

Nas redes sociais proliferam, sem controle, as opiniões mais estapafúrdias também incentivadas. Umas acusam a imprensa de alarmismo quando, na verdade, as campanhas deveriam seguir as dos maços de cigarros ou da exposição crua dos acidentes de trânsito. Outras querem exigir que se divulgue principalmente o número de pessoas curadas. Seria como ao invés de repercutir os seis milhões de mortos no holocausto, dar destaque aos milhões que sobreviveram. Outros procuram relativizar o número de mortos comparando com outras doenças como câncer, dengue ou problemas cardíacos. Ora, para essas doenças há informação para quem quiser sobre como se prevenir, enquanto a covid é uma loteria com poucas informações sobre quem está sujeito a morrer, afastando famílias, colocando empresas em home office, fazendo se arriscar quem tem de trabalhar presencialmente e acabando com a vida social.

As atitudes tomadas pelos países de maior sucesso com muitos testes e rastreamento não foram seguidas obviamente pela falta de comando e pelo negacionismo permanente da gravidade e do possível número de mortos. Gripezinha, maricas, mimimi, frescura são expressões deprimentes e ridículas para tratar algo tão sério e perigoso.
Os países que levaram o problema a sério e introduziram desde cedo os procedimentos devidos, estão recuperando mais rapidamente a economia. Os que negaram o problema e não souberam conduzir o processo sofrerão as consequências por muito mais tempo.


Juan Arias: Alguém acha que se Bolsonaro perder as eleições contra Lula irá passar a faixa pacificamente?

A única coisa que preocupa o capitão desde que foi eleito é assegurar sua reeleição no ano que vem. Contra isso, é capaz de atropelar liberdades e voltar a acariciar seu sonho de uma nova ditadura militar

A possível foto do capitão Bolsonaro passando pacificamente a faixa presidencial ao ex-presidente Lula percorreria o mundo. E é isso que o presidente tentará evitar. Já recém-eleito em 2018 começou imediatamente a colocar em dúvida a legitimidade das urnas e exigiu o voto impresso. Chegou a dizer que se os votos não fossem manipulados ele teria vencido no primeiro turno e que tinha provas disso, mas nunca as apresentou. E desde então deixou claro que se perder o próximo pleito e ainda mais agora com a possibilidade de que Lula seja o vitorioso, não aceitará pacificamente os resultados.

Não por acaso, desde que surgiu de surpresa a possibilidade de que Lula possa disputar as eleições, Bolsonaro tem afirmado que só ele pode impor o estado de sítio no país. Falou novamente da possibilidade de um golpe, de que ele conta com “seu Exército”.

Bolsonaro nunca apareceu tão nervoso e agressivo ao mesmo tempo em que se apresentou de repente como o defensor da vacina, enquanto abre uma guerra contra os governadores aos que acusa de ser os responsáveis pela tragédia da pandemia por permitirem medidas restritivas para tentar conter o drama da covid-19 cada vez mais perigosa e agressiva.

A única coisa que preocupa o capitão desde que foi eleito é assegurar sua reeleição no ano que vem. Contra isso, o presidente é capaz de atropelar todas as liberdades e de voltar a acariciar seu sonho de implantar uma nova ditadura militar. Não é por acaso que a cada dia seu Governo aparece mais militarizado e que no boletim do Clube Militar do Rio de Janeiro tenha se defendido que a maioria dos brasileiros “tem saudade da ditadura”. Algo que todas as pesquisas nacionais desmentem mostrando que 70% dos brasileiros são favoráveis à democracia.

Bolsonaro voltou esses dias à cínica filosofia de que “a liberdade é mais importante do que a vida”. Só que ele falar de liberdade soa a sarcasmo. Pelo contrário, para ele o conceito de liberdade não existe. A primeira vez que ele falou de liberdade significou liberdade para infringir as leis restritivas contra o avanço da pandemia. Bolsonaro não entende de filosofia e não sabe o que é um silogismo e um sofismo. Seu forte não é o raciocínio e a reflexão e sim a impulsividade das armas e a exaltação da violência em todas as suas vertentes.

Quando o presidente defende que a liberdade vale mais do que a vida não está fazendo uma reflexão filosófica. Está só pensando na liberdade que suas hostes negacionistas pedem para desobedecer às normas impostas pela ciência e a medicina em meio à maior tragédia sanitária da história do Brasil.

Bolsonaro tem pavor de perder votos de suas hostes se apoiar as medidas necessárias não só para prevenir o contágio pessoal, como também para impedir o dos outros. Chega a defender que é melhor morrer e expor os outros à morte do que impedir as pessoas de burlar essas normas ao bel-prazer. Sua única obsessão é a de poder perder as eleições e por isso despreza a vida dos outros para salvar seu poder.

Bolsonaro falar da liberdade mesmo à custa de colocar em perigo a própria vida é risível e soa mais à fraude. Se há hoje no Brasil um político que despreza a liberdade é o presidente cujo vocabulário está repleto de palavras como golpe, ditadura, guerra contra a liberdade de expressão e perseguição dos direitos humanos. De guerra contra a liberdade das pessoas de escolher suas preferências sexuais e de negar que os diferentes tenham direito à sua liberdade de sê-lo.

A palavra liberdade na boca do negacionista e genocida já nasce podre e corrompida.

A única forma de liberdade para ele é justamente a de perseguir as liberdades que forjam uma sociedade verdadeiramente democrática onde não existe valor maior do que a vida.

presidente alardeia o uso de Deus para seus planos de poder e para ganhar os votos da grande massa dos evangélicos. Ele, que gostaria de trocar a Constituição pela Bíblia, deveria se lembrar que nos textos sagrados Jesus define a si mesmo como “o caminho, a verdade e a vida” (João, 14,16).

Bolsonaro despreza exatamente esses três conceitos. Em vez de ser o caminho, ou seja, o guia de uma sociedade justa e livre, é o motor da confusão e do desgoverno. Em vez de ser o representante no país da verdade é o semeador da mentira, cultor da nova moda das fake news. E em vez de ser o defensor da vida chama de covardes os que se protegem do vírus e fazem sacrifícios para continuar vivos.

Não existe no presidente que está conduzindo o país a uma catástrofe um só instinto de vida. Seu abecedário é o da morte e da destruição como revela sua paixão pelas armas, expressão da morte e da violência. Que Bolsonaro coloque um falso conceito de liberdade como mais importante do que a vida é a melhor constatação do que já havia confessado: “Eu não nasci para ser presidente. Minha profissão é matar”.

Bolsonaro poderá um dia ser levado aos tribunais internacionais acusado de não ter impedido com sua negação da pandemia e seu desprezo pela vacina encher os cemitérios de mortos. A única verdadeira liberdade que ele pratica é a de abandonar o país a sua própria sorte para não perder o poder.

O certo e cada vez mais indiscutível é que o Brasil, desde o fim da ditadura e volta à democracia, nunca esteve tão perto de uma nova tragédia política. A espada de Dâmocles de um novo golpe militar não é algo hipotético e sim algo bem próximo. E ainda mais com a chegada inesperada de Lula e a deterioração cada dia maior das instituições que deveriam velar pelos valores democráticos como o Congresso e o Supremo onde está ocorrendo uma verdadeira guerra campal entre os magistrados que deveriam colocar todos os seus esforços na defesa da democracia ameaçada.

Por sua vez, os militares que se comprometeram abertamente com o Governo Bolsonaro e suas loucuras antidemocráticas dificilmente aceitarão aparecer como derrotados. E certamente não permitirão perder essa guerra.

As grandes tragédias dos países começam por ser consideradas como catastrofistas e acabam sempre se realizando quando já não há mais tempo de detê-las.

Cuidado Brasil!

Quem mandou matar Marielle?

No último dia 14 de março, completaram-se três anos do atroz assassinato da jovem ativista negra vinda da favela, Marielle Franco, e sobre sua tumba continua ameaçador o silêncio sobre quem foram os mandantes de sua morte. Escrevi em outra coluna que Marielle morta poderia acabar sendo mais perigosa do que viva. Talvez seja necessário uma mudança no Governo de morte de Bolsonaro para que por fim saibamos com certeza quem matou a jovem e por quê. E então o Brasil poderá, por fim, fazer justiça da bárbara execução.

Para isso será preciso que chegue um presidente não comprometido com o submundo das milícias do Rio e que chegue um Governo realmente democrático que descubra o mistério de sua morte e, por fim, faça justiça levando aos tribunais os culpados hoje escondidos nos porões sombrios do poder.

Juan Arias é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como ‘Madalena’, ‘Jesus esse Grande Desconhecido’, ‘José Saramago: o Amor Possível’, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente.


China tem investimentos em 25 estados brasileiros, diz Luiz Augusto de Castro Neves

Informação é do presidente do Conselho Empresarial Brasil-China, em artigo na Política Democrática Online

Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP

“No Brasil, os investimentos chineses estão presentes em 25 estados da federação”, diz o presidente do Conselho Empresarial Brasil-China, o economista Luiz Augusto de Castro Neves, em artigo que publicou na revista Política Democrática Online de março.

Com periodicidade mensal, a revista é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania. A versão flip, com todos os conteúdos, pode ser acessada gratuitamente na seção de revista digital do portal da entidade.

Confira a Edição 29 da Revista Política Democrática Online

“A China consolida-se como ator de primeira grandeza no cenário internacional, seu produto interno bruto já é o maior do planeta, se medido em paridade de poder de compra (e provavelmente será o primeiro a preços de mercado ainda nesta década), e sua presença já se faz sentir em todos os quadrantes do mundo”, afirma Neves.

Relações fundamentais

Ele, que é embaixador no Japão, na China e no Paraguai, afirma que as relações econômicas e comerciais sino-brasileiras têm sido fundamentais para evitar o agravamento da crise econômica. Segundo ele, o país asiático continua a crescer muito mais do que a média da economia mundial e sua demanda por produtos brasileiros não para de crescer.

“Nosso desafio, nesse contexto, é buscar aproveitar plenamente as janelas de oportunidade que se nos abrem na China”, assevera ele, analisando o contexto das relações econômicas entre os dois países.

De acordo com Neves, as relações entre o Brasil e a China podem ganhar outra dimensão quando se examina a parceria entre os dois países com um olhar de longo prazo. “Sobretudo quando se tem em mente que a demanda externa desempenhará um papel central na retomada do crescimento da economia brasileira”, afirma.

Arrocho fiscal

O profundo desequilíbrio fiscal em que o Brasil se encontra, de acordo com Neves, dificilmente será corrigido nos próximos anos, levando a um crescimento modesto da demanda interna.  Ele também é membro do Conselho de Administração do Grupo Pão de Açúcar.

O aproveitamento pleno das janelas de oportunidade requer do Brasil, segundo ele, aumento de competitividade internacional mediante investimentos em infraestrutura, em capital humano, bem como fortalecer o ambiente de negócios.

“Em suma, precisamos ter estratégia de longo prazo em nossas relações com a China e, sobretudo, fazer nosso ‘dever de casa’”, assinala ele, que é ex-secretário-geral adjunto das Relações Exteriores e ex-diretor-geral para as Américas no Itamaraty.

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Bolívar Lamounier: Sob o império da mentira

Cúpula dos três Poderes hoje provavelmente é a pior composição da nossa História

Faz tempo que nós, brasileiros, vimos sentindo nossa autoestima baixar cada vez mais. Não vendo muito de positivo a celebrar, ressaltamos nossos defeitos, que, de fato, não são poucos.

Mas, sinceramente, nunca me ocorreu que tantos de nós fôssemos imbecis, canalhas e irresponsáveis como essas multidões que estão antepondo todo tipo de obstáculos ao combate à pandemia. Pondo em risco não só a nossa vida, mas também a deles.

A pandemia já ceifou quase 300 mil vidas e uma parcela importante dessa perda se deve ao comportamento do insano que nos preside. Seu objetivo parece ser muito mais o de impedir a ascensão eleitoral do governador João Doria do que livrar o nosso país dos riscos trazidos pelo coronavírus. Sabotando o trabalho dos agentes de saúde, fomentando aglomerações, insuflando fanáticos que o apoiam, mentindo sem nenhum pudor (por exemplo, quando afirma que o Supremo Tribunal Federal o impede de agir), ele vem tornando nossa tragédia muito maior do que ela precisaria ser. Hoje somos uma “ameaça global” e uma vergonha para o mundo.

Era o caso de esperar mais de um capitão excluído das Forças Armadas por indisciplina para em seguida se tornar um lídimo representante do “baixo clero” na Câmara dos Deputados? Justiça feita, ele não é um caso isolado. O que hoje temos na cúpula dos três Poderes é provavelmente a pior composição da nossa História. No próprio Supremo, guardião da Constituição, alguns ministros parecem empenhados tão somente em combater o combate à corrupção.

O império da mentira parece não ter limites. Veja-se o caso de Lula. Minutos após ter suas condenações pelo triplex e pelo sítio em Atibaia invalidadas pelo ministro Fachin, fazendo pose de estadista ele proferiu uma mentira que o futuro certamente lembrará como um notável paradoxo. Afirmou ter sido “vítima da pior mentira jurídica de nossa história”. Proferiu, portanto, uma mentira que se autodesmente, como na história do cachorro correndo atrás de seu próprio rabo. Mesmo o período de um ano e meio em que esteve preso em Pinheirais é uma grande mentira, pois esteve confortavelmente instalado, com direito a televisão e a visitas de seus advogados e outras pessoas. Lula sabe muito bem que, no espaço de dois ou três meses, sob os governos militares, muita gente sofreu centenas de vezes mais do que ele.

Lembremos, contudo, que algumas das piores coisas que ouvimos ultimamente não são mentiras. Minutos após ser empossado como presidente da Câmara dos Deputados, o deputado Arthur Lira (PP-Alagoas) manifestou sua intenção de restabelecer a coligação entre partidos nas eleições legislativas. Essa, sim, é de cabo de esquadra.

A revogação das coligações (efetivada na reforma de 2017) foi a única medida séria que logramos aprovar no terreno da reforma política em mais de 30 anos de tentativas. A referida modalidade de coligação era uma evidente fraude da vontade do eleitor e da consistência que temos o direito de esperar dos partidos políticos. Minigrupos que, isoladamente, não conseguiriam atingir o chamado quociente eleitoral, habilitando-se a participar da distribuição das cadeiras, aliavam-se – como se fossem um partido! – a fim de atingi-lo. Concretizado esse objetivo espúrio, separavam-se, juntavam-se a outros e faziam o que bem entendiam com a parcela da representação popular que supostamente teriam angariado.

A vedação das coligações foi aplicada na eleição municipal de 2020, com resultados por enquanto modestos, mas positivos.

A intenção externada pelo presidente da Câmara é um péssimo augúrio. Sugere que uma parte da classe política persiste na obtusidade que a caracteriza há várias legislaturas. Que não compreende que o Brasil precisa de uma reforma política séria e abrangente, sob pena de não lograr o impulso necessário para retomar o crescimento econômico e a busca do bem-estar. Nesse mister, não estamos lutando para evitar um retrocesso, estamos metidos até o pescoço num retrocesso gravíssimo, que implica nossa permanência num nível de pobreza avultante por toda uma geração. Tal reforma terá de ser feita, cedo ou tarde, e num contexto preocupante. Trata-se de uma reforma difícil, que por certo envolverá alterações constitucionais, portanto, um desafio de grande monta para a atual geração política, sabidamente mediana.

Trinta e cinco anos atrás, no Congresso Constituinte, qualquer cidadão informado não precisaria de mais que cinco minutos para apontar dez, quinze ou vinte líderes de expressão nacional. Falo da qualidade de tais líderes, não da ideologia de tal ou qual. De A a Z, dispúnhamos de figuras públicas habilitadas a representar a sociedade nos escalões mais altos. Lá estavam Ulysses Guimarães, Franco Montoro, Mário Covas, Roberto Campos, Delfim Netto, Fernando Henrique Cardoso.

Hoje, se me permitem um breve resumo, temos um cenário extremamente preocupante para as próximas duas ou três décadas e uma classe política, ao que tudo indica, despreparada para enfrentar esse magno desafio.

*Sócio-Diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências


Com armamento da população, Bolsonaro acena para guerra civil, diz Raul Jungmann

Em artigo na revista Política Democrática Online de março, ex-ministro analisa gravidade da política do presidente

Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP

O armamento da população, como pretende o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), fere o papel constitucional das Forças Armadas, segundo o ex-ministro da Defesa e ex-ministro extraordinário da Segurança Pública Raul Jungmann, em artigo que publicou na revista Política Democrática Online de março.

A revista mensal é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania. A versão flip, com todos os conteúdos, pode ser acessada gratuitamente na seção de revista digital do portal da entidade.

Confira a Edição 29 da Revista Política Democrática Online

De acordo com ele, ao propor armar a todos, o presidente está, consecutivamente: quebrando o monopólio da violência legal, privativa do Estado Nacional, ferindo o papel constitucional da Forças Armadas e acenando com a hipótese de um conflito de brasileiros contra brasileiros, uma guerra civil.

Armamento massivo

“Isso nos motivou a redigir uma carta aberta ao Supremo Tribunal Federal, onde tramitam ações contrárias a política de armamento massivo, alertando para os riscos para a segurança pública e para a estabilidade democrática”, lembra Jungmann, que também é ex-deputado federal.

No curso da divulgação da carta, conta Jungmann, a repercussão superou expectativas na mídia tradicional, nas redes, colunas de opinião e junto a vários formadores de opinião. “O que talvez queira dizer da preocupação das pessoas com o tema e a percepção dos riscos envolvidos numa política armamentista. E existem razões concretas para tal”, assevera.

Em seu artigo na revista da FAP, o ex-ministro cita dados da Polícia Federal, segundo a qual, em 2020, o registro de armas de fogo cresceu 90% em relação ao ano anterior, o maior crescimento de um ano para outro já registrado pela série histórica.

Escalada de mortes

“Do outro lado da moeda, as mortes violentas, que iniciam uma queda em 2018 (ano em que éramos Ministro da Segurança Pública) e continuaram caindo em 2019, retomaram sua escalada em 2020”, pondera ele.

 Na revista Política Democrática Online, o autor lembra, ainda, que entidades diversas da sociedade civil e ongs se mobilizaram promovendo um abaixo assinado em apoio à carta aberta, que, segundo ele, já conta com mais de dez mil assinaturas. O documento deve ser entregue a ministros do STF em breve.

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Armando Castelar Pinheiro: Heranças da pandemia

O Brasil terá pressões inflacionárias, juros externos mais altos, desemprego elevado e alimentos mais caros

 Chegamos ao meio de março sem conseguir acelerar o ritmo da vacinação nacional. Ao todo, foram 12 milhões de vacinas aplicadas a pouco mais de 4% da população brasileira. Em termos de vacinas por 100 habitantes (5,5 no Brasil), somos o 39º país de uma lista que tem Israel (110) no topo e, na sequência, Emirados Árabes Unidos (67), Reino Unido (40), Chile (40) e Estados Unidos (35). Por conta da focalização nos grupos de maior risco, nesses países já há alguma normalização da atividade econômica, como refletido em indicadores de mobilidade e emprego, por exemplo.

Essa “luz no fim do túnel” tem estimulado trabalhos que discutem a herança deixada pela pandemia, seja em termos de problemas que ficam por resolver, seja de lições para lidar com futuras crises.

Alguns desses temas foram discutidos no workshop “Macroeconomia de la pandemia y los impactos de Covid-19 en América Latina”, promovido pelo Grupo de Conjuntura do IE/UFRJ, que cobriu a experiência não apenas do Brasil, mas também de outros países da região. Destaco três dos tópicos vistos no workshop.

Primeiro, o atraso da América Latina na retomada da atividade econômica, em termos de PIB e emprego, por conta da forma ineficiente com que a região lidou com a pandemia. As novas projeções econômicas da OCDE reforçam esse ponto: tomando a média de Argentina, Brasil e México, as três maiores economias da região, tem-se que em 2022 seu PIB ainda estará um pouco abaixo do de 2019 (-0,2%). O mesmo estudo projeta um PIB mundial 6,1% maior ano que vem do que em 2019.

Ou seja, ficaremos relativamente mais pobres e, se vamos nos beneficiar do aumento da demanda externa por nossos produtos, em especial com preços mais altos de commodities, vamos também sofrer com pressões inflacionárias e juros externos mais altos. Desemprego elevado e preços altos de alimentos são uma combinação politicamente perigosa, especialmente quando as pessoas se sentirem seguras de voltar a se aglomerar.

Esse quadro complica outras duas heranças discutidas no workshop. Uma, a preocupação com a saúde financeira das instituições financeiras. Saberemos mais sobre isso conforme fique mais fácil diferenciar problemas de liquidez daqueles de solvência. Outra, a difícil situação fiscal de alguns dos países da região, com destaque para o Brasil que, junto com o Peru, gastaram muito em programas públicos de combate à crise. É fácil ver que baixo crescimento e juros em alta são agravantes de uma situação fiscal já difícil.

Este último ponto também é discutido no livro “Legado de uma Pandemia”, publicado no início do mês pelo Insper, com organização de Laura Muller Machado. O livro tem 17 capítulos, agrupados em quatro partes que lidam, respectivamente, com a ordem social, a ordem econômica, a organização do Estado e política e comunicação. Em todos os capítulos há uma preocupação em explicitar legados deixados pela pandemia e em fazer recomendações.

Dentre os diversos temas tratados no livro, os impactos distributivos, fortes e negativos, são um dos destaques. Foram os trabalhadores mais pobres que mais sofreram com a perda de ocupações e renda. Os negros também sofreram mais que os brancos, enquanto outras análises mostram que as mulheres saíram em maior proporção do mercado de trabalho do que os homens. O livro dá grande ênfase a um ponto em geral pouco discutido: houve um significativo impacto negativo sobre as crianças, pela falta de aulas, que foi mais importante para as crianças mais pobres, com menos acesso a equipamentos de informática e assistência familiar.

Essa discussão desemboca no livro em um debate que também apareceu no workshop do IE/UFRJ: quão desejável é redistribuir o custo econômico da pandemia por meio de tributações que retirem renda de grupos que sofreram menos para financiar os programas públicos de assistência social, evitando transferir todo esse custo para gerações futuras, por meio de mais dívida pública.

O livro do Insper também trata de como a separação entre o que é feito pelo Estado e o que cabe ao setor privado pode ser repensada após a pandemia. Uma conclusão é que, em crises, pode ser desejável o Estado participar mais planejando e coordenando as atividades, no financiamento e na produção, e se preocupando menos com temas como a defesa da concorrência. Esse quadro deve, porém, ser transitório. Mais permanente deve ser o apoio estatal a pesquisas científicas relacionadas à pandemia, mesmo que indiretamente, como na segurança alimentar, e a capacitar servidores públicos para lidar com momentos como o atual.

Diversos capítulos, ainda que não todos, encerram com uma visão positiva sobre o futuro, prevendo que a sociedade acordou para os problemas revelados pela pandemia. É o caso, em especial, dos “invisíveis”, aí compreendidos os inúmeros pobres que acorreram ao Auxílio Emergencial e dos quais não havia registro anterior. Não me convenci dessa visão. Mas concordo que, para avançar, precisamos de mais discussão pública sobre os temas tão oportunamente trazidos por todos esses pesquisadores. Parabéns.

*Armando Castelar Pinheiro é Coordenador de Economia Aplicada do Ibre/FGV, professor da Direito-Rio/FGV e do IE/UFRJ 


Ribamar Oliveira: O enigma do novo gatilho de 95%

PEC 186 não resolve problema de acionar as medidas de ajuste

Há uma unanimidade entre os analistas de que a despesa obrigatória da União, submetida ao teto de gastos, só vai ultrapassar 95% da despesa total em 2024 ou 2025. Este é o novo gatilho que dispara as medidas de ajuste das contas, introduzido pela PEC Emergencial, promulgada como emenda constitucional 109.

O problema do novo gatilho, no entanto, não está apenas na demora para ele ser acionado, mas também no fato de que se a despesa obrigatória chegar a 95% da despesa total, vários serviços públicos à população já estarão paralisados, ou, como preferem dizer os economistas, a administração estará em “shutdown”. Assim, a fixação do gatilho em 95% foi claramente um erro.

Em ofício ao Congresso Nacional, datado de 14 de dezembro de 2020, o ministro da Economia, Paulo Guedes, propôs mudança na meta fiscal deste ano e reestimou a receita e a despesa da União para 2021, uma vez que os parâmetros utilizados na elaboração do projeto de lei orçamentária anual (PLOA), em agosto do ano passado, estavam ultrapassados.

Nele, Guedes informa que o governo passou a trabalhar com despesas discricionárias de R$ 96,2 bilhões, incluindo neste valor as emendas parlamentares, que, embora sejam impositivas, podem sofrer contingenciamento. O valor corresponde a 6,47% da despesa total da União submetida ao teto. As despesas discricionárias são os investimentos e o custeio da máquina, que o governo não é obrigado por lei a executar.

As despesas obrigatórias submetidas ao teto, por sua vez, estão em 93,53% do limite total do gasto definido para este ano, de R$ 1.485,9 bilhões. Este percentual é uma aproximação porque o cálculo tem que ser feito, de acordo com a EC 109, para cada Poder e órgão público, pois eles possuem limites de despesa individualizados. Mas essa abertura de dados não está disponível no ofício do ministro. Sem as emendas parlamentares, as despesas discricionárias caem para R$ 79,9 bilhões neste ano, o menor patamar da série histórica.

Mesmo com esse nível muito baixo para os investimentos e o custeio da máquina, o gatilho não é acionado, o que mostra o equívoco cometido. Uma conta simples demonstra a armadilha que foi criada. As despesas discricionárias teriam que cair mais 1,47 ponto percentual (6,47% menos 5%) da despesa total para que as medidas de ajuste possam ser adotadas. Ou seja, para chegar a 5% da despesa total neste ano, as discricionárias teriam que ser reduzidas para R$ 74,3 bilhões, incluindo as emendas parlamentares, o que inviabilizaria a administração.

Em resumo, a EC 109 estabeleceu um gatilho que só poderá ser acionado quando a administração pública estiver em “shutdown”. Com um agravante: como não se pode reduzir as emendas parlamentares, que estão indexadas pela inflação, o aumento futuro das despesas obrigatórias terá que ser compensado sempre com o corte do investimento e do custeio.

As razões que levaram à escolha de 95% como novo gatilho das medidas de ajuste são um enigma. Importantes integrantes da equipe econômica do governo defenderam que o gatilho ficasse em 94%. Então, porque o percentual de 95% prevaleceu? Este colunista apurou que foi uma decisão política do governo e ouviu que, até hoje, ela gera incômodo na área técnica.

Se o gatilho tivesse ficado em 94%, havia o risco de ele disparar já em 2022, ano eleitoral, com a adoção obrigatória de medidas impopulares de contenção de despesas. É difícil acreditar que a razão tenha sido esta porque, para evitar desgaste eleitoral, o governo optou por um percentual que não será atingido, pois, antes disso, a administração estará em “shutdown”.

Para que o leitor não perca o fio da meada, o objetivo original da PEC 186 era corrigir o principal problema do teto de gastos. Devido à má redação da emenda constitucional 95/2016, que instituiu o teto, o gatilho que acionava as medidas de ajuste das contas não disparava. Não havia maneira de o governo adotar medidas de contenção das despesas. Como as despesas obrigatórias não param de crescer, os investimentos e o custeio foram minguando cada vez mais.

No texto da PEC 186 que o governo enviou ao Congresso, em novembro de 2019, o gatilho disparava toda vez que a chamada “regra de ouro” das finanças públicas, que proíbe o aumento da dívida para pagar despesas correntes, não estivesse sendo cumprida.

Este referencial foi alterado e o relator da proposta, senador Márcio Bittar (MDB-AC), com a concordância do governo, foi buscar o gatilho de 95% que constava da PEC 188. O resultado de tudo isso é que o gatilho que consta da EC 109 não permite acionar as medidas de ajuste para evitar o “shutdown” da administração e, portanto, não resolve o problema que estava colocado na EC 95.

Nova polêmica

Uma nova polêmica ganhou corpo entre os especialistas em finanças públicas. A PEC 186 instituiu, como foi dito nesta coluna em fevereiro passado, um novo marco para as finanças públicas. A âncora fiscal passou a ser a trajetória da dívida pública que será perseguida pelos governos federal, estadual e municipal. As metas de resultado primário serão definidas de forma a permitir que a trajetória da dívida seja cumprida. Para isso, os governos terão que adotar medidas de contenção de despesas e elevação de receitas que permitam alcançar as metas.

A raiz da polêmica está no fato de que o artigo da EC 109, ao tratar desta questão, prevê aprovação de lei complementar especificando “a trajetória de convergência do montante da dívida com limites definidos em legislação”. O artigo 52 da Constituição define que é competência privativa do Senado fixar, por proposta do presidente da República, limites globais para o montante da dívida consolidada da União, dos Estados e dos municípios. A discussão é se a EC 109 invadiu uma competência do Senado.

Na interpretação do Ministério da Economia, não há conflito entre o artigo 52 da Constituição e a EC 109. A atribuição do Senado, de acordo com esse entendimento, é fixar limite máximo para o endividamento dos entes. E o objetivo da EC 109 é fixar limites prudenciais para definir uma trajetória para a dívida, que, se superados, acionam os gatilhos das medidas de ajuste.


Adriana Fernandes: É hora de abrir o olho para que as 'boiadas' não passem na pandemia

Não queremos a continuidade prometida pelo futuro ministro da Saúde

Mesmo sob ameaças e críticas daqueles que defendem a economia acima de tudo e das mortes de brasileiros que poderiam ser evitadas, esta coluna de análise econômica vai continuar apoiando e alardeando a necessidade de adoção de medidas restritivas de isolamento para conter a transmissão acelerada da doença. E também para salvar a economia do desastre maior. Repetir e repetir.

Para um país sem vacinas suficientes para imunizar em massa a sua população, é o único caminho apontado por cientistas para conter o colapso do sistema de saúde público e privado que transformou todo o Brasil numa grande Manaus e celeiro de variantes do vírus.

Necessitamos de medidas (efetivas), bem planejadas em cada localidade, que aumentem a taxa de isolamento, e não ações de prefeitos e governadores que vão sendo desidratadas e acabam resultando em ganho muitíssimo limitado por causa da pressão econômica e política dos seus adversários. Temos de parar de verdade. É preciso coragem política e espírito humanitário para afastar interesses eleitorais neste momento de descontrole, o maior colapso sanitário e hospitalar da história do País, na definição da Fiocruz.

A pandemia, infelizmente, está mostrando que a maioria dos governantes, parlamentares e lideranças empresariais brasileiras não está à altura do momento para enfrentar essa guerra que mata tantos de nós e destrói a economia. Há dez dias, chocou a notícia de que morreriam 3.000 pessoas por dia no Brasil. Hoje, o número é realidade.

Os empresários que fazem agora campanha contra o isolamento daqui mais um tempo vão pedir para as medidas serem adotadas. A razão é simples. Médicos e enfermeiros não são insumos que se compram na prateleira. O caos já derruba o PIB, desorganiza a economia e afasta investidores. O BC aumenta os juros de 2% para 2,75% (na aposta mais alta) em plena queda do PIB para conter a aceleração da inflação. Sinal de que as coisas não andam bem para a economia e já na primeira reunião após a aprovação da autonomia.

Não queremos a continuidade prometida pelo futuro ministro da SaúdeMarcelo Queiroga. Em vez de ficar em Brasília para instalar seu gabinete de crise, planejar a ação e orientar a nação, preferiu ir para o Rio de Janeiro, ao lado do general Eduardo Pazuello, para receber as primeiras doses da vacina da Oxford fabricadas no País. 

Não queremos mais cerimônias de chegada e distribuição de vacinas. Se ao menos o ministro tivesse ido a um hospital para ver a fila de pessoas doentes sem leito, teria sido um alento. É tarde para o governo Jair Bolsonaro “só” falar de mudanças de hábitos, usar máscaras, manter “um grau” de afastamento social e medidas hospitalares. Os países sérios fazem planos e executam. 

Neste momento tão dramático, em que o foco tem de ser o bom combate da doença, é desconcertante para aqueles que escrevem sobre economia continuar falando sobre temas outros que não a pandemia, a crise do sistema de saúde e os relatos particulares de cada um dos brasileiros.

É necessário, porém, seguir mostrando o impacto da pandemia na economia, falar sobre câmbio, juros, inflação, gastos públicos, estimular o debate que aponte rumos, pressionar para que ações emergenciais saiam rapidamente e não se perca mais tempo.

É um absurdo governo e Congresso enrolarem por meses a aprovação do auxílio emergencial e depois de a PEC ter sido aprovada, na sexta-feira passada, o benefício só começar a ser pago em abril. Não tem desculpa que justifique tamanha crueldade e falta de planejamento.

É hora também de abrir o olho, ser vigilante, para que as “boiadas” econômicas, assim como as ambientais, não passem com a justificativa da pandemia. A derrubada de vetos garantindo perdão tributária às igrejas e mais poder de emendas aos parlamentares mostram que as boiadas passam. As falhas e a falta de atenção nessa vigilância serão cobradas no futuro. Perguntaremos: onde estávamos?  

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A coluna de hoje é dedicada ao seu Gomes, goiano e pai da repórter Lorenna Rodrigues da sucursal de Brasília do Estadão, que morreu de covid-19 após batalha incansável da família por atendimento hospitalar, que chegou tarde demais.


Míriam Leitão: BC surpreende e passa recado

A alta de juros era esperada. Mesmo assim, o Banco Central surpreendeu duplamente. Pela decisão de elevação em 0,75%, que era a aposta de um grupo pequeno no mercado, e por indicar que será mais rápido o ajuste da política monetária. O Banco Central preferiu fazer um movimento mais decidido, para aumentar as chances de cumprimento da meta de inflação e, ao mesmo tempo, combater a piora da confiança na economia brasileira. A alta de juros ocorre no pior momento da pandemia, com os governadores e prefeitos decretando paralisação de atividades, para tentar conter o colapso.

Difícil explicar como os juros podem subir numa hora dessas. A economia está parando, as expectativas de crescimento piorando e a pandemia se agravando. Pelo comunicado, a piora da pandemia pode reduzir a atividade e, portanto, a pressão inflacionária, porém o risco fiscal está elevado no país. Não só pelo aumento dos gastos necessários para combater a pandemia, mas porque os sinais de ajuste futuro não estão claros. Pelo contrário.

A encrenca do BC é que é cada vez mais comum a previsão de que os dois primeiros trimestres terão PIB negativo. Ou seja, a economia está recessiva. Mesmo assim, os preços dos alimentos e de matérias-primas sobem, e o câmbio está muito pressionado. Houve complicadores na decisão do Copom. Essa foi a primeira reunião após a aprovação da autonomia do Banco Central. A alta dos juros alimentará, portanto, as críticas ao órgão. E mais: nos Estados Unidos a decisão foi oposta. A economia está com forte projeção de crescimento e tem pressões inflacionárias, mas a decisão foi a de manter os juros no intervalo entre zero e 0,25%. E lá a vacinação está andando de forma célere depois da posse do presidente Joe Biden. O novo governo mudou completamente a orientação no combate à pandemia.

Aqui no Brasil, o ministro Paulo Guedes descreve uma realidade paralela. Segundo ele a economia está “decolando de novo” e houve criação recorde de empregos. Se o cenário fosse esse, seria até mais fácil para o Banco Central ter tomado a decisão que tomou, de elevar a Selic, como resposta aos sinais persistentes de inflação. O Ministério da Economia divulgou esta semana com fanfarras o dado de 260 mil empregos formais criados em janeiro, segundo o Caged. Teria sido o maior da série, passando inclusive janeiro de 2010, ano em que o país cresceu 7,5%. Que sentido faz isso? Os especialistas mostram que há vários problemas no dado.

— Houve uma quebra de série, a metodologia mudou no ano passado, portanto, não se pode fazer comparação histórica — diz o economista Bruno Ottoni, do Ibre/FGV.

Ele explica que a comparação da série antiga com a série nova, com base nos dados de 2019, quando ambas andaram juntas, mostra uma diferença de 74% a mais no saldo de empregos na nova forma de registro. O antigo Caged era feito com base nas declarações das empresas formais sobre contratações e demissões. O novo é feito a partir do e-social e conta também os temporários. É normal haver mudança metodológica, mas o que se faz é manter a série anterior por mais tempo para que os especialistas possam comparar e entender com se comporta o novo indicador. Quando o IBGE passou da Pesquisa Mensal de Emprego (PME) para a PNAD Contínua, que agora mede o desemprego, o indicador antigo ficou por quatro anos. No caso atual ficou apenas alguns meses. O pior erro técnico, contudo, é comparar com a série histórica depois de ter mudado a metodologia do índice. Marqueteiros fazem isso, economistas, não.

O economista Daniel Duque, da FGV, admite que parou de prestar atenção no saldo do Caged, porque ele acha que não há nada que explique números tão fortes. Há total discrepância entre o Caged e os dados de mercado formal na Pnad do IBGE. O instituto registra queda de trabalhadores do mercado formal.

A alta de juros ocorre num momento em que o presidente continua boicotando medidas de combate à pandemia e dá sempre sinais contraditórios na área fiscal. A melhor política de estímulo ao crescimento e ao emprego seria uma coordenação federal eficiente no combate à pandemia, e um amplo programa de vacinação. Adianta pouco Guedes falar agora que é a favor da vacinação em massa. O Ministério da Economia, se tinha noção disso, deveria ter tentado convencer o presidente a mudar de atitude.


Bruno Boghossian: Dois ministros e nenhum plano na fase crítica da pandemia

Pazuello e Queiroga não falam em urgência porque Bolsonaro não demonstra angústia

O Brasil deve ser o único país do mundo que tem dois ministros para gerenciar uma política oficial desastrosa na saúde. No momento em que a média de mortes ultrapassou a faixa de 2.000 por dia, o general Eduardo Pazuello e o doutor Marcelo Queiroga apareceram juntos para mostrar que o governo continua sem um plano de emergência para a fase crítica da pandemia.

De saída, o militar parece interessado na missão impossível de salvar a própria imagem. Pazuello assistiu no cargo à escalada de mortes 15 mil para 285 mil em dez meses e seguiu as vontades mais descabidas do chefe. Ainda assim, ele acha que conseguirá evitar uma merecida condenação pública ao deixar o posto.

Pela segunda vez na semana, o general fez um balanço colorido de sua gestão. Nesta quarta (17), ao receber as primeiras doses da vacina contra a Covid-19 produzidas pela Fiocruz, ele disse que a imunização lenta no Brasil foi provocada por atrasos na chegada de insumos. Seria bom se o país tivesse um especialista em logística para contornar esse problema.

Pazuello discursou como um corretor imobiliário que vendia um apartamento com um ano de atraso. “Vou entregar a ele um ministério estruturado, organizado, funcionando e com tudo pronto”, disse, em referência ao sucessor. E fez questão de dizer que pouca coisa vai mudar daqui por diante: “O doutor Marcelo Queiroga reza pela mesma cartilha”.

Já o futuro ministro participou do evento como se já estivesse no cargo. Disse que pretendia “dar início ao maior programa de imunização” do país, dois meses depois da aplicação da primeira dose do imunizante. Depois, ele deixou a pregação bolsonarista de lado por um instante e defendeu o distanciamento social. Faltou dizer se o presidente vai parar de sabotar essas medidas.

Nenhum dos dois ministros fala em ações urgentes porque o chefe da dupla jamais demonstrou angústia com a tragédia nacional. Jair Bolsonaro passou a quarta em reuniões. Cancelou um evento no Planalto e nem chegou perto da Fiocruz.


Merval Pereira: Rejeição em alta

Todas pesquisas recentes revelam queda na popularidade do presidente Bolsonaro, que mantém ainda cerca de 25% a 30% de apoio, mas seu núcleo duro gira em torno dos 15%, segundo revela a mais recente pesquisa do Datafolha. São esses seguidores fanáticos, que o apoiam, faça o que fizer, que garantem um patamar mínimo para a manutenção de sua popularidade em níveis competitivos.

Esse grupo seria a base barulhenta que sustentou a candidatura de Bolsonaro em 2018 e ainda hoje é arregimentada para trabalhos sujos, como os ataques contra a médica Ludhmila Hajjar comandados pelos integrantes do gabinete do ódio de dentro do Palácio do Planalto. Os ataques diretos ao Congresso e ao Supremo Tribunal Federal (STF) foram controlados pela reação rápida e até mesmo temerária do STF, que abriu inquéritos para investigar as ações desses grupos nas redes sociais.

Classifico de temerária porque o Supremo é investigador e juiz de casos de fake news que configuram ataques contra a própria instituição, sem a interferência do Ministério Público. Essa anomalia, no entanto, foi superada pelos fatos subsequentes, quando ataques à própria democracia foram realizados, com o apoio tácito do presidente Bolsonaro.

O Ministério Público pediu a abertura de inquérito, que também está sob o comando do ministro do Supremo Alexandre de Moraes, e a vinculação entre as duas investigações ficou evidente, revelando uma organização criminosa com financiamento até mesmo do exterior.

A prisão do deputado Daniel Silveira foi exemplar no sentido de tentar erradicar esses abusos da liberdade de expressão. Vários artigos da Constituição foram afrontados pelo deputado, como propagar ideias contrárias à ordem constitucional e ao estado de direito, além de crimes contra a honra dos ministros do STF, segundo a Lei de Segurança Nacional.

O uso abusivo desse entulho da ditadura militar pelo ministro da Justiça, André Mendonça, que aciona a Polícia Federal para perseguir qualquer pessoa que critique o presidente Bolsonaro, cria um ambiente de intimidação incompatível com a democracia. São perseguidos especialmente jornalistas e artistas, como o comediante Danilo Gentili, que, a pedido do Congresso, está sendo processado por ter dito que gostaria de dar um soco em deputados federais, apesar de ter se desculpado. Também o youtuber Felipe Neto, por ter chamado Bolsonaro de “genocida”, quando existem processos, já sendo analisados no Tribunal Penal Internacional de Haia, devido a acusações de grupos de defesa dos direitos humanos, como a Comissão Arns, que o acusam de “incitar o genocídio”.

Até mesmo um advogado, Marcelo Feller, foi enquadrado na LSN por ter criticado o presidente Bolsonaro durante o combate à pandemia da Covid-19. Também professores da Universidade Federal de Pelotas foram obrigados pela Controladoria-Geral da União a assinar um termo de ajustamento de conduta por ter criticado o presidente. A reação foi tão grande que o governo desistiu da sandice. A Faculdade de Direito da UNB soltou uma nota em que informa “à sociedade brasileira e em especial a todos os professores e alunos brasileiros que seguirá respeitando e garantindo a liberdade de ensino, sem ceder um único milímetro a quaisquer pressões de natureza despótica e inconstitucional”.

O caso mais ridículo é o de cartazes com críticas a Bolsonaro, considerados “crime contra a honra”, em Palmas (TO). Um diz que Bolsonaro “vale menos que um pequi roído”, gíria local para pessoas que não valem nada. O outro, que o presidente “mente”. Essas reações, além do espírito autoritário do governo, mostram como a imagem do presidente está desgastada.

O último Datafolha revela clara rejeição ao governo. É uma tendência inexorável, que não dá para recuperar, a não ser que faça mea culpa e mude de atitude. Caso contrário, Bolsonaro sairá da pandemia muito mais desgastado, e o país mais tarde do que poderia. Bolsonaro fez uma jogada política arriscada, pensando na reeleição. O governo deveria ter dado o auxílio emergencial mais rapidamente, mas não teve visão imediata dos problemas sociais que poderiam acontecer. Tentou minimizar a gravidade da crise sanitária e perdeu, fazendo com que perdêssemos todos.