STF
Demétrio Magnoli: Da vacina ao protesto
Se houvesse abundância vacinal e a obrigação de optar, qual delas eu escolheria?
“Qual vacina devo tomar, doutor?”. Nos EUA, na Europa e até no Brasil, médicos são confrontados com a inédita indagação. Jamais perguntamos a marca da vacina tríplice de nossos filhos ou do imunizante contra a febre amarela. Contudo, com a pandemia de Covid, a população mundial foi exposta a um curso relâmpago de imunologia cujo efeito colateral é a obsessão por comparar vacinas. Por que não selecionar a vacina como escolhemos automóveis ou celulares?
Mike Ryan, da OMS, deu a resposta certa e óbvia: a decisão racional é tomar o primeiro imunizante que lhe for oferecido. O raciocínio justifica-se por duas razões, uma “egoísta”, outra “altruísta”. A primeira: como todas as vacinas aprovadas previnem a imensa maioria dos casos graves, vacinar-se logo é proteger sua própria saúde. A segunda: cada pessoa imunizada contribui na redução da pressão sobre o sistema hospitalar.
Depois de meses de angustiante expectativa sobre o desenlace dos testes de imunizantes, o mundo foi informado de que, no lugar do temido fracasso universal, a ciência operou um pequeno milagre. As vacinas pioneiras, de tecnologia inovadora (Pfizer/BioNTech e Moderna), exibiram taxas de eficácia em torno de 95%. As seguintes, porém, apresentaram taxas menores, entre os 66% da Janssen ou 63% da AstraZeneca/Oxford e os 50% da Coronavac.
Aquilo que, antes, seria celebrado como triunfo, ganhou ares de decepção. Daí a pergunta que atormenta os médicos. A imprensa não prestou o melhor serviço público ao destacar, em manchetes, o número singular que indica a taxa de eficácia geral das vacinas. De um lado, porque há três taxas diferentes de eficácia: contra infecção, morbidade ou mortalidade. De outro, porque os testes de fase 3 não são comparáveis entre si.A Pfizer testou em amostra da população adulta; o Butantan testou a Coronavac entre profissionais de saúde da linha de frente, normalmente expostos a cargas virais maiores. Testes em diferentes países captaram a ação vacinal contra variantes diversas do vírus. Só conseguiremos cotejar imunizantes ao longo dos próximos meses, a partir de experimentos controlados ainda em andamento.
A publicidade ilusória das taxas de eficácia tem implicações negativas. Os EUA renunciaram a direcionar o produto da Janssen, que não exige ultracongelamento, às pequenas cidades, pois a decisão lógica seria fulminada pela (falsa) acusação de discriminação contra os pobres.Na União Europeia, governos acuados pela lentidão na imunização decidiram cobrir seus erros deflagrando uma guerra retórica contra a AstraZeneca.
O francês Macron chegou, ridiculamente, a dizer que a vacina seria “quase ineficaz” para maiores de 65 anos. O bombardeio oportunista prejudicou ainda mais o processo de vacinação, nutrindo resistências ao uso de um dos principais imunizantes disponíveis na região. Inexistem cardápios de vacinas. Os sistemas de saúde aplicam a vacina que está à mão. Mas, e se houvesse abundância vacinal e a obrigação de optar, qual delas eu escolheria?
Na ausência de nítidos motivos imunológicos, minha resposta derivaria de critérios éticos. Na Europa, eu optaria pela AstraZeneca. A associação da farmacêutica com a Universidade de Oxford comprometeu-se a vender seu produto sem lucro durante toda a pandemia, o que merece aplausos. Além disso, o gesto expressaria minha aversão à hipocrisia de Macron e cia.
No Brasil, pelo contrário, eu escolheria a Coronavac, como forma de reconhecer a persistência heroica e a competência do Butantan –e de protestar, solitariamente, contra os escandalosos atrasos da Fiocruz na entrega de doses da AstraZeneca. Felizmente, não terei opção: vacino-me com a primeira que chegar a meu ombro. Será, de qualquer modo, um protesto contra o negacionismo criminoso de Bolsonaro e a estúpida campanha antivacinal de seus acólitos.
Adriana Fernandes: Entre armas e livros, continua sendo melhor apostar na segunda opção
Entre armas e livros, continua sendo melhor apostar na segunda opção
Reportagem desta semana do Estadão, “Receita diz que só rico lê, e livro pode perder isenção com unificação tributária”, viralizou e levou a uma série de relatos emocionantes nas redes sociais de brasileiros que nasceram em famílias de renda mais baixa e que se viraram para ter acesso à leitura. A discussão sobre o fim da imunidade para livros foi inserida no contexto do projeto de reforma tributária do governo, mas no Brasil de hoje esse é um assunto muito mais político do que de natureza tributária.
Um país que tem o orçamento público capturado por demandas políticas de cunho eleitoreiro. Com governo e parlamentares que não tiveram coragem de fazer cortes importantes nas renúncias tributárias de setores com grande influência em Brasília.
A incoerência fica ainda mais escancarada por um presidente da República que adotou corte de tributos para incentivar a compra de armas e videogames, além de ampliar incentivo para as multinacionais de refrigerantes na Zona Franca de Manaus. Medidas que drenaram a arrecadação em plena pandemia.
A polêmica surgiu porque a Receita, para justificar o projeto que cria a Contribuição Social sobre Bens e Serviços, a CBS, disse que a isenção aos livros pode acabar com a justificativa de que a maior parte é consumida pelas famílias com renda superior a dez salários mínimos. O certo teria sido o projeto retirar o incentivo ao livro e destinar o aumento da arrecadação para uma política de incentivo aos mais pobres.
A pergunta que muitos se fizeram depois de ler a reportagem foi: por que os livros?
A resposta é complexa e com vários pontos de vista. De um lado, aqueles que defendem o fim da isenção com o argumento de que os mais pobres bancam o consumo dos mais ricos. De outro, os que acham que a medida vai dificultar ainda mais o acesso aos livros pelos mais pobres.
Com a controvérsia instalada, a pesquisadora portuguesa Rita de La Feria, que já fez a reforma em São Tomé e Príncipe, Índia e vários outros países, entrou em campo nas redes sociais em defesa do projeto do governo. “Uma manchete alternativa (e verdadeira) seria: com a reforma tributária, os mais pobres vão deixar de subsidiar o consumo dos mais ricos. Fica a sugestão.”
Rita ainda disparou outro conselho: “Muitos de nós (eu inclusive) têm uma relação emotiva com livros. Mas o sistema tributário não deve refletir emoções, apenas dados.”
Patrocinador da PEC 45 de reforma tributária, o deputado Rodrigo Maia, ex-presidente da Câmara, alertou que a defesa da isenção aos livros era uma narrativa bonita, mas distorcida num falso dilema de um país em que os pobres financiam os ricos num Estado que não existe para reduzir as desigualdades.
No modelo tributário ideal, esses argumentos são todos muito válidos. O subsídio financeiro, via orçamento, destinado às políticas públicas, sem dúvida, é bem mais eficiente do que o tributário, que banca os ricos - assim como os livros acontece com os produtos da cesta básica. Que, aliás, o projeto da CBS não ataca.
No Brasil de hoje, porém, essa verdade não é tão certa. O setor privado captura dinheiro público por meio de incentivos muito mais robustos do que a isenção dada aos livros. E com impacto muito maior na arrecadação. Um exemplo desse método foram as tentativas frustradas de mudar a tributação de fundos exclusivos de investimentos dos super-ricos. Não tem jeito disso avançar no Congresso. Medida que garantiria hoje muito mais do que os R$ 10 bilhões calculados na última vez que se tentou emplacar a mudança, em 2018.
O enredo é sempre o mesmo. Acaba-se com o incentivo ao livro, mas ficam tantos outros. Defendidos ferozmente por lideranças políticas que não vão deixar que esse modelo tributário tão perfeito na teoria se aplique por aqui na prática. Na hora da votação, sempre tem uma listinha bem grande de exceções.
A briga feroz pelas emendas parlamentares, que divide o governo e se estende há duas semanas, é a maior prova disso. Não houve até agora nenhuma única ação para cortar incentivos ou aumentar tributos dos mais ricos para elevar a arrecadação e diminuir o endividamento público.
É por essas e outras razões que a reforma tributária faz água. Entre armas e livros, continua sendo melhor apostar na segunda opção.
Carlos Pereira: Desgastar o governo via CPI é estratégia esperada e legítima da oposição
Enquanto o impeachment é o instrumento político da maioria, a Comissão Parlamentar de Inquérito é o que resta à minoria para expor as potenciais mazelas da atual gestão
O ministro do STF Luís Roberto Barroso determinou que o Senado instalasse a CPI da Covid em reação a um mandado de segurança impetrado pelos senadores Alessandro Vieira e Jorge Kajuru, ambos do partido Cidadania. Neste sentido, não houve interferência indevida do STF no Legislativo ou ativismo judicial como sugere o presidente Jair Bolsonaro.
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), fez uso do argumento do juízo de conveniência e oportunidade ao interpretar como inconveniente a instalação da CPI da Covid em plena pandemia que já matou quase 350 mil pessoas no Brasil. Mas o que foi realmente conveniente ao senador foi a decisão liminar de Barroso, pois permitiu que Pacheco não se desgastasse politicamente com Bolsonaro, que atuou ativamente na sua recente eleição para presidir o Senado. A procrastinação de Pacheco em instalar a CPI sob o argumento de distensionar o ambiente político foi, na realidade, estratégica. Não cabia ao presidente do Senado a inação, pois os requisitos constitucionais para a sua instalação já tinham sido cumpridos pela minoria.
O caminho mais “curto” para a oposição deixar para trás esta condição e virar governo é expor até as vísceras as vulnerabilidades do governo de plantão o mais cedo possível. Sugerir autocontenção ou esperar responsabilidade de quem está na oposição implica aumentar o tempo em que este grupo minoritário continuará nesta posição indesejável.
Enquanto o impeachment, seja do chefe do Executivo ou de ministros da Suprema Corte, é o instrumento político da maioria, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) é o que resta à minoria para expor as potenciais mazelas do governo.
CPI e impeachment têm requisitos e seguem ritos procedimentais distintos. Se o governo não consegue implementar impeachment de ministro da Suprema Corte é porque o governo não dispõe de maioria legislativa para tanto e, portanto, essa ameaça simplesmente não é crível.
A composição de todas as comissões no Congresso, sejam elas permanentes ou especiais, como uma comissão parlamentar de inquérito, obedece à regra da proporcionalidade, levando-se em consideração o número de cadeiras ocupadas por partidos na Casa. Portanto, se o presidente da República, que raramente dispõe sozinho de maioria legislativa, monta e gerencia adequadamente uma coalizão majoritária no Congresso, não tem o que temer de uma CPI, pois a preferência do presidente tenderia a sempre prevalecer em qualquer comissão legislativa.
Os receios e potenciais problemas para o presidente Bolsonaro se devem ao fato de ele não dispor, até o momento, de uma coalizão majoritária. O Centrão proporciona apenas uma maior minoria. Ou seja, é uma coalizão fundamentalmente “negativa”, com capacidade de bloquear iniciativas legislativas não desejáveis pelo Palácio do Planalto. Além do mais, os termos de troca e os propósitos de sua coalizão minoritária com o Centrão ainda não estão claros. Não é, portanto, uma coalizão majoritária com poder de gerar governabilidade, mas apenas de sobrevivência.
* Cientista Político e professor titular da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (FGV EBAPE)
João Gabriel de Lima: As cores da ‘Concertación’ brasileira
Que o manifesto propicie uma conversa madura entre liberais, social-democratas e desenvolvimentistas
“Chile, la alegria ya viene.” Quem assistiu ao filme No, que concorreu ao Oscar de 2013, não esquece o refrão. Ele foi mote de uma campanha histórica. Em 1988, um plebiscito decidiria se o ditador Augusto Pinochet deveria, ou não, continuar em sua cadeira até 1997. A população torpedeou o autocrata com um rotundo “No!”. Foi um raro – e belo – momento em que uma democracia derrubou uma ditadura pelo voto.
O que se seguiu foi igualmente histórico. Socialistas e democratas-cristãos, adversários de décadas, se uniram com o intuito de consolidar a democracia, juntando partidos de esquerda e de direita. O arranjo, conhecido como “Concertación”, durou mais de 20 anos, como lembra o cientista político argentino Andrés Malamud, especialista em América Latina e personagem do minipodcast da semana. O logotipo do movimento era um arco-íris.
É inevitável pensar na “Concertación” ao ler o Manifesto pela Consciência Democrática, assinado por seis presidenciáveis. Há apelo à convergência e defesa intransigente dos regimes de liberdade. A união de todos, no entanto, não é óbvia. Entre os signatários há tendências políticas de amálgama difícil.
João Doria, Eduardo Leite, João Amoêdo e Luiz Henrique Mandetta integram a centro-direita. Em alguma medida, os quatro estiveram com Jair Bolsonaro ou se beneficiaram dos votos de seu eleitorado em 2018. O rompimento implícito no manifesto mostra que o campo “azul” quer se reconstruir bem longe do presidente. Um dos quatro nomes acima poderá representar a tendência liberal em 2022.
Ciro Gomes não pertence ao mesmo clube. Seu programa de governo – que já foi até publicado em livro – é de matriz desenvolvimentista. Ele vai disputar a centro-esquerda com Lula, a quem pediu nesta semana que desse um “passo atrás”. É difícil imaginar Lula cedendo a cabeça de chapa a Ciro, mas o fato mostra que ambos disputam o campo “vermelho”. Ciro evocou o caso argentino, em que Cristina Kirchner, em 2019, topou ser vice de Alberto Fernández, de modo a unificar as diversas alas do peronismo – outro episódio lembrado por Malamud no minipodcast.
Luciano Huck ainda não decidiu se será candidato. Em entrevista recente ao Estadão, um de seus mentores, o ex-governador capixaba Paulo Hartung, situou o apresentador na centro-esquerda. Para ele, Huck partiria em busca do eleitor social-democrata. Um eleitor que gostava do PSDB progressista de Fernando Henrique nos anos 1990 e aprovou o Lula da “Carta ao Povo Brasileiro” – com os ortodoxos Palocci, Meirelles e Marcos Lisboa na equipe econômica. Seria o candidato “lilás”.
O governo Bolsonaro fracassou em diversas áreas-chave, entre elas a gestão da pandemia – o que levou, inclusive, à determinação de abertura de uma CPI anteontem, com assinaturas de senadores do PSDB ao PT. É natural que enfrente não apenas uma, mas várias oposições, da centro-direita à centro-esquerda.
Se é difícil que as cores de nossa democracia se juntem no tal arco-íris, que o manifesto ao menos sele, como sugere o jornalista Pedro Venceslau no Estadão, um “pacto de não agressão”. Que propicie uma conversa madura entre liberais, social-democratas e desenvolvimentistas – os três grupos que há 30 anos disputam corações e mentes em nosso debate, e que hoje se opõem a Bolsonaro. Num cenário otimista, em 2022 o Brasil começará a emergir dos escombros. Cabe às oposições trazer propostas concretas para reconstruir um país devastado.
Marco Antonio Villa: Democratas, ação!
Se a política criminosa de Bolsonaro persistir, o País pode chegar a julho com meio milhão de óbitos devido à Covid-19
A narrativa — palavra da moda — construída pelos adversários do enfrentamento do projeto criminoso de poder bolsonarista é a de que o presidente da República tem um mandato legítimo. Até aí, ninguém discorda. Porém, isto não dá a ele o direito de confrontar sistematicamente com a Constituição. O voto não é um passaporte para ilegalidades. Tem seus limites estabelecidos constitucionalmente. Argumentam também que ele tem apoio popular. Difícil concordar.
Nas eleições de outubro os seus candidatos perderam nos principais colégios eleitorais. Nas pesquisas de opinião a impopularidade não para de crescer. As tentativas de mobilização de rua fracassaram. Reuniram algumas dezenas de fanáticos. Já o apoio empresarial é a cada dia menor. Os grandes grupos econômicos se afastaram do governo como ficou demonstrado no manifesto de economistas e empresários e por manifestações em entrevistas e eventos. Bolsonaro não tem partido político e nem uma base sólida no Congresso Nacional. No panorama externo o País continua isolado, um Estado-pária, sem apoio de nenhuma nação importante e atacado sistematicamente, especialmente, pelo desastre no campo ambiental.
Se observarmos ainda o plano interno, a economia vive um péssimo momento. No ano passado a recessão foi de 4,1%. A recuperação em “V”, como prometida por Paulo Guedes, não aconteceu como era prevista.
O primeiro semestre já está perdido. Teremos um longo período de crescimento tímido do PIB e o cenário mais viável — se nada for feito — é que a primeira metade desta década já está comprometida, isto quando a década que findou em 31 de dezembro de 2020, fechou como a pior das últimas quatro. Sem o entendimento do que significa este momento da história do capitalismo, o Brasil não vai conseguir retomar o crescimento econômico necessário para o enfrentamento dos grandes problemas nacionais.
Sem ser catastrofista, deve ser agregado a este quadro dramático a pandemia, a mais grave crise sanitária da história do Brasil. O massacre que estamos assistindo passivamente deve atingir no início do próximo mês 400 mil mortos. E se a política criminosa de Bolsonaro persistir, segundo os especialistas, o País pode chegar a julho com meio milhão de óbitos. Bolsonaro não mais governa. Manter o impasse político dá uma sobrevida a ele no Congresso, mas deixa o Brasil despedaçado. É uma ilusão imaginar que Bolsonaro vai mudar. É um genocida e golpista: pensa que está certo. Mas quando o pólo democrático da política brasileira vai agir? Está esperando o quê?
Ricardo Noblat: Sem Exército para chamar de seu, Bolsonaro agora ataca o STF
Um suicida político em ação
Sequer foram cicatrizadas ainda as feridas abertas por sua tentativa de intervir nas Forças Armadas, o presidente Jair Bolsonaro decidiu abrir outras – desta vez com o Supremo Tribunal Federal. Deve haver alguma lógica em ações que só fazem enfraquecê-lo. Se não há, é porque ele é mesmo estúpido.
O ministro Luís Roberto Barroso, em resposta à provocação feita por dois senadores, decidiu que o Senado deve instalar a CPI da Covid, instrumento previsto na Constituição que garante voz à minoria parlamentar. O pedido de CPI respeitou todos os requisitos previstos. E o Supremo assim agiu em outras ocasiões.
Uma delas foi em 2007 quando obrigou a Câmara a instalar a CPI do Apagão Aéreo. Lula era então presidente da República, e Bolsonaro deputado federal. O governo tudo fez para que não houvesse CPI, e Bolsonaro tudo fez para que houvesse. À época, em entrevista, ele disse:
– Por que o governo teme a CPI? Eu não tenho dúvida do superfaturamento de obras em aeroportos. Se quiser me acusar de leviano, eu respondo: ‘Abra a CPI que eu provo lá’.
Bolsonaro não viu interferência descabida do Supremo em outro poder por causa disso. Agora, que o presidente da República é ele, vê, como proclamou ontem:
– Não há dúvida de que há interferência do Supremo em todos os Poderes. No Senado tem pedido de impeachment de ministros do Supremo. Não estou entrando nessa briga. Será que a decisão tem que ser a mesma para o Senado botar em pauta o pedido de impeachment de ministro do Supremo?
O que uma coisa tem a ver com a outra? Nada. Cabe ao Senado, não ao Supremo, pôr em pauta pedido de impeachment de ministros de tribunais superiores. Impossível que Bolsonaro não saiba. Se não sabe, seus assessores jurídicos poderiam esclarecê-lo. Mas não, o que ele quer é criar confusão.
Escolheu Barroso como alvo, assim como na semana passada seu alvo foi o general Edson Leal Pujol, comandante do Exército, que se recusou a deixar que a política entrasse nos quartéis. Para livrar-se dele, Bolsonaro demitiu o ministro da Defesa. Pujol e os comandantes da Marinha e da Aeronáutica acabaram saindo.
“Falta-lhe [a Barroso] coragem moral e sobra-lhe imprópria militância política” – bateu Bolsonaro abaixo da linha da cintura. E o que conseguiu? Que os demais ministros do Supremo se unissem em torno da decisão tomada por Barroso, assim como partidos políticos, governadores de Estado e juristas em geral.
Conseguiu que Rodrigo Pacheco (DEM-MG), presidente do Senado, que engavetou o pedido da CPI da Covid, se apressasse em declarar que respeitará a decisão de Barroso, como se tivesse outra opção. Em entrevista à Folha de S. Paulo, Pacheco prometeu que não mexerá “um milímetro” para barrar a atuação da CPI.
“Uma vez instalada, todas as condições lhe serão dadas para que funcione bem e chegue a conclusões”, afirmou. “É importante que ela cumpra sua finalidade na apuração de responsabilidades”. E foi além ao dizer que Bolsonaro não contribui para o combate à epidemia com seu discurso negacionista:
– Para bom entendedor, um pingo é letra. Quando ele [Bolsonaro] prega qualquer tipo de negacionismo, eu vou criticar o negacionismo e consequentemente estou criticando a fala dele.
Era Pacheco que dizia que, a seu juízo, “e por conveniência”, não era hora de abrir a CPI. Quem o diz agora é Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara e aliado de Bolsonaro tanto quanto Pacheco é. Lira trocou “conveniência” por “ocasionalidade” e repetiu o Pacheco de antes da decisão de Barroso:
– A CPI não nasce à toa. Tem de ter um fato determinado e tem de ter as assinaturas. E ela tem de ter a ocasionalidade. Eu comungo da ideia de que esse não é momento de se encontrar culpados, de se apontar o dedo para ninguém.
O momento seria do quê? Segundo Lira, “de se correr atrás de vacina, esteja ela onde estiver, e apontar seringa e agulha no braço dos brasileiros. Esse é o momento. Daqui a dois, três meses, esses culpados estarão morando em outro lugar, estarão apagadas as provas, estarão escondidas as evidências? Não”.
Conversa mole para enganar os trouxas. Ao governo, cabe correr atrás de seringas, agulhas e vacinas para imunizar milhões de brasileiros vítimas da pandemia. Isso não impede que o Senado, desde agora, investigue os escandalosos erros cometidos até aqui e que transformaram o Brasil numa ameaça aos outros países.
César Felício: Bolsonaro e os ungidos do Senhor
Presidente deve redobrar aposta conservadora
Na Assembleia de Deus - Ministério de Madureira no Parque Jandaia, em Guarulhos, só se admitiu a presença no culto do domingo a quem se apresentou de máscara e com álcool gel. Foi feito um rodízio para cumprir o protocolo de se garantir a lotação de apenas 25% da capacidade do templo. O frequentador é convidado por mensagem de aplicativo a comparecer. Quem vai em um culto, precisa aguardar uma semana para ser chamado de novo. Antes, havia fiéis que batiam ponto no templo todos os dias. A empolgação de cantos de louvor não existe mais, para evitar a emissão de partículas de aerosol.
É muito difícil convencer um religioso praticante que, mesmo com a adoção de todos estes cuidados, não há segurança sanitária para se promover a aglomeração em um evento fechado. Como de fato não há, por mais protocolos que se adotem.
A ilusão de que se pode driblar o vírus com cautelas, profilaxias e precauções, no entanto, é por demais persuasiva. E para os fiéis, há uma estrada aberta para se acolher como verdadeira a narrativa de que não passam de preconceito contra os religiosos os bloqueios à realização de cultos, referendada por governadores, prefeitos, ministros do Supremo Tribunal Federal e pelo consenso do entendimento científico,
O julgamento dessa semana no Supremo Tribunal Federal, portanto, reforça a estratégia bolsonarista de que existe um movimento “cristofóbico”. Estratégia na qual, por motivos diversos, se incorporam o ministro Kassio Nunes Marques, o advogado-geral da União e o procurador geral da República.
O presidente se apoia no Centrão, nos militares e no mercado para governar, não raro colaborando para jogar estes grupos um contra o outro. Para ganhar eleição, entretanto, ele depende do fundamentalismo cristão. É um conceito que transcende o protestantismo: abarca também movimentos leigos conservadores da Igreja Católica e as correntes denominadas “carismáticas” do catolicismo.
Houve um tempo, o da hegemonia na Câmara dos Deputados de Eduardo Cunha, em que os interesses do fundamentalismo cristão iam para a linha de frente do Parlamento. O lobby fundamentalista teve mais sucesso, entretanto, em barrar a agenda dita progressista e identitária do que propriamente em impulsionar a pauta conservadora.
Com o advento de Bolsonaro, este lobby deixou de dar o tom no Congresso, ao menos por agora, e cresceu sua influência de modo excepcional no Executivo. Começa a ofensiva este ano sobre o Judiciário, da qual a polêmica sobre os templos abertos é o primeiro movimento.
Um dos mecanismos de fidelização é a ocupação de espaços estratégicos. O antropólogo Ronaldo Almeida, livre-docente da Unicamp e especialista no tema, está mapeando o aparelhamento da máquina pública pelo fundamentalismo cristão. O mapeamento é parte de uma pesquisa que em breve aparecerá com mais detalhes em publicações especializadas.
É enganoso tomar como exibição de força evangélica apenas o fato de terem hoje cinco ministros na Esplanada (Luiz Eduardo Ramos, Onyx Lorenzoni, Milton Ribeiro, Damares Alves e André Mendonça). Nem todos deste grupo estão onde estão por serem evangélicos.
Chama mais a atenção de Almeida a qualidade dos espaços ocupados. Por meio do MEC e do ministério de Damares, o fundamentalismo tem como tocar sua pauta de modo transversal. Na Funai, os evangélicos conquistaram a área que cuida de indígenas isolados, ponto nevrálgico para a expansão missionária na região Norte.
No próximo ano, o da eleição presidencial, ninguém segura Bolsonaro, acredita Almeida. Ele procurará avançar com a agenda conservadora com toda força que tiver, para sedimentar seu apoio no segmento que em 2018 entregou a ele dois de cada três votos.
“Ele não vai parar um instante sequer de tentar fidelizar este público”, aposta o antropólogo. Até porque existem rachaduras no apoio fundamentalista a Bolsonaro, já perceptíveis a olho nu.
“A pandemia traz um problema para Bolsonaro entre os evangélicos, porque há uma incidência maior de mortes exatamente nas áreas em que a concentração de fiéis é maior. Quando Bolsonaro muda de tom em relação às vacinas, também está de olho nisso”, comenta o reverendo André Mello, da Igreja Presbiteriana da Aliança, em Florianópolis. Há lideranças evangélicas morrendo.
Bolsonaro chegou ao poder retratado por fiéis como um ungido do Senhor. E em um ungido do Senhor não se toca, e nem se cobra ao Altíssimo pelo fato de pessoas por vezes tão destituídas de mérito terem recebido o chamado para este papel. Ao ungido do Senhor se obedece. Só há um detalhe: o ungido do Senhor pode perder esta condição.
Mello afirma que em sua rede de contatos são frequentes as comparações de Bolsonaro com o rei Saul. É uma comparação simplesmente terrível no meio evangélico. Pelas mãos do profeta Samuel, Saul foi ungido para ser o primeiro rei do povo de Israel. Antes de receber a unção, Saul era apenas um pastor da menor tribo dos judeus que andava em busca de alguns jumentos perdidos. A autoridade de Saul foi aceita porque provinha de Deus, mas o monarca pecou contra o Senhor. Soberbo, ele envolveu Israel em guerras inúteis contra vizinhos poderosos e passou por cima da autoridade dos profetas, sem demonstrar arrependimento. Perdeu a condição de ungido, que foi transferida para Davi. Israel passou a estar sob juízo do Senhor. Nada poderia dar certo para o povo escolhido nas mãos do rei errado.
A metáfora indica que nada, nem mesmo o apoio evangélico, é monolítico ou incondicional. Cultivar essa base precisa ser um esforço permanente do presidente.
Doria
Por motivos que ainda não estão claros, o governador paulista João Doria não colhe dividendos em sua imagem depois do inegável sucesso de sua administração em produzir uma vacina que tem se mostrado eficaz, até o momento, contra a pandemia. A pesquisa Ipespe divulgada pelo Valor, se confirmada por futuros levantamentos, debilita dramaticamente sua articulação para concorrer à Presidência.
O Estado de S. Paulo: Bolsonaro acusa Barroso de 'militância política' por CPI da Covid e cobra impeachment de ministros
Barroso ordenou ontem que o Senado instale a chamada 'CPI da Covid', que tem o apoio de mais de um terço dos senadores, mas sofria resistência do presidente da Casa
BRASÍLIA - Em uma reação ao novo revés sofrido no Supremo Tribunal Federal, o presidente Jair Bolsonaro acusou nesta sexta-feira, 9, o ministro Luís Roberto Barroso de "militância política" e "politicalha" por ter determinado a abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar a atuação do governo na pandemia.
Em postagem nas suas redes sociais, o presidente afirmou que falta "coragem moral" ao ministro por se omitir de também ordenar a abertura de processos de impeachment contra integrantes da Corte.
"A CPI que Barroso ordenou instaurar, de forma monocrática, na verdade, é para apurar apenas ações do governo federal. Não poderá investigar nenhum governador, que porventura tenha desviado recursos federais do combate à pandemia", postou Bolsonaro em suas redes sociais. "Barroso se omite ao não determinar ao Senado a instalação de processos de impeachment contra ministro do Supremo, mesmo a pedido de mais de 3 milhões de brasileiros. Falta-lhe coragem moral e sobra-lhe imprópria militância política."
Barroso ordenou ontem que o Senado instale a chamada "CPI da Covid", que tem o apoio de mais de um terço dos senadores, mas sofria resistência do presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), aliado do Palácio do Planalto. A exemplo da CPI, a análise sobre pedidos de impeachment de ministros do STF cabe ao Senado e depende de aval de Pacheco.
Ao falar com apoiadores, na saída do Palácio da Alvorada, Bolsonaro adotou um tom ainda mais duro, e acusou o magistrado de promover uma "jogadinha casada" com a oposição ao seu governo. "Uma jogadinha casada entre Barroso e bancada de esquerda do Senado para desgastar o governo. Eles não querem saber o que aconteceu com os bilhões desviados por alguns governadores e uns poucos prefeitos também", afirmou o presidente.
"Barroso, nós conhecemos seu passado, sua vida, como chegou ao Supremo Tribunal Federal, inclusive defendendo o terrorista Cesare Battisti (italiano extraditado em 2019 após ser condenado por homicídios em seu país). Use a sua caneta para boas ações em defesa da vida e do povo brasileiro, e não para fazer politicalha dentro do Supremo", completou o presidente, cobrando a abertura de impeachment contra ministros da Corte.
A criação da CPI da Covid preocupa Bolsonaro por aprofundar o desgaste do governo em um momento de queda de popularidade de Bolsonaro e de agravamento da pandemia. Uma vez criada, a comissão poderá convocar autoridades para prestar depoimentos, quebrar sigilo telefônico e bancário de alvos da investigação, indiciar culpados e encaminhar pedido de abertura de inquérito para o Ministério Público. Veja perguntas e respostas sobre a CPI da Covid.
Conforme dados reunidos pelo consórcio de veículos de imprensa, divulgados na noite de ontem, o Brasil registrou 4.190 novas mortes em decorrência da covid-19 nas últimas 24 horas. O número é equivalente a 174 mortes por hora. Foi a segunda vez que o País superou a marca de 4 mil vítimas em um único dia. O total de mortes na pandemia chegou a 345.287.
A reação agressiva de Bolsonaro contra Barroso remete aos embates ocorridos no ano passado, quando o STF impôs diversas derrotas ao Palácio do Planalto, revogando atos e até a tentativa de nomear o delegado Alexandre Ramagem, amigo da família presidencial, como diretor-geral da Polícia Federal. A nomeação foi anulada na época pelo ministro Alexandre de Moraes.
O Supremo já abriu uma investigação relacionada à atuação do governo na pandemia. Um inquérito apura se houve omissão do então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, na crise que levou o sistema de saúde de Manaus (AM) ao colapso no início do ano, quando pacientes morreram asfixiados por falta de estoque de oxigênio nos hospitais. O caso foi enviado para a Justiça Federal do Distrito Federal após Pazuello deixar o cargo e perder o foro privilegiado.
A decisão de Barroso foi tomada no mesmo dia em que o Supremo frustrou novamente as pretensões do Planalto, ao permitir que governadores e prefeitos de todo o País proíbam a realização de missas e cultos presenciais na pandemia. Bolsonaro é crítico a medidas de restrições adotadas para conter a propagação da covid-19.
Além disso, o Supremo já havia imposto uma série de derrotas a Bolsonaro em ações relativas ao enfrentamento da pandemia. Foi assim, por exemplo, ao garantir a Estados e municípios autonomia para decretar medidas de isolamento social, decidir a favor da vacinação obrigatória contra a covid-19 e mandar o governo detalhar o plano nacional de imunização contra a doença.
Pedido da oposição. A decisão de Barroso atendeu a pedido formulado pelos senadores Alessandro Vieira (Cidadania-SE) e Jorge Kajuru (Cidadania-GO), que contestaram a inércia de Pacheco, que segurou por 63 dias o requerimento pelo início da investigação. Eles reuniram a assinatura de 32 parlamentares em apoio à CPI, mais do que o mínimo de 27 assinaturas necessárias.
“O perigo da demora está demonstrado em razão da urgência na apuração de fatos que podem ter agravado os efeitos decorrentes da pandemia da covid-19”, observou Barroso em sua decisão. “Ressalto que é incontroverso que o objeto da investigação proposta, por estar relacionado à maior crise sanitária dos últimos tempos, é dotado de caráter prioritário”, disse. O ministro submeteu a liminar para análise dos demais integrantes da Corte. O julgamento está previsto para começar no dia 16 de abril no plenário virtual do STF, uma ferramenta digital que permite julgar sem que os ministros se reúnam presencialmente.
Um ministro do Supremo ouvido reservadamente pela reportagem concordou com a decisão de Barroso e avaliou que a posição pacífica do Supremo é de que é direito da minoria a abertura de uma CPI, se ela tiver objeto específico e um terço de assinaturas, como houve.
O decano da Corte, ministro Marco Aurélio Mello, considerou a medida “importantíssima”. “Porque precisamos realmente apurar a responsabilidade quanto ao procedimento, quanto ao atraso em tomada de providências.”
Pacheco criticou ontem a decisão judicial determinando a instalação da CPI, mas disse que pretende cumprir a ordem. Para cumprir a determinação de Barroso, o próximo passo do Senado é a leitura do requerimento de abertura da CPI, o que deve ocorrer na semana que vem. O colegiado será formado por 11 senadores titulares e sete suplentes, que serão indicados pelos partidos. O prazo de duração da comissão é de 90 dias, podendo ser prorrogado pelo mesmo período
Wlliam Waack: O vírus piorou o que já era ruim
O vírus agravou a perda de autoridade pública e de poder de decisão
A catastrófica situação da pandemia no Brasil agravou dois problemas preexistentes: a insegurança jurídica e a degradação da autoridade pública. Os dois fenômenos dividem entre si um fator comum, que é a ausência de lideranças respeitadas além de grupos consolidados nos extremos do espectro político. E explicam boa parte da paralisia decisória do governo central e a imensa dificuldade em lidar com a crise econômica e de saúde pública – que estão se retroalimentando.
Já bem antes da pandemia era o STF uma das principais fontes de insegurança jurídica do País. Nossa Corte Suprema foi totalmente consumida na batalha pelo controle das instâncias políticas, uma das grandes expressões da Lava Jato. E, diante da ineficácia do nosso sistema de governo (talvez o pior do mundo), passou a legislar e a tomar decisões levando em conta sobretudo as consequências políticas. No caso da pandemia, por exemplo, o STF acabou escalando um de seus integrantes como virtual ministro da Saúde.
Diante da propagação do vírus os ministros também se comportaram em função do embate político – situação escancarada pelas decisões sobre a abertura ou fechamento de igrejas e templos. Esse debate não foi provocado pela necessidade de se assegurar liberdade de religião, mas, sim, pelos interesses pessoais de candidatos a uma vaga no STF e por articulações para favorecer forças políticas que ocuparam uma parte do Legislativo, um pedaço importante do Executivo e estão chegando ao topo do Judiciário: as correntes evangélicas.
O fato de o STF ter de decidir quem decide o que sobre a pandemia expressa o segundo problema agravado pelo vírus: o da degradação da autoridade pública. Para isto foi fundamental a contribuição do atual presidente da República e seus traços característicos de personalidade (desequilíbrio emocional, traços de paranoia e de sociopatia). A “figura institucional” de Bolsonaro nunca entendeu a verdadeira natureza do poder do chefe do Executivo brasileiro, que não reside na caneta, mas, sim, na capacidade de ditar a agenda política.
Isto vale tanto para a economia como para a pandemia, com as quais não está sabendo lidar. Formalmente os poderes de Bolsonaro já vinham sendo encurtados pelo Legislativo e pelo Judiciário. Talvez ele nem tenha percebido que um instrumento clássico do presidente brasileiro – a alocação de recursos via orçamento – foi passada agora para um conjunto de forças políticas amorfas e regionalizadas, conhecida como Centrão, que conquistaram um posto vital dentro do próprio Palácio do Planalto. Ou seja, o Centrão aboliu intermediários.
A ironia contida nesse fato é cruel: o Centrão manda, sem assumir qualquer ônus. Impõe limites e demissões de ministros ao presidente, sem qualquer responsabilidade por agendas, como acontece no parlamentarismo clássico. Diante da incapacidade do presidente de liderar e comandar, além da ausência de pensamento estratégico e definição clara de objetivos (além de se reeleger), a autoridade pública se diluiu. No caso da pandemia, está se dissolvendo numa corrida desesperada cuja melhor definição é, infelizmente, a do vire-se e salve-se quem puder.
Assim, a iniciativa privada está forçando e conseguindo ir adiante na compra de vacinas. Os governadores estão forçando e conseguindo contratar suprimentos onde seja possível, se necessário relegando a Anvisa ao papel de carimbar pedidos. Um número nutrido de decisões judiciais em várias instâncias criou uma confusão perigosa entre o que vale ou não vale não só em questões de medidas restritivas, mas, também, quanto ao ritmo de vacinações, grupos prioritários e quais entidades têm a liberdade de adquirir imunizantes.
Um quadro de contornos caóticos como esse sugere que em algum momento ocorrerá uma ruptura, até mesmo institucional. Mas não está “escrito” que acontecerá. Como foi dito acima, a pandemia apenas agravou o que já existia. Depois dela, é bem possível a acomodação aos padrões de comportamento político e social de sempre, caracterizados, de forma geral, pela ausência da preocupação com o bem-estar comum e o senso de coletividade. Estagnação é também um poderoso anestésico.
*JORNALISTA E APRESENTADOR DO JORNAL DA CNN
Maria Cristina Fernandes: Rejeição empresarial a presidente se mantém ascendente
Propaganda de apoio do PIB nacional com jantar em São Paulo foi tiro que saiu pela culatra
Se o jantar oferecido pelo dono da empresa de segurança Gocil, Washington Cinel, ao presidente da República tinha por objetivo propagandear o apoio desfrutado por Jair Bolsonaro no meio empresarial, o tiro saiu pela culatra. Grupos de WhatsApp de grandes empresários e investidores amanheceram indignados com a percepção vigente sobre o encontro. A avaliação é de que o Palácio do Planalto foi bem sucedido em passar a percepção, que asseguram equivocada, de que Bolsonaro tem apoio na elite econômica do país. A reunião, dizem, limitou-se a um punhado de empresários e banqueiros que responde a um dos critérios ou a ambos: são do núcleo duro raiz do bolsonarismo e estão sempre a assediar o presidente de plantão. A casa que sediou o jantar é um reflexo simbólico desta percepção. Vizinha do ex-deputado Paulo Maluf, nos Jardins, em São Paulo, a casa um dia pertenceu a um dos grandes industriais do país, José Ermírio de Moraes, e hoje é do empresário da segurança privada, ramo que cresceu junto com violência decorrente da falta de rumos do país.
A posição do grande empresariado e da grande finança estaria bem mais refletida, na visão deste interlocutor, em iniciativas como a Coalizão Brasil e a Concertação pela Amazônia, motivadas pelos equívocos da política ambiental brasileira, ou mesmo o apoio ao manifesto dos economistas por saídas para a pandemia. Essas mobilizações reúnem CEOs de grupos como Itaú, Klabin, Gerdau, Amaggi, Natura, Ambev, Gávea e Marfrig. Jantares do gênero são comuns em momentos de descrença sobre o apoio empresarial a um presidente em crise, mas a baixa representatividade do encontro de quarta-feira saltou aos olhos. A política dos “campeões nacionais” e a fartura do BNDES poupou a ex-presidente Dilma Rousseff de quóruns tão pouco representativos, o que não a impediu de cair.
A tentativa do presidente da República de ressuscitar o antipetismo para fisgar de volta o apoio empresarial perdido, diz este interlocutor, tampouco surtirá efeito. Entre aqueles que, de fato, ditam os rumos da economia nacional, este discurso não adiciona um único voto para o presidente da República em 2022. Uma parte deles reconhece que se o PT estivesse no poder o país não teria afundado tanto e a grande maioria recebe esse discurso do presidente da República como um estímulo redobrado para a busca por uma terceira via. A presença do ministro Paulo Guedes tampouco sensibilizou os empresários que ficaram de fora do jantar. Se o ministro da Economia já não empresta prestígio ao presidente da República, a recíproca também é verdadeira. Guedes hoje é visto como ministro de um país imaginário onde todos gostariam de viver, mas que, infelizmente, ninguém acredita existir senão em seus devaneios.
Apesar do incômodo gerado pelo jantar, cuja divulgação teve o empenho pessoal de ministros palacianos, não haverá mobilizações adicionais para mostrar o azedume com este governo. E o principal motivo é a pandemia. Os CEOs críticos ao bolsonarismo estão recolhidos em suas casas porque temem aquilo que o presidente despreza, a agressividade da covid-19. Cresce, porém, neste grupo, a percepção de que Bolsonaro, no limite, chegará a 2022.
O cerco da imprensa internacional a Bolsonaro reflete-se no comportamento dos parceiros internacionais desses empresários. Edições das duas principais publicações financeiras do mundo, “The Economist” e “Financial Times”, mostraram que o dano à imagem internacional do presidente é irreversível. A revista trouxe uma charge contestando que a resposta brasileira à pandemia seja conduzida por um cabeça-oca, mas sim por um “ignorante, teimoso e arrogante”. Já o jornal da City londrina trouxe uma reportagem sob o título “Bolsonaro mais isolado do que nunca” em que uma dirigente da Organização Pan-Americana de Saúde reportou preocupação com o espraiamento das variantes brasileiras por 15 vizinhos das Américas. É a percepção do Brasil como ameaça global que cresce no mundo e preocupa os grandes empresários brasileiros.
Não há, por outro lado, percepção sobre saídas fáceis à vista. Há empresários deste meio que se aproximaram do vice-presidente Hamilton Mourão por conta de sua atuação no Conselho Nacional da Amazônia mas não há qualquer mobilização real para apear o presidente da República do poder por conta da percepção de que o Congresso quer mantê-lo no cargo. O artigo do vice-presidente publicado na terça-feira, 6, no jornal “O Estado de S. Paulo” (“O que os brasileiros esperam de suas Forças Armadas”) foi lido como uma manifestação clara de que Mourão não endossou o comportamento de Bolsonaro na recente crise militar e que subscreve a atuação estritamente constitucional das Forças Armadas em defesa das instituições nacionais.
Um dos empresários descrentes do bolsonarismo diz ter sido procurado por ministro de origem militar em busca de sua percepção sobre a conjuntura. O constrangimento do ministro ante seu pessimismo lhe deixou a impressão de que os militares deste governo têm a consciência de que estão em nau à deriva. Ante reclamações de que o Supremo Tribunal Federal estica a corda com o presidente, este empresário responde que o limite da tensão, na verdade, foi alargado lá atrás pelo ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas com o tuíte ameaçador sobre o julgamento do habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e com o beija-mão promovido pelo mesmo general aos pré-candidatos à Presidência da República em 2018. Este empresário não mantém contato com o vice-presidente Hamilton Mourão. Tem a convicção de que, assim como o ex-ministro do TSE Herman Benjamin estava com a razão quando dizia que a chapa Dilma Rousseff-Michel Temer deveria ter sido cassada por excesso de provas, é preferível dois impeachments em cinco anos a um crime de responsabilidade por dia.
Ricardo Noblat: Em um único dia, Bolsonaro é derrotado duas vezes no STF
Vem aí a CPI da Covid para acuar o governo
O fracasso do governo do presidente Jair Bolsonaro no combate à Covid-19 subiu à cabeça de Marcelo Queiroga, o quarto ministro da Saúde em menos de um ano.
Anthony Fauci, o mais respeitado imunologista americano e conselheiro do presidente Joe Biden, disse que o Brasil virou uma “ameaça mundial” porque a pandemia aqui só faz crescer.
Em visita a Porto Alegre, perguntado a respeito, Queiroz estufou o peito, imitou a arrogância do seu chefe, e respondeu assim:
– Ele [Fauci] deve cuidar dos Estados Unidos. Do Brasil, cuido eu.
Bolsonaro amou a resposta de Queiroga logo no dia em que o vírus matou no país mais 4.190 pessoas. Foi o segundo dia com mais mortes desde o começo da pandemia.
A quarta-feira havia sido um dia ameno para Bolsonaro. Ele fez o que mais gosta: viajar, falar o que lhe vem à cabeça sem ser contestado, e arrancar aplausos dos seus devotos.
Esteve em Chapecó, em Santa Catarina, em Iguaçu, no Paraná, e em São Paulo onde jantou com empresários amigos escolhidos a dedo e que acabaram por ovacioná-lo.
A quinta-feira foi um dia pesado para Bolsonaro. Não pela morte de tanta gente, mas porque ele colheu duas derrotas importantes no Supremo Tribunal Federal.
A primeira: por 9 votos contra 2, o Supremo decidiu que governadores e prefeitos podem fechar templos e igrejas enquanto durar a pandemia. Bolsonaro queria o contrário.
A segunda derrota: o ministro Luís Roberto Barroso mandou que o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), instale de imediato a CPI da Covid.
Cumpridas as exigências da Constituição (número mínimo de apoiadores, definição do fato a ser investigado e prazo de funcionamento), a CPI é direito da minoria parlamentar.
Todos os requisitos foram cumpridos desde janeiro último, mas Pacheco, eleito presidente do Senado com o apoio de Bolsonaro, recusou-se a instalar a CPI para não criar embaraços ao governo.
Ontem mesmo, antes de Barroso anunciar sua decisão, Pacheco afirmou:
– Considero que a CPI da pandemia neste momento vai ser um ponto fora da curva. Além disso, pode ser o coroamento do insucesso nacional do enfrentamento da pandemia.
No seu despacho, Barroso ensinou a respeito de CPIs:
– Trata-se de garantia que decorre da cláusula do Estado Democrático de Direito e que viabiliza às minorias parlamentares o exercício da oposição democrática.
Simples assim. O que levou Pacheco a retrucar que, a seu juízo, e por razões de conveniência, a CPI não deveria sair da gaveta, mas que decisão da justiça é para ser cumprida, e ele a cumprirá.
Ora, era o que faltava. Não cumprir? Agora, resta ao governo escalar a maior e a mais confiável bancada de senadores aliados seus para se defender na CPI e atrapalhar seu funcionamento.
Custará caro. Ninguém trabalha de graça para governo numa CPI. Só o faz em troca de muito dinheiro, de cargos e de outros favores inconfessáveis. Sempre foi assim e sempre será.
Bancada de Bolsonaro no STF aumenta com adesão de Toffoli
A partir de julho serão três ministros
Era certo que a bancada de ministros bolsonaristas no Supremo Tribunal Federal se resumiria a dois ministros até o fim de 2022 – Nunes Marques, que já está por lá ocupando a vaga aberta com a saída de Celso de Mello, e outro a ser indicado pelo presidente a partir de julho próximo e que sucederá a Marco Aurélio Mello.
Mas, não. Descobriu-se, ontem, que Bolsonaro contará com três – um deles, José Antônio Dias Toffoli, que surpreendeu seus colegas ao votar junto com Nunes Marques pela abertura de templos e igrejas durante a pandemia da Covid. Toffoli não justificou seu voto. Limitou-se a dizer que acompanharia Nunes Marques.
Toffoli sabia que seria derrotado. O placar final foi de 9 a 2. Não se incomodou com isso. Está com Bolsonaro para o que der e vier. Encantou-se por ele antes mesmo de Bolsonaro ser candidato a presidente. À época em que foi assessor parlamentar do PT na Câmara, entre 1995 e 2000, os dois conversavam muito.
Foi Lula que fez de Toffoli ministro do Supremo em 2009. Toffoli havia passado no teste de fidelidade ao PT como consultor jurídico da Central Única dos Trabalhadores (CUT), advogado de três campanhas presidenciais de Lula, subchefe de assuntos jurídicos da Casa Civil e Advogado-Geral da União.
Sua recente passagem pela presidência do Supremo coincidiu com os dois primeiros anos de Bolsonaro presidente. Renasceu e se fortaleceu a amizade entre os dois. Toffoli virou uma espécie de assessor informal de Bolsonaro dando-lhe conselhos e, sempre que pôde, facilitou a vida dele dentro do tribunal.
Orgulha-se Toffoli de ter evitado em 2020 uma crise institucional que quase deflagrou um golpe militar. Ele ajudou a salvar o Brasil e a evitar a queda de Bolsonaro. A indicação de Nunes Marques para ministro passou por seu crivo. Foi quando Bolsonaro o visitou em casa, sendo recebido com um caloroso abraço.
Murillo de Aragão: O preço das decisões erradas
O governo federal foi lento e confuso nas respostas à pandemia
A essa altura dos acontecimentos, devemos ponderar sobre os erros que nos levaram a mais de 340 000 mortos pela Covid-19. Sem alarde nem radicalismos. A coleção de erros é enorme. Começa com erros estratégicos, por parte de todos os atores públicos e privados, e chega a erros táticos. Nesse rol se inclui a sociedade, que teima em não se conscientizar dos riscos. O ponto inicial reside no fato de que o mundo inteligente já sabia da gravidade do problema em janeiro de 2020. O mundo político brasileiro, porém, só reconheceu a gravidade do tema em março.
O segundo erro estratégico foi cometido pelo governo federal, ao não coordenar uma ação conjunta com governadores, prefeitos, Judiciário e Legislativo. Prevaleceram o conflito, as egotrips e, sobretudo, a descrença de que o problema era muito sério.
O terceiro erro estratégico foi não optar pela compra das várias vacinas que estavam em desenvolvimento. O governo federal apostou apenas na AstraZeneca, cujo processo de produção é insuficiente para nossos desafios. Fica a questão: por que a Fiocruz, berço do partido sanitarista, não propôs uma compra abrangente de vacinas de várias procedências até que o Brasil dominasse a produção?
“A compra maciça de vacinas é a melhor política para a retomada da economia”
Obviamente, terminamos dependendo da rejeitada CoronaVac, do Instituto Butantan, e da escassa, até agora, vacina da AstraZeneca. Se hoje, em pleno abril de 2021, ainda estamos decidindo se compramos ou não a vacina russa, imaginem se o governo de São Paulo não tivesse tomado a decisão de negociar e produzir vacina no ano passado? E as mortes prosseguem.
No campo da narrativa, o governo federal se mostrou confuso. Lento nas respostas e descrente das consequências da “gripezinha”. Não houve palavras de liderança. Os sucessivos comandos do Ministério da Saúde foram, cada um a seu tempo, espetaculosos, erráticos e com um processo deliberativo lento. Deveriam ter imposto uma ação abrangente de pré-compra de vacinas e, em coordenação com a Anvisa, uma liberação expedita das doses. Em janeiro, a Anvisa fez um espetáculo midiático para autorizar o uso emergencial de vacinas. Àquela altura, o Brasil já deveria estar vacinando, e não fazendo midiatismo em torno da obrigação de fazer de forma correta o que estava fazendo errado.
Governadores e prefeitos demoraram a reagir quanto à imposição do distanciamento social. O exemplo trágico do Amazonas resultou no caos da saúde pública no estado. Também desmontaram hospitais de campanha país afora sem um horizonte claro do fim da pandemia e não se preparam para o pior, quando o pior já se apresentava, no fim do ano passado. Politicamente, Bolsonaro cometeu um grave erro ao não assumir a liderança no combate à pandemia. O Brasil deseja um líder que Bolsonaro ainda não quer ser.
Se tivesse comprado milhões de vacinas, o Brasil poderia ter vacinado o dobro ou o triplo do que vacinou até o início deste mês. Gastos com a compra em massa de vacinas seriam uma pequena parcela do que será despendido com o auxílio emergencial. A aquisição maciça de vacinas é a melhor política para a retomada da economia. Estamos chegando tarde e a conta em vidas está aumentando.
Publicado em VEJA de 14 de abril de 2021, edição nº 2733