STF

El País: Descontrole da pandemia no Brasil deixa reformas econômicas em segundo plano

Enquanto outros Governos começam a pensar na vida depois da crise, o país se encontra suspenso num estado de choque por causa do caos provocado pela covid-19

Isabella Cota e Carla Jiménez, El País

No meio do caos que fez do Brasil o país com mais mortes e contágios diários pelo coronavírus, perdeu-se o espaço para a discussão das reformas econômicas das quais o país necessita. E não é por falta de vontade. O Governo do presidente Jair Bolsonaro pretendia discutir com legisladores em março uma reforma do código tributário e a privatização de algumas empresas estatais. Mas, com média de quase 4.000 mortes por dia e o colapso do sistema de saúde, é impossível pensar no que vem depois. O Congresso se concentrou em votar medidas que facilitem a compra de vacinas e de suprimentos básicos para o sistema de saúde. O próprio ministro da Economia, Paulo Guedes, rendeu-se aos fatos. “A vacinação maciça é a melhor política fiscal, a mais barata e de maior impacto”, disse em um evento virtual com empresários no fim de março. A inoculação será o que vai dar início à recuperação da economia, cujo PIB caiu 4,1% em 2020.

O que à primeira vista parece sensato ―cuidar antes da pandemia e depois acomodar as reformas― é na verdade um efeito colateral da errática gestão da crise sanitária no Governo Bolsonaro. Sem planos para vacinação maciça, o mandatário insiste em contrariar as medidas de distanciamento social para o controle da pandemia. “Não temos resposta adequada para lutar com os efeitos da difícil pandemia neste momento”, diz a economista Monica de Bolle. “Estava anunciado, previsto, mas nada se fez”, acrescenta. Na última semana, dois ministros pediram demissão, e o presidente substituiu seis.

Outra amostra da desorganização em que se encontra o Brasil está no fato de que o orçamento para este ano só foi aprovado na Câmara em 25 de março e ainda está pendente de passar no Senado. A proposta oferece verbas adicionais e discricionárias aos parlamentares a um ano das eleições. Isto foi possível apesar do teto fiscal, explica Samar Maziad, analista de risco de crédito soberano do Brasil na agência qualificadora Moody’s. Esse limite autoimposto nos gastos públicos oferece a investidores e analistas uma garantia da solvência fiscal da maior economia da América Latina.

Para não ultrapassar esse teto, os legisladores subestimaram os custeios obrigatórios, como seguro-desemprego e a previdência. As supostas reduções de gasto somam 25 bilhões de reais. O próprio Paulo Guedes aconselhou Bolsonaro a não aprovar esse orçamento, que foi qualificado por economistas e especialistas como uma “peça de ficção”. O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, também alertou para a falta de solidez do orçamento em entrevistas concedidas na semana passada: “Qualquer incerteza sobre o orçamento agrava a incerteza fiscal”.

No plano econômico e financeiro, o Governo marcou tentos ao conseguir aprovar em fevereiro a independência do Banco Central, assim como uma emenda constitucional para assegurar o pagamento de novas ajudas emergenciais às populações mais vulneráveis à pandemia a partir deste mês. A primeira rodada de estímulo econômico, com ajudas de 600 reais, foi concedida entre abril e dezembro de 2020 e teve um impacto tangível na economia, reduzindo inclusive o nível de pobreza, mas ultrapassou o teto de gastos. Para este ano, o Governo conseguiu aprovar uma segunda onda de estímulos econômicos ―43,8 bilhões de reais para 45,6 milhões de brasileiros― que será paga por quatro meses e em valor inferior, praticamente metade do que foi no ano passado.

“Este é um estímulo muito mais limitado”, observa Maziad. “A pergunta agora é: com esta piora da pandemia e a lenta vacinação, haverá necessidade ou pressão para aprovar ainda mais estímulos econômicos?”, prossegue ela. De acordo com dados da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômicos (OCDE), o Governo do Brasil arrecada 33% do PIB em impostos, muito acima da média latino-americana, que é de 23%. Diferentemente de seus pares na região, como a Colômbia e o México, onde atualmente se discute a necessidade de aprovar uma reforma fiscal para aumentar a arrecadação, o problema do Brasil não é esse. É mais uma questão de como simplificar as regras tributárias, diz Maziad, algo que o Governo de Bolsonaro procurava fazer antes que a pandemia se descontrolasse.PUBLICIDADE

“A preocupação é que o aumento do gasto visto no ano passado não se reverta, e como o Governo poderá continuar cumprindo o teto de gasto”, opina Maziad por telefone de Nova York. Por sua parte, De Bolle afirma que esta segunda rodada de apoio econômico não terá o mesmo impacto em 2021. “Teremos um ano difícil na economia, não podemos esperar recuperação porque nossa situação fiscal vai piorar”, antevê.

Em entrevista à agência Reuters, o vice-presidente da Câmara dos Deputados, Marcelo Ramos (PL-AM), aliado de Bolsonaro, disse que o presidente provavelmente tentará aumentar o gasto público para sustentar sua popularidade, agora que seu principal adversário, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, está de volta à arena política. Imediatamente depois de o STF anular os julgamentos que o condenaram, Lula atacou Bolsonaro por administrar mal a pandemia e a economia. Ramos afirmou que o Congresso não permitirá nenhuma “aventura fiscal” no período anterior às eleições do ano que vem. “A Câmara esteve muito consciente do problema fiscal do Brasil e tem controles e contrapesos que são efetivos” para conter uma onda de gastos do governo, disse Ramos à Reuters.

Enquanto outros países começam a pensar na vida depois da pandemia, diz Maziad, o Brasil está obrigado a permanecer em um estado de crise, sem avançar suficientemente rápido na vacinação ou na contenção dos contágios. “Em outros lugares já há espaço para pensar em outras coisas ou para olhar além da pandemia, mas no Brasil, nas últimas semanas, basicamente eles centraram a atenção no que está acontecendo com a pandemia e como isso afeta todo o resto. Isto é um obstáculo grande para o crescimento”, aponta a analista.

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Folha de S. Paulo: Bolsonaro tenta derrubar CPI da Covid ao cobrar apuração de prefeitos e governadores

Planalto avalia que ameaça a gestores locais pode reduzir apoio no Senado; governo tenta retirar assinaturas de requerimento

Ricardo Della Coletta, Folha de S. Paulo

O governo Jair Bolsonaro passou a defender abertamente a ampliação da CPI da Covid. Com a medida, a comissão no Senado poderia investigar também a ação de governadores e prefeitos na pandemia.

A estratégia, segundo senadores e auxiliares de Bolsonaro, é jogar mais pressão sobre congressistas para que eles retirem assinaturas do pedido de criação da comissão. Isso precisa ser feito nas próximas horas.

O Palácio do Planalto avalia que a perspectiva de uma CPI que, além do governo federal, mire prefeitos e governadores pode ser suficiente para reduzir os apoios à instalação da CPI no Senado, uma vez que senadores são ligados politicamente às administrações nos estados.

No sábado (10), Bolsonaro defendeu a extensão do escopo do colegiado.

"A CPI [é] para apurar omissões do presidente Jair Bolsonaro, isso que está na ementa. Toda CPI tem de ter um objeto definido. Não pode, por exemplo, por essa CPI que está lá, você investigar prefeitos e governadores, onde alguns desviaram recursos. Eu mandei recursos para lá, e eu sou responsável?", disse.

"Conversei com alguns [senadores] e a ideia é investigar todo mundo, sem problema nenhum", afirmou Bolsonaro que, na manhã do sábado, realizou um passeio de moto pela periferia de Brasília.​

Depois, em áudio divulgado pelo senador Jorge Kajuru (Cidadania-GO) neste domingo (11), Bolsonaro voltou a apelar para a ampliação da CPI.

"Se não mudar, a CPI vai simplesmente ouvir o [ex-ministro da Saúde, Eduardo] Pazuello, ouvir gente nossa, para fazer um relatório sacana", disse Bolsonaro, em gravação reproduzida nas redes sociais do senador.

O discurso foi endossado pelo ministro das Comunicações, Fábio Faria (PSD), em uma sequência de mensagens publicadas no Twitter sábado (10) e domingo (11).

"Uma CPI exclusivamente para apurar o governo federal eu sou totalmente contra. Se tiver CPI, que se apure todos os entes da Federação, inclua estados e municípios e os impactos da liberação da eleição de 2020 para o surgimento da nova cepa (P.1)", escreveu.

Um primeiro passo para a instalação da CPI para investigar as ações e omissões do governo federal no combate ao coronavírus deve ocorrer nesta terça-feira (13), com a leitura do requerimento da comissão pelo presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (DEM-MG).

Mesmo com as assinaturas necessárias, Pacheco vinha bloqueando a criação do colegiado. Segundo ele, o momento não é adequado para investigação parlamentar com potencial de trazer forte instabilidade na política nacional.

O ministro Luís Roberto Barroso, do STF (Supremo Tribunal Federal), no entanto, determinou que a CPI fosse instalada. A decisão liminar (provisória) é de quinta-feira (8).

Inicialmente, a ordem do ministro seria analisada no plenário virtual da corte, no qual são depositados os votos, sem debates. No sábado, Luiz Fux, presidente do STF, após consulta aos ministros, antecipou o julgamento para esta quarta (14), que será no plenário físico da Corte.

Na manhã desta segunda (12), Bolsonaro escreveu em suas redes sociais que "nos momentos difíceis deve-se unir forças, nunca ofender exatamente aquele que pode ser decisivo nesse salvamento".

"Convença aqueles que estão ao seu lado a defender a Constituição, em especial seu art. 5°, a nossa bandeira verde e amarela", disse. "Cada vez mais a população está ficando sem emprego, renda e meios de sobrevivência, o caos bate na porta dos brasileiros. Pergunte o que cada um de nós poderá fazer pelo Brasil e sua liberdade e prepare-se", afirmou.

Agora, a principal frente de ação do Palácio do Planalto é tentar conseguir que assinaturas sejam retiradas por senadores até esta terça-feira. Dos 81 senadores, 32 assinaram o pedido de CPI —são necessários 27.

A ameaça de uma CPI com potencial de criar problemas para governadores é considerado um argumento importante para o Planalto, que mira principalmente congressistas ligados a governos estaduais.

O senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) pediu que as apurações envolvam também os gestores locais.

"Dessa forma, não cabe, a nosso ver, instituir uma comissão parlamentar de inquérito para proceder à investigação da atuação dos órgãos estatais diante da pandemia do Covid-19 e limitar o seu escopo exclusivamente aos agentes públicos federais. Trata-se de um sistema nacional e assim deve ser avaliado", escreveu Vieira.

O requerimento dele foi apresentado à Secretaria-Geral da Casa no sábado. Após a instalação da CPI, basta a maioria simples para a aprovação desse pedido de ampliação do escopo da comissão.

Essa possível ampliação do escopo da investigação interessa ao Planalto mesmo se a estratégia de tentar a retirada das assinaturas não surtir efeito.

Se a CPI sair do papel, o Planalto considera que pode equilibrar o desgaste da investigação contra os atos de Bolsonaro com o discurso adotado há meses pelo presidente: o de que estados e municípios receberam vultuosos recursos da União para combater o vírus, mas não só falharam em conter a doença como muitos teriam praticado desvios e ilícitos.

Congressistas que apoiam a CPI, no entanto, dizem que as declarações de Bolsonaro não devem ser suficientes para reverter assinaturas e que o presidente está, novamente, tentando mobilizar sua base.

De acordo com eles, o pedido original da CPI já era amplo o bastante para apurar o uso de dinheiro federal no combate à pandemia, o que obviamente abarcaria administrações locais que tivessem usado esses recursos.

Mesmo com a formalização da CPI, senadores estão céticos quanto à possibilidade de a comissão efetivamente funcionar. Congressistas dizem que o colegiado não tem condições de trabalhar sem as mínimas garantias sanitárias, uma vez que as reuniões de CPI ocorrem em salas fechadas e com reduzida circulação de ar.

De acordo com senadores, é inviável colher depoimentos de forma remota. Mesmo se houver sessões presenciais, eles afirmam que qualquer testemunha poderia alegar motivos médicos para não comparecer. Além do mais, parlamentares dizem que uma CPI que funcione remotamente impossibilita a análise de documentos sigilosos.

A percepção de que a CPI não tem no momento condições de funcionar é partilhada tanto por apoiadores de Bolsonaro quanto por alguns parlamentares da oposição. Três senadores morreram de Covid: Arolde de Oliveira (PSD-RJ), José Maranhão (MDB-PB) e Major Olímpio (PSL-SP).


SENADORES QUE ASSINARAM PEDIDO DE CRIAÇÃO DA CPI DA COVID

  1. Randolfe Rodrigues (Rede-AP)
  2. Jean Paul Prates (PT-RN)
  3. Alessandro Vieira (Cidadania-SE)
  4. Jorge Kajuru (Cidadania-GO)
  5. Fabiano Contarato (Rede-ES)
  6. Alvaro Dias (PODE-PR)
  7. Mara Gabrilli (PSDB-SP)
  8. Plínio Valério (PSDB-AM)
  9. Reguffe (PODE-DF)
  10. Leila Barros (PSB-DF)
  11. Humberto Costa (PT-PE)
  12. Cid Gomes (PDT-CE)
  13. Eliziane Gama (Cidadania-MA)
  14. Omar Aziz (PSD-AM)
  15. Paulo Paim (PT-RS)
  16. Rose de Freitas (MDB-RS)
  17. José Serra (PSDB-SP)
  18. Weverton (PDT-MA)
  19. Simone Tebet (MDB-MS)
  20. Tasso Jereissati (PSDB-CE)
  21. Oriovisto Guimarães (PODE-PR)
  22. Jarbas Vasconcelos (MDB-PE)
  23. Rogério Carvalho (PT-SE)
  24. Otto Alencar (PSD-BA)
  25. Renan Calheiros (MDB-AL)
  26. Eduardo Braga (MDB-AM)
  27. Rodrigo Cunha (PSDB-AL)
  28. Lasier Martins (PODE-RS)
  29. Zenaide Maia (PROS-RN)
  30. Paulo Rocha (PT-PA)
  31. Styvenson Valentim (PODE-RN)
  32. Acir Gurgacz (PDT-RO)

Folha de S. Paulo: Oposição vê clima para CPI da Covid na Câmara após ordem do STF ao Senado

Já Arthur Lira, presidente da Casa e aliado de Bolsonaro, diz não ser esse o momento para se apontar o dedo para ninguém

Danielle Brant, Folha de S. Paulo

A ordem do ministro Luís Roberto Barroso, do STF (Supremo Tribunal Federal), para que o Senado instale a CPI da Covid deu novo fôlego à oposição na Câmara, que vê ambiente favorável para pressionar deputados a recolher assinaturas para abrir uma comissão parlamentar de inquérito na Casa.

A articulação foi retomada após Barroso mandar o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), criar o colegiado. A decisão liminar (provisória) do ministro será analisada pelo plenário do STF na quarta-feira (14).

Na decisão, Barroso afirmou que já estavam presentes requisitos necessários para abertura de comissão, como assinatura favorável de mais de um terço dos senadores, e argumentou que o chefe do Senado não poderia se omitir em relação ao tema.

Não é a primeira vez que o STF determina a instalação de CPIs a pedido da oposição. Em 2005, o Supremo mandou instaurar a dos Bingos, em 2007, a do Apagão Aéreo, e, em 2014, a da Petrobras.

Assim como Pacheco, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), já se manifestou contra a abertura da CPI. Em março, ele afirmou que o Congresso não deveria parar para investigar a gestão do governo na pandemia ou procurar culpados por erros.

Na sexta-feira (9), em evento na Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba), em Arapiraca (AL), Lira voltou a rechaçar a abertura de uma CPI pela Câmara.

Segundo ele, não é o momento para "se apontar o dedo para ninguém". "Daqui a dois, três meses, esses culpados vão estar morando em outro lugar, vão estar apagadas as provas, vão estar escondidas as evidências? Não."

"Então, você [vai] mobilizar 20, 30 senadores numa sala fechada quando o Congresso está funcionando virtualmente e ter de trabalhar presencialmente para fazer política? Porque o que nós não precisamos neste momento é politizar mais um tema."

Lira disse que "quem errou vai pagar" e que o "preço de 330 mil vidas é muito alto para qualquer sociedade, mas não nesse momento e não dessa maneira". O Brasil já soma mais de 350 mil mortos pela Covid-19.

Acho que a CPI [do Senado] cria um clima, um novo ambiente, especialmente se, de fato, for instalada rapidamente, de a Câmara também cumprir seu papel de fiscalizar essas questões da CovidAlex Manente (SP)

líder do Cidadania na Câmara

Deputados da oposição e de partidos de centro, no entanto, veem oportunidade para pressionar colegas e, assim, conseguir o mínimo de 171 assinaturas necessárias para a criação da CPI. A Câmara tem 513 parlamentares.

Segundo a deputada Perpétua Almeida (PC do B-AC), cerca de 90 deputados já haviam apoiado a criação da comissão até a última sexta-feira.

Para ela, a CPI no Senado "está assustando as hostes do governo". "Estavam preocupados de não criar CPI e agora vão ficar preocupados porque a CPI vai acontecer no Senado, onde há um grupo mais amplo que quer esclarecer esse processo", disse.

A deputada afirmou que a instalação da comissão no Senado favorece a abertura de um processo semelhante na Câmara. De acordo com ela, a medida seria barrada por Lira.

"Acho que ele separa as coisas. Para colocar uma CPI sem ser uma pressão muito grande, sozinho, ele não coloca. Ele coloca mais na frente, se sentir que os interesses do centrão estão sendo ameaçados."

Vice-líder da minoria na Câmara, a deputada Jandira Feghali (PC do B-RJ) lembrou que CPI é direito constitucional e não depende do desejo político de quem comanda a Casa.

"A demora de instalar acabou gerando essa incidência do Supremo Tribunal Federal sobre o Senado. Seria desnecessária essa incidência se houvesse a instalação pelo próprio presidente do Senado", disse.

Em sua decisão, Barroso afirmou que não cabe ao presidente do Senado fazer uma análise de conveniência em relação à abertura da CPI e que ele é obrigado a fazê-la quando estão cumpridas as exigências da Constituição sobre o tema.

Na Câmara, para conseguir as assinaturas exigidas, a oposição, que tem 125 deputados, precisaria do respaldo de deputados de centro. Feghali disse acreditar que isso é possível, incluindo o apoio de deputados de centro-direita.

"Tenho certeza de que assinarão esses pedidos de CPI, porque as denúncias são muitas, o número de mortes cresceu assustadoramente, e vários parlamentares têm interesse de investigar os crimes que se repetem do governo federal", disse.

O líder do Cidadania na Câmara, Alex Manente (SP), segue a mesma linha de Feghali. "Acho que a CPI [do Senado] cria um clima, um novo ambiente, especialmente se, de fato, for instalada rapidamente, de a Câmara também cumprir seu papel de fiscalizar essas questões da Covid."

Outros deputados veem na CPI uma forma de encontrar os responsáveis pelos erros no enfrentamento à pandemia no país e investigar a conduta do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

"Não podemos continuar enterrando pessoas que poderiam estar vivas se não tivéssemos um presidente tão irresponsável. A postura do governo brasileiro diante da crise é criminosa", afirmou a líder do PSOL na Câmara, deputada Talíria Petrone (RJ).

"A oposição está mobilizada para conseguir assinaturas para uma CPI. Mais que isso, já chegou a hora de um pedido de impeachment que unifique todos setores que defendem a vida."

O deputado Paulo Teixeira (PT-SP) também defende a instalação de uma comissão pela Câmara.

"A CPI da Covid pode ajudar no combate à tragédia da pandemia no Brasil, ajudar a acelerar a produção de vacinas no país e aperfeiçoar o SUS", disse. "Pode igualmente apontar os crimes praticados pelo presidente da República."

Mesmo deputados do centrão reconhecem que haveria espaço para criação da CPI. "Se o Bolsonaro não mudar o discurso e a estratégia no dia dia, será inevitável", afirmou Fausto Pinato (PP-SP).

Na avaliação de deputados próximos a Lira, principal líder do bloco do centrão, apesar de o presidente da Câmara ser contrário à instalação de uma CPI, a resistência poderia ser menor se a ideia fosse criar uma comissão mista de deputados e senadores, a exemplo da que já existe para apurar fake news.

Enquanto isso, o governo pressiona para que senadores retirem a assinatura do requerimento de criação da comissão parlamentar de inquérito. Assim, o requerimento passaria a ter menos de 27 apoiadores —o mínimo exigido para abrir uma CPI.

O documento hoje tem 32 nomes, entre oposicionistas e alguns que se declaram independentes ao governo. Integrantes do MDB, maior bancada do Senado, defendem a investigação.

A tentativa, porém, deve ser frustrada, porque há a avaliação de que a retirada de assinaturas agora passaria uma mensagem negativa, considerando que o requerimento foi protocolado há mais de dois meses.

O senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), que assinou o requerimento, critica a tentativa do governo. "É uma demonstração de medo da apuração e chama a atenção, porque, como bem diz o presidente da República, quem não deve não teme", afirmou.

O congressista protocolou neste sábado (10) um pedido de aditamento da CPI da Covid para ampliar o escopo, com a intenção de incluir nas investigações atos praticados por agentes políticos e administrativos de estados e municípios na gestão de recursos federais.

"Para não deixar margem de dúvida, já está apresentado, foi protocolado, e a gente vira esta página e o governo vai ter de inventar outra desculpa [para não apoiar a CPI]", disse. Após a instalação da CPI, o pedido precisa ser aprovado por maioria simples.

Reportagem da Folha neste sábado mostrou que a decisão do STF aumentou o poder de fogo do Senado sobre Bolsonaro.

Para reagir à CPI do Senado, o governo vinha tentado convencer senadores pelo medo, alegando a possibilidade de ampliação do escopo da CPI para atingir prefeitos e governadores, o que comprometeria aliados importantes de congressistas, inclusive da oposição, pouco mais de um ano antes das eleições.

Neste sábado, o próprio Bolsonaro manifestou apoio à ampliação do escopo da comissão.

"A CPI [é] para apurar omissões do presidente Jair Bolsonaro, isso que está na ementa. Toda CPI tem de ter um objeto definido. Não pode, por exemplo, por essa CPI que está lá, você investigar prefeitos e governadores, onde alguns desviaram recursos. Eu mandei recursos para lá, e eu sou responsável?", disse.

"Conversei com alguns [senadores] e a ideia é investigar todo mundo, sem problema nenhum", afirmou. Para o presidente, a CPI foi feita pela "esquerda para perseguir e tumultuar".


Edmundo Machado de Oliveira: País precisa de uma nova Carta ao Povo Brasileiro para enfrentar desigualdade

Um dos redatores da carta de Lula de 2002 diz que forças democráticas devem convergir para a retomada do desenvolvimento

[RESUMO]Carta apresentada por Lula em 2002, mais que uma conciliação com o mercado, representou uma convergência histórica de forças opostas que permitiu alçar a promoção dos mais pobres a ponto central das políticas públicas. Tal conquista, porém, foi detida pela ruptura do impeachment, que culminou na vitória de Bolsonaro. Uma carta para 2022 teria que mirar na desigualdade e exigiria nova confluência democrática de grupos adversários.

Carta ao Povo Brasileiro, lida por Lula na campanha de 2002, foi um ponto de luz na história brasileira. Muitos a entendem, ainda hoje, como uma manobra esperta para acalmar os mercados e pavimentar a sua via até a rampa do Planalto. Poucos a percebem, porém, como um momento de confluência da democracia brasileira.

A continuidade das políticas econômicas vigentes, embora em novas bases, foi uma primeira grande convergência entre forças sociais distintas e até conflituosas. Ao final do segundo governo de Fernando Henrique Cardoso, o país havia recorrido novamente ao FMI para um plano de resgate.

As reservas em moeda estrangeira no Banco Central eram de míseros US$ 30 bilhões —hoje temos US$ 350 bilhões—, mas havia um razoável equilíbrio de fundamentos macroeconômicos, sobretudo em termos de dívida pública.

O realismo falou ao bom senso, e o PT afastou qualquer sombra acerca de um extemporâneo cavalo de pau na economia. Não honrar contratos estava fora de questão. Fomentar bolhas artificiais de crescimento —como também tive a oportunidade de escrever no relatório de transição entre o futuro ministro da Fazenda, Antonio Palocci, e o então ministro Pedro Malan—, sem chance.

Nada disso seria possível sem a visão periscópica de Lula e sua fixação no ponto essencial, que trouxe à tona uma confluência ainda mais abrangente: o encontro das variadas elites políticas, econômicas e sociais com o povo.

Até então, políticas sociais eram políticas compensatórias. Lula e sua carta foram além, mirando o que o ex-presidente elaborou, posteriormente, de forma sintética e compreensível em todas as ruas e praças do país —“colocar o pobre no Orçamento”, fazer a roda do desenvolvimento econômico e social girar novamente.

Esse foi o fato novo, o ponto de luz. A democracia não seria mais apenas voto na urna e liberdade de expressão, mas também carne nas mesas das famílias, proteína e letras para as crianças na idade certa, conta no banco, casa própria, emprego decente e tudo mais que se entenda por vida digna.

Esta é a necessidade permanente e inamovível do povo. Para responder a ela, há a política. Para instrumentalizá-la, o conhecimento e as ferramentas da economia. Para avançá-la, a ciência, a tecnologia e a inovação. Para ilustrá-la, a cultura. Pelo que disse que faria e pelo que entregou, Luiz Inácio Lula da Silva tornou-se incontornável.

Entretanto, a porcelana chinesa da confiança, que é a fina matéria das nações, quebrou-se. Nossa Constituição está avariada. Filho põe o dedo na cara de pai. Crentes descreem e amaldiçoam seus semelhantes. Muitos querem armas.

O ódio medra por todas as frestas. A cadela do fascismo cresce nos grupos de WhatsApp, espalhando fake news roboticamente e aos borbotões. Fanáticos sequestram as cores nacionais. O gabinete do ódio viceja dentro do próprio Palácio do Planalto. Seu chefe tenta sequestrar e subjugar as instituições de Estado, das Forças Armadas ao Supremo Tribunal Federal. A pandemia e a sinistra marcha rumo a 400 mil mortos pela Covid-19 nada dizem a Bolsonaro e ao círculo de militares. A empatia humana do presidente é zero, e a vida não vale uma “gripezinha”.

Como chegamos a isso? Por que a confiança deu lugar a sua antípoda?

A minha interpretação é a de que pagamos o preço pela ruptura institucional ocorrida em 31 de agosto de 2016. O impeachment de Dilma Rousseff foi uma fratura na Constituição brasileira, já sob pressão desmedida da flamejante Operação Lava Jato, em que o devido processo legal virou pó e a regra de exceção se impôs.

Nesse período infame deu-se a tempestade perfeita. Nas ruas pintadas de verde e amarelo, boa-fé, combate anticorrupção e ilusão de “limpar a política” respaldaram a abertura do processo de impeachment contra uma presidenta perdida no torvelinho político, mas inarredavelmente honesta.

O que poderia ter sido perfeitamente manejado como uma das tantas crises cíclicas a que países estão sujeitos, ainda mais diante da gravidade do segundo mergulho da crise de 2008 na Europa, em 2011-2012, foi utilitariamente transformado em antipetismo doentio.

Adotou-se uma nova carta-referência, denominada Ponte para o Futuro, que mal e porcamente tentou emular a carta de 2002. Ao reler esse documento, o que mais me choca é sua completa insensibilidade social, sem falar de sua ignorância acadêmica estratosférica. Não existe uma única menção à desigualdade social.

Depois dos trabalhos referenciais de Thomas Piketty (“O Capital no Século XXI”) e de Branko Milanović (“A Desigualdade no Mundo”), ousar falar em reformas desencarnadas do combate às desigualdades é comprar um bilhete para o inferno.

Por mais jucundas que fossem as boas intenções dos que redigiram aquela carta, a vida real é muito mais complexa que as ideias de cortes de gastos e celebração do mercado e do setor privado como valores absolutos, como propostas no documento.

A narrativa preguiçosa e interesseira contada por certos economistas de que o PT cometeu o pecado capital de escolher “campeões nacionais” só serviu mesmo para abrir o caminho aos ataques toscos de Bolsonaro e Guedes à famosa “caixa-preta” de uma das melhores instituições do Estado brasileiro, o BNDES. Estão até hoje, por sinal, procurando “aquela mutreta dos petistas malvados”, sem nada encontrar.

Só que, como o diabo gosta mesmo é de matéria, não de espírito, o inferno veio na forma da emenda à Constituição 95. Os gastos sociais foram congelados por 20 anos para dar garantia aos investidores de que o fiscalismo e o realismo tarifário criariam, automaticamente, as condições para que o setor privado voltasse a investir.

Sabemos bem hoje a quantas anda esse falso milagre. A taxa de investimento, rodando por volta de 15% do PIB nos últimos cinco anos, está em um dos mais baixos níveis históricos. E o desemprego, que agora atinge 14 milhões de pessoas, campeia solto.

Direitos sociais foram aniquilados, as verbas do Sistema Único de Saúde acabaram asfixiadas em mais de R$ 20 bilhões. A educação básica segue na mesma indigência de sempre.

Atingimos o paroxismo da repulsa à ação do Estado como agente indutor dos investimentos na promessa rude de Paulo Guedes de implantação de uma economia liberal, jogando na lata de lixo os 30 anos de “social-democracia” que teriam sido plantados pela Constituição de 1988. Uma aberração.

Aberração que está liquidando a Petrobras como patrimônio nacional e colocando o gás de cozinha na casa dos pobres a R$ 90 e até R$ 100. E o rico butim do Estado decadente ainda tem a Eletrobras, que pedem para privatizar logo. Pouco importa se o preço da energia subir 20% da noite para o dia em mãos privadas, eficientes para distribuir gordos dividendos nas bolsas, mas insensíveis ao bico de candeia que voltará depois de o povo ter experimentado o gostinho do Luz para Todos. Assim como voltaram o fogão a lenha e o cozimento a álcool nas periferias.

O Brasil precisa urgentemente de uma nova agenda, pela qual se empenhem honestamente todas as forças políticas e sociais democráticas. Os dados sobre a desigualdade social são bem conhecidos, embora pouco debatidos fora do âmbito acadêmico.

Este debate é insuficiente até mesmo no PT, partido ao qual sou filiado, que reagiu, ao primeiro choque da evidência, de forma imatura ao registro crítico de Marc Morgan e Thomas Piketty sobre os limites das políticas de distribuição de renda nos governos Lula e Dilma.

Eles apontaram nos dados da Receita Federal, coletados pela World Income Database, que a desigualdade social não caiu na proporção capaz de tirar o Brasil da posição de segundo país mais desigual do mundo. Pela análise de Morgan e Piketty, ganharam, sim, os mais pobres, mas também os mais ricos e os super-ricos, a famosa turma do 1%.

De fato, o Brasil precisa evoluir neste século 21 para uma distribuição de renda que, no mínimo, dobre os 30% do contingente intermediário de renda espremido entre os 60% mais pobres e os 10% mais ricos. Esta é uma discussão sobre regressividade tributária, pela qual os pobres pagam proporcionalmente mais tributos que os ricos, mas não apenas.

A renda é apenas uma das dimensões do bem-estar social, para o qual também concorrem outros fatores, como saúde, educação, serviços públicos essenciais e equilíbrio ambiental. O enfrentamento da desigualdade social, contudo, deve ser ainda maior, pois ela também tem cor e gênero.

Trabalhadores brancos ganham 74% mais do que negros e pardos, segundo o estudo Desigualdades Sociais por Cor ou Raça, do IBGE. Mulheres recebem o equivalente a 58% da renda dos homens, segundo o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento). Ambos os dados são de 2019.

Agora, no pós-pandemia, a situação promete ficar ainda pior. Os poucos indicadores sobre desigualdade já evidenciados mostram um quadro dramático. De acordo com levantamento da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, os 20 distritos mais pobres da capital apresentam o dobro de mortes pela Covid-19 que os 20 distritos mais ricos. E, nada surpreendente, negros morrem mais que brancos.

Na redefinição de uma agenda convergente, outros dois pontos são fundamentais: a superação da estagnada produtividade do trabalho e a inserção internacional do Brasil. No primeiro caso, o dado imutável há anos da economia é que o brasileiro leva entre quatro e cinco vezes mais tempo para produzir a mesma unidade de trabalho que um trabalhador americano. A produtividade brasileira é 20% a 25% da americana.

Baixo investimento em fatores de produção e pobre qualificação da mão de obra, por má educação e carência tecnológica, deprimem a capacidade de produzir e distribuir riquezas. É o que cria o fosso entre países de renda média, como o Brasil, e países de renda alta, como os europeus, Estados Unidos e Japão.

Também neste ponto, nosso buraco é mais profundo. O primeiro auxílio emergencial beneficiou 68 milhões de brasileiros, mas revelou também a existência de mais de 46 milhões de invisíveis, pessoas que vivem na informalidade e sem registro de CPF.

O Brasil convive hoje com 20 milhões de desempregados, entre desocupados e desalentados, os que desistiram de buscar emprego. A eles se somam outros quase 40 milhões que vivem na informalidade. De novo aqui, pretos e pardos são os maiores contingentes de informais.

Há uma correlação pouco debatida na sociedade, e também no PT, entre desigualdade social, desemprego e informalidade. As resultantes dessa verdadeira tragédia humana, aguda falta de emprego decente, sobre a produtividade brasileira são epidérmicas. A desigualdade social e a baixa produtividade são males que se retroalimentam.

No segundo caso, vale retomar o debate sobre nossa inserção internacional. O Brasil, em seus melhores momentos, em 2011, rivalizou com o Reino Unido na posição de sexta maior economia do mundo. Goste-se ou não de Lula e Celso Amorim, o fato é que o país se tornou voz reconhecida no G20, impulsionou decisivamente o Brics, o Mercosul e a integração das Américas do Sul e Latina. Todavia, regredimos tanto que a China nos retirou o lugar de maior parceiro comercial da Argentina.

Ocorre, porém, que o Brasil tem porte populacional, densidade econômica e fluxo de comércio que lhe cobram dispor de uma agenda internacional, diplomática e econômica condizente com o seu peso de nação talhada para ser importante. Menos que isso é complexo de vira-latas.

Diante de tanta baixaria que vem do Planalto, muitos alimentam o desejo de que adversários furem suas bolhas e se falem. Alguns dós-de-peitos suspiram por um inviável encontro Lula-FHC. De minha parte, sempre dei muito valor à revisão crítica do senador Tasso Jereissati sobre o papel do PSDB na queda de Dilma Rousseff. Acho-o um homem honesto e decente. A mim bastaria ver o ex-presidente Lula recebê-lo no Instituto Lula ou Tasso convidá-lo para uma conversa em terreno neutro.

Se possível, tudo convergindo para uma singela nota comum: “Brasileiros, com Bolsonaro não dá. Ele é a morte dos homens e das mulheres, da inteligência e da democracia. O Congresso Nacional deve removê-lo. Ontem”.

*Jornalista e consultor político, é assessor da bancada do PT na Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo). Foi um dos redatores da Carta ao Povo Brasileiro, proposta por Lula em 2002


Cacá Diegues: A imaginação de Bolsonaro não tem limites

Se a realidade o incomoda, ele encontra sempre um jeito de passar por cima dela

Ninguém me contou, eu mesmo vi Jair Bolsonaro declarar na televisão que tinha informação segura de que a eleição americana tinha sido fraudada. Como o vi, meses antes, dizer que, em 2018, tinha sido roubado, pois havia vencido a eleição para presidente no primeiro turno. Nos dois casos, como sempre faz, nunca apresentou prova alguma.<SW>

A imaginação do homem não tem limites. Se a realidade o incomoda, ele encontra sempre um jeito de passar por cima dela, contando uma história lá da cabeça dele. A gente até acha graça do que considera desinformação. Mas, de repente, paramos pra pensar e descobrimos uma certa coerência nisso tudo, uma teia que ele tece aos poucos com seus parceiros. Como os galos da manhã de João Cabral, eles nos anunciam um outro dia que nasce radiante. Um dia de radiante horror.

Sua eleição deu-se por infeliz coincidência entre um candidato que representava políticos de quem ninguém queria mais saber e outro que ninguém conhecia, mas se parecia com aquele simpático conversa mole de botequim, sempre dizendo besteiras que nos fazem rir amorosamente. Com ele eleito, descobrimos que era tudo uma peça que a democracia nos pregava. Alguém aí tem hoje alguma dúvida de que, quando ele perder a eleição de 2022, vai declarar que houve fraude e armar um fuzuê para não deixar o poder? O homem só pensa nisso.

Na política e na vida, a mentira é arma poderosa, sobretudo na mão de um candidato que tem poder porque está no poder. O ministro do governo no STF afirmou que esvaziar os templos por causa da Covid é impedir a liberdade religiosa, o ir e vir garantido pela Constituição. Ele propõe, em contrapartida, uma restrição no número de fiéis em cada espaço de oração. E os que, nesse caso, ficam fora desse espaço nos templos não estão sendo impedidos de ir e vir, de exercer sua liberdade religiosa? Esse é um excelente modo de admitir o óbvio inconveniente (a pandemia), propondo uma falsa solução que excita os interessados contra quem age com correção.

Quero ver nossos finos conservadores enfrentando o demônio armado. Já, já ele acaba de formar sua milícia com as armas que está fazendo entrar no país legalmente, a preço de banana. Como já pode ter empolgado os PMs iludidos pela ausência de repressão no levante do Ceará. Ou os negacionistas sinceros, pelas mentiras inventadas pela turma da Bia Kicis sobre a morte do pobre soldado doente da Bahia. E, sobretudo, pelo empenho junto às Forças Armadas, que parece não estar dando resultado, mas que ninguém sabe dizer direito a quantas anda.

Depois da longa ditadura e de tantos anos de uma democracia que julgávamos sólida, o novo regime começou a pifar a partir de erros graves cometidos por Dilma Rousseff. Como não sabemos debater sem eliminar o adversário, os erros foram agravados pelo impeachment dela, uma violência absurda e desnecessária. Um gesto de impotência disfarçada na aparente onipotência de uma oposição que não sabia o que fazer. Nem o que estava fazendo, o que ficava claro na sucessão de tolices ditas antes do voto, para justificar o que ninguém tinha certeza.

Hoje, vivemos nesse inferno de poderes que disputam a culpa da morte de quase 400 mil brasileiros, em vez de tentar impedir que eles morram. Um inferno em que, num plano fechado, um vereador mata seu enteado de 4 anos como se estivesse numa pelada de futebol e uma deputada manda seus 500 filhos acabarem com seu marido. Como diz o assassino do menino Henry, o importante “é virar a pagina”. Mas, no curso desse lodo geral, avançamos sem saber o que nos espera na página seguinte.


Dorrit Harazim: Terra em transe

O capitão Jair e o Dr. Jairinho têm algo em comum: gostariam de virar a página. O primeiro é presidente do Brasil. Como a responsabilidade pelo caos pandêmico não sai de seu colo, ele explora tentativas cada vez mais bizarras de virar a página, de varrer a realidade fúnebre do país nem que seja aprofundando ao extremo o precipício. A mortandade que o capitão semeia é coletiva.

Já o Dr. Jairinho prefere semear terror individual. Por espancamento. Foi preso com a mulher esta semana pelo assassinato do enteado Henry, de 4 anos. Vereador carioca no quinto mandato e habituado a trafegar nas paralelas, Jairo Souza Santos Junior procurou varrer a realidade de seu crime ainda no hospital — pediu, ao arrepio da lei, que o corpo do menino não fosse encaminhado para o Instituto Médico Legal. Pretendia encaminhá-lo a um legista particular para, em suas próprias palavras, “poder virar a página logo”. Felizmente, não foi atendido. Mais tarde, segundo relato do devastado pai biológico da criança, o vereador teria se dirigido a ele em termos ainda mais crus: “Mermão, vira essa página, vida que segue. Você faz outro filho”.

Frieza insaciável existe.

Jair e Jairinho têm em comum uma desumanidade doentia. Ela parece não ter fim neste Brasil em transe, resignado a chorar. É natural chorar pelo menino Henry mesmo sem tê-lo conhecido, pois os elementos conhecidos do caso geram empatia universal: o horror e medo de uma criança brutalizada até desfalecer, a animalidade de um padrasto espancador, a frieza criminosa da mãe. Como não querer escancarar os braços para proteger o miudinho indefeso?

Mais complexa é a subtração diária de vidas brasileiras levadas pela Covid-19, esse matador silencioso, invisível, não humano. Mesmo quando tentamos individualizar alguma morte anônima igualmente cruel, o pranto não vem fácil em meio aos outros 350 mil que já se foram. Tome-se o caso da menina de 4 anos, mesma idade de Henry, cujo corpo foi encontrado no Hospital Materno Infantil de Brasília por vigilantes da instituição. Segundo o portal “Metrópoles”, o corpo sem vida estava há mais de 24 horas numa salinha sem ventilação na entrada da emergência pediátrica, à vista de pacientes que por ali passassem. Só que o pavor da menina com suspeita de Covid-19, sua solidão e asfixia antes de morrer são mais difíceis de imaginar. Permaneceu anônima, exceto para quem a perdeu.

Tinha razão o dramaturgo e romancista Max Frisch quando escreveu que, mais cedo ou mais tarde, todo mundo inventa uma história que acredita ser sua vida. Nesse sentido — e apenas nesse sentido —, Jair Bolsonaro não é diferente do resto do mundo. Para manter sua vida ficcional vedada, ele precisaria “virar a página” de sua responsabilidade na tragédia brasileira. Não vai conseguir. Basta responder a uma pergunta de simplicidade cristalina que aponta a responsabilidade única do presidente da República no abandono do país: qual o único brasileiro que poderia ter mudado o curso da voracidade do vírus? A resposta independe das complexas deliberações do Judiciário e das tortuosidades do Legislativo. Ela se fundamenta no senso comum.

Desde o início da pandemia, a parte dos brasileiros em condição de optar pelo iluminismo entendeu a seriedade do perigo, adotou medidas protetivas individuais, assumiu sua responsabilidade coletiva. Sempre se manteve decidida a não compactuar com o obscurantismo. Para que o combate à Covid-19 tivesse alguma chance de êxito ou racionalidade, teria bastado convencer o outro Brasil. Esse outro Brasil em estado de mitomania, aguerrido, porém fiel, teria seguido com disciplina religiosa qualquer ordem de distanciamento, uso de máscara ou confinamento emanada da boca do seu líder. Tamanho poder e privilégio somente o presidente tinha, com tudo à disposição — cadeia nacional de rádio e TV diária, se quisesse, redes sociais, confiança cega de seguidores. Nenhum ministro da Saúde, nenhuma sumidade científica, nenhum acadêmico, celebridade ou vencedor do “BBB” teria, sozinho (nem em conjunto), eficácia semelhante. O presidente da República preferiu incentivar o descarrilamento de vidas.

Muito acima das lambanças generalizadas deste Brasil esgarçado, a responsabilidade de Bolsonaro é única. Apenas ele, sem precisar de mais ninguém, dado que o governo o seguiria, teve a chance de evitar o naufrágio. Nem sequer tentou. Optou pela morte.


Janio de Freitas: Há mais do que crimes de responsabilidade à mercê de uma CPI, há crimes contra pessoas

Tal coleção de crimes talvez encontre comparação nos abutres que agiram em porões da ditadura

Os 61 mortos por asfixia à falta de oxigênio por si sós justificam a CPI que o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, precisou ser obrigado pelo Supremo a instalar. Esse horror sofrido em hospitais do Amazonas está envolto por quantidade tão torrencial de horrores que uma CPI é insuficiente para dar-lhes as devidas respostas.

Apesar de tantos fatos e dados à sua disposição, com fartura de comprovações já prontas e públicas, a mera possibilidade da CPI nos força a encarar outra tragédia: no Brasil de 4.000 mortos de Covid por dia, não se conta com seriedade nem para evitar-nos a dúvida de que a CPI busque, de fato, as responsabilidades pelo morticínio, as quais já conhecemos na prática.

A reação imediata dos contrariados é a esperável, mas também traz sua incógnita. O choque iniciado com o STF soma-se ao jogo duro do governo, sobre os parlamentares, para dominar tudo que se refira à CPI. Disso decorre um potencial alto de agravamento e de incidentes sob a nova, e ainda mal conhecida, disposição de forças derivada das alterações em ministérios e em cargos e correntes militares.

As juras de respeito à Constituição são unânimes nos que entram e nos que saem. Inúteis já porque nenhum diria o contrário. Ainda porque o passado atesta essa inutilidade. E, no caso da Defesa, não se pode esquecer que o general Braga Netto estava no centro do governo, onde aceitou ou contribuiu para os desmandos do desvario dito presidencial. Logo que nomeado, adotou uma prevenção significativa: excluiu da nota de celebração do golpe a caracterização das Forças Armadas como instituição do Estado. Não do governo.

comandante da Força Aérea, brigadeiro Baptista Jr., já está identificado como ativo bolsonarista nas redes sociais. Ministro da Justiça, o delegado Anderson Torres e seu escolhido para diretor da PF têm relevância à parte. O primeiro vê em Bolsonaro nada menos do que um enviado de Deus: “Quis Deus, presidente Bolsonaro, que esta condução em momento tão crítico estivesse em vossas mãos”. Imagine-se a obediência devida a um enviado.

O outro, delegado Paulo Maiurino, tem anos de atividade em política capazes, se desejar, de enriquecer a carreira de intervenções políticas da PF. Iniciada no governo Fernando Henrique pelo delegado Argílio Monteiro, depois recompensado com a candidatura (derrotada) a deputado federal pelo PSDB, foi o tempo do dinheiro “plantado” no Maranhão, dos caixotes de dólares “mandados de Cuba para Lula”, e outras fraudes, sempre a serviço das candidaturas de José Serra. Na Lava Jato a PF enriqueceu muito a sua tradição.

Com essas e mais peças, como a AGU entregue ao pastor extremado André Mendonça, está claro tratar-se de parte de um dispositivo político e armado. A pandemia e a mortandade não são preocupações. Nem dentro da própria Presidência, onde se aproximam de 500 os servidores colhidos pela Covid, com taxa de contaminação 13% maior que a nacional. E lá, para ilustrar a possível CPI, a “ordem do presidente” continua a ser “contra lockdown” (aspas para o ministro Marcelo Queiroga), contra máscaras e vacina, e pela cloroquina.

Antes mesmo de determinada pelo ministro Barroso, a possibilidade da CPI iniciou a discussão de táticas para dela poupar Bolsonaro. Será resguardar o agente principal da calamidade. O vírus leva à morte porque esse é papel que a natureza lhe deu. Bolsonaro fez e faz o mesmo por deslealdade ao papel que lhe foi dado e aos que o deram. E, de quebra, ao restante do país.

Há mais do que crimes de responsabilidade, numerosos, à mercê de uma CPI.

Há crimes contra pessoas. Há crimes contra a humanidade. Tal coleção de crimes talvez encontre comparação nos abutres que agiram em porões da ditadura. Ou talvez só se compare aos primórdios da ocupação territorial, com a escravização e as mortandades em massa. O choque não descansa: são 4.000 mortos por dia.

É razoável suspeitar que não haja, nem sequer em número próprio de uma CPI, gente com caráter para enfrentar uma criminalidade assim e ao que a ampare, como o ódio e a facilitação de armas letais.


Bruno Boghossian: Principal alvo da CPI da Covid deve ser o negacionista-chefe

Comissão pode investigar atos com impressão digital de Bolsonaro na pandemia

No pedido de criação da CPI da Covid, senadores anunciaram a apuração de "ações e omissões do governo federal". O objeto formal da investigação não menciona nomes específicos, mas nem precisava. Parlamentares dizem que um dos propósitos centrais da comissão é expor os atos praticados diretamente por Jair Bolsonaro na pandemia.

O presidente é o negacionista-chefe da equipe que administra o morticínio, mas sua imagem permanece intacta para uma parcela da população. Ainda que a reprovação a seu trabalho tenha crescido, o esforço esdrúxulo de Bolsonaro para se desviar de responsabilidades foi suficiente para ajudá-lo a preservar o apoio de cerca de 30% de brasileiros.

A intenção de alguns dos senadores que devem participar da CPI é furar essa blindagem. Eles pretendem usar a comissão para identificar ações que estejam marcadas pela impressão digital do presidente e mostrar o impacto que elas tiveram sobre o mau desempenho do país na contenção do vírus e na vacinação.

Essa missão surgiu porque Bolsonaro é um profissional na arte de negar o que diz e se esquivar de suas obrigações. O presidente mobilizou as engrenagens de propaganda do governo para convencer a população de que nunca foi contra a vacina, embora tenha sabotado os esforços nessa direção. Além disso, inventou a tese falsa de que foi impedido pelo Supremo de fazer seu trabalho.

Na CPI, senadores querem exibir provas de que o próprio Bolsonaro trabalhou contra a compra de milhões de doses de imunizantes, desestimulou o uso de máscaras, fez uma campanha agressiva contra medidas de distanciamento e usou a máquina pública para produzir e recomendar a aplicação de medicamentos ineficazes contra a Covid-19.

O presidente reagiu mal à decisão de instalar a CPI. O senador Renan Calheiros (MDB) afirma que o presidente só deve se preocupar se tiver cometido erros: "Se Bolsonaro fez tudo certo, como diz, ele não precisa se sobressaltar. A CPI vai concluir ou não pela responsabilidade dele".


Vinicius Torres Freire: As ideais da entidade ‘os empresários’

Este jornalista ouviu seis empresários de negócios que estão entre os cem maiores do país

“Os empresários” e “os militares” reapareceram na conversa política como entidades ou caricaturas de um modo que não se ouvia fazia décadas (mas não “os trabalhadores”). A gente sabe pouco dessas abstrações genéricas. Para aumentar um pouco a confusão, este jornalista ouviu seis empresários de negócios que estão entre os cem maiores do país.

A amostra é enviesada. São todos do centro-sul, nenhum do relevante agronegócio. É gente que lê, parece a velha elite tucana e participa do debate público, mas pede reserva em conversas que envolvam Jair Bolsonaro. A seguir, depoimentos sobre a “articulação” de empresários para 2022.

“Tem um grande desgosto com essa forma totalitária de agir. O Bolsonaro não tem adversários, tem inimigos.”

“Os empresários têm receio do poder de qualquer governo [por isso evitariam a exposição política]. O principal instrumento de retaliação é a Receita, não importa se está tudo correto. E esse governo tem também as redes sociais para te difamar e ameaçar.”

“No meu círculo, a coisa chegou ao seguinte ponto: para alguns, ruim por ruim [Bolsonaro ou Lula], melhor o Lula.”

“Quem escolhe candidato é o sistema político. Mesmo quando empresa dava muito dinheiro para campanha, isso não tinha tanta relevância. Se tivesse, os tucanos não tinham perdido tanta eleição. Agora, sem dinheiro e com rede social, a influência é ainda menor.”

“Empresário não articula nada, isso não existe faz tempo. O Brasil é heterogêneo e não tem organização empresarial, como nos EUA. Nem lá eles têm poder de ungir candidato.”

“Tem uns que se engancham num candidato, todo o mundo sabe quem são. Não é movimento organizado. Acho que existe mais influência em ideias do que militância política. Mas nem apoio a ideias liberais tinha até o desastre da Dilma.”
“Empresa tenta influenciar quem se lançou, quem ganhou? Tenta. Mas isso é desorganizado. Faz lobby no Congresso.

Faz programa de governo? Existem só dois ou três diferentes, fora detalhes. Mas isso [programas] já está dado, no debate.”

“Vocês vêm perguntar [das preferências], mas é óbvio. Aí aparece na mídia, empresários isso, empresários aquilo. Mas o que isso muda [na eleição]? É óbvio que podem ter influência, de outro jeito. Dependendo de quem vai ganhar, alguém segura o investimento porque teme o futuro, dólar sobe, o dinheiro sai [do país]. Mas isso não é política. É cálculo racional.”

“O empresário responsável vai preferir alguém que preserve a estabilidade econômica, que dê um jeito no ambiente de negócios. Tem gente que olha o que pode ganhar pessoalmente com o governo, mas não são tantos. Nesse jantar do Bolsonaro tinha bolsonarista ou quem sempre está com qualquer governo, talvez até com o PSOL.”

“O empresariado votou em Bolsonaro? No final, votou mesmo contra o PT. A maioria queria o Alckmin. Mas não tem voto qualificado, o eleitorado como um todo faz a escolha. Entre as opções que sobraram, isso que você chama de elite fez a opção que parecia pragmática. Foi um erro, mas foi o que foi.”

“Há uma insatisfação geral com a incompetência generalizada, fora um ou outro, Agricultura, Infraestrutura. Decepção absoluta com o Guedes. Não o conhecia até a eleição. Quando vi aquele discurso megalomaníaco e irrealista dele, lá na posse, senti que não ia dar certo.”

“Lula é muito inteligente. Mas fala muita bobagem sobre economia e tenta agradar a qualquer plateia, empresário ou esquerda. Então, a gente não sabe o que ele vai fazer. Incerteza é ruim para o país. E o Lula envelheceu, teve a prisão, a doença. O tempo passa, e a gente não percebe que perdeu certas capacidades.”
“O que tem mais é conversa informal, para tirar a temperatura, participação em vários grupos de WhatsApp. A gente convida político para ouvir [não cita nenhum de esquerda], agora até general da reserva.”

“A maioria nos grupos de [conversa] de que faço parte pensa uma agenda institucional, também de preocupação com reforma tributária pelo lado social, com educação, com renda mínima, com o conflito político radicalizado. Mas ter uma economia de mercado funcional não vai impedir o Brasil de ser mais justo. Ao contrário.”

“Tem conversa, mas não tem pressão política nos partidos para escolher esse ou aquele. Em quase 40 anos de empresa, nunca vi. Os políticos vivem em outro mundo. É ilusão de certos empresários e de intelectual de esquerda ver influência por aí.”

“Acho que um grupo organizado e público de apoio a candidatura dificilmente vai ter. Se tiver, vira alvo. E vai parecer que o ‘capital está querendo mandar’ no Brasil.”


Elio Gaspari: O governo já soube lidar com epidemia

Com um pé no atraso e outro no progresso, ditadura promoveu vacinação contra meningite em paralelo a ações de censura. Bolsonaro tem os dois pés no atraso

Sérgio Buarque de Holanda já ensinou: conservador é uma coisa, atrasado é outra. Bolsonaro e seu pelotão têm os dois pés no atraso. Outro dia, o jornal francês “Le Monde” publicou uma reportagem que faria a alegria do general Eduardo Ramos, aquele que não gosta de fotografias de sepultamentos. Louvava a campanha de vacinação brasileira que imunizou 80 milhões de pessoas em poucos meses com uma mistura de “ambição, audácia e paixão”. Só que isso aconteceu em 1975, quando o Brasil estava numa ditadura que tinha o outro pé no progresso.

A reportagem está no site do jornal (só para assinantes), mas na rede há um trabalho que conta a história da fabricação de uma vacina contra a meningite pelo laboratório francês Mérieux [Histoire du développement, de la production, et de l’utilisation du vaccin contre la méningite A (1963-1975), de Baptiste Baylac-Paouly ].

Em 1973, quando a epidemia de meningite ainda era chamada de surto no Brasil, o laboratório francês testava uma vacina e a aplicava com sucesso na África. No ano seguinte, a ditadura lidou com a doença.

O pé fincado no atraso, tendo reconhecido a epidemia (dois mil casos em São Paulo), chamava as notícias de “alarmantes”. Em julho do ano seguinte, a censura vetou uma longa reportagem de Clóvis Rossi. Ela falava de 200 pessoas mortas naquele mês.

Com o pé que tinha no progresso, em agosto, o ministro da Saúde, Paulo de Almeida Machado, foi a Lyon, onde ficava a sede do Mérieux. Em São Paulo morriam vinte pessoas por dia no hospital Emílio Ribas. Sem apostas em tratamentos precoces ou parolagens, o Brasil correu atrás da vacina, que só era produzida pelo Mérieux. Tratava-se de imunizar 80 milhões de pessoas. Não se discutiram detalhes nem dinheiro. Os dois lados confiaram na boa-fé.

O laboratório de Lyon não tinha instalações para produzir 60 milhões de vacinas em menos de um ano. Tratava-se de multiplicar por cem sua capacidade. Fez as obras e começou a operar em 90 dias. Em meados de setembro (um mês depois da visita de Almeida Machado), remanejando estoques, despachou dois milhões de vacinas e começou a imunização de 500 mil crianças em São Paulo. O governo começou uma campanha nacional e, em 12 dias de janeiro de 1975, foram vacinadas quatro milhões de pessoas no Rio de Janeiro. No carnaval daquele ano os casos de meningite na cidade começaram a cair.

O Mérieux associou-se ao Instituto Oswaldo Cruz, e produziram dez milhões de vacinas por mês. Em abril (nove meses depois da ida de Almeida Machado a Lyon), começou a vacinação em São Paulo e, em cinco dias, foram vacinadas 10,3 milhões de pessoas.

Em julho de 1975, o Brasil tinha recebido 90 milhões de vacinas. Estava concluído um dos maiores programas de vacinação em massa do mundo.

Como a ditadura tinha um pé no progresso e outro no atraso, um mês antes da ida de Almeida Machado a Lyon para descascar o abacaxi, o Serviço Nacional de Informações reclamava das tais “notícias alarmantes”:

“Esses fatos, constantemente explorados pelos meios de comunicação social, e, em particular, as sucessivas notícias divulgadas sobre a existência de doenças graves, principalmente sobre a meningite, normalmente acompanhados de boatos, poderão criar ou manter a população em estado de insegurança, intranquilidade e apreensão, que pressupõe uma falsa noção de que, quando houver necessidade, não se contará com assistência médica, hospitalar ou preventiva por parte dos setores responsáveis do País.”

Passou o tempo, a epidemia é outra, e o atraso prevaleceu.

Eremildo, o idiota

Eremildo é um idiota e sempre acreditou em todas as teorias de conspiração de Ubaldo, o Paranoico, inesquecível personagem do humorista Henfil.

Quando o idiota soube que o governo tem planos para transformar o prédio do Museu Nacional do Rio num simulacro de Palácio Imperial, teve seu momento de Ubaldo, associando paranoia à sua cretinice.

A paranoia seria a seguinte: como em 2022 comemora-se o bicentenário da Independência e em São Paulo será reinaugurado o Museu do Ipiranga, seria aconselhável evitar que o governador João Doria (o da vacina chinesa que não seria comprada) sediasse uma festa.

A cretinice é outra.

Antes de pegar fogo, em 2018, o Museu Nacional funcionava no casarão onde moraram D. João VI e os dois D. Pedro. No incêndio, as poucas lembranças dos imperadores viraram cinzas. Do prédio, sobrou parte da carcaça da edificação que um mercador de negros escravizados doou (ou foi obrigado a doar) a D. João. Ademais, o que havia ali era um museu de História Natural, com meteorito, múmias e objetos indígenas.

Museu Imperial, o Brasil já tem um, e é muito bom. Fica em Petrópolis, no casarão onde D. Pedro II se protegia do calor e das epidemias. Lá estão seu trono, sua coroa, as carruagens e a luneta com que via as estrelas. Não há por que mexer nele.

Tirar peças de um acervo para satisfazer vaidades políticas é oportunismo.

BBB no Supremo

Em julho, Bolsonaro indicará o substituto do ministro Marco Aurélio Mello para a vaga no Supremo Tribunal Federal.

Essa escolha era feita com discrição, comparando-se currículos, mas as coisas mudaram. O procurador-geral, Augusto Aras, e o advogado-geral da União, André Mendonça, disputam a vaga com tamanha ferocidade que o espetáculo assemelha-se às disputas do programa BBB, para ver quem vai para o paredão.

Privataria na pandemia

A pandemia estimulou a mobilização de empresários para colaborar com a saúde pública. Estimulou também a entrada de vigaristas. Basta lembrar o aparecimento de duas girafas. No ano passado, havia um inglês oferecendo 40 milhões de testes por mês. Em janeiro, apareceram 33 milhões de vacinas da AstraZeneca que seriam intermediadas por um fundo a um consórcio de empresas que repassariam metade ao SUS e ficariam com a outra parte. A dose sairia a US$ 23,79, enquanto no mercado ela custava US$ 5,25. A AstraZeneca disse que não vendia as vacinas, e o fundo denunciou a malandragem.

Finalmente, em março, vigaristas arrebanharam otários para serem vacinados clandestinamente numa garagem da Viação Saritur, em Belo Horizonte. Cada um pagou R$ 600 (cerca de US$ 100) pela picada. A enfermeira-frentista esteve presa, e os otários esconderam-se.

Em princípio, empresário entende de dinheiro. Quem quiser meter sua reputação nessas aventuras deve saber que elas têm duas balizas: numa ponta ficou o Itaú Unibanco, que tirou R$ 1 bilhão do seu caixa, formou um conselho e deu-lhe poderes para distribuir o dinheiro. Na outra, está a turma da garagem da Saritur. No meio, ficam as girafas dos testes ingleses, das vacinas do consórcio, dos projetos de isenções tributárias, leitos privatizados e outros avanços na Bolsa da Viúva.

Como dizem os crupiês: “Façam seu jogo, senhores”.


Ricardo Noblat: À falta do que fazer, Bolsonaro passeia e ataca João Doria

O fim de semana do presidente da República

Jair Bolsonaro foi às compras no fim de semana. Às compras de corações e mentes disponíveis em São Sebastião, região administrativa do Distrito Federal, a 26 quilômetros de Brasília.

Fez o de sempre e disse o de sempre. Comeu galeto assado do lado de fora de um estabelecimento comercial onde tentou entrar, mas foi barrado por uma empregada: “Não pode”.

Ali, respeitava-se o mínimo de distanciamento social. Sem máscara, e acompanhado de ministros sem máscaras, visitou refugiados venezuelanos a pretexto de conhecer como eles vivem.

Com um cachorrinho no colo, tentou conquistar a simpatia do grupo ao comentar: “Não tem mais animais na Venezuela. Comeram tudo. Não é só gato e cachorro não, até cavalo”.

Com direito à transmissão ao vivo por seus canais na internet, voltou a criticar a decisão do Supremo Tribunal Federal que avalizou o fechamento de templos e igrejas durante a pandemia.

Disse: “Lamento os superpoderes que o Supremo deu aos estados e aos governadores para fechar, inclusive, igrejas de cultos religiosos. É um absurdo dos absurdos”.

E para não perder a viagem, atirou novamente no governador João Doria (PSDB), seu alvo preferencial desde que o Instituto Butantan começou a fabricar a vacina chinesa Coronavac:

– Parece que esse patife de São Paulo quer quebrar o estado, quebrar o Brasil, para depois me apontar como responsável.

Em sua defesa, saiu-se com esta: “O pessoal que me acusa de ditador nunca viu uma palavra minha e um só gesto que eu fugisse da Constituição”.

Uma vez que o passeio já rendera boas imagens, embora a audiência tenha sido fraca, deu-se por satisfeito e foi embora. Enquanto isso, com passe livre, a Covid-19 fazia mais vítimas.


Rolf Kuntz: Fome no celeiro do mundo

Governo inepto e irresponsável faz o País reviver o pesadelo de 1983

A fome assola o Brasil, grande produtor de comida, um dos países com maior potencial para dar segurança alimentar a um mundo cada vez mais povoado. Com milhões de famílias sem renda para comer o mínimo necessário, a sociedade brasileira revive o pesadelo de 1983, o ano da grande crise da dívida externa. Naquele momento, como agora, campanhas de solidariedade, conduzidas por igrejas, sindicatos, grupos civis e também por famílias com pelo menos uma pessoa empregada, garantiram a sobrevivência de muita gente. Supermercados passaram a vender asas de frango, facilitando algum consumo de carne aos mais necessitados. Mas nem todos aguentaram a pressão, e os suicídios aumentaram.

Passados quase 40 anos, o jornalista econômico é de novo forçado a descrever quadros tétricos. Há, naturalmente, diferenças importantes – com alguns detalhes muito piores. A fome, hoje, é muito mais chocante, muito mais escandalosa, porque a oferta de alimentos é muito maior. Com ou sem crise, com maior ou menor inflação, a comida era mais cara no começo dos anos 1980. Os frutos da revolução agrícola, iniciada na década anterior com a Embrapa e com políticas de modernização, só se tornariam visíveis mais tarde.

Com enormes ganhos de produção e de produtividade, a alimentação consumiria, nas décadas seguintes, uma parcela menor dos orçamentos familiares, deixando mais espaço para outros gastos. No início dos anos 1990 alguns índices de inflação foram reformulados para refletir a nova ponderação das despesas.

A melhora dos padrões de vida foi uma das consequências, mesmo com a persistência de amplas desigualdades. Graças aos ganhos de eficiência, a produção agropecuária tem crescido, nas últimas quatro décadas, muito mais que as áreas ocupadas.

Entre as safras 1979-1980 e 2019-2020, a colheita de grãos passou de 50,87 milhões de toneladas para 257,02 milhões, enquanto a área cultivada cresceu de 40,16 milhões para 65,92 milhões de hectares. O rendimento mais que triplicou, passando de 1.267 quilos por hectare para 3.899. Em outras culturas, assim como na produção dos vários tipos de carnes, a eficiência também cresceu.

Com os ganhos de produtividade, o Brasil tornou-se um dos maiores exportadores de alimentos e de matérias-primas de origem agropecuária. Ao mesmo tempo, a oferta de alimentos ao mercado nacional cresceu. Os preços, apesar das oscilações, tenderam a diminuir em termos reais. Isso foi fundamental, é preciso insistir, para a demanda crescente de outros bens de consumo, como roupas, equipamentos domésticos, produtos eletrônicos e veículos. O mercado de usados, no qual o primeiro carro foi comprado por milhões de brasileiros, foi por muito tempo essencial para a expansão dos negócios no setor automobilístico.

Avanços continuaram, nestes quase 40 anos, apesar das muitas crises desse período, algumas de origem externa, outras geradas no País. O Plano Real, iniciado em 1994, criou condições para contas públicas mais arrumadas, inflação mais contida e políticas mais amplas de inclusão social. Apesar de tropeços importantes, em nenhuma dessas crises, nem mesmo na recessão de 2015-2016, houve episódios de fome parecidos com o de 1983. O grande retrocesso é agora indisfarçável.

Pelos dados oficiais, havia 14,3 milhões de desempregados, 14,2% da força de trabalho, no trimestre móvel encerrado em janeiro. Uma contagem mais ampla indicou 32,4 milhões de trabalhadores subutilizados, 29% da população economicamente ativa. A economia brasileira estava em queda antes da pandemia e sua recuperação, neste ano, será insuficiente para o retorno ao patamar, já muito baixo, de 2019. Não há surpresa, mas o governo agiu como se a crise devesse terminar em 31 de dezembro de 2020.

O País entrou mal em 2021, com o consumo em queda, a indústria emperrada e uma das maiores taxas de desemprego do mundo capitalista. O auxílio emergencial, já reduzido a partir de setembro, foi zerado em 1.º de janeiro, deixando dezenas de milhões de pessoas sem renda e sem perspectiva de melhora.

Os preços de alimentos haviam aumentado nos meses anteriores. Embora tenham subido menos neste início do ano, continuaram elevados. Ficou difícil abastecer as panelas e a fome chegou. Sem dinheiro para o gás, famílias passaram a cozinhar seu pouco alimento em fogões a lenha improvisados, em condições assustadoras, mostradas pela televisão.

Campanhas de socorro têm distribuído alguma comida, mas sem eliminar o problema e sem evitar, no primeiro trimestre, o retorno à fome de 1983. Atolado na incompetência, o governo central só retomou o auxílio emergencial há poucos dias. Favorecida pela inépcia e pelo negacionismo, a pandemia continua solta, a mortandade cresce e a economia se arrasta, enquanto o presidente se concentra em seus interesses eleitorais e familiares. Em 1983 havia pelo menos a esperança de retomada econômica e de continuidade da abertura política, enfim concluída no meio da década. Hoje o discurso mais ouvido no centro do poder, em Brasília, extravasa ambições autoritárias.

*Jornalista