STF

Ricardo Noblat: Aproveite o fim de semana, Lula!

Ninguém fez mais do que ele para estancar a sangria da Lava Jato

Não foi Lula que afirmou que era preciso “estancar a sangria” provocada pela Lava Jato. Ou dito de outra maneira: acabar com a Lava Jato, ou reduzir seus efeitos ao mínimo. O autor da frase famosa foi o senador Romero Jucá (RR), presidente do PMDB.

Mas ninguém, nem mesmo Jucá, nem mesmo o presidente Michel Temer, nem mesmo ultimamente o ministro Gilmar Mendes, fez mais para “estancar a sangria” do que Lula. Fez o diabo para escapar da Lava Jato e ser candidato outra vez à presidência da República.

Pressionou a então presidente Dilma Rousseff para que ela freasse as ações da Polícia Federal, do Ministério Público e da Procuradoria Geral da República que o ameaçavam, como se de fato Dilma pudesse fazer isso. Não podia. E não pareceu interessada em fazer.

Lula pediu e levou a cabeça de José Eduardo Cardoso, ministro da Justiça, seu antigo desafeto, por achar que ele dava moleza à Lava Jato. Por achar que na chefia da Casa Civil o ministro Aloizio Mercadante era um zero à esquerda, também pediu e levou sua cabeça.

Pôs Jaques Wagner, homem de sua confiança, no lugar de Mercadante. E quando temeu ser preso pelo juiz Sérgio Moro, aceitou docemente constrangido o convite de Dilma para substituir Wagner e ganhar assim o direito de só ser investigado pelo Supremo Tribunal Federal.

Sem falar do que ficou registrado em célebre telefonema trocado por ele com um amigo – um ataque pesado ao Supremo a quem se referiu como “corte acovardada”. Conspirou, sem sucesso, para que os ministros do Supremo mudassem de comportamento, e quase conseguiu.

Resta-lhe aguardar a hora de ser preso. Sua defesa pouco terá o que fazer até lá. Esgotou-se quase todo o estoque de recursos ao seu alcance. Se tudo correr como parece escrito nos autos dos doutos, este será o último fim de semana de Lula em liberdade. Pelo menos por um bom tempo.


Míriam Leitão: Cármen e Rosa

O voto da ministra Rosa Weber surpreendeu até colegas do Tribunal, de um lado e de outro. Ela negou o habeas corpus ao ex-presidente Lula, mas ao mesmo tempo deixou no ar a ameaça de votar contra a prisão após a segunda instância, quando a questão for tratada de forma teórica. Ao final do voto dela, Lula estava mais perto da prisão, mas a Lava-Jato permanecia sob risco.

O país estava ontem, no começo da noite, vivendo uma situação dramática. Ficou próxima a prisão de Lula, um líder extremamente popular, ex-presidente, em pré-campanha eleitoral para novo mandato e condenado por corrupção em duas instâncias.

Quando a ministra Rosa terminou seu torturante voto, no qual ora visitava uma ideia, ora outra, em “jurisdiquês” implacável, o ministro Marco Aurélio fez uma crítica direta à presidente do STF, Cármen Lúcia, e pediu que constasse nos autos a sua afirmação de que fora a “vitória da estratégia”.

O que Marco Aurélio quis dizer é que, se a ministra Cármen tivesse colocado em discussão as duas ações declaratórias de constitucionalidade (as ADCs) relatadas por ele, teria sido mudado o entendimento da prisão após a segunda instância. Mas ao não colocar a questão de fundo em novo debate, prevalece ainda o entendimento de 2016. E foi por isso que Rosa Weber passou por cima do que acredita, que é a prisão apenas após esgotados todos os recursos, e negou o habeas corpus. Pelo princípio da “colegialidade".

Rosa avisou que, quando forem julgadas as ADCs, votará com sua convicção. Ela disse que a jurisprudência pode mudar, e que o lugar para fazer isso é o plenário do Supremo. Ontem deixou que falasse em seu voto a “voz coletiva".

Tudo permaneceu precário, todavia. O ex-presidente Lula pode ser preso, mas ficará a ameaça de tirarse do combate à corrupção o instrumento que levou a Lava-Jato até o ponto em que ela chegou. Nos últimos dias, colegas do tribunal consideravam que Rosa Weber votaria pela concessão do habeas corpus e pela mudança do entendimento da corte sobre o momento da execução da pena.

Mas o que estava em discussão era mais profundo e os votos dos ministros Alexandre de Moraes e Luiz Roberto Barroso foram suficientes para mostrar isso. O Brasil sempre teve execução da pena após a segunda instância. Segundo Moraes, nos 30 anos da Constituição de 1988, em 23 deles, 75% do tempo, prevaleceu esse entendimento. Barroso foi mais longe e falou que tem sido assim desde 1941. O tempo em que vigorou a interpretação de que só ao fim de todos os recursos é que se pode impor o cumprimento da pena foi mínimo: de 2009 a 2016.

Os casos narrados pelo ministro Barroso falam por si. O do jornalista Pimenta Neves que dez anos depois de condenado em segunda instância de um crime do qual era réu confesso, permanecia fora da prisão pelos truques de recursos incabíveis que deixaram a prisão em suspenso. O do suplente que matou a deputada e sua família para ficar com o mandato. Pessoas que se aproveitaram das brechas da Justiça para ficarem impunes. Em apenas dois anos, houve mil casos de prescrição de pena no STJ e STF. A duração interminável dos processos leva à impunidade.

Cada um dos votos foi bem preparado e fundamentado porque se sabia que o que estava em debate era suspender ou não a pena de prisão contra um ex-presidente. Mas, além disso, era para definir que tipo de ordenamento jurídico o país terá.

O ministro Gilmar Mendes, em seu voto, tentou encontrar um caminho do meio e propôs que fosse considerado “transitado em julgado” o processo que tivesse no mínimo o julgamento encerrado no STJ. O ministro Barroso disse que era contra, mas se fosse essa a decisão, que pelo menos o cumprimento da pena deveria começar após a primeira decisão terminativa do STJ.

O importante ontem foi a persistência no esforço para combater o risco da impunidade que sempre esteve tão presente na história brasileira. Seria “devastadoramente negativo", para usar palavras do ministro Barroso, se o STF derrubasse o cumprimento da pena após a 2ª instância. Mas o risco permanece. O fio que levou o país para este momento foi tecido pela ministra Cármen. Tanto Cármen quanto Rosa foram escolhidas por governos petistas, um bom sinal da independência da Justiça.


Merval Pereira: Vitória da coerência

Vimos ontem no Supremo Tribunal Federal (STF) duas mulheres se impondo com delicadeza e firmeza a atitudes surpreendentemente grosseiras de dois ministros. É verdade que Marco Aurélio Mello estava indisposto com qualquer voto contrário à sua posição e já havia interrompido colegas que votavam contra o habeas corpus de Lula, mas foi com a ministra Rosa Weber e com a presidente Cármen Lúcia que ele se excedeu, inconformado com a derrota anunciada.

Sempre irônico, insinuou que a ministra Rosa dera um voto confuso, que ele até o final não percebera para que lado ela estava indo. A ministra, conhecida por sua gentileza, respondeu com altivez, admitindo que existem pontos de vista diferentes. Mas não deixou barato, registrou sua coerência em mais de 40 anos de magistratura. Sem falar na coerência no caso específico do habeas corpus, pois ela já ressaltara que sempre seguiu a jurisprudência prevalente no Supremo.

Os ministros Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski não se conformaram quando a derrota ficou desenhada. Depois de interromper criticamente Rosa Weber, o ministro Marco Aurélio acusou a presidente Cármen Lúcia de ter vencido por uma estratégia estabelecida, ao não ter pautado as Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) sobre prisão em segunda instância.

A presidente Cármen Lúcia também evitou entrar em atrito com ele e Lewandowski, que reclamou de que havia um pedido para colocar as ADCs à frente. Ela simplesmente disse que a prioridade era do habeas corpus, e que havia conversado com ele sobre isso.

O fato é que alguns dos ministros que queriam dar o habeas corpus a Lula armaram um ambiente que, teoricamente, ajudaria a ministra Rosa Weber a votar em caráter abstrato, reafirmando seu voto de 2016 a favor da prisão apenas após o trânsito em julgado. O ministro Gilmar Mendes, a pretexto de ter que viajar para Portugal, pediu para antecipar seu voto e lançou a tese de que o plenário do Supremo poderia rever a jurisprudência, pois é o local em que todas as questões podem ser reabertas.

Foi apoiado por Marco Aurélio Mello e Ricardo Lewandowski, no que parecia uma manobra exitosa de mudar o rumo do julgamento, contra o que havia dito o relator Edson Fachin, apoiado pela presidente Cármen Lúcia. Os dois destacaram que estavam ali para julgar o habeas corpus específico do ex-presidente Lula. Mais adiante, o ministro Dias Toffoli retomou essa tese, mas a ministra Rosa Weber já não havia sido apanhada na armadilha.

Ela deixou claro desde o início de seu voto que considerava estar julgando um habeas corpus específico para o ex-presidente Lula, e recorreu ao respeito da colegialidade, que é uma tese recorrente em seus votos, e deu uma aula de como se curva à maioria dentro do critério de que o estado de direito necessita de “estabilidade” da jurisprudência e não pode estar sujeito a “variações frívolas”. Para ela, a segurança jurídica é valor característico da democracia, do estado de direito e do próprio conceito de Justiça.

A ministra teve o cuidado de ressaltar, logo no início de seu voto, que seria a quinta a votar, deixando claro que ela não daria o voto de condenação final. E salientou que um ministro não pode julgar por preferências pessoais, deixando claro que não votaria de acordo com o grupo político que a indicou ao Supremo — a então presidente Dilma Rousseff, sua amiga.

Com a decisão do Supremo, o ex-presidente Lula deve ser preso dentro de alguns dias, no máximo dez. Os advogados ainda têm prazo para impetrar o que se chama ironicamente de “embargos dos embargos”, um instrumento meramente protelatório, que é negado constantemente pelo TRF-4. Encerrado esse último ato, o juiz Sergio Moro receberá a ordem para determinar o início do cumprimento da pena.

Provavelmente ficará pouco tempo lá, pois a defesa deverá entrar com novo habeas corpus no Supremo Tribunal Federal, que deve cair na Segunda Turma, da qual faz parte o ministro Edson Fachin. Se ele levar o caso para a Turma, provavelmente Lula receberá o habeas corpus, podendo ser decretada sua prisão domiciliar ou outras medidas cautelares, como tornozeleira eletrônica.


William Waack: Suprema perplexidade

Torna-se claro também que a desmoralização das instituições chegou ao STF

Vamos em primeiro lugar ao que não resta dúvidas. Qualquer decisão do Supremo Tribunal Federal sobre prisões após 2.ª instância causaria imenso descontentamento. A causa é simples: o STF deixou há tempos de ser um colegiado e se transformou num aglomerado de 11 ministros que já nem se dão ao trabalho de disfarçar que algumas de suas principais decisões obedecem a critérios políticos. Inclusive de última hora, subordinados ao “clamor popular” ou “sentimento da sociedade”.

Tornou-se claro também que a desmoralização de instituições políticas chegou ao Supremo – hoje percebido como causa de notável insegurança jurídica. A politização da Justiça e o ativismo (ou o “neopunitivismo”, como preferem alguns) de integrantes de algumas instâncias judiciais, além do Ministério Público, já são até conceitos acadêmicos examinados em eventos e seminários.

Vamos então ao que se tornou a grande dúvida. Se a política tomou conta do STF, cujas decisões impactam violentamente a política, como entender a formação de maiorias entre os 11 ministros? Apenas para comparação, não é difícil antecipar como votarão integrantes da mais alta corte americana, por exemplo, em função de biografia política e obra acadêmica de cada um deles. No Supremo brasileiro já não mais existem essas “certezas”.

Precisamos entender como os ministros captam, percebem, interpretam o que um deles chamou de “sentimento da sociedade”. E aí a confusão é tão grande e a desorientação tão completa como as que se registram no debate político brasileiro. Na hipótese mais benigna, eles entendem a política brasileira hoje como um choque de forças alinhadas a princípios como a estrita separação dos poderes (e respeito total à letra da Constituição) em oposição a doutrinas como a evolução do direito em função de demandas sociais (portanto políticas) e à necessidade de “flexibilizar” garantias, ou de reinterpretá-las, para favorecer a regeneração da política (via combate à corrupção).

Na hipótese mais realista, o choque de princípios foi ofuscado há muito por rivalidades e antipatias pessoais, lealdades políticas, prestação de favores e aquilo que alguns especialistas apontam como pura e simples incapacidade técnica de alguns integrantes da mais alta Corte. Usando linguagem dos economistas, as artimanhas para pautar ou não pautar votações ignoram a lei das consequências não intencionais (obtém-se até o contrário do que se pretende). E pioram uma atmosfera ainda mais exacerbada, à qual os ministros julgam que tem de responder sem parecer que estão respondendo.

O resultado, quando se observa as voláteis maiorias no STF, é a sensação de orfandade provocada pela falta de lideranças articuladas e que comandem respeito – o mesmo preocupante fenômeno que se registra “lá fora”. A bagunça política atual, com autoritários dizendo que imporão liberalismo a pontapés, e não autoritários dispostos a aceitar o arbítrio e o desrespeito a princípios consagrados contanto que alguém vá para a cadeia, tornou o STF um curioso espelho do que vai se espalhando depressa como atitudes frente às decisões políticas e eleitorais diante de todos nós.

Atitudes, em outras palavras, relativas a um “sentimento”. Que, no momento, se manifesta nas pesquisas qualitativas atentamente estudadas por marqueteiros em insatisfação (sobretudo entre os jovens), impotência frente à situação, insegurança, descrédito nas principais instituições, baixa autoestima e ainda grande dificuldade em descrever o perfil ideal do próximo presidente, contanto que ele seja ficha limpa. Não serve de consolo nem para justificar qualquer decisão do Supremo, mas os ministros parecem tão perplexos como todos nós.


Eliane Cantanhêde: 'Mudar para quê? Mudar para quem'

O julgamento dessa quarta-feira do Habeas Corpus para evitar a prisão do ex-presidente Lula consolidou a percepção de um acordão para tentar “estancar a sangria” e salvar a pele não só de Lula, mas de todo o mundo político envolvido na Lava Jato. A “prova” desse acordão foi a aliança surpreendente, apesar de não inédita, entre três velhos adversários na corte: Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio Mello.

Gilmar antecipou seu voto para voar de volta para Portugal e para pavimentar o caminho para Rosa Weber conceder o HC de Lula, dando-lhe o argumento de que não estava em jogo só um HC, mas um decisão de repercussão geral. Rosa é contra a tese de prisão em segunda instância, mas votou contra todos os HC de réus neste caso, com exceção de um, para seguir o entendimento da maioria do plenário em 2016. Derrotada, mas fiel à maioria.

Discretíssima, Rosa fez suspense até mesmo durante seu longo voto e só desfez esse suspense no finzinho da sua leitura. Contra Gilmar, ela considerou que o que estava sendo julgado era um HC concreto, específico, não a mudança geral da norma. Logo, prestigiou de novo o entendimento vigente da maioria.
Marco Aurélio e Lewandowski deram um pulo, mas era tarde demais. Como disse a presidente Carmen Lúcia, Rosa tinha sido claríssima contra o HC e a garantia de liberdade de Lula. Deixou, assim, um placar de 4 a 1 e a perspectiva de derrota de Lula.

“Mudar por quê? Mudar para quem?”. A dúvida manifestada por Luís Roberto Barroso resumiu a longa sessão de ontem e já vinha sendo repetida por Carmen Lúcia e pelo relator da Lava Jato, Edson Fachin, argumentando que o tribunal já votou três vezes a prisão em segunda instância, a última vez em 2016, e não houve fato novo nenhum que justifique uma revisão tão prematura.

A conclusão, sobretudo na subjetiva “sociedade”, seria de que o Supremo Tribunal Federal da República estaria mudando seu próprio entendimento para favorecer um único réu todo poderoso, ou seja, rendendo-se à força política de Lula e às pressões de seus aliados, que se autointitulam “de esquerda”.

Desse no que desse, porém, havia duas certezas dentro e fora do plenário do Supremo. A primeira é que qualquer resultado geraria fortes reações. A segunda é que a guerra para livrar Lula e os políticos da Lava Jato continua. E vai longe.


Ricardo Noblat: A fala do general e a quem ela serve

Esbaldaram-se com a fala as novas vivandeiras de quartéis
Cuidadosamente mal redigida para disfarçar o que diz, alvejar o alvo certo, porém oculto, e ameaçar como se apenas advertisse, a nota assinada pelo general Eduardo Villas Bôas, comandante do Exército, e postada em sua conta pessoal no twitter, porque é de nota que se trata, foi uma clara, descabida e perigosa interferência na vida institucional do país.
O chefe das Forças Armadas, segundo a Constituição, é o presidente da República. É ele, e somente ele, portanto, quem em nome delas pode falar sobre temas políticos de repercussão geral. Aos comandantes das três armas – Exército, Marinha e Aeronáutica -, cabe falar sobre assuntos administrativos e aqueles diretamente afeitos aos cargos que ocupam.
Militar não é igual a civil. O que os distingue não é só a farda que um veste e o outro não. Militar tem acesso a armas pesadas, pilota brucutu, maneja tanques e é treinado para matar. Se um deles fala qualquer coisa, soa diferente do civil que diga o mesmo. Porque um tem a força capaz de pulverizar literalmente quem quer que seja. O outro, só a força da palavra.
A fala do general Villas Boas não foi a de um chefe que se dirige aos seus subordinados. Foi um pronunciamento à Nação em nome do “Exército brasileiro” e a propósito da situação que vive o país. Com o objetivo de assegurar que o Exército compartilha “o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade” e de respeito às leis e à paz social.
Não faltou na fala do general a provocação travestida de pergunta que ele dirige diretamente “ao povo” e a instituições não nomeadas: “Quem realmente está pensando no bem do país e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais?” Para, por fim, afirmar que o Exército “se mantém atento às suas missões institucionais”.
O momento escolhido por Villas Bôas para dizer o que disse não se deveu ao acaso. O que ele disse tampouco guarda qualquer grau de parentesco com o apelo à serenidade feito na véspera pela presidente do Supremo. As ruas estavam repletas de manifestantes. E o Supremo, a menos de 24 horas de retomar um julgamento que galvaniza o país e pode incendiá-lo.
A reação do presidente da República à fala do general foi nenhuma. Os políticos a engoliram a seco. Uns poucos ousaram comentá-la na tentativa de ajustá-la às suas próprias conveniências. Em compensação, esbaldaram-se com a fala as novas vivandeiras de quartéis que em nome da ordem pregam a desordem e o colapso da democracia entre nós.

Elio Gaspari: O STF e a turma dos sem-instância

No andar de cima a sentença só vale na última instância, no de baixo, fica-se na cadeia sem instância nenhuma
O Supremo Tribunal Federal julgará hoje o habeas corpus de Lula, condenado pelo TRF-4 a 12 anos de prisão. Por trás e acima desse recurso está a questão do cumprimento de uma sentença depois que ela passou pela segunda instância. O tribunal já decidiu nesse sentido, mas alguns ministros mudaram (ou não mudaram) de opinião, levando a bola de volta ao centro do campo. Os doutores são todos adultos e sábios. Suas decisões são finais, e seu argumentos eruditos às vezes são incompreensíveis.
Na questão da segunda instância, trata-se de decidir se um cidadão condenado por um juiz, com a sentença ratificada no primeiro nível superior, deve ir para a cadeia, ou se ele tem direito a continuar solto até que seja apreciado o seu último recurso.
Em juridiquês, o debate é interminável. Na vida real, os 11 ministros do Supremo Tribunal Federal discutem a essência social da Justiça brasileira. Essa questão só esquentou quando o juiz Sergio Moro começou a mandar para a prisão a turma do andar de cima. Isso porque no andar de baixo a história é outra. Quatro em cada dez brasileiros que dormem na cadeia estão lá sem julgamento algum. São os “sem-instância” chamados de “presos provisórios”, gente que não tem dinheiro para pagar a bons advogados. Há 711 mil detentos no país, 291 mil são “provisórios”.
Muita gente torceu o nariz quando o ministro Luís Roberto Barroso disse que há um velho “pacto oligárquico” na raiz das roubalheiras expostas pela Lava-Jato. Os pactos oligárquicos são implícitos e impessoais. Ninguém se apresenta como representante da oligarquia das empreiteiras, pedindo audiência a um burocrata nomeado pela oligarquia política. Apesar disso, os pactos do passado são reconhecidos e estudados, sem ofensas aos mortos. Está nas livrarias “Africanos livres — A abolição do tráfico de escravos no Brasil”, da professora Beatriz Mamigonian. Ela contou um aspecto do pacto oligárquico que sustentou a escravidão no século XIX e expôs a boca-livre da elite do Rio no trato dos negros contrabandeados que eram capturados pelos ingleses ou pelo governo.
A coisa funcionava assim: desde 1831, pela lei, seriam livres todos os africanos chegados ao Brasil. Foram capturados algo como 11 mil negros, transformados em “africanos livres”, obrigados a prestar 14 anos de serviços à Coroa, que os terceirizava para os maganos da Corte. Os concessionários pagavam uma taxa que equivalia a um mês de trabalho do negro, caso o alugassem para outros serviços.
Mamigonian conta o caso de Felício Mina, que foi trazido para o Rio em 1831. Em 1844, estava preso e esperava que os ingleses viessem protegê-lo. Seu concessionário dizia que ele era um ladrão perigoso, por “altivo”, “jamais disposto a humilhar-se”.
Entre 1831 e 1835, o concessionário de Felício explorou um plantel de 15 “africanos livres”. Ele se chamava José Paulo Figueroa Nabuco de Araújo, nada a ver com o pai de Joaquim Nabuco. Talvez algum dos 11 ministros de hoje se lembre dele, pois era titular do Supremo Tribunal de Justiça e escreveu uma “Coleção cronológica das leis do Império do Brasil”. Talvez o doutor não soubesse, mas fazia parte do pacto oligárquico e usufruía dos seus benefícios. (Jornalistas também tinham acesso ao mimo dos negros.)
* Elio Gaspari é jornalista

Rosângela Bittar: Meu doutorado contra o seu

O STF atual dá vez a midiáticos e demagogos
Não é por Lula, Deus ou o Diabo, muito menos em defesa do princípio da prisão após fixação da pena em segunda instância. O Supremo Tribunal Federal está como está não porque pressionado pelas ruas, ou porque resiste a ser vanguarda como querem alguns de seus membros na aplicação das leis (o que isso significa, ministro? Não aplicá-las? Minha parte prefiro em Justiça). Ou, pior, para atender aos reclamos das manifestações populares, no Supremo definidas como o desejo social. Qual das manifestações? A que quer um sim ou a que quer um não? Pelo sim, pelo não, o Supremo pode ficar hoje na coluna do meio.
Pressões sobre o Supremo podem ser feitas e devem ser. Podem ser toleradas e devem ser. Mas seu papel primordial é interpretar a Constituição e, com isso, fazer Justiça.
Não há demérito nessa sua atribuição e ela não deveria estar submetida às ideias, também de alguns de seus membros, que se o Legislativo não legisla, cabe ao Supremo "avançar", inclusive nas atribuições de outro poder, e legislar. Principalmente depois que ganhou a ADPF (ação de descumprimento de preceito fundamental), o Supremo vai fazendo uma nova Constituição.
O resto é campanha para surfar na popularidade que levará os ministros interessados nesse modelo, após cumprir o rito sequencial de presidir o TSE mais à frente e o STF, mais à frente ainda, a alguma candidatura de representação do povo, desta vez correta do ponto de vista do poder em disputa.
Isso tem rendido popularidade, sobretudo, para um ou dois integrantes da Corte que exploram a ideia, em parte verdadeira, que o sistema partidário é intrinsecamente corrupto, um bordão que pega e alimenta boa mídia virtual para seus autores.
Está em jogo a usurpação de poder, aproveitando um momento de extrema fragilidade dos demais. E há os males da composição, da competência, da compostura.
Mesmo juridicamente fraco, o Supremo precisa saber se comportar e não, tal qual pomba-gira sob luzes de holofotes, como se viu em sessão recente, submeter os interessados nos julgamentos a um ataque de personalidade inflada pelo ego.
O STF não pode mandar às favas a Constituição. Se a Justiça não tem credibilidade como tal, onde se vai procurar equilíbrio, discernimento e, ao fim, a própria Justiça?
Neste momento, ainda por cima, a Corte está liderada por personalidades demagógicas, o que só incapacita o colegiado a resistir à baixa política. Lideranças estas que vêm expondo um tribunal em processo célere de enfraquecimento, culminado na sessão anterior à Páscoa que remeteu a tensão política extrema ao dia de hoje. Não quis, ou não conseguiu, assumir seu papel: mais fácil do que a confusão que armou, obrigando ministros a brandir passagens de check-in já feito, poderia, simplesmente, manter a votação na ausência dos viajantes, ou não ter marcado a sessão para aquele dia, ou não ter colocado nenhum assunto à frente da agenda para não atrapalhar o horário do assunto principal. Ou, simplesmente, suspender a sessão porque nunca iniciou nenhuma discussão à noitinha.
A condução do colegiado já foi execrada por dar um voto de minerva que favoreceu um indigitado que, pego na corrupção, caiu no desgosto popular; depois recuperou-se por um voto considerado racional sobre a redação do Enem; novamente na berlinda pelo voto na questão do ensino religioso e agora novamente condenada por permitir que o colegiado chegasse ao ponto de fervura política de hoje. Isso é Supremo?
No plenário, infla-se um bicho-papão criado nas ruas na esteira da disputa política, em seguida torna-se proeminente o autoeleito caçador, que dá o passo seguinte na formação de um pelotão de combate, arregimentando tropa. Porque quer ser referência e, justiça seja feita, no Supremo, com raríssimas duas exceções, nem quem está armado até os dentes, com razão ou sem, tem coragem para ficar sozinho.
A composição do atual Supremo talvez seja uma das chaves para se compreender o que se passa e abandonar de vez as esperanças no resgate de seu papel principal.
O atual é composto por professores e, sobretudo, por advogados se digladiando diante de um júri imaginário em torno de nada, até que retome a leitura enfadonha de seu empolado voto. Até um decano age como promotor e é preciso ter compaixão da sua sina atual, a de exegeta dos votos, tão díspares e cheios de firulas que precisam ser compatibilizados para que a presidência possa proferir o veredito.
Tenta-se esconder o conflito de egos sob um suposto conflito acadêmico entre quem se formou na escola alemã e quem preferiu ficar no sistema anglo-saxão. Mais um ato de desprezo à inteligência do público pagante que, nessa configuração, então, fica à mercê da sorte ou do azar de ter seu processo, para uma decisão monocrática, distribuído a quem tem princípios mais ou menos garantistas, ou respeitam mais ou menos a Constituição e a jurisprudência.
Meu doutorado contra seu doutorado.
Em todas as épocas e composições o Supremo enfrentou dificuldades. Mas eram catedráticos, políticos veteranos e experientes, embaixadores, presidentes da Câmara e do Senado, presidentes de tribunais de Justiça dos principais Estados, e até advogados que passaram pela política. Numas fases, Gallotti, Trigueiro, Bilac Pinto, Baleeiro, Alckmin. Noutras, Célio Borja, Dias Correa, Brossard, Kelly, Lins e Silva, Nunes Leal, Hermes Lima, Vilas Boas, Gonçalves de Oliveira.
Pessoas que emprestavam sua biografia ao Supremo e não lá foram para fazer biografia.
Falta referência e promove sessões de insultos, não de conhecimento jurídico.
Há quem localize o início da degradação no funcionamento da TV Justiça, que expôs em tempo real o performer, o fraco, o esforçado, o advogado de defesa, o promotor, e amplificou a disputa de vaidades. Antes brigavam, afirma-se, mas já saiam do plenário abraçados. Hoje, não, o exibicionismo na TV não permite recuos. Bobagem, está aí, provando o contrário, recente sessão do TRF-4, que mostrou ser possível julgar com transmissão ao vivo sem criar um show de horrores para o qual não quisemos comprar ingresso e expondo apenas conhecimento, comedimento, respeito. Culpar o sofá sempre foi e ainda é piada.

Míriam Leitão: Tendência da véspera

O clima no Supremo nestas horas antecedentes é de que será concedido o habeas corpus ao ex-presidente Lula e derrubada a execução da pena após condenação em segunda instância. Isso terá arrasadores reflexos na vida institucional do país. Mas Lula deve permanecer inelegível. A derrota da 2ª instância não significará um abalo apenas na Lava-Jato, mas na própria atuação do Ministério Público.
A Lei da Ficha Limpa estabelece que após a condenação confirmada por um órgão colegiado a pessoa perde as condições de se candidatar. A eventual mudança do entendimento sobre transitado em julgado não se aplicaria, segundo juristas de tendências diferentes, porque a regra da Lei da Ficha Limpa não é considerada uma pena do ponto de vista jurídico, mas sim o estabelecimento dos requisitos da elegibilidade. Então, Lula, mesmo que vença hoje, permanecerá inelegível porque já foi julgado pelo TRF-4.
Entre os ministros que defendem o cumprimento da pena após a condenação em 2ª instância há pessimismo. Foi o que ouvi nos últimos dois dias. Entre os ministros que querem alteração do entendimento há a ideia de que se estaria corrigindo um suposto erro do STF em 2016. Dos dois lados há a mesma interpretação: de que um habeas corpus a favor do Lula acabará sendo uma mudança de rumo, porque estaria implícita na decisão a repercussão geral, da mesma forma que em 2009 um habeas corpus passou a influenciar os julgamentos seguintes.
No PT há otimismo. Há quem considere que o placar pode ser até de sete votos a quatro se o ministro Alexandre Moraes também votar com a nova maioria. A ministra Rosa Weber deve retornar ao voto que defendeu em todas as vezes que esse assunto chegou ao plenário: ou seja, que só após a última instância é que se pode começar a cumprir a pena. O ministro Luiz Edson Fachin pode tentar separar o habeas corpus em si, do entendimento geral sobre a 2ª instância, mas foi ele mesmo que levou o assunto ao plenário, quando o normal seria deixar para ser discutido na turma. A competência para julgar o habeas corpus negado era da turma.
Nas palavras de um ministro do grupo, que talvez seja derrotado hoje, sem o cumprimento da pena após a 2ª instância o Ministério Público perderá muito de sua força construída em 30 anos.
— O que restará à Procuradoria Geral da República? Ficar fazendo pareceres quando os casos chegarem em Brasília? E o MP o que será, a não ser um departamento da PGR?
Não é o único temor que se tem neste momento. A decisão do ministro Dias Toffoli de dar ao senador cassado Demóstenes Torres o direito de se candidatar novamente foi definido por um dos seus colegas como “não apenas uma brecha, mas a abertura da comporta de uma hidrelétrica”. Na prática, significou que o ministro monocraticamente tornou sem efeito a decisão do Senado que o cassou por falta de decoro. E o Senado poderia recorrer, mas só recorre quem está insatisfeito e entre os políticos muitos torcem para que a impunidade prevaleça. A propósito, o ministro Toffoli é o mesmo que está segurando o fim do foro privilegiado sob o argumento de que o assunto está sendo analisado no Congresso. No caso da cassação de Demóstenes, ele não reconhece o poder do Senado que suspendeu até 2027 os direitos políticos do senador cassado.
A decisão de hoje, se for confirmada, como tudo leva a crer, não é de aplicação automática. Mas se for feita a interpretação de que “transitado em julgado” é só mesmo o fim de toda a enorme lista de recursos, o que pode vir a acontecer é o que houve no caso narrado ontem pela repórter Cleide Carvalho: em 1991 o fazendeiro Omar Coelho Vítor, no meio de uma exposição, sacou da pistola e deu cinco tiros em Dirceu Moreira Filho. Em 2009, o STF entendeu que a presunção de inocência só se esgotaria no último recurso. Ele jamais cumpriu pena e o crime prescreveu. A vítima permanece com uma das balas no corpo.
É evidente que “presunção de inocência” não é direito absoluto contra todas as evidências. É sabido que o mérito de qualquer ação é julgado na primeira e segunda instâncias e que depois disso não se discute mais a culpa, mas questões processuais. É óbvio que se cair o cumprimento da pena após 2ª instância será a confirmação de que o Brasil é o país da impunidade.

Merval Pereira: Maioria de um

O julgamento de hoje no Supremo Tribunal Federal (STF) gira em torno de dois ministros que, pela polarização do plenário, tornaram-se formadores de maiorias ou, como na definição usada nos Estados Unidos, “a maioria de um”.
O ministro Gilmar Mendes é o único dos ministros que mudou de posição desde a votação de 2016, dando a maioria virtual hoje aos que eram contrários à permissão para prisão após condenação em segunda instância.
O falecido ministro Teori Zavascki, que votou a favor da prisão em segunda instância, foi substituído por Alexandre de Moraes, que tem a mesma posição e não alterou a maioria. Já a ministra Rosa Weber, que votou a favor da prisão somente após o trânsito em julgado, tem dado um exemplo de comportamento num colegiado, acatando a maioria que ficou estabelecida naquela votação de 2016.
Dos 28 habeas corpus de condenados em segunda instância que teve de julgar desde então, Rosa recusou 27, mesmo contra sua opinião pessoal. O constitucionalista Gustavo Binenbojm, pela circunstância de fazerem parte de uma Corte radicalmente polarizada, vê uma proximidade entre as experiências da justice Sandra Day O’Connor, a primeira mulher a ocupar uma cadeira na Suprema Corte dos Estados Unidos da América, e as de Rosa, a terceira mulher em nossa História a integrar o STF.
Como hoje no plenário do STF, por razões distintas, a divisão da Suprema Corte entre juízes republicanos e democratas conduzia as votações a virtuais empates em quatro a quatro, colocando a justice Sandra O’ Connor na posição de decidir sozinha grandes questões nacionais, mesmo quando isso significava votar contra a posição dos republicanos. Nomeada por Ronald Reagan, foi criticada por ser contrária ao aborto e acabou acusada de ser a favor, tal a independência intelectual com que agia. Para Gustavo Binenbojm, certo desapego pragmático a qualquer rigidez dogmática na aplicação do Direito transformou O’Connor em swing vote, ou seja, no voto decisivo em inúmeras votações importantes.

Não há no Brasil, como se pode atestar nas principais votações, pelo menos a partir do mensalão, a identificação político-partidária da maioria dos ministros do STF nos mesmos moldes norte-americanos, o que depõe a favor da nossa Corte. Basta ver que na votação de hoje do habeas corpus para o ex-presidente Lula, pelo menos metade dos votos que se supõe sejam dados contra ele virá de ministros nomeados na era petista. E o próprio Gilmar Mendes se valeu de sua posição favorável a Lula para dizer que não pode ser acusado de ser petista.
O constitucionalista Binenbojm define nosso cenário como mais complexo e nuançado, além de marcado por um sério problema de instabilidade jurisprudencial e insegurança jurídica. Essa polarização, analisa ele, coloca Rosa Weber na posição de swing vote: embora tenha votado no julgamento das ações declaratórias de constitucionalidade (ADCs) pela impossibilidade de execução provisória da pena na condenação em segunda instância, tem denegado quase todos os habeas corpus a pacientes nessa situação, “curvando-se, respeitosamente, ao entendimento da maioria de 6 a 5 formada no julgamento preliminar das ADCs”.
À semelhança da atuação de Sandra O’Connor, a Rosa não parece exercer a judicatura vinculada por laços de lealdade aos interesses do grupo político que a nomeou para o STF, ressalta Binenbojm. Ele considera que o fato de ser uma juíza do Trabalho de carreira a deixa à vontade para fazer escolhas doutrinárias sobre questões constitucionais sem o peso de uma vida dedicada matéria.
Por saberem dessa independência é que ministros que querem mudar a jurisprudência tentarão hoje fazer com que o julgamento do habeas corpus de Lula seja considerado “de repercussão geral”, transformando-se em um caso abstrato em que o mérito estará em julgamento, e não o caso concreto de Lula.
Rosa Weber se sentiria à vontade, nesse caso, para reafirmar sua posição contra a prisão em segunda instância. No caso concreto, ela seria incoerente pela primeira vez diante de um habeas corpus, desistindo de seguir a maioria que ainda prevalece no plenário do Supremo.
A manobra dos que querem mudar a jurisprudência aproveitando-se do caso de Lula é difícil de realizar, pois seria preciso que os dois relatores, Edson Facchin e Marco Aurélio, entrassem em um acordo nesse sentido. Mas uma contramanobra pode surgir, assim como foi uma surpresa a ministra Cármen Lúcia ter colocado o habeas corpus de Lula em julgamento, para evitar que Marco Aurélio pedisse que as ADCs fossem julgadas antes.
A presidente do STF pode antecipar-se e marcar o julgamento das ADCs para mais adiante. Dessa maneira, o plenário terá que enfrentar o caso de Lula sem subterfúgios. E Rosa terá a oportunidade de manter sua coerência. Seja como for, o julgamento do HC impõe a Rosa a responsabilidade de decidir. Na visão de Binenbojm, “a democracia brasileira depende da maioria de um”.

Luiz Carlos Azedo: E veio a chuva…

Uma ampla coalizão de políticos sob investigação na Operação Lava-Jato trabalha ativamente nos bastidores do Supremo para que o habeas corpus de Lula seja concedido

Todo o ritual dos ministros foi no sentido de uma decisão favorável ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no julgamento do seu pedido de habeas corpus hoje, no Supremo Tribunal Federal (STF). O pronunciamento da presidente da Corte, ministra Cármen Lúcia, pedindo serenidade à população diante da polêmica causada pelo julgamento, foi o primeiro indicativo de que a correlação de forças entre os ministros já havia se alterado no sentido de mudar a jurisprudência vigente, que determina a execução imediata da pena para réu condenado em segunda instância, caso de Lula, condenado a 12 anos e 1 mês de prisão por causa do tríplex de Guarujá, pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, com sede em Porto Alegre.

Senhor da situação, o ministro Gilmar Mendes, grande artífice da nova maioria formada sobre o tema, mandou recado sereno de que votaria contra a execução de pena em segunda instância, indiferente às pressões da opinião pública. E sustentou a tese, rebatendo o ministro Luís Roberto Barroso, seu desafeto, de que o Supremo não deve se curvar às opiniões majoritárias da sociedade, pois, se fosse esse o caso, não seria necessário a sua existência. Bastaria uma pesquisa do Ibope em lugar da sentença. É vero, o Supremo existe para firmar posições contra a maioria, sempre que preciso for defender a Constituição de 1988. Esse é o seu papel primordial.

Em entrevista em Lisboa, Mendes deu uma pista do que pode vir a justificar a exceção para o caso do habeas corpus de Lula e evitar que o princípio seja aplicado a todos os condenados em segunda instância que está presa: “Para mim é uma grande confusão que nós temos de esclarecer. Se o juiz após a segunda instância pode prender, ele tem de fundamentar, explicar por que ele está aplicando a prisão. Se de fato há uma automaticidade, nós temos de esclarecer. Porque há uma grande confusão”, afirmou Mendes.

As pressões sobre os ministros só cresceram de ontem para hoje. Há manifestos de advogados e juristas a favor do habeas corpus, abaixo-assinados de promotores, delegados e juízes de primeira instância. Centenas de milhares de mensagens nas caixas postais de Cármen Lúcia e os demais ministros. A maioria quer que Lula cumpra a pena imediatamente, em regime fechado. Nos bastidores, a conversa gira sempre em torno de um enigma: o voto da ministra Rosa Weber. Ela votou contra o entendimento de que os réus devem ser presos imediatamente após condenação em segunda instância, foi vencida na Corte quando a jurisprudência atual foi aprovada. Desde então, porém, cumpre à risca essa jurisprudência e rejeita os pedidos de habeas corpus.

Em princípio, o voto de Rosa Weber decidirá o julgamento por seis a cinco. Pode ser que seja um segredo guardado a sete chaves pela ministra, mas os sinais de fumaça emitidos pelos demais integrantes da Corte sinalizam que desta vez votará a favor do habeas corpus. Pode ser que tenha confidenciado a um dos colegas a mudança de posição, talvez a Cármen Lúcia, pois são amigas. O que explicaria o pronunciamento da presidente da Corte. São assumidamente a favor do habeas corpus os ministros Gilmar Mendes, Celso de Mello, Dias Toffoli, Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski; contrários, Cármen Lucia, Luiz Fux, Edson Fachin. Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes. Somente uma saída salomônica pode alterar esse placar para um resultado amplamente majoritário, o que ajudaria o Supremo a enfrentar o desgaste da decisão.

Boi de piranha
Ontem houve protestos em centenas de cidades de Alagoas, Amapá, Amazonas, Bahia, Ceará, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo e Sergipe. Em Brasília, uma chuva torrencial, com muitos raios e trovões, dispersou milhares de manifestantes, justamente quando a manifestação na Esplanada dos Ministérios começava a encorpar. O banho de água fria foi bastante emblemático, pois era isso mesmo que a ministra Cármen Lúcia, presidente da Corte, desejava que acontecesse.

A narrativa petista, esperta como sempre, é de que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva está sendo transformado em bode expiatório do caixa dois eleitoral, enquanto seus adversários enrolados na Lava-jato são beneficiados pela impunidade. Na verdade, o que está acontecendo é justamente o contrário. Uma ampla coalizão de políticos sob investigação na Operação Lava-Jato trabalha ativamente nos bastidores do Supremo para que o habeas corpus de Lula seja concedido. Temem o chamado efeito Orloff, “eu sou você amanhã”. Nas palavras do deputado Miro Teixeira (Rede-RJ), decano da Câmara, Lula é uma espécie de “boi de piranha”, aquele que é jogado ao rio para ser comido pelos peixes vorazes, enquanto a boiada passa à distância segura. No caso, uma legião de caciques do MDB, PP, DEM, PSDB e de outras legendas menores.

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-e-veio-chuva/


Eliane Cantanhêde: O Brasil treme

Guerra pró e contra Lula no STF tem manifestos, protestos e ameaças

Prender ou não prender Lula, essa é a questão por trás de uma guerra de torcidas poucas vezes vista no estádio chamado Supremo Tribunal Federal, onde 11 ministros estarão em campo amanhã, cercados por manifestantes barulhentos e expostos para milhões de telespectadores irados pelo País afora.

As torcidas juram que falam “em tese”, ou agem “por princípio”, a favor ou contra a prisão após condenação em segunda instância, mas é óbvio que todos eles falam e agem motivados por algo bem concreto: o pedido de habeas corpus preventivo em favor do ex-presidente Lula. Até por isso a agitação só explode agora, na semana da decisão.

A evolução frenética e espantosa do número de apoiadores do manifesto a favor da prisão em segunda instância diz tudo. A coleta de assinaturas começou na quinta e logo já eram 500, chegaram a 1.500, pularam para 3 mil, dispararam para 4 mil e atingiam quase 5 mil ontem, na entrega ao Supremo.

Essa torcida, que reúne juízes, promotores e procuradores, tenta não personificar sua causa nem focar em Lula, alegando genericamente que acabar com a prisão em segunda instância vai ter um efeito cascata danoso para a sociedade e benéfico para homicidas, latrocidas, estupradores, traficantes...

O contra-ataque partiu de entidades de advogados e defensores públicos, que também ontem entregaram manifesto ao Supremo, com 3.262 assinaturas, em sentido contrário: condenando a prisão após segunda instância. Argumentam que ninguém (especialmente ricos e poderosos?) pode ser considerado culpado e cumprir pena antes de esgotados todos os recursos (20 ou 30 anos depois?).

Enquanto os manifestos sacudiam os ânimos já exaltados da mais alta corte do País, o Distrito Federal, São Paulo, Minas e outros Estados tremiam – literalmente –, sob o efeito de um terremoto originado nas profundezas da Bolívia e transmitido em ondas para o Brasil. É justo: o Brasil exporta bombas da Odebrecht, os vizinhos pagam com terremotos.

Os tremores continuam hoje no Brasil, com manifestantes anti-Lula, ops!, a favor da prisão em segunda instância, na Praça dos Três Poderes, na Avenida Paulista e em várias capitais e grandes cidades. Amanhã, semifinal do campeonato, será a vez dos apoiadores de Lula, ops!, dos contrários à prisão em segunda instância, empunharem suas bandeiras vermelhas para pressionar o Supremo. Ou “sensibilizar os ministros”, como dizem de um lado e de outro.

Ontem, a presidente do Supremo, Cármen Lúcia, se reuniu com o diretor-geral da Polícia Federal, Rogério Galloro, para discutir a segurança do prédio e dos ministros. Não só porque essas torcidas andam cada vez mais violentas, até dando tiros em caravanas, mas também pelas ameaças ao relator da Lava Jato, Edson Fachin.

Foi por causa desse clima de Fla-Flu que Cármen Lúcia decidiu fazer um pronunciamento pela TV Justiça, pedindo “serenidade”. Não adianta muita coisa, mas é um dever do, ou da, presidente de um Poder falar pela instituição numa hora como essa.

Aliás, não é só o Supremo que está em pé de guerra, nem sujeito a ameaças, pressões, manifestos e terremotos. O que dizer do Congresso, onde os maiores partidos (PT, PSDB e MDB) veem seus quadros voando pela janela partidária sob o sopro da indignação popular? E do Planalto, com o cerco a Temer chegando a seus principais amigos e gerando o fantasma de uma terceira denúncia?

Dê no que dê amanhã no Supremo, o resultado vai ser gritaria, confusão, profusão de acusações. Se o HC de Lula for negado, a reação virá do PT, PCdoB, PSOL e seus movimentos satélites. Se for acatado, como tudo indica, a ira será de todo o resto. E o risco de Rosa Weber, coitada, será ganhar um pixuleco para chamar de seu.