STF

Merval Pereira: Uma disputa infindável

A disputa que está em processo dentro do Supremo Tribunal Federal terá mais um capítulo na próxima semana quando o plenário analisará o habeas corpus ao deputado Paulo Maluf. Esse caso tem importância crucial no desenrolar dos acontecimentos em curso porque discute dois pontos que podem interferir em outras ações.

O primeiro é a possibilidade de um ministro do Supremo desautorizar uma decisão de outro ministro, o que é proibido por uma súmula e nunca havia acontecido antes. Foi o que fez o ministro Dias Toffoli ao receber um recurso da defesa do deputado paulista e conceder o habeas corpus que havia sido negado monocraticamente pelo ministro Edson Fachin. Como se trata de matéria controvertida, o próprio Toffoli pediu que o caso fosse levado ao plenário. Ele alega que tomou essa decisão pelo estado de saúde do preso, que se deteriorava a cada dia. Uma gesto humanitário, justifica.

O plenário vai ter que decidir se esta prática passará a ser corrente no Supremo, ou se foi um caso especial que não dá margem a outros. Ou mesmo se Maluf deve voltar para a cadeia. Esta anomalia já está produzindo frutos, pois vários advogados já entraram com ações no STF pedindo para que a decisão de Fachin de negar o habeas corpus a Lula seja revista por outro ministro.

Não parece ter sentido neste caso, pois o habeas corpus de Lula foi negado pelo plenário, e já não é uma decisão monocrática do relator da Lava-Jato. Mas se ficar assentado que um ministro pode desautorizar outro, a guerra aberta estará declarada entre os componentes do STF.

A ação de Maluf tem outro ponto importantíssimo. É que o recurso da defesa de Maluf foi feito com base num embargo infringente, pois o deputado teve na Turma que o condenou um voto favorável. O ministro Fachin disse que não são cabíveis embargos infringentes nas Turmas e vetou a pretensão, ao contrário de Toffoli, que, sempre alegando razões humanitárias, aceitou o recurso. Se essa novidade for chancelada pelo plenário do Supremo, teremos nas Turmas julgamento embargos infringentes, embargos de declaração, embargos dos embargos, todos os instrumentos usados para procrastinar o resultado final de um julgamento.

Não há uma explicação formal para a não previsão dos embargos nas Turmas no regimento interno do Supremo. O caso foi discutido no julgamento do mensalão, quando o presidente do Supremo na época, Joaquim Barbosa, defendeu que os embargos infringentes deixaram de existir nas ações originárias dos tribunais superiores depois da edição da Lei 8.038/90, que regulamentou os processos naqueles tribunais de acordo com a Constituição de 1988, sem prevê-los.

Quem vai ter uma decisão difícil será o ministro Luís Roberto Barroso, que, no julgamento do mensalão, foi a favor dos embargos infringentes e acabou ajudando a rever as penas de réus importantes, como José Dirceu, que escapou do crime de quadrilha. Ele havia dito, na sabatina do Congresso, que em teoria os embargos não existiam mais, mas, ao tratar do caso concreto, os aceitou. Na decisão de agora, terá que assumir uma posição sobre o mesmo assunto com repercussão no trâmite dos processos, que ele luta para serem objetivos e não darem margem à procrastinação das penas. O STJ, que foi criado depois da Constituição de 1988, não prevê esses embargos.

Esses são os desdobramentos do choque de visões dentro do Supremo Tribunal Federal, já tratado aqui na coluna nos últimos dias. O que está havendo é uma disputa, de um lado filosófica sobre o que é o Estado de Direito, a defesa dos direitos individuais, um grupo, que hoje é minoritário, considera que a operação Lava-Jato, os procuradores de Curitiba e o juiz Moro estão se excedendo com as prisões provisórias alongadas, obrigando os presos a fazerem delação premiada; e alegam que está sendo decretado o fim do habeas corpus, um instrumento básico da democracia. E do outro lado, o grupo hoje majoritário acha que a Justiça tem que ter efetividade, que a manutenção do status quo vai fazer com que continue a impunidade a pessoas que tenham poder político, prestígio social ou dinheiro para pagar bons advogados.

A luta pela prisão em segunda instância pode também ter um desdobramento esta semana dependendo da decisão do ministro Marco Aurélio de encaminhar ou não à votação a liminar rejeitada pelo Partido Ecológico Nacional (PEN) para exame de uma ação que propõe que cessem as prisões em segunda instância até que sejam votadas as ações que tentam acabar com a possibilidade dessa prática.

É exemplar dessa disputa, que em uma visão mais crua opõe os que querem a manutenção do status quo àqueles que querem dar mais efetividade às decisões da Justiça, o grupo minoritário querer acabar com ela, voltando ao trânsito em julgado, e agora incluindo os embargos infringentes no julgamento das Turmas, dando uma margem de recursos imensa e que quase sempre favorece a prescrição da pena.

 


Sérgio C. Buarque: O populismo e nova seita no Brasil

No palanque armado no pátio do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, uma nova seita emergiu no sábado, através da fala do profeta Luís Inácio Lula da Silva, com seu carisma e gestual sedutor e mobilizador da militância. O excepcional orador, tanto pelo jogo de palavras do seu discurso quanto, principalmente, pela encenação, produziu um grande espetáculo teatral, com movimento no palco, alteração do tom de voz e dos gestos, dramatização que emociona as massas.

Lula abusou da encenação, caminhava, virava para os lados, abaixava-se para enfatizar a afirmação, complementada pelo movimento das mãos e destaque dos dedos. Um artista que domina o palco e mobiliza as emoções e impulsos dos seus liderados, despertando ódio aos que ameaçam com a prisão do grande líder.

A história mundial tem exemplos notáveis de líderes com o carisma e a encenação populista de Lula, que, combinando o espetáculo com o ataque às instituições, provocaram grandes desastres políticos e sociais.

O populismo sempre encontra terreno fértil para se desenvolver em situações de crise social e política, descrédito da sociedade e desmoralização das instituições, precisamente o que experimentamos atualmente no Brasil. Nestas condições, mais valem a retórica e a identificação com o líder carismático que as ideologias, as propostas políticas e as análises e escolhas racionais.

Considerando a formação política de Lula e as diferentes circunstâncias históricas, seria uma desproporção comparar o ex-presidente com Hitler ou Mussolini, dois dos maiores populistas da história que levaram seus países ao totalitarismo. Mas o discurso de Lula no Sindicato dos Metalúrgicos foi uma preciosa aula de populismo e de encenação dramática, em tudo semelhante ao Führer e ao Duce. Com uma grande vantagem tecnológica para o ex-presidente: os poderosos meios de comunicação de massa de que dispõe o ex-presidente do Brasil, inclusive da imprensa, atacada duramente por ele no seu pronunciamento.

A Globonews transmitiu todo o discurso ao vivo, os noticiários divulgaram longos trechos da sua arenga quase histérica, alcançando, desta forma, milhões de brasileiros em todo o território. Ao mesmo tempo em que mobilizou os seus simpatizantes, a fala de Lula, já com ordem de prisão, despertou a indignação dos seus desafetos, ampliando o clima de intolerância e fragmentação política no Brasil.

Se os movimentos e gestos dramáticos de Lula lembram as manifestações exaltadas de populistas de triste memória, a sua mensagem central contém a mesma forma direta de ligação das massas ao grande líder, situado por cima das instituições.

A sua crítica ácida à imprensa e, mais ainda, às instituições jurídicas, Ministério Público e juízes das diversas instâncias (incluindo STF), reforçam esta relação do ídolo com o povo, por cima e ao arrepio da República. “Eu não sou mais um ser humano. Sou uma ideia”, afirmou o ex-presidente Lula num momento supremo de megalomania. Embora ninguém saiba dizer qual é mesmo a ideia da “metamorfose ambulante”, como se classificou em algum momento, os milhões de simpatizantes exultam e se identificam com o populista. Na verdade, o que emerge desse discurso é uma religião, perigosa religião, carregada de fanatismo pelo profeta, que gera o ódio contra as instituições republicanas.

* Sérgio C. Buarque é economista e consultor

 


Luiz Carlos Azedo: O racha no Supremo

A novidade do julgamento do pedido de habeas corpus de Palocci foi a adesão do decano da Corte, ministro Celso de Mello, à tese de que a sua prisão cautelar, apesar de longa, deve ser mantida

Começa a se consolidar no Supremo Tribunal Federal (STF) uma maioria favorável a que não se reexamine de imediato a jurisprudência sobre execução da pena de prisão após condenação em segunda instância, tema que deverá voltar à pauta da Corte na próxima semana, a pedido do ministro Marco Aurélio Mello. Esse é o significado da rejeição do pedido de habeas corpus do ex-ministro da Fazenda Antonio Palocci, que foi o responsável pelo caixa dois da campanha à reeleição da ex-presidente Dilma Rousseff, e está preso na carceragem da Polícia Federal em Curitiba.

A novidade do julgamento do pedido de habeas corpus de Palocci foi a adesão do decano da Corte, ministro Celso de Mello, à tese de que a prisão cautelar aplicada ao ex-ministro, apesar de longa, deve ser mantida porque, após a decretação da prisão preventiva e de bloqueio de bens, ele continuou adotando medidas para frustrar a total recuperação dos valores auferidos com o cometimento dos crimes. Dessa vez, a decisão não foi por diferença de um voto, mas por 7 a 4. Acompanharam o relator da Lava-Jato, ministro Edson Fachin, seus colegas Antônio de Moraes, Luiz Fux, Rosa Weber e Cármen Lúcia. O grupo “garantista” formado por Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Marco Aurélio foi derrotado mais uma vez. Os quatro votaram a favor de soltar Palocci, sendo que Toffoli sugeriu a adoção de medidas cautelares.

O ministro Celso de Mello enfatizou que, no primeiro semestre de 2017, R$ 415 mil foram transferidos dos planos de previdência privada de Palocci para a conta da esposa. Outros fatos e eventos ocorridos após a decretação da prisão cautelar reforçariam ainda mais a necessidade de manutenção da prisão. O ex-ministro da Fazenda, durante seu depoimento ao juiz federal Sérgio Moro, admitiu a possibilidade de colaborar com as investigações, mas sua “delação premiada” não aconteceu até hoje. Pode ser que a rejeição do habeas corpus modifique essa situação.

A votação sinaliza para o mundo político e a sociedade que a Operação Lava-Jato será uma variável permanente do processo eleitoral deste ano. Aliás, a votação foi precedida de uma nova etapa das investigações, desta vez sobre o desvio de recursos dos fundos de pensão do Serpro, dos Correios e de 16 institutos de previdência municipais, nas quais fica mais ou menos evidente que os esquemas de desvio de recursos continuaram funcionando mesmo depois do início da operação. Várias prisões foram decretadas.

Em outro julgamento, sinais de alinhamento também foram emitidos pelo Tribunal Superior Eleitoral, em decisão por unanimidade de sete votos. Foi negado o pedido de um candidato a vereador de Cabreúva (SP) para deixar de cumprir pena de prestação de serviços à comunidade com base em condenação por decisão de segunda instância. Os ministros Luiz Fux, presidente do TSE, e Luís Roberto Barroso defenderam a chamada “execução antecipada” da pena.

É um indicativo de que a Corte não aceitará mesmo o registro da candidatura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, como pleiteia o PT. Foi significativa a ênfase com que a ministra Rosa Weber reiterou seu voto da semana passada contra a concessão de habeas corpus para o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que está preso em Curitiba: “Para repetir meu mantra nos últimos dias, eu vou repetir mais uma vez: que, em sede de habeas corpus, onde se examina a legalidade e a abusividade do ato apontado como coator, eu não tenho como assim reputar uma decisão judicial fundada na jurisprudência prevalecente do Supremo Tribunal Federal, ainda que o meu voto não tenha integrado a corrente majoritária.”

Candidatura
Os julgamentos de ontem representaram nova derrota jurídica para a estratégia do PT de caracterizar a prisão de Lula como um atentado à democracia, proclamando suposta inocência, cujo viés é fundamentalmente eleitoral. Não há como manter essa narrativa sem afrontar as mais altas Cortes do país, entre as quais o Supremo e o Tribunal Superior Eleitoral, ainda que a “fulanização” dos ataques se dê contra o juiz federal Sérgio Moro, de Curitiba. A radicalização da militância petista tem a ver com o clima emocional estimulado por Lula no período em que permaneceu no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo antes de se entregar à Polícia Federal, o que complica a sua situação nos tribunais.

A transferência da sede da direção nacional do PT para Curitiba, o acampamento montado nas imediações da Polícia Federal e as “visitas” a Lula em Curitiba de altos dirigentes do PT, mesmo sabendo que elas estão proibidas, mostram que há muito de cálculo político para transformar Lula no cabo eleitoral dos candidatos do PT nessas eleições. Nesse quesito, porém, surgem as primeiras fissuras. Os dirigentes históricos da legenda, com mais experiência eleitoral, já começam a debater alternativas à candidatura do líder preso. Ontem, em Curitiba, o ex-governador da Bahia Jaques Wagner questionou a imposição da candidatura do ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad aos aliados da frente que o PT pretende criar para disputar as eleições. Segundo ele, para tecer essa frente, é preciso aceitar a ideia de um candidato de outro partido.

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-o-racha-no-supremo/


Alex Manente: Texto datado

Não subsistem circunstâncias que levaram o constituinte, naquele momento, a exigir o trânsito em julgado

A condenação do ex-presidente Lula pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região e a prisão do líder petista fizeram com que o debate sobre o princípio da presunção de inocência ganhasse ampla repercussão na imprensa e em todos os setores da sociedade brasileira.

A Constituição de 1988 foi redigida sob a inspiração de ideais democráticos que emergiram da superação da ditadura militar. Naquele momento histórico, premido pelas graves violações aos direitos humanos durante o regime anterior, o constituinte incluiu na Lei Maior vários princípios garantistas, entre eles o da presunção de inocência.

A Carta Cidadã, ao tratar da presunção de inocência, estabeleceu que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, ou seja, antes do esgotamento dos recursos. A partir disso, no ano de 2016 o Supremo Tribunal Federal estabeleceu a possibilidade de início do cumprimento da pena por condenação criminal após a condenação em segunda instância, sem a necessidade do trânsito em julgado. Desde o início, houve muita controvérsia no meio jurídico sobre tal interpretação.

De um lado, em favor da interpretação do Supremo, as correntes que defendem maior ativismo judicial sustentam que a prisão após a condenação em segundo grau é possível, visto que os tribunais superiores não podem apreciar fatos e provas do processo, apenas questões de direito. De outro lado encontram-se os garantistas, que afastam a possibilidade de início do cumprimento da pena antes do trânsito em julgado. Quem assistiu ao julgamento do habeas corpus de Lula no dia 4 de abril pôde perceber claramente essa divisão entre as duas correntes.

Passados 30 anos desde a promulgação da Constituição, entendo que não subsistem no Brasil as circunstâncias que levaram o constituinte, naquele momento, a exigir o trânsito em julgado para afastar a presunção de inocência. Por isso, apresentei uma emenda à Constituição (PEC 410) para que o texto constitucional estabeleça que “ninguém será considerado culpado até a confirmação de sentença penal condenatória em grau de recurso”. Com isso, não haveria mais qualquer dúvida quanto à possibilidade de início do cumprimento da pena por condenação criminal após a condenação por um órgão judicial colegiado.

Há quem sustente que a emenda de minha autoria não poderia ser aprovada, por ferir a cláusula pétrea que veda emendas constitucionais tendentes a abolir os direitos e garantias fundamentais, entre os quais se encontra a presunção de inocência. Contudo, a mudança que estamos sugerindo não está abolindo a presunção de inocência, apenas modificando o momento processual a partir do qual a culpa dos acusados passaria a ser considerada. Ou seja, o núcleo essencial da proteção — presunção de inocência — permanece íntegro, só havendo modificação na fase do processo em que se considera o acusado culpado. Trata-se de uma alteração necessária.

* Alex Manente é deputado federal (PPS-SP) e autor de PEC da prisão em segunda instância

 


Merval Pereira: Choque de visões

Mais uma vez o Supremo Tribunal Federal explicitou uma disputa interna entre dois grupos com visões distintas do que seja a aplicação do Direito. Uma divisão quase filosófica. O julgamento do habeas corpus do ex-ministro Antonio Palocci acabou mais uma vez em 6 a 5, com a presidente Cármen Lúcia desempatando, e o que estava em jogo era justamente uma visão chamada garantista, que coloca o instrumento do habeas corpus como símbolo da liberdade individual, e a dos consequencialistas, que, sem desmerecer a importância do habeas corpus, consideram que ele não pode ser utilizado para interromper um processo, ou favorecer um condenado a sair da prisão quando isso pode representar um perigo à ordem pública.

Houve ontem uma discussão que reflete bem essas visões de mundo em conflito. O ministro Marco Aurélio disse que o tempo excessivo da prisão provisória de Palocci, cerca de um ano e meio, já era por si só uma razão para dar-se o habeas corpus.

O relator Edson Fachin rebateu a tese, mostrando que os fatos que basearam a prisão, a complexidade do processo, com inúmeras testemunhas espalhadas pelo país, e uma condenação no meio tempo justificavam plenamente o período que o ministro Gilmar Mendes chama de “alongado” das prisões provisórias da Operação Lava-Jato.

O próprio Gilmar hoje, corroborando com o jargão que o ministro Marco Aurélio cunhou — “tempos estranhos” — disse, às vezes até mesmo emocionado, que se estava criando um novo Direito no país, o “Direito de Curitiba”, que não respeita os direitos dos acusados e favorece o desrespeito ao devido processo legal.

Além de criar condições para práticas corruptas a pretexto de combater a corrupção, citando casos de procuradores envolvidos em acusações de negócios escusos. Outros rebatem que há uma nova ordem querendo surgir no país, e uma velha ordem que resiste com valores e práticas antigas, que não funcionam.

Esta nova ordem corresponderia a uma imensa demanda da sociedade, por integridade, idealismo, patriotismo, uma energia muita explícita nas ruas. A crítica de Gilmar Mendes, mais uma vez, foi também contra o que chama de “imprensa opressiva”, e em todos os votos recentes ele defende que um juiz, especialmente do Supremo, não pode se deixar pressionar pela opinião pública, ou opinião publicada, como gosta de dizer.

Os consequencialistas já veem a questão de outro modo: um juiz não deve decidir de acordo com o clamor público, muito menos em processo criminal, o que não quer dizer que um tribunal constitucional não deva ser capaz de interpretar o sentimento da sociedade e se alinhar a ele sempre que isso seja compatível com a Constituição.

O papel contramajoritário do Supremo, que os garantistas defendem, seria importante nessa outra visão, mas é usado no mundo inteiro muito raramente. O normal é que as decisões da Suprema Corte correspondam aos anseios da sociedade, porque os juízes vêm dessa sociedade e interagem com a população em diversos níveis de contato e incorporam o sentimento do meio social em que vivem.

Nessa perspectiva, o Tribunal se capitaliza porque ele é capaz de interpretar o sentimento da sociedade, e quando tem de ser contramajoritário, tem credibilidade. Na disputa aberta entre esses dois grupos, o ministro Marco Aurélio Mello deu indiretas para a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, e para o colega Luís Roberto Barroso, lamentando que se vá para o exterior dizer que a Justiça brasileira é seletiva — o que os dois afirmaram em seminários internacionais.

O fato é que plenário está dividido filosoficamente em relação à aplicação do Direito, uma divisão exacerbada pela Operação Lava-Jato. É mais explícita do que em qualquer outro tempo, os consequencialistas, pragmáticos no sentido não pejorativo do termo, querem julgar com base nos fatos, e não em teses idealistas. Não se apegam ferrenhamente a textos literais que podem significar a impunidade, como no caso da disputa entre a prisão em segunda instância e o trânsito em julgado.


Folha de S. Paulo: STF errou ao julgar habeas corpus de Lula e não princípio, diz especialista em Supremo

Nabor Bulhões afirma que julgamento sob comoção produz precedentes jurídicos péssimos

Por Mario Cesar Carvalho, da Folha de S. Paulo

O Supremo errou ao colocar em julgamento, e negar, o habeas corpus do ex-presidente Lula. Em vez de tratar de um caso concreto, que divide o país, seria mais produtivo decidir sobre o princípio genérico da prisão após decisão em segunda instância.

A opinião é de um dos maiores especialistas em Supremo, o advogado Nabor Bulhões, 67, que atua na mais alta corte do país há 35 anos. Já obteve vitórias para o ex-presidente Fernando Collor e perdeu no caso do ex-ativista de esquerda Cesare Battisti, quando defendeu que ele fosse extraditado para a Itália.

Em entrevista à Folha, Bulhões, que defende o empresário Marcelo Odebrecht na Lava Jato, criticou a decisão do Supremo de prender a partir da segunda instância e classificou a ordem de prisão a Lula de "prematura" e "desprovida de legitimidade constitucional".

Folha - Ao negar o habeas corpus do ex-presidente Lula, o Supremo manteve a sua jurisprudência de que a execução antecipada da pena não viola o princípio da presunção de inocência?

Nabor Bulhões - Manteve em termos. Embora o tema de fundo fosse a questão da execução antecipada da pena em face da garantia constitucional da presunção de inocência, o entendimento prevalecente foi o de que, como a decisão a ser proferida teria eficácia só para o ex-presidente Lula, a decisão com que o Superior Tribunal de Justiça negara a impetração lá interposta não consubstanciava constrangimento ilegal à liberdade do paciente porque se fundara na jurisprudência ainda vigente da suprema corte. A jurisprudência diz que a execução antecipada da pena não afrontaria a garantia da presunção de inocência.

Qual foi o peso do voto da ministra Rosa Weber?
Foi decisivo. Ressalvando o seu entendimento pessoal quanto à incompatibilidade entre a execução antecipada da condenação e a garantia da presunção de inocência, declarou que não poderia fazer prevalecer o seu entendimento pessoal neste caso porque não se tratava de um processo de natureza objetiva, como uma ação declaratória de constitucionalidade, mas se tratava de um habeas corpus, um feito de natureza subjetiva, cuja decisão não teria eficácia para todos. Por isso declarou que, tendo o STJ se fundado na jurisprudência ainda vigente do STF sobre a matéria, não poderia estimar que tal decisão fosse ilegal e abusiva para efeito de concessão de habeas corpus. Por que ministros como Celso de Mello e Gilmar Mendes tiveram compreensão diferente de Rosa? Para eles, a natureza subjetiva do HC não impede a análise da questão de fundo. Esses ministros concederam o HC dizendo que, embora o processo tivesse caráter subjetivo, seria possível ao plenário do tribunal rever a tese jurídica da jurisprudência vigente para emprestar-lhe eficácia para todos e efeito vinculante, mesmo se tratando, como se tratou, de declaração incidental de inconstitucionalidade da execução antecipada da pena por incompatibilidade com a garantia constitucional da presunção de inocência. Ao meu ver, agiram corretamente porque há expressivo precedente do plenário nesse sentido. Nada impedia que a ministra Rosa Weber pudesse apreciar a matéria de fundo no julgamento do HC, não tendo que esperar o julgamento de duas ações declaratórias de constitucionalidade.

O sr. acha que foi um erro colocar o HC do Lula em julgamento antes dessas ações?
No meu entendimento pessoal, que é coincidente com o de vários ministros do Supremo, essas ações objetivas deveriam ter sido submetidas a julgamento antes do habeas corpus do ex-presidente Lula. Tenho para mim que o julgamento da relevante questão, no plano abstrato, não atrairia o substrato político do caso Lula que gerou divisões e controvérsias nos meios jurídicos, na opinião pública e na imprensa. Em momentos como esses sempre lembro da advertência do grande advogado americano e professor de Harvard Alan Dershowitz, que dizia que até nos grandes tribunais casos difíceis podem gerar maus precedentes e que casos emocionais podem gerar precedentes ainda piores.

O ministro Luís Roberto Barroso defendeu que a corte deveria ouvir o "sentimento social". O ministro está certo?
O nosso sistema jurídico de matriz romano-germânica exige do juiz um julgamento isento e imparcial, sempre tendo em conta a lei e a Constituição. No caso concreto, em que por opção do legislador constituinte e do legislador ordinário se estabeleceu de forma clara e objetiva a garantia da presunção de inocência, sendo a liberdade a regra e a prisão a exceção, não se pode conceber que, em nome do sentimento social, se possa mudar a compreensão de matéria que se encontra resolvida no texto constitucional e no texto da lei processual penal.  A substituição do princípio da legalidade pelo sentimento da nação já levou a tragédias históricas, como se viu no parágrafo 2º do Código Penal alemão do nazismo: "Delito é tudo o que fere o são sentimento da nação ariana". Os defensores da prisão após decisão de segunda instância dizem que a medida é essencial para combater a corrupção. Não se pode combater a corrupção violando-se direitos e garantias constitucionais. Da mesma forma que não se pode conceber que juízes possam decidir matérias relacionadas a esses temas sensíveis alinhando-se a movimentos de combate à corrupção e à impunidade. O juiz tem que ser isento e imparcial para absolver ou condenar, tendo sempre como norte a incontornável garantia do devido processo legal.

Os defensores da prisão após a segunda instância dizem que essa medida vale em países de tradição democrática como EUA e França. Isso faz sentido?
Não, não faz sentido. Esse tipo de colocação procura mascarar uma solução que, no sistema jurídico-constitucional brasileiro, representa clara violação de garantia fundamental estabelecida em nossa Carta Magna e na legislação infraconstitucional. Quem se dispuser a fazer uma análise histórica do estabelecimento da garantia da presunção de inocência na Constituição de 1988 verificará que o constituinte fez clara opção pela adoção de um modelo de garantia que não permite execução de condenação sem o seu trânsito em julgado. Mas o legislador constituinte não afastou a possibilidade da prisão em qualquer fase do processo, inclusive após a condenação, ao estabelecer no artigo 5º da Constituição que "ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente". Mais claro do que isso o sistema não poderia ser.

O Supremo será incongruente se mantiver no julgamento das ações declaratórias de constitucionalidade a execução antecipada da pena?
Penso que sim. Não faz muito tempo, o plenário do Supremo declarou o estado de inconstitucionalidade do nosso sistema carcerário por sua incapacidade de garantir os direitos humanos. Ora, não parece congruente que o Supremo Tribunal Federal autorize que milhares de pessoas sejam encarceradas em sistema reconhecidamente violador do princípio da dignidade da pessoa humana.

O que o sr. achou da decisão de prender Lula?
A prisão do ex-presidente Lula traz a marca da incongruência a que já me referi: trata-se de uma prisão prematura desprovida de legitimidade constitucional, pois decorre única e exclusivamente de condenação criminal não transitada em julgado. Viola assim o artigo 5° da Constituição e o artigo 283 do Código de Processo Penal.


Míriam Leitão: À moda Lula

A multidão gritava “não se entregue”, e o ex-presidente Lula diria logo depois que se entregaria. Mas apresentou o ato como se fosse um desafio. “Eu vou enfrentá-los olho no olho.” No discurso, ele radicalizou o tom, costurou a união da esquerda, garantiu inocência, e produziu uma coleção de frases que podem ser usadas na campanha. Lula fez parecer vitória a sua maior derrota.

Nos últimos dias, usou seu velho método de dar a impressão de que endurece, enquanto negocia; de que vence, quando está cedendo. Essa estratégia foi usada em todas as greves que comandou. Ontem, ele voltou ao discurso radical que abandonou ao governar para parecer com o Lula inicial.

O chão do Sindicato dos Metalúrgicos começou a tremer. Era o começo dos anos 1980 e os trabalhadores vibravam pela chegada de Lula. Ele já iniciara a ida para a política, mas estava ali, local do seu pertencimento, para dar apoio a uma greve liderada por Jair Meneguelli. Eu cobria o evento e tive noção, na força da sua chegada, de que aquele líder iria até onde quisesse.

Era fácil prever que ele poderia chegar ao Planalto. Difícil imaginá-lo no caminho para uma cela de Curitiba. Ele explorou politicamente cada minuto da exposição que teve. O tempo dado pelo juiz Sérgio Moro, como sinal de respeito ao cargo que ocupou, foi usado para criar um intenso ato político. Ao se entrincheirar, quis montar uma armadilha para os que o prenderiam. Se a Polícia Federal tivesse sido mais dura, geraria cenas fortes. Tudo serviria ao propósito de outro papel que ele sempre soube fazer: o de vítima.

O que há de fato contra Lula? Essa é a pergunta dos fiéis que o seguem e acreditam na inocência dele contra todas as evidências. As provas são contundentes. No seu governo foi montado um esquema de tirar dinheiro de estatais para as campanhas políticas e isso foi flagrado no Mensalão. A Ação Penal 470, julgada no Supremo Tribunal Federal, teve relatoria de um ministro que havia sido nomeado por ele. Ficaram evidentes as conexões entre marqueteiros, dirigentes do PT, partidos da base, banqueiros e fornecedores públicos. Foram expostos os métodos de entrega de dinheiro em quartos de hotel, em malas, em depósitos camuflados. Houve até o bizarro carregamento em cuecas. Muito se soube, mas ele deu respostas mutantes. Não sabia. Fora traído. Era uma armação das elites. Depois disso, veio o escândalo maior no qual ele está enredado, o que tem sido investigado pela Lava-Jato.

A mística de que ele é homem do povo em luta contra as elites engana os crentes, serve à propaganda e fere todos os fatos. Tudo o afasta desse papel, do preço do vinho com que comemorou a eleição, aos subsídios gordos entregues pelo seu governo aos grandes empresários. Alguns deles, como os Batista, os Odebrecht, tiveram um dinheiro imenso nos governos petistas e retribuíram, gratos, com as contribuições milionárias para as campanhas. Ao lado de tudo isso, Lula foi aceitando vantagens pessoais. Os casos estão distribuídos em várias ações, cada uma sendo julgada a um tempo, mas são um todo. O apartamento do Guarujá seria dado reformado, o sítio de Atibaia foi por muito tempo ponto de encontro da família, o apartamento ao lado do que mora em São Bernardo, a sede que seria comprada para o Instituto Lula. Foram muitos os casos, são várias as ações. Lula sempre deixou imprecisos os limites entre o público e o privado e nessa fronteira difusa ocorreram os eventos pelos quais ele responde.

Neste sábado ele mostrou o máximo da sua força, na mobilização de apoiadores em delírio, no discurso incandescente, no bloqueio humano muito conveniente impedindo a sua saída do sindicato. Parecia estar no auge, mas estava na véspera de um tempo difícil.

Nas entranhas do país que a Lava-Jato exibe, há provas contra outros partidos e governantes. Todos eles terão que enfrentar o mesmo duro momento que Lula vive agora, ou então não haverá justiça nem futuro nessa luta. A prisão de Lula é a mais forte evidência de que o país está firme no propósito de enfrentar a corrupção. Mas é um momento triste. De todos os líderes do país, ele foi o único capaz de fazer o chão tremer pelo entusiasmo da sua presença. O aperfeiçoamento da democracia nos trouxe a essa travessia, um tempo em que tudo parece estar tremendo nas instituições brasileiras.


Merval Pereira: Beirando a irresponsabilidade

Nas análises dos especialistas em mediação de conflitos da Polícia Federal, o PT usou o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC como um bunker para proteger o ex-presidente Lula, e militantes como barreiras humanas para impedir uma ação policial sem incidentes graves.

Na verdade, há a avaliação de que, ao se recusar a apresentar-se em Curitiba às 17h de ontem, e dizer num primeiro momento que Lula não se entregaria, a estratégia do PT beirou a irresponsabilidade, buscando uma ação violenta, possivelmente um conflito grave que pudesse ser utilizado como base para uma acusação de ação desproporcional do Estado repressor.

Um cadáver produzido por um conflito de tal gravidade seria o detonador de uma crise institucional dificilmente superável. Essa estratégia de teor insurgente foi esvaziada pela atitude tolerante da Polícia Federal, que tinha o mandado para operacionalizar a prisão vencido o prazo concedido.

Para conseguir tal objetivo, a Polícia Federal e o próprio juiz Sérgio Moro, que autorizou o início do cumprimento da pena, correram o risco de passar à sociedade uma imagem de fraqueza diante do ex-presidente condenado, para evitar uma tragédia que talvez fosse ansiada por uma militância mais radical, que acabou ganhando aparentemente a queda de braço. Moro chegou a pensar em decretar a prisão preventiva de Lula, o que impediria o ex-presidente de se beneficiar caso o STF mude a jurisprudência, proibindo a prisão em segunda instância. Dependendo do desenrolar da situação hoje, não está descartada a possibilidade.

Aparentemente porque, na verdade, o que acontecia nos bastidores era uma frenética negociação entre emissários do PT e da Polícia Federal, o que descaracteriza a possibilidade de confronto e estabelece a aceitação, por parte dos representantes legais de Lula, das regras do jogo democrático. Ao mesmo tempo, os advogados do expresidente usavam os instrumentos de nosso sistema judicial para tentar recursos nos tribunais superiores, o que também confirma que, embora denunciem aos quatro ventos ilegalidades, cumprem as regras democráticas na defesa do condenado.

Foi dada a Lula a possibilidade de fazer uma figuração de resistência para os militantes petistas, ao mesmo tempo em que a Polícia Federal evitava sabiamente alimentar a radicalização dessa mesma militância com uma ação mais violenta.

O retorno ao Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, de onde surgiu sua liderança sindical que gerou o Partido dos Trabalhadores na década de 1980, proporcionou a Lula a chance de repetir as técnicas que fizeram sua fama de negociador como líder sindical.

São frequentes os relatos de Lula negociando soluções com empresários para greves em reuniões regadas a uísque que resultavam muitas vezes em acordos combinados com os patrões que pareciam ter sido tirados a muito custo e pressão do líder popular.

Foi o que aconteceu ontem. Lá dentro do seu bunker, Lula negociava com a Polícia Federal, mas passava a ideia à militância do lado de fora de que resistiria. Muitas idas e vindas, como as ameaças de enfrentamentos, eram divulgadas para consumo da plateia dos convertidos, sem que fossem endereçadas diretamente à Polícia Federal.

O problema maior dessa situação é que o ex-presidente Lula passou inicialmente a ideia de que a lei não é para ele, uma sensação de onipotência que quer transmitir a seus militantes, como ressaltou o procurador Mauricio Gotardo Gerum no documento em que pede a prisão imediata de Lula ao TRF-4. Embora sob sigilo, sabe-se que o documento entregue da quinta-feira justificava a urgência para a publicação da ordem de prisão dizendo que o condenado tem uma “sensação de onipotência” e que não prendê-lo com urgência semearia o “descrédito no Poder Judiciário”.

Esse é o risco que a Polícia Federal e o juiz Sérgio Moro correram ontem com a atitude benevolente diante de um condenado que se negou a cumprir uma ordem de prisão sob o manto de negociações. Na verdade, Lula e seus advogados nunca afirmaram que se recusariam a aceitar a decisão do juiz Sérgio Moro, embora essa fosse a palavra de ordem de seus militantes.

Sob a alegação de que preferia ficar em São Paulo, ou que precisava ir à missa em memória de Dona Marisa, Lula explicitou para seu público externo uma força que ele já não tem, pois nunca esteve em dúvida que se entregaria. Queria apenas forjar imagens para futuras narrativas épicas que devem rechear a propaganda eleitoral de seu avatar eleitoral.

Resta saber se a arrogância do ex-presidente será rejeitada pelos não convertidos, resultando, caso isso aconteça, em mais um desgaste para o líder político Lula.


Fernando Gabeira: Embargo do embargo

Nesse momento em que vejo a vida como um milagre, o fato mais previsível do mundo é alguém condenado pela Justiça ser preso

Gostaria de estar à altura do nível dramático desta semana no Brasil. No entanto, aconteceu algo que me deixou frio e calmo.

Viajávamos para Serafina Correa (RS) e, na altura de um lugar que se chama Encantado, um carro perdeu a direção, cruzou a estrada e bateu violentamente no nosso. Em meio à fumaça, lembro-me de ter dito apenas: sobrevivemos.

Quando se vê a morte tão de perto e se escapa dela, pelo menos no primeiro momento tudo fica mais simples.

Horas depois conseguimos um novo carro, o outro teve perda total, e voltamos a ouvir os longos votos dos ministros do Supremo sobre o habeas corpus de Lula. Sinceramente, talvez influenciado pela alegria de sobreviver, não via o fim de tudo se o STF derrubasse a prisão em segunda instância.

O velho mecanismo de corrupção seria de novo azeitado e, para nos impressionar, de vez em quando prenderiam um ancião e criariam um vaivém de cadeiras de rodas no presídio. Como somos sentimentais, aceitaríamos que os anciões fossem libertados logo para cumprir prisão domiciliar.

O único problema dessa opção: a Justiça no Brasil deixaria de funcionar em nome do belo princípio de presunção da inocência. As vítimas dos crimes continuariam desemparadas.

Mas a recusa do habeas corpus também não me parece um drama. É apenas a continuidade do bem-sucedido processo da Lava-Jato e da política do STF desde 2015.

Quando Lula foi condenado na segunda instância, não entendia os repórteres que diziam: o destino de Lula é incerto. Destino incerto é o meu e de todos que estão em liberdade. Lula será preso.

Infelizmente, com a calma dos sobreviventes, não consigo entender a agitação da imprensa. Há sempre alguém falando de um recurso, de um embargo do embargo, dando a falsa impressão de que as coisas vão mudar. Uma pessoa que vê a imprensa à distância pode supor que produzir tantas tramas artificiais é algo feito para ajudar Lula. Mas não é o caso. As pessoas precisam de emoção, de criar tramas que mantenham o interesse. Nesse filme, o ator não pode morrer no princípio, pois seria um anticlímax.

Nesse momento em que vejo a vida como um milagre, pouco me importam as pancadas, mas devo dizer que o fato mais previsível do mundo quando alguém é condenado pela Justiça, caso não fuja, é ser preso.

Todo esse miolo dramático, todas essas tramas que se criam entre a definição da Justiça e o momento da prisão são apenas tentativa de alongar o interesse pelo caso. Somos novelistas, criando enredos secundários.

Naturalmente, para o PT e seus aliados, as manobras e as constantes dúvidas mantêm a chama e podem ser de interesse político. Mesmo nesse caso, duvido da eficácia do cálculo. Se estivessem de olho no futuro, talvez escolhessem outra tática.

Toda essa interpretação talvez seja resultado da visão esquisita que tomou conta de mim desde o acidente em Encantado. Nada mais tedioso de quem supõe que conhece todo o enredo e subestima os lances emocionantes das tramas que eletrizam a imprensa.

Espero me curar disso, na próxima semana. Ou então deixar de escrever, pois, realmente, eu me sinto numa outra galáxia. Num lugar onde a lei vale para todos, as pessoas são condenadas e o fato mais banal é sua prisão.

A cidade onde nos acidentamos chama-se Encantado. Ao contrário do que seu nome sugere, foi ali que o Brasil finalmente se desencantou para mim.

Precisaria voltar a viver todas essas emoções, como um ateu que recupera sua fé. E voltar a acreditar em embargos dos embargos e em toda essa conversa.


Eliane Cantanhêde: Republiqueta de banana?

A prisão de Lula é um aviso: quem comete crimes que ponha as barbas de molho

Muitos comemoram, muitos choram, mas não há o que comemorar nem chorar na prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, homem com biografia vibrante, que saiu do horror da miséria, sacudiu num pau de arara, virou o maior líder sindical da história recente, chegou à Presidência e saiu dela com 80% de aprovação. Mas fez tudo o que fez ao chegar ao poder.

Para o ministro Gilmar Mendes, a prisão de Lula “mancha a imagem do País”. Para a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, transforma o Brasil numa “republiqueta de bananas” aos olhos do mundo. É verdade que há grande mobilização das esquerdas brasileiras em defesa de Lula junto a governos, líderes e sociedades. Mas não é verdade que Lula seja uma “vítima das elites”, “um perseguido político”.

Assim como não se pode classificar de “golpe” o impeachment da presidente cassada Dilma Rousseff, não se pode chamar de “golpe” as sucessivas decisões que condenaram Lula a 12 anos e 1 mês de prisão.

Dilma se mostrou incompetente para gerir a política, a economia e as contas do País e efetivamente fez as “pedaladas” – deixou de transferir recursos do Tesouro para os bancos públicos pagarem os programas sociais. Por quê? Para mascarar o rombo das contas públicas e, pior, continuar gastando em ano eleitoral. É crime.

Quanto a Lula: a primeira condenação é pelo seu caso mais simples, o do triplex do Guarujá, mas isso está inserido num contexto muito mais complexo, que envolve várias outras ações, pelo sítio em Atibaia, pela Operação Zelotes, pelo Instituto Lula... E, principalmente, pela evidência (até pela fala do ex-ministro Antonio Palocci) de que Lula institucionalizou a corrupção. Corrupção sempre houve, mas articulada e operacionalizada a partir do Planalto e do Ministério da Fazenda?

O impeachment de Dilma seguiu todos os trâmites legais: o Supremo definiu o rito, a Câmara votou em dois turnos, o Senado também, a sessão final foi presidida pelo então presidente do Supremo. Tudo foi transmitido ao vivo para a população, sem uma só restrição às liberdades individuais.

E a prisão de Lula, por mais triste que seja, e é, seguiu todos os trâmites legais: investigação da Polícia Federal, do Ministério Público, da Receita, com julgamento em primeira instância, confirmada pelo TRF-4 e após tanto o Superior Tribunal de Justiça (STJ) quanto o próprio Supremo Tribunal Federal negarem o pedido de habeas corpus apresentado por advogados de grande respeitabilidade.

Golpe? Que golpe? Lula apenas se tornou o foco e a síntese de um intenso debate que divide o Supremo, o Planalto, o Congresso, os partidos, os formadores de opinião e toda a sociedade brasileira. Deixar Lula livre em nome de sua biografia e de seu prestígio internacional, ou prosseguir firmemente num processo histórico de combate a uma corrupção estratosférica? Deixar Lula livre em nome de não se criminalizar todo o sistema político, ou manter o processo de depuração das instituições e dos quadros políticos? É disso que se trata.

Essas questões remetem para o voto do ministro Luís Roberto Barroso durante o julgamento no Supremo: um país não é justo quando garotos pobres com um baseado de maconha são jogados nas prisões, mas ricos, poderosos e famosos matam, roubam, corrompem e são corrompidos e nada acontece com eles.

A presidente do PT defende o regime Maduro e acusa o Brasil de “republiqueta de banana”, mas é exatamente o oposto. O que se pretende é justamente que a justiça valha para todos e que o Brasil deixe de ser uma republiqueta que massacra os pobres e endeusa os poderosos.

A prisão de Lula, aliás, é um aviso: quem comete crimes que ponha as barbas de molho. Fim da farra.


Míriam Leitão: O passo seguinte

Com a iminente prisão do ex-presidente Lula fica mais dramático o dilema em que o país está. Há uma jurisprudência que está levando Lula à prisão, mas que depois pode vir a ser alterada. Líderes de outros partidos também enfrentam processos. Neste caso, como ficará o país, as leis e a Justiça se na hora dos outros estiver em vigor entendimento diferente?

Esse dilema fortalece a manutenção da prisão após a segunda instância e não o contrário. A jurisprudência atual deve ser mantida não para resolver esse impasse criado pelas circunstâncias difíceis vividas pelo país. O principal motivo de se confirmar a segunda instância é que essa é a forma de lutar contra a longa história de impunidade e desigualdade judicial do país. Isso ficou claro na pesada sessão do STF. Os dois lados no Supremo esgrimaram durante 11 horas. Mas foram mais convincentes os que defendiam a manutenção da regra de que a pena se cumpre após as duas instâncias que julgam o mérito, analisam as provas e a autoria do crime. A primeira e a segunda instâncias são as únicas que têm “cognição plena de matéria jurídica e fática”, como disse o ministro Alexandre de Moraes. Os outros níveis da Justiça discutirão pontos específicos e questões processuais.

As estatísticas apresentadas pelo ministro Luís Roberto Barroso são impressionantes. Preparadas pela Assessoria de Gestão Estratégica, mostram que de janeiro de 2009 a meados de 2016 foram apresentados 25.707 recursos extraordinários ou agravos. Foram acolhidos apenas 2,93%, e só 1,12% foram a favor do réu. Houve somente 9 absolvições, ou 0,035%. A Coordenadoria de Gestão de Informação do STJ informou que, de setembro de 2015 a agosto de 2017, foram 68.944 recursos interpostos. Apenas 0,62% obtiveram absolvição. “Não se pode moldar o sistema em função da exceção”, concluiu o ministro. Os números e os fatos lhe dão razão.

Os que têm a visão de que só esgotados todos os recursos é que se pode iniciar o cumprimento da pena não conseguem responder a várias questões. Como evitar as inúmeras manobras protelatórias? Como ignorar a realidade brasileira, em que a tramitação é lenta, em que os tribunais superiores não conseguem entregar com agilidade suas decisões? Como evitar que os que conseguem bons advogados possam dilatar o tempo do cumprimento da pena ao ponto da prescrição? Em que país a visão de presunção de inocência é assim tão fundamentalista? O ministro Celso de Mello falou em Itália e Portugal. Parecem exceções em um vasto número de países que têm outro entendimento.

Números, fatos e, principalmente, a realidade brasileira mostram que fazem mais sentido os argumentos pelo início da execução da pena após o encerramento do julgamento de segundo grau. Não é razoável o tempo de anos entre o crime e o início do cumprimento da condenação. A tese de que há no Brasil uma “onda de punitivismo” não se sustenta minimamente. O que existe no Brasil é a impunidade dos que são mais fortes. Sempre foi assim.

Mas o que está claro é que essa regra de prender após a condenação em segundo grau pode ser mudada em breve. Quando? Não se sabe. Mas se for alterada em curto prazo, Lula terá vivido o constrangimento do qual outros podem ser poupados. Quando estiver em pauta, a ministra Rosa Weber estará de novo, involuntariamente, nos holofotes. Ela deixou no ar que pode voltar ao seu entendimento se a questão de fundo for apreciada. Enquanto não for oficialmente mudada, ela continuará negando os habeas corpus.

Então, no país das divisões, haverá mais uma: a dos que foram julgados e, eventualmente, presos, no entendimento de 2016, e os que podem vir a ser beneficiados se o STF restabelecer a jurisprudência que vigorou por apenas sete anos no país, entre 2009 e 2016.

O ex-presidente Lula está no primeiro grupo e sua cela já foi preparada. Onde estarão os outros políticos que futuramente podem ser condenados? Onde estará, por exemplo, o senador Aécio Neves, que foi alvo de denúncia da Procuradoria-Geral da República por ter pedido R$ 2 milhões a Joesley Batista, em conversa gravada pelo próprio empresário? São inúmeros os casos. É grave o momento que o país vive. Não pode haver uma jurisprudência presente, e outra ameaçando o futuro.


El País: Lula em contagem regressiva para ser preso

Maioria do STF decide negar 'habeas corpus' que evitaria prisão do ex-presidente. Petista agora depende do resultado de um último recurso a que tem direito no TRF-4

Luiz Inácio Lula da Silva perdeu nesta quarta-feira sua principal chance de evitar a prisão antes das eleições. Por 6 a 5, a maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) negou habeas corpus pedido pelo petista que visava evitar que sua pena de 12 anos e um mês de detenção por corrupção passiva e lavagem de dinheiro começasse a ser cumprida sem que se esgotassem todos os recursos ainda disponíveis na Justiça brasileira. Com essa decisão, o futuro do ex-presidente e líder nas pesquisas de opinião para a votação presidencial fica, por ora, pendurado por um prazo do último recurso no Tribunal Regional Federal 4 (TRF-4), em Porto Alegre, previsto para ser decidido nas próximas semanas. Lula não se pronunciou e o PT lançou nota classificando esse 4 de abril de 2018 como "um dia trágico para a democracia brasileira."

O voto decisivo para destino de Lula foi o de Rosa Weber. E ela agora pode ser, ironicamente, a única e incerta salvação para tirar o petista da cadeia em relativo pouco tempo. A decisão de Weber era uma incógnita até o início da sessão. De um lado, sempre ficou claro que ela defendia como posição pessoal que a prisão de um réu não pode acontecer antes da condenação na última instância, ou seja pró-Lula. Por outro, ela vinha se submetendo ao entendimento do Plenário da Corte, estabelecido em 2016, que é favorável à prisão após a segunda instância, ou seja contra Lula. Depois de um voto complexo e hermético no qual ela brandiu sua coerência por não desrespeitar a maioria do tribunal, ela inclinou o apertado placar contra Lula.

Weber deixou claro, porém, que está pronta para mudar de posicionamento assim que o Supremo decidir julgar duas Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) que esperam avaliação. As chamadas ADCs debatem o mérito do tema central em discussão: afinal, começar a cumprir a pena, antes de esgotados todos os recursos, viola ou não a presunção de inocência prevista na Constituição? Weber será, se seguir seu entendimento pessoal, favorável a elas. Assim, o placar se inverteria: seria 6 x 5 contra a prisão em segunda instância, o que beneficiaria o ex-presidente.

O problema maior de Lula, no entanto, é que quem decide quando pautar uma sessão para votar as ADCs é a presidenta do Supremo, Cármen Lúcia. A defesa do ex-presidente ainda tentou congelar qualquer novo passo até esse julgamento, mas a tentativa não prosperou. Agora, portanto, a única esperança do petista para evitar a prisão é que a número 1 do Supremo sofra pressão crescente e decida fazer isso antes de que sua ordem de prisão seja emitida pelo TRF-4.

Boa parte da sessão histórica do Supremo girou, justamente, em torno das duras críticas de parte dos ministros à estratégia de Cármen Lúcia, que escolheu pautar o pedido de habeas corpus de Lula, e não o julgamento das ADCs. O tema provocou os maiores enfrentamentos entre os ministros. "Mesmo com mudança anunciada [no entendimento sobre a prisão], o STF decidiu denegar a ordem de habeas corpus de Lula. Isso gera questionamentos ainda maiores sobre a estabilidade da decisão", explicou a professora da FGV Direito de São Paulo e coordenadora do Supremo em Pauta, Eloísa Machado.

O julgamento, que durou mais de 10 horas, foi marcado por alfinetadas entre os ministros, falas duras e críticas, tanto à mídia, por parte de Gilmar Mendes, quanto às pressões do general Eduardo Villas Bôas, comandante do Exército brasileiro, que às vésperas do julgamento lançou mão de frases polêmicas em seu Twitter criticando uma possível "impunidade", caso o STF acatasse o pedido da defesa de Lula. "Insurgências de natureza pretoriana, à semelhança do ovo da serpente, descaraterizam o poder civil ao mesmo tempo em que o desrespeitam", afirmou o decano Celso de Mello, tomando para si o papel de defender o tribunal.

Na divisão do plenário, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Alexandre de Moraes, Luiz Fux, Cármen Lúcia se uniram com Rosa Weber para formar a maioria que negou o habeas corpus do ex-presidente. Alguns resolveram falar apenas do habeas corpus de Lula, outros de debruçaram sobre a tese de fundo. Barroso foi um dos mais eloquentes ao argumentar que, se o Supremo impedisse a execução provisória da pena, entregaria o sistema judicial brasileiro à "impunidade". "Esse não é o país que eu gostaria de deixar para os meus filhos. Um paraíso de homicidas, estupradores e corruptos. Eu me recuso a participar sem reagir de um sistema de Justiça que não funciona. E quando funciona é para prender menino pobre, geralmente primário e de bons antecedentes", discursou.

A minoria que votou a favor de Lula foi formada pelos ministros Marco Aurélio, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski, que já haviam decidido em outras ocasiões pela prisão apenas após o trânsito em julgado da sentença. Gilmar Mendes e Dias Toffoli também concederam o pedido da defesa, ainda que tenham defendido uma tese intermediária: que a prisão seja permitida após decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), sem que se espere uma manifestação final do STF. "Essa corte presume um espaço de proteção e defesa dos direitos fundamentais. Não podemos nos expor à pressões externas, sob pena de completa subversão do regime constitucional”, disse Mello.

Vem Pra Rua Brasil@VemPraRua_br

Comemorações em Brasília.

Fogos em Brasília comemoram decisão contra Lula em registro feito pelo movimento de direita Vem pra Rua.

PT e diz disposto a manter Lula candidato até o fim

Lula assistiu ao julgamento do Sindicato dos Metalúrgicos, em São Bernardo do Campo, seu berço político. Estava acompanhado de apoiadores, militantes e da ex-presidenta Dilma Rousseff numa mobilização que não chegou a ser massiva. Já noite avançada, resolveu se recolher. Além do clima de indignação que se espalhou pelas redes simpáticas ao partido, o clima no PT era um só: a determinação de manter a pré-candidatura de Lula à presidência até onde for possível.

A argumentação é que, tecnicamente, nem mesmo a agora provável prisão do ex-presidente impediria que ele siga se postulando à presidência. Respaldado pelas pesquisas, que mostram o petista em primeiro lugar em todos os cenários, o partido seguirá em silêncio, pelo menos oficialmente, sobre um possível plano B, caso a candidatura de seu maior líder seja legalmente impedida com base na Lei da Ficha Limpa. O apelo para esse rumo não é desprezível: o último levantamento do instituto Datafolha, de janeiro, mostrava o petista com 36% das intenções de voto.

A reportagem apurou que somente Lula poderia tomar a decisão de desistir de sua candidatura. Ou seja, se depender do PT, tudo fica como está, “mesmo que ele seja preso”. Diante da possibilidade de um pedido de prisão iminente, as caravanas que o Partido dos Trabalhadores vinha realizando desde o ano passado pelo Brasil podem ser suspensas. Outra possibilidade que não está descartada é a de o ex-presidente se entregar, quando sair a determinação da prisão, evitando assim, uma operação da Polícia Federal para levá-lo à prisão.

A quarta-feira terminou com grupos de direita anti-Lula lançando fogos de artíficio em alguns lugares, como Brasília, para comemorar a derrota no STF do líder mais popular do país nas últimas décadas. Do outro lado, os apoiadores do PT prometiam resistência e pressão sobre Cármen Lúcia. O Brasil acorda na quinta-feira tenso como na véspera e em contagem regressiva para o próximo capítulo de sua novela política.